Distoma opisthotrias: um novo parasita do gambá*
A lista dos trematódeos observados neste país é comparativamente pequena. Esse fato não se deve atribuir à falta de estudos helmintológicos, mas à escassez de moluscos terrestres e de água doce. Estes servem, geralmente, de hóspedes intermediários aos trematódeos, que acabam a sua evolução em vertebrados aquáticos ou terrestres. Nessas circunstâncias, a descrição de uma espécie nova não deixa de ter certo interesse científico, tanto mais que apresenta uma organização bastante aberrante em comparação com os tipos geralmente conhecidos.
O parasita, que denominarei Distoma opisthotrias, foi encontrado por duas vezes, em número assaz elevado, no intestino de uma espécie de gambá (Didelphis aurita, determinada a partir da descrição fornecida por Burmeister). Tratava-se de machos velhos, apanhados nos arrabaldes de São Paulo, um no Brás e outro a pouca distância, na Mooca. Os dístomos habitam a parte inferior do intestino delgado, que apresenta a mucosa congestionada e coberta de mucosidades espessas, um pouco sanguinolentas. Encontrei também alguns exemplares no intestino grosso, mas estes pareciam achar-se em via de emigração.
Examinando o catálogo de vermes parasitários fornecidos por O. von Linstow, assim como o suplemento dado pelo mesmo autor, encontro três espécies de trematódeos parasitas de várias espécies do gênero Didelphis.Duas pertencem ao gênero Rhopalocephalus, a saber:
Rh. coronatus Rudolphi e Rh. horridus Diesing. Não me foi possível obter a descrição desses vermes, mas, segundo Claus, o gênero é caracterizado pela presença de duas probóscides, guarnecidas de espinhos, na extremidade cefálica. Estes faltam completamente ao nosso dístomo, que fica assim distinguido das espécies de Rhopalocephalus; sendo ele um dístomo legítimo, tampouco pode ser identificado com o terceiro trematódeo encontrado nos gambás, o Hemistomum pedalum Diesing.
Junto com esse Distoma foi encontrado, ambas as vezes, um nematódeo que determinei como Oxysoma tentaculatum Schneider [sic], assim como, uma vez, uma pequena espécie de tricocéfalo, provavelmente o Tr. minutus Rudolphi.
O novo dístomo assemelha-se, por sua forma, às outras pequenas espécies desse gênero. Visto de cima, tem o contorno ovalar ou lanceolar alongado. O diâmetro dorsiventral geralmente é menor que o bilateral, mas em certos estados de contração pode chegar a ser igual ou mesmo superior. Como termo médio, achei as medidas seguintes: comprimento 4 mm, largura 1,1 mm, espessura 0,9 mm; mas estas medidas variam muito quando há contração ou relaxamento parcial da musculatura.
Já com aumento fraco se reconhece distintamente a ventosa bucal, situada na extremidade cefálica, e um pouco inclinada sobre o plano ventral. Comunica diretamente com a faringe de forma esférica, que dá saída aos dois ramos do intestino. Estes correm primeiro na direção dorsal e cefálica, depois fazem uma curva e dirigem-se para a extremidade posterior, seguindo as margens laterais. Terminam-se perto da extremidade caudal e quase em contato um com o outro. Esses tubos intestinais não têm ramificações secundárias e seguem uma linha quase direita quando o animal está bem estendido; mas, quando se contrai, ficam tortuo-sos e até podem formar uma série de alças. Nos cortes distinguem-se facilmente as células epiteliais com base larga e terminando em ponta, na forma de uma chama de vela.
A ventosa ventral é bem desenvolvida e pouco inferior em tamanho comparada com a ventosa bucal. Ela ocupa o campo livre da parte anterior do corpo que se acha entre a faringe e os tubos intestinais.
No terço posterior, o campo limitado pelos dois ramos do intestino é ocupado por três órgãos glandulares de forma esférica, colocados em fileira. Vistos de lado, aproximam-se da superfície dorsal, sendo bastante afastados do plano ventral. O corpo situado no meio é assaz menor que os dois outros, e, na ocasião de fortes contrações, fica comprimido por eles, principalmente na sua parte dorsal. No mesmo tempo, os corpos esféricos afastam-se um pouco da linha do meio, os maiores por um, o pequeno por outro lado.
Entre a glândula do meio e a superfície abdominal, observa-se um corpo muito menor em tamanho e munido de três processos cônicos; dois destes são laterais e correm para fora e na direção da cabeça; o terceiro, situado na linha média e mais perto da extremidade caudal, dirige-se para a superfície dorsal.
O estudo desses quatro órgãos mostra que fazem parte do aparelho sexual, sendo os dois maiores, de estrutura idêntica, os testículos e, o do meio, diferente em tamanho e organização histológica, o ovário. O quarto corpo contém a substância secretada pelos corpos vitelógenos, com os quais comunica pelos processos laterais. Não se pode deixar de considerá-lo como ootipo ou órgão de formação dos ovos. O processo mediano desse corpo parece embocar na porção inicial do útero. Além disso, há uma comunicação com o ovário que creio ter percebido na forma de um canal muito fino e tortuoso, e deve haver outra com o canal de Laurer. Este último é pouco saliente, e só em condições muito favoráveis pode ser reconhecido no animal inteiro. Porém, estudando-o em séries de cortes, reconheci que corre quase diretamente na direção ventridorsal e, passando na linha mediana entre o ovário e o testículo posterior, abre-se logo na superfície dorsal.
O espaço limitado pelos ramos intestinais e o testículo anterior é quase todo ocupado pelas alças numerosas do tubo uterino, sendo a porção inicial situada principalmente na região ventral, e a metade terminal, na parte dorsal. A porção inicial do útero, que na sua totalidade representa um tubo singelo, mas muito comprido e tortuoso, dirige-se, em linha um pouco tortuosa, até a parte do campo médio situada adiante do testículo anterior. Depois de ocupar toda a parte ventral com as suas alças dispostas mais ou menos horizontalmente, atinge a altura da ventosa ventral, onde se dirige para o plano dorsal, para descer da mesma forma em numerosas alças horizontais. Chegado à parte inferior do campo médio, dirige-se em sentido dorsiventral para a cloaca sexual. Não é raro ver umas poucas alças do útero ocupando parte do espaço livre adiante da ventosa ventral. Nos vermes adultos, as alças do útero estão completamente distendidas por um enorme número de ovos com casca espessa, de cor amarelo-pardo, mais clara nos ovos da parte anterior, mais escura nos da porção descendente do útero.
Os campos laterais, isto é, as regiões situadas para fora dos ramos do intestino, são ocupados pelos corpos vitelógenos, formados por grande número de vesículas dispostas em forma de cacho em redor do terço exterior do intestino e ao longo de um tubo excretório. Este está freqüentemente distendido por massa vitelina, o que permite segui-lo até a sua entrada no ootipo. A massa vitelina é granulada e contém muita gordura, como se reconhece pela cor preta intensa que lhe dá uma solução de ácido ósmico. Tem também uma grande afinidade por certas matérias corantes, o que permite reconhecê-la tanto na glândula vitelógena e no seu duto excretório, como no ootipo e nos seus processos e até nos ovos recém-formados, onde a casca, menos escura ainda, permite observar a reação. Nos exemplares mais velhos, os corpos vitelógenos são esgotados, e a massa vitelina está quase desaparecida fora dos ovos.
A cloaca sexual é situada no plano ventral e na linha mediana, na altura da margem anterior do primeiro testículo. Assim, fica mais perto do centro que o ootipo, mas ainda longe de ventosa ventral. Contém um cirro muito volumoso, situado na sua bolsa ou mais ou menos saliente, e a vulva, que se acha mais perto da extremidade caudal. A última parte do vaso deferente é freqüentemente distendida por esperma, aparecendo, então, na forma de um canal grosso e tortuoso, situado entre o cirro e a superfície dorsal. Não pude perceber distintamente os tubos excretórios dos testículos, que nunca encontrei distendidos, mas creio que estão situados no plano dorsal.
Os ovos são pequenos, ovais, achatados de um lado e munidos de um opérculo. Existem em número enorme nas alças uterinas, mas são raríssimos nos excrementos dos animais infectados. Isso parece indicar que, como regra geral, o verme emigra com toda a sua provisão de ovos, quando as glândulas germinais e vitelógenas estão esgotadas. (Parece que os testículos deixam de funcionar já bastante cedo, depois de ter fornecido a quantidade necessária de esperma, mas conservam a sua forma, enquanto os corpos vitelógenos ficam manifestamente atrofiados.) Encontrei no reto dos gambás alguns dístomos com os corpos vitelógenos esgotados, e julgo que estavam em via de emigração, por faltar qualquer irritação da mucosa retal. Infelizmente, essa questão fica em dúvida porque os gambás só puderam ser examinados algum tempo depois da morte, quando os dístomos já estavam destacados. A evolução ulterior dos ovos só parece ter lugar depois de terem deixado o intestino do gambá. Conservando alguns dístomos na câmara úmida, depois de cinco dias encontrei nos seus corpos, quase dissolvida, certa proporção de ovos com embriões já formados. Suponho que as rédias e cercárias desse dístomo devem ser encontradas em moluscos terrestres e talvez em espécies de Limacidae, mas não me foi ainda possível esclarecer este ponto.
Ainda não falei do sistema vascular excretorio. Consiste num porus excretorins curto, situado ventralmente na extremidade caudal. Divide-se logo em dois ramos laterais que quase imediatamente se subdividem. Não pude determinar todas as ramificações, porque, quando vazios, são imperceptíveis, e só raramente encontrei uma ou outra parte do sistema vascular bem distendida.
O calibre, então, pode ser considerável, mas o conteúdo é pouco visível, e só raras vezes contém algumas gotinhas ou grânulos que se enegrecem, tratados pelo ácido ósmico. O que reconheci, geralmente com bastante facilidade, são dois vasos longitudinais, um ventral, outro dorsal, que seguem o lado exterior dos dois tubos intestinais e fazem anastomose por meio de uma alça tortuosa, situada por fora do bulbo da faringe. Tal disposição encontra-se dos dois lados, mas não se percebe anastomose entre eles. Os tubos sempre aparecem tortuosos, evidentemente porque o seu comprimento corresponde à extensão longitudinal máxima do corpo do dístomo.
O parênquima do corpo é bastante sólido, lembrando, na sua aparência, o tecido conectivo reticular; no animal adulto, parece muito reduzido pelo desenvolvimento das alças uterinas. A cutícula é transparente e, quando contraída, disposta em pregas transversais, apresenta, em grande extensão, pequenas espinhas ou escamas pontuadas, principalmente na parte dorsal-cefálica e na superfície ventral.
Na extremidade cefálica, percebi algumas células maiores situadas debaixo da cutícula, nos campos laterais. Não pude estudar o sistema ganglionar e nervoso por ser muito indistinto nesta espécie pequena. A estrutura das ventosas e do bulbo faríngeo não oferece particularidades, faltando o divertículo em forma de papo que se encontra no Distoma hepaticum. Por causa de sua inclinação, a ventosa bucal é um pouco assimétrica, sendo a metade ventral e posterior mais curta do que a outra.
Quando fiz essa descrição, julguei que o nosso dístomo era distinto de todas as outras espécies pela sua organização aberrante, mas, há pouco, achei num trabalho de Looss (Ueber die Distomen unserer Fische und Froesche) o desenho de uma espécie análoga. Trata-se do Distomum leptostomum descoberto por Olsson no Meles taxus e observado por Looss no ouriço (Erinaceus europaeus). Essa espécie é tão semelhante à nossa por sua organização e até pelo seu tamanho que se podia quase julgar idêntica, não obstante a diferença do habitat. Mas sempre acho algumas diferenças: o desenho de Looss não mostra as espinhas da cutícula que ele não podia ter deixado de observar, porque sempre estudava exemplares frescos, nem podia ter omitido nos seus desenhos muito bem executados. Também falta a curva do princípio dos intestinos, e na sua espécie o bulbo faríngeo não se junta imediatamente à ventosa bucal. Enfim, a disposição dos vasos excretórios não deixa de ter as suas diferenças, que parecem excluir uma identificação, mas esse ponto precisa ainda de estudos ulteriores.
Explicação das figuras
1) Verme adulto. Face abdominal. Aumento 25 v.
2) Corte sagital do verme adulto, um tanto contraído. Aumento 25 v.
3) Corte transversal pela parte central de um verme adulto. Aumento 25 v.
4) Ovo. Aumento 500 v.
Abreviações: v.c. - ventosa cefálica, b.ph. - bulbo da faringe, v.a. - ventosa abdominal, t.u. - tubo uterino, c.v. - corpo vitelógeno, t.a., t.p. - testículo anterior e posterior, ov. -ovário, oo. - ootipo, ci - cirro, cl. - cloaca sexual, v.s. - vaso deferente, formando uma vesícula seminal, v.e. - vasos excretorios.
Outra espécie semelhante foi descoberta também no ouriço europeu por O. von Linstow, que lhe deu o nome D. caudatum; distingue-se dos outros dois por um apêndice caudal retrátil.
Se se trata, com efeito, de três espécies diferentes, não deixam de ter relações muito estreitas e provavelmente terão uma evolução análoga. É de supor que os dístomos novos passam junto com o seu hóspede intermediário para o intestino de seus hóspedes definitivos, o que é facilitado pelo modo de alimentação destes últimos.
Os gambás especialmente têm hábitos onívoros; comem frutas, passarinhos, ovos e até, como se sabe, gostam tanto da aguardente de cana que se deixam apanhar por esse meio. No estômago de uma espécie achei uma Caecilia grande. Cinco exemplares apanhados perto de Santos tinham, nos seus intestinos, grande número de espécie de Echinorhynchus muito parecida e talvez idêntica ao E. gigas, que nesse estado já observei nos porcos. Este tem como hóspede intermediário conhecido a Melolontha vulgaris, que no Brasil deve ser substituída por outras espécies de besouros. Indica este fato que o gambá não despreza insetos e, em tempos de fome, provavelmente come qualquer espécie de bicho pequeno.