(Segunda nota prévia)*
Em comunicação anterior, acompanhei o desenvolvimento do Schistosomum mansoni, desde o ovo com embrião até a produção de cercárias pelo caramujo infectado. Nessa parte havia, ao lado de uma confirmação geral dos trabalhos de Leiper, vários fatos de observações novas e de interesse especial para as nossas condições locais. Não quis esperar o resultado de experiências em animais para não demorar a publicação da parte mais essencial. Hoje, todavia, posso confirmar com observações próprias o que ficou já conhecido sobre a evolução das cercárias para os esquistossomos adultos.
Principiei a segunda parte do meu estudo com uma dúzia de caramujos de Aracaju, nos quais a infecção experimental tinha sido verificada e que todos produziam cercárias típicas, como se provou pelo isolamento, em água pura, durante as horas do trabalho. De noite e de manhã cedo permaneciam em condições mais favoráveis, em aquários maiores, com plantas aquáticas. Nas primeiras horas apareciam poucas cercárias; pouco a pouco aumentava o número até a tarde, que era mais própria para experiências. Também nas primeiras semanas a produção de cercárias era fraca, aumentando depois até tornar-se muito abundante.
As cercárias correspondiam ao que se sabe das cercárias, em geral, e das de Schistosomum, em particular. O corpo consiste de uma parte, que corresponde ao parasita encontrado em mamíferos, e outra posterior ou caudal, que serve apenas para a vida livre, sendo abandonada no entrar do parasita. Na parte anterior das cercárias encontram-se as ventosas, o intestino mais ou menos rudimentar, e os primeiros rudimentos do aparelho genital, do sistema nervoso e do aparelho excretório, tudo muito transparente e pouco distinto. A parte caudal, que serve para locomoção, varia muito na forma. Nos casos mais freqüentes e simples é uma peça cilindro-cónica como a cauda de um lagarto, muito contrátil e móvel, apresentando vibrações laterais muito rápidas e enérgicas que continuam ainda por bastante tempo depois da separação do tronco.
A primeira cercária de Schistosoma descrita era aquela do Sch. japonicum, encontrada por Miyairi e Suzuki em um molusco de água doce, que me parece uma Bithynia, gênero não representado entre nós.
A descrição e as figuras foram publicadas em 1914. (O trabalho me passou despercebido e só ultimamente tive conhecimento dele, depois que me foi indicado pelo dr. L. Travassos.) Vê-se que as cercárias têm a cauda terminada em forquilha, que falta um bulbo faríngeo e que, do lado dorsal da ventosa abdominal, grande parte do corpo é ocupada por seis grandes glândulas unicelulares, cujos condutos se abrem na extremidade anterior, perto da boca. Essas cercárias, segundo os autores, nasceriam em rédias secundárias, mas, na realidade, parece tratar-se de esporocistos sem ventosa e intestino, como se observa também para as outras espécies de Schistosomum.
Com esses dados, a procura de cercárias de Schistosomum torna-se muito mais fácil do que era para os antigos pesquisadores no Egito que, entre muitas cercárias observadas, não conseguiram reconhecer aquela do Schistosomum. No mesmo terreno, a comissão chefiada por Leiper encontrou quatro espécies com esses caracteres. Entre nós, onde as condições são muito menos favoráveis, encontrei apenas meia dúzia de espécies de cercárias, entre as quais uma, de uma espécie de Semisinus (Melaniidae), tinha os caracteres dos de Schistosomum. Encontrei outra espécie com cauda bifurcada, mas sem ventosa abdominal, que se distingue por duas manchas oculares. Provém de rédias bem caracterizadas, que ocorrem em alguns exemplares dos Planorbis, encontradas em Manguinhos.
Depois da minha última nota recebi, por duas vezes, maior número de Planorbis olivaceus da Bahia. Foram mandados pelos drs. Pirajá da Silva e Octávio Torres. Tampouco como os de Aracaju mostravam infecção espontânea, mas destes últimos obtive, por infecção artificial, bastante material para estudos. As cercárias fornecidas concordavam com os desenhos e descrições pouco detalhados, dados por Leiper, dos esquistossomos humanos, e com os do Sch. japonicum. Têm na cabeça uma coroa de seis ou mais pequenas pontas, lembrando uma coroa de trepano e que considero ser um órgão perfurador. Não foi mencionado por Leiper, mas os japoneses não deixaram de observá-lo sem lhe atribuir a importância que parece ter. A ventosa bucal, alongada em forma ovóide, parece ter as fibras radicais pouco desenvolvidas, mas o seu fundo (onde nasce o esôfago não precedido de bulbo) pode ser levantado até o plano anterior ao mesmo protruso em forma de probóscide, participando no ato da perfuração por um movimento de broca.
A parte forquilhada da cauda consiste, nessa espécie, de uma peça subfusiforme separada, adaptada pelo meio na extremidade truncada da cauda e capaz de dobrar-se no meio até formar um prolongamento desta.
Na superfície da água assume uma posição transversal retilínea e sustenta a cercária que fica com o tronco dependurado. Ao nadar, a cauda vibra com muita rapidez, facilitando assim o reconhecimento da cercária, aliás, pouco perceptível. A parte anterior, pouco desenvolvida, faz que as cercárias com poder fraco lembrem a aparência dos espermatozóides.
Pelo exame dos moluscos infectados verifica-se que as cercárias nascem em esporocistos, encontrados em grande número no fígado e na glândula bissexual. Nos folículos infectados do fígado, o tecido glandular desaparece, o que explica o estado de atrofia e marasmo, muitas vezes observados nos Planorbis infectados. O caramujo que mais durou morreu com três meses de infecção, depois de ter provavelmente produzido alguns milheiros de cercárias; no fim desse período a produção já estava muito diminuída.
Para produzir a infecção pelas cercárias, lançamos mão de vários procedimentos. Nos coelhos pode-se introduzir a água contendo os embriões dentro do pavilhão das orelhas, onde cabe uma boa quantidade, ficando os coelhos dentro de uma cuba alta e pouco larga. Nela podem se dar banhos de assento a cobaias, coelhos e cachorrinhos. Todavia, com os roedores, o melhor processo é amarrá-los por meio de tiras de gaze, que não machucam, numa mesinha apropriada, e aplicar as cercárias num lugar depilado do abdome, por meio de um tubo de vidro largo, como se faz nos banhos da porção vaginal por meio de um espéculo de Fergusson.
Depois de algum tempo, encontram-se dentro do líquido as caudas destacadas, enquanto os corpos das cercárias desapareceram com poucas exceções. Para assegurar o efeito, o tempo devia ser de meia a uma hora, e o número de cercárias bastante grande. Nessas condições os animais de experiência acusam comichão e pode haver uma reação local, perceptível durante os primeiros dias. Na penetração, a secreção das grandes glândulas unicelulares, situadas atrás da ventosa abdominal, e a coroa de pequenos espinhos, situados em redor da ventosa bucal, devem fazer um papel ativo.
A penetração pela pele é independente de orifícios, nos quais aparece a mucosa, e das glândulas cutâneas, como Leiper verificou em cortes. Num camundongo novo, Leiper verificou a penetração já depois de dez minutos, mas, nas experiências em animais adultos, julgo esse tempo insuficiente para um resultado completo, baseando-me para isso no exame dos líquidos empregados.
Os roedores e os macacos se infectam facilmente, como já verificou Leiper. Eu mesmo obtive resultados positivos com as experiências todas em coelhos (5) e cobaias (3), em que foram usadas bastantes cercárias e havia decorrido certo tempo, durante o qual os esquistossomos atingem um tamanho que facilita a observação e alcançam o fígado e o mesentério.
Nas condições opostas, se o animal morre poucos dias depois da infecção e o número das cercárias foi pequeno, a pesquisa dos esquistossomos pode dar resultado negativo.
Nas fezes das cobaias infectadas encontrei ovos de Schistosomum mansoni apenas depois de 2,5 meses e ainda pouco numerosos, o que não se explica apenas pelo grande volume das dejeções. Nos cortes do intestino do coelho mais infectado, os ovos na submucosa ainda eram bastante raros e não havia indicação do processo de eliminação. Em outros coelhos e em dois cachorrinhos infectados, mesmo depois de três meses, não encontrei ovos. É possível que estes últimos animais não se prestem para experiência, mas dos coelhos e cobaias pode-se concluir que a eliminação dos ovos é um processo lento, que muitas vezes só se verifica bastante tempo depois de terem os vermes chegado ao estado adulto, fato que tem importância para a parasitologia humana. Os fenómenos mórbidos sendo geralmente devidos às alterações produzidas pelos ovos, a infecção no princípio pode passar despercebida e a ausência de ovos nas dejeções, só depois de exames repetidos com semanas de intervalo, passadas em condições normais, permite excluir uma infecção recente. Sobre o modo pelo qual a eliminação dos ovos se realiza ainda paira muita dúvida, não obstante os estudos feitos por Letulle e outros pesquisadores.
Algumas observações da literatura médica e as experiências de Leiper provam que a eliminação dos ovos já pode ser observada relativamente cedo. Todavia, creio que nos casos seguros se tratava de infecções muito intensas, sendo o número de ovos muito inferior ao que se teria observado mais tarde.
A infecção no princípio é bem suportada. Os casos de doença ou morte observados entre os animais de experiência eram devidos a coccídios ou a outras causas independentes da experiência. Um coelho, o n° 5, que se achava nas melhores condições de nutrição, sofreu um traumatismo, em conseqüência do qual teve de ser sacrificado. Todas as veias do mesentério, desde o estómago até o ânus, continham grande número de parasitas, podendo-se contar de fora cerca de 50 em cada veia maior. Ao todo, havia número maior de 500, sem contar o grande número que se achava no fígado. As veias estavam cheias de sangue, mas não entupidas pelos vermes, que se moviam ativamente.
Vermes adultos, com os órgãos sexuais bem desenvolvidos, já se encontram depois de cinco a seis semanas e, segundo Leiper, já nessa ocasião poder-se-iam encontrar ovos nas fezes. Isto não está de acordo com as nossas observações e só se pode explicar pelo fato de que os animais de Leiper foram colossalmente infectados. Mesmo depois de dez semanas, as cobaias, bastante infectadas, só eliminavam poucos ovos. Nos cortes do intestino e do fígado do coelho, aqui mencionado, encontram-se ovos na submucosa em pequenos grupos dentro de um tecido de granulação, mas não na superfície da mucosa.
Os vermes observados mostravam dimensões um pouco inferiores às que se devia esperar pelas indicações da literatura. Podia-se atribuir isto à diferença do hospedeiro, mas um casal de origem humana (que recebi do dr. Octávio Torres) não era maior. É possível que o Schistosomum que fornece os ovos de espinho terminal seja um pouco maior, como também a fêmea costuma conter mais ovos.
O intestino da fêmea (e em menor grau o do macho) costuma estar cheio de massas pardo-enegrecidas, provenientes da digestão do sangue, o que o torna muito característico. Em cortes do fígado, as fêmeas seriam pouco conspícuas em seção transversal, se não fosse a aparência característica do intestino, cortado em um ou dois pontos, conforme a região. Além disso, reconhecem-se também pelo lume dos canais excretórios e, nos machos, também as escamas cutâneas são bastante características. Os parasitas acham-se nas veias centrais dos lóbulos.
Em publicações mais recentes, Leiper distingue formalmente entre o Schistosomum mansoni e o outro. Apenas o primeiro tem por hospedador um Planorbis. O hospedeiro principal no Egito, o Pl. boyssii, é muito menor que o nosso olivaceus e parece-se mais com o nosso nigricans, que não transmite a moléstia.
Pelo resto, em que as condições eram comparáveis, as minhas experiências sempre confirmaram as de Leiper, que merecem todo o crédito, tanto por seu trabalho como pela exposição dos resultados.
A distribuição da esquistossomose no Brasil ainda é um problema que convém estudar. Provavelmente corresponderá àquela do Planorbis olivaceus, que é uma espécie do Norte, vivendo em água doce, mais ou menos estagnada, principalmente em lagoas, com vegetação aquática. Águas nessas condições, que contêm caramujos da forma de Planorbis, não devem servir para beber, nem para tomar banho. Onde existem esses moluscos geralmente é fácil vê-los, porque costumam ser abundantes, de modo que, em certas ocasiões, servem para alimentar porcos. A sua infecção e o grau desta dependerão de condições locais, como também a profilaxia, que não oferece grandes dificuldades.
Até hoje a moléstia foi constatada, com certeza, apenas nos estados da Bahia, Sergipe e Piauí. Existe provavelmente também na Paraíba e em Pernambuco. Ao sul da capital da Bahia não foi encontrada ainda. Não é provável que no Rio de Janeiro e mais para o sul sejam observados casos infectados naquela zona.