Observações sobre o gênero Urogonimus e uma nova forma de Leucochloridium em novo hospedador*

O organismo que recebeu o nome de Leucochloridium paradoxum é um dos exemplos mais extraordinários da adaptação, e a elucidação de sua natureza constitui um dos capítulos mais curiosos da helmintología. O nome foi dado por Carus a uma deformação parasitária, observada nas antenas de um molusco europeu do gênero Succinea. Pela cor e pelos movimentos, lembra uma larva ápode de inseto, a tal ponto que os pequenos pássaros insetívoros a arrancam das antenas dos caramujos, engolindo-a para alimentação dos filhotes.

Examinando um desses utrículos parasitários encontra-se nele grande número de trematódeos larvais enquistados. Hoje a conclusão natural é que se trata de um esporocisto modificado, mas no tempo dos primeiros observadores os conhecimentos atuais não bastavam para a explicação. As observações do Leucochloridium eram raras e feitas com grandes intervalos. Finalmente a questão, já bastante adiantada por Carus e V. Siebold, foi completamente elucidada pelos trabalhos de Zeller e Heckert. Verificaram que as formas larvais pertenciam ao Distomum macrostomum, encontrado na cloaca de diversos pássaros cantores conirrostros. Infectaram várias espécies, notando que a infecção só se dava nos filhotes. Os ovos do D. macrostomum, quando ingeridos, produzem nas succíneas esporocistos, ramificados em forma de micélio; certas terminações, lembrando ascos, recebem os distómulos e fazem saliência pelas antenas oculares que são as únicas bem desenvolvidas nas Succineinae. Se um dos utrículos for arrancado, é substituído em pouco tempo por um outro, sem que o hospedeiro seja prejudicado.

O Distomum macrostomum, colocado hoje geralmente no gênero Urogonimus, embora Leucochloridium pareça mais correto, tem como caráter distintivo a colocação dos poros genitais na extremidade caudal e o tamanho relativamente enorme das duas ventosas. Suponho, todavia, que debaixo deste nome se escondem duas espécies. A menor vive em pequenos conirrostros e a maior em frangos d’água. A primeira, com que os autores experimentaram, tem um leucoclorídio branco, vermelho e verde, a segunda deve ter um leucoclorídio com pigmento pardo, porque utrículos desta cor foram notados por Heckert.

A forma observada nos frangos d’água tinha sido chamada por Rudolphi D. holostomum. Heckert aboliu o nome por achar que apresentava com o D. macrostomum apenas diferenças de tamanho. Estas, todavia, são tão marcadas que indicam a probabilidade de encontrar-se também outros distintivos, tanto mais que o próprio Heckert observou leucoclorídios de outra cor que não foram usados para experiências e podiam bem pertencer ao dístomo das Rallidae.

Monticelli descreveu uma nova espécie, de origem desconhecida, pelo nome de cercatum. A cauda, a que ele liga grande importância, é apenas o cirro cuja extensão é freqüente. Há diferenças no tamanho das ventosas e na posição das glândulas genitais que não se poderia ignorar, se fossem observadas em mais de um exemplar. Tratando-se apenas de um e este de procedência ignorada, a espécie não pode ser considerada bem estabelecida. Pelo tamanho não se distingue do D. holostomum.

Looss descreveu um Urogonimus insignis encontrado no Egito numa Fulica atra. O hospedeiro e o tamanho da espécie indicam que se trata do U. holostomus. Achou os ovos um tanto maiores que no macrostomus, que também é muito menor e tem acúleos na pele, enquanto a espécie de Looss era inerme.

Eu mesmo encontrei exemplares de Urogonimus em Gallinula galeata da vizinhança do Instituto e um Parra jaçana de um ponto mais distante. Neste último ralídeo, mais conhecido pelo nome de piassoca, encontrei apenas um exemplar; dois frangos d’água me forneceram, respectivamente, 11 e 1. Mais tarde encontrei 24 exemplares de um pequeno Urogonimus num pardal europeu. (Como aqui todo mundo sabe, esse passarinho foi trazido para o Rio há poucos anos, mas já se tornou comum e espalhado.) Nesse passarinho, conforme a regra geral, a sede era a cloaca ou bolsa de Fabricius.

Os exemplares do pardal regulavam apenas a terça parte do comprimento dos outros (de 1,5 a 2 contra 6 mm), não obstante serem maduros e cheios de ovos. Estes não eram distintamente menores, comparados com os da forma maior, mas esta comparação foi feita em preparações de bálsamo. Nas formas por mim observadas, os espinhos ou escamas da pele pareciam faltar quando os exemplares não eram examinados em vida. São pequenos, caducos, e alteram-se, facilmente, de modo que não representam um bom caráter diferencial.

Não posso afirmar que no meu caso se trate de espécies diferentes das observadas na Europa. As dimensões e os hospedeiros falam, antes, pela identidade. Todavia é possível que uma comparação minuciosa dos tipos (que não posso fazer presentemente) mostraria diferenças ou que haja divergências evidentes nos estados anteriores.

Naturalmente tratei de procurar esses estados anteriores tão interessantes, logo que tinha verificado a ocorrência de um Urogonimus em nossa região. Sabia que há uma ou mais espécies de Succinea, que, contudo, são pouco abundantes. Nunca as achei infectadas e também pareciam faltar na vizinhança do Instituto. Lembrei-me de procurar os primeiros estados em outros moluscos e principalmente num que pelos seus hábitos lembrava as succíneas, mas parecia-se mais com uma lesma. Só o tinha encontrado em plantas crescendo em redor ou mesmo por dentro da água, mas nestas era, às vezes, muito abundante. Somente no dia 1° de dezembro consegui obter um exemplar infectado e outro no dia seguinte. Em seguida, foi feita uma busca metódica em três ocasiões e foram encontrados cerca de trinta exemplares infectados entre algumas centenas, observadas principalmente em lugares onde a água já era bastante funda. Na lagoa abundam os frangos d’água.

Já antigamente tinha procurado determinar estes moluscos que achei muito abundantes no Norte do Brasil, mas não encontrei nada que se referisse a eles na literatura à minha disposição. Concluí que o gênero não devia existir na Europa. Agora recomecei as minhas pesquisas e achei que se tratava, com efeito, de um gênero puramente americano, chamado Homalonyx e fazendo parte das Succineidae. Há duas espécies mencionadas do Brasil, tumida e unguis; não consegui obter as descrições da primeira, mas é lícito supor que se trata de unguis por ser a espécie mais comum. Os nomes do gênero e da espécie referem-se à casca, que na sua forma e fixação, lembra uma unha, havendo apenas um vestígio indistinto de uma espira. Cobre apenas a parte média do corpo e pode ser facilmente retirada sem prejuízo para o animal. No seu livro Voyage dans l'Amérique Méridionale Paris, 1847, D'Orbigny estabeleceu o subgênero Omalonyx (T. V. p.229). Dá uma descrição e figuras que se referem a exemplares colhidos por ele ou em Corrientes ou na Bolívia. Os desenhos (Atlas, mollusques Pl. 82) parecem aumentados 2,5 vezes e as cores não combinam bem com os nossos exemplares, que não me parecem diferir da espécie que encontrei freqüentemente no Norte do Brasil. D'Orbigny só reconhece uma espécie, unguis; todavia é possível que os seus exemplares pertençam a outra espécie. Os caracteres do gênero do nosso molusco são amarelos ou pardacentos, variando um pouco na sua cor. O corpo com cerca de 20 mm. de comprimento permanece sempre estendido como nas lesmas.

As antenas anteriores são muito reduzidas. Os olhos na extremidade do segundo par e a formação da rádula provam a sua posição entre as Succineinae.

Os exemplares infectados mostram uma antena ou ambas substituídas por um corpo cónico ou cilindro-cónico, muito mais grosso e de cor amarelada; lembra a extremidade de uma larva de mosca. Apenas metade está dentro da antena, mas com uma pequena pressão, esta arrebenta e o artículo de 15-20 mm de comprimento sai, ficando ainda preso por um tubo filiforme. Notam-se na metade anterior algumas manchas pardacentas, perto do meio uma estreita cinta pardo-escura e na metade posterior um sistema de pequenas pregas longitudinais.

Dentro do corpo do hospedeiro permanece um tubo ramificado com outros utrículos mais ou menos maduros, como na Succinea. Esses utrículos podem ser vistos por transparência quando o molusco, fixado numa placa de vidro, é examinado pela face ventral. Num exemplar havia três utrículos nas antenas (sendo uma duplamente infectada) e percebiam-se mais três no corpo.

Os utrículos contêm grande número de dístomos, enquistados em segunda membrana como no Leucochloridium paradoxum, mas eles já têm o tamanho que se observa no U. macrostomum adulto. Existem espinhos cutâneos muitos finos na parte anterior. O sistema excretório é muito visível, mas no genital verificam-se apenas esboços rudimentares.

Em cerca de trinta exemplares de Homalonyx infectados, todos os utrículos parasitários eram iguais e bem distintos do Leucochloridium paradoxum, pela cor e, aparentemente, também pelo tamanho. Nunca havia pigmento verde ou vermelho. Trata-se certamente de outra espécie, mas podia talvez ser referida aos urtrículos pardos de ocorrência rara, mencionados por Heckert, se a figura colorida não parecesse tão diferente.

Não atribuo uma importância fundamental à diferença do hospedeiro, visto que os dois gêneros pertencem à mesma família. Creio que o Leucochloridium paradoxum ou espécie muito semelhante que infecta os pequenos pássaros deve ocorrer nas nossas espécies de Succinea ou Homalonyx.

O material abundante de parasitas de Homalonyx foi aproveitado em experiências com pássaros que consegui obter na ocasião. Tive um resultado completamente negativo examinando um Molothrus bonariensis adulto 19 dias depois da ingestão de vários utrículos e um filhote de pombo que recebeu material uns quatro dias antes. Também em dois pardais novos, mas já com penas, o intestino não mostrou tremátodes alguns dias após a ingestão.

Dei também alguns leucochlorídios a um Nycticorax violaceus, tirado do ninho em estado completamente novo. Criado em temperatura alta com alimentação artificial, sobreviveu 3 a 4 dias à ingestão de alguns leucoclorídios. No exame encontrei na última parte do intestino vários exemplares de Urogonimus que já tinham largado a mucosa. Mostravam muito bem o intestino e o sistema excre-tório. A ventosa cefálica parecia bastante maior do que o acetábulo, mais aproximada da extremidade caudal, em razão do pequeno desenvolvimento do sistema genital. Este era representado apenas por esboços pequenos.

Tendo recebido um pintinho Gallinulla galeata, que, a julgar pelo tamanho, acabava de sair do ovo, dei-lhe um leucoclorídio. Já no dia seguinte foi encontrado morto. Os tremátodes engolidos foram encontrados livres na parte superior do intestino, vivos, mas sem vestígios de desenvolvimento ulterior.

O melhor resultado foi obtido com um exemplar adulto de Porzana (Ortygometra) albicollis, espécie menos aquática da família Rallidae. Vinte dias depois da ingestão de utrículos provenientes de antenas de várias Homalonyx, mostrou na última parte do intestino quatro exemplares de Urogonimus, sexualmente maduros. Posto que relativamente pequenos combinavam com exemplares dos frangos d’água. Não eram muito cheios de ovos, o que indica que eram de desenvolvimento recente. Por esta e várias outras razões uma infecção anterior pode ser excluída com a maior probabilidade.

Aditamento (1.VI.21). Ultimamente foi obtida também a infecção experimental de uma Gallinula galeata adulta e de uma Porphyriola martinica quase adulta. Da primeira foi retirado um exemplar sem ovos seis dias, do segundo um adulto 22 dias depois da infecção. Foram tirados das aves vivas por curetas e pinças curvas.

Fica assim estabelecido que os adultos também se infectam.