CAPÍTULO 1
Domingo, dia da estreia da seleção brasileira na Copa do Mundo de 1986. A cidade estava agitada e ansiosa pelo início do torneio. Eu tinha um dia inteiro de trabalho pela frente.
Fizemos a preleção dando a instrução tradicional do que seria feito no dia de trabalho e todos embarcaram. No pátio do batalhão, a ciranda com as viaturas teve início: trata-se de um ritual de comboio, em que todos os veículos giram em círculo antes de zarpar. O comando à frente é seguido pelo comboio e, assim, todo o pelotão se prepara para sair. O ritual aumenta a motivação da tropa, e a tradição e o espírito de equipe são reforçados e mantidos. Toda equipe especial, em qualquer país do mundo, estimula o senso de pertencimento dos seus policiais, e por isso são criados os rituais. Os soldados sentados à janela colocavam os braços para fora da viatura; alguns projetavam a cabeça, ou só o rosto, e encaravam um ponto imaginário como se estivessem caçando uma presa. A velocidade das viaturas ia subindo enquanto giravam em círculo no pátio e, aos poucos, os sinais sonoros das sirenes e os luminosos Giroflex eram ligados. Essa era a hora do batalhão. A hora da ROTA (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) ir para a rua.
Quando o ritual atingiu o ponto alto, um soldado do corpo da guarda acionou o semáforo exclusivo que segurou o trânsito na pista lateral da avenida Tiradentes, no centro de São Paulo. Nesse momento, a minha viatura de comando saiu do quartel e acessou a avenida acelerada, e foi seguida pelas demais viaturas, uma atrás da outra, como se formássemos uma enorme serpente. Esse era um desfile diário que impunha respeito. O deslocamento aconteceu até a praça Campo de Bagatelle, onde há uma rotatória enorme que dá acesso a diversas regiões da cidade. De lá saem vias em direções variadas. Chegando à praça, liberei o comboio e cada equipe seguiu o seu destino de acordo com o planejamento prévio.
Orientei o motorista da minha viatura a seguir pela avenida Ataliba Leonel, no bairro de Santana, na zona norte. Chegamos à avenida Luís Dumont Villares, que nos levaria ao bairro do Tucuruvi, já bem próximo ao 39º Distrito Policial. Estávamos bem devagar, em velocidade de patrulhamento, quando, em um cruzamento, o sinal ficou amarelo. Logo ficaria vermelho e não daria tempo para cruzá-lo; não era o caso de acelerar, uma vez que não tínhamos pressa. A viatura estava quase parada, quando um veículo modelo Monza, com cinco ocupantes, cruzou a nossa frente. Algo inusitado marcou aquele momento, pois todos da guarnição perceberam a “tremida” do motorista. Policial que trabalha na rua desenvolve percepções sutis que se tornam alarmes e que levam a abordagens. Nós chamamos isso de tirocínio policial, outros dizem ser olho clínico.
Convencidos pela suspeita, não tivemos dúvidas e, quase simultaneamente, gritamos para o motorista da viatura acompanhar o carro com os cinco ocupantes em atitude suspeita. Ao perceber a viatura no encalço, o motorista do Monza acelerou, com a nítida intenção de fugir, e seguiu rumo a uma ladeira de paralelepípedos, correndo demais. Quando chegou ao final da ladeira, o motorista perdeu o controle do Monza. O choque foi inevitável. Ele parou na traseira de uma Brasília que estava estacionada à sua direita. Foi uma baita pancada.
Quatro coisas curiosas aconteceram na sequência. A primeira foi o motorista do Monza sair correndo para a esquerda, tentando evadir pelos corredores entre as casas. A segunda foi o suspeito que estava no banco da frente sair pela direita tentando fugir do mesmo modo em sentido oposto, talvez com o propósito de confundir ou dividir a equipe da polícia. A terceira foi os três ocupantes do banco traseiro, segurando um tijolo de maconha, ficarem por ali mesmo, atordoados com o impacto da colisão. E, por fim, a Brasília atingida pelo Monza ficar com a traseira destruída e toda a parte interna lambuzada de sagu. Mais tarde, descobri que a família proprietária do veículo iria assistir ao jogo da Copa em casa de parentes e tinha preparado a sobremesa para o almoço, tendo colocado uma tigela rasa com o sagu sobre o tampo do motor. O choque violento fez o doce se espalhar.
O motorista da viatura ficou por ali mesmo e deteve os três ocupantes que ainda estavam no carro, zonzos pela colisão. Dois policiais foram ao encalço do bandido que tinha fugido pela direita; meu auxiliar e eu fomos atrás do motorista, que tinha corrido para a esquerda. Naquele bairro, Parada Inglesa, há muitos morros e a geografia da região é acidentada. A rua onde houve o acidente fica num plano superior ao das casas. Em certo sentido, isso é uma vantagem para a polícia, pois a angulação descendente nos ajuda a não perder o contato visual durante a fuga alucinada. O motorista suspeito fugia pelos corredores entre as casas, e dava para perceber a sua ansiedade por desaparecer da nossa frente, além da arma que levava na mão, que brilhava quando o sol refletia nela. Dávamos ordem para ele parar e gritos para as pessoas se abaixarem onde estivessem, uma vez que havia muita gente em casa e crianças nas ruas. O suspeito pulava muros, corria por cima dos telhados, promovendo um início de pânico pela vizinhança. Até o momento em que ele afundou num telhado de amianto e desapareceu.
Rapidamente, safou-se dentro da casa onde caiu, saiu sabe-se lá por onde e continuou fugindo. Nós, seguindo o seu rastro, ainda estávamos em cima do telhado. Tentávamos andar sobre as vigas e os parafusos que fixavam as telhas para não pisar em falso e ter o mesmo destino que ele, mas foi inútil. Acabamos caindo também.
Nem por isso interrompemos a perseguição a pé, porque a vantagem era nossa. Para quem está sendo perseguido, a situação é sempre mais delicada, pois além do pânico da perseguição e o perigo do desconhecido à frente e atrás, tem-se de encarar a tomada de decisão rápida sobre o caminho a ser escolhido. Isso tira décimos de segundo da sua dianteira e os dá à polícia, que vem logo atrás.
A condição física do criminoso era precária. Dava para perceber que a distância diminuía à medida que a correria avançava. Na iminência de ser alcançado, ele apelou para o tudo ou nada. Subiu em outro telhado que ficava a uns quinze metros de distância à nossa frente, apontou sua pistola niquelada e atirou contra nós, tentando nos intimidar. Foi o seu erro. Nós atiramos em revide, e ele tombou alvejado, caindo de cima do telhado, no corredor de uma casa qualquer.
Ao chegarmos ao local, encontramos o suspeito caído, com o rosto manchado de sangue, fazendo movimentos descoordenados e o nível de consciência diminuindo. A vida real é muito diferente daquela que aparece nos filmes de Hollywood. Na ficção, estamos acostumados a ver o sujeito baleado cair duro, estático. Mas apenas em situações específicas, naquelas em que um tiro atinge o coração ou o cérebro, a morte ocorre mais rapidamente. Nas demais, ela se apresenta lenta e sorrateira. Em alguns casos, ela pode até dar esperanças à vítima com a falsa ilusão de que não virá, quando na verdade já está a caminho. Nessas horas, o melhor a fazer é não falar nada, agir simplesmente, e deixar que a natureza se encarregue do resto. Uma lição que aprendemos no dia a dia da polícia é que, de um lado, a morte é inexorável ao ser humano e a cada dia estamos mais próximos dela; de outro, todos nós temos de encará-la ao vivo e em cores.
Desarmamos o suspeito e o socorremos, ainda com vida, levando-o ao pronto-socorro e, naquele dia, aprendi o que significa “coma 5”. Essa foi a expressão que o médico usou quando falava comigo sobre o estado de saúde em que o sujeito se encontrava. Para não passar por neófito, me fiz de entendido diante do médico. Mas, sem saber o que aquilo significava exatamente e curioso para decifrar o enigma, me dirigi a uma enfermeira para que “traduzisse” o significado da expressão usada pelo médico. A jovem respondeu de forma simples e direta: “Tenente, coma 5 significa que se está com um pé na cova e o outro na casca de banana”.
Algumas horas depois, o indivíduo suspeito baleado faleceu. Essa ocorrência me fez ganhar um apelido que, por sorte, acabou não pegando. Na época, apenas os oficiais da ROTA podiam usar o revólver Magnum calibre 357, uma munição muito poderosa, cujo disparo pode machucar o punho. Mas essa arma era quase um símbolo e fazia parte do kit do oficial, composto também pelo braçal e pela boina preta. Nós costumávamos usar dois revólveres, sendo o principal no coldre e um reserva na mão. Ambos eram Magnum, mas o que eu usava na mão durante o patrulhamento estava com munição calibre 38, normal.
No quartel, depois que apreenderam a minha arma para a perícia, descobriram que o sujeito estava com um tiro de Magnum na cabeça e que havia demorado cinco horas para morrer; algo soou estranho e começaram a questionar esse fato curioso. Eu sabia que, mais cedo ou mais tarde, me colocariam contra a parede para dar explicações. O fato é que não tinha sentido usar munição de 38 mm num revólver Magnum. Mas eu fazia isso porque o barulho dos disparos arrebentava os meus ouvidos toda vez que eu praticava tiro durante os treinamentos. E eu queria evitar que isso acontecesse durante uma operação. É claro que essa “conversinha” não funciona em um ambiente onde qualquer vacilo vira piada imediatamente, e a partir daquele dia alguns colegas passaram a me chamar de “Tenente Magnum”. Os amigos mais antigos ainda me chamam assim.
Criar apelidos é bastante comum no ambiente dos batalhões. Em certa ocasião, uma guarnição de Tático Móvel foi fazer uma abordagem na região oeste da cidade de São Paulo, onde um grupo tocava um samba animadamente. Alguma coisa saiu errado nessa abordagem e uma confusão começou. Isso fez com que os policiais tivessem de usar de energia extra para gerenciar a crise e um deles acabou fazendo disparos de arma de fogo. A situação ganhou destaque à época, porém, apesar de ninguém ter sido ferido, os disparos perfuraram os instrumentos de percussão do grupo. Logo, a situação virou motivo de piada, e os patrulheiros envolvidos nessa crise passaram a ser chamados de “fura-bumbo”. Como desgraça pouca é bobagem e os batalhões tinham suas próprias equipes de Tático Móvel, que hoje são chamadas de Forças Táticas, permanece a brincadeira de provocá-los chamando-os de “fura-bumbo”.
Voltando à ocorrência, esse foi o dia que eu mais esperei no início da minha carreira.
Depois de passar cinco anos nos cursos de preparação, sendo dois no curso preparatório, que equivalia ao ensino médio, e três no curso de formação de oficiais de nível superior, eu estava ansioso para patrulhar e pegar bandidos. Mas, naquele ano, o comando da Polícia Militar havia determinado que todos os aspirantes a oficial fossem para unidades policiais no interior do estado, nas quais deveriam ficar durante os seus primeiros seis meses, como um período probatório. Havia o entendimento de que essa transição de cadete para oficial seria mais apropriada se fosse realizada de modo tranquilo, uma vez que as unidades da capital são sempre mais complexas e arriscadas. Ficando seis meses em uma rotina “tranquila”, o aspirante seria ambientado em suas atribuições e estaria mais apto para lidar com os problemas complexos das unidades da capital e da Grande São Paulo.
Até aí, tudo bem. Eu só não esperava ir para tão longe, pois acabei sendo enviado para a cidade de Fernandópolis, há mais de 500 km de São Paulo. Na época, a viagem de ônibus levava cerca de doze horas. Minha turma era grande e fomos em sete aspirantes para aquela unidade. Ao final do sexto mês, meu sonho de cadete havia se realizado e voltei para a capital. Eu seria um dos novos integrantes da ROTA.
Nós nos esforçávamos ao máximo, patrulhando os locais mais violentos da cidade. Esse era um dos aspectos que caracterizavam a ROTA. Naquela época, dificilmente a ROTA fazia patrulhamentos na região central da cidade e tampouco nos bairros nobres, porque o seu diferencial era a presença na periferia, onde a população precisava do efetivo da polícia, por haver maiores índices criminais. A chance de prender um criminoso ou de participar de um confronto era maior na periferia, onde eu queria estar quando isso acontecesse. Eu precisava passar pelo batismo de estar no meio de um fogo cruzado. Desde a sua criação, a rotina da ROTA era efetuar prisões, abordagens e apreensões de armas e drogas, além do trabalho coordenado com a inteligência da polícia, que nos passava informações privilegiadas. Um policial poderia fazer o seu trabalho muito bem feito, receber homenagens e distinções, mas ele não seria visto como um oficial completo e respeitado entre seus pares se não tivesse participado de uma ocorrência com tiroteio e risco. Mas eu não dava sorte e não aconteciam confrontos onde eu estava. A situação me deixava ansioso. Eu queria “estar lá” quando acontecesse.
Os policiais mais experientes, ao perceberem a minha ansiedade, diziam: “Chefe, quando for a hora, o bicho vai trombar com a viatura”, e “O bicho feroz vai chifrar a viatura, chefe”. Esse era o grande objetivo de qualquer patrulheiro da ROTA. Mas o meu dia não chegava, até aquele domingo de 1986, quando houve o “coma 5”.
No domingo atípico, de jogo do Brasil na Copa do Mundo, a cidade estava em festa, com as pessoas em suas casas ou na casa de seus parentes e amigos, eu segui a rotina. Fiz a revista da tropa, que, no ambiente de caserna, significa reunir o grupo de trabalho, inspecionar a apresentação pessoal, a correção do uniforme, ler as ordens provenientes do comando, comentar alguma ocorrência recentemente protagonizada por outra equipe e os aprendizados que tiramos dela e, por fim, dar instruções e coisas dessa natureza.
Eu havia determinado que as guarnições não se deslocassem para as periferias mais longínquas e que, se tudo ocorresse bem e a cidade estivesse tranquila, como era de se esperar num dia assim, determinaria o recolhimento mais cedo, para que o pessoal pudesse assistir ao jogo no quartel.
Dois sentimentos importantes ficaram na ocorrência do meu primeiro tiroteio com morte: as questões pessoal e da perseguição.
Não restam dúvidas de que a perseguição ocorrida naquele domingo poderia ter-se prolongado, caso o veículo em fuga não colidisse. Naquela época ninguém cogitava usar o cinto de segurança e as chamadas “perseguições policiais” eram muito frequentes. Assim, acidentes aconteciam, fosse porque o criminoso em fuga se acidentava ou porque ocorriam acidentes envolvendo a própria viatura policial. Atualmente, a situação é outra, pela dinâmica das operações e graças aos recursos de proteção que contribuem para que o trabalho policial seja diferente.
Abrir o livro do passado, depois de tanto tempo, me faz constatar que os maiores riscos que corri na minha vida profissional não ocorreram nos confrontos armados, nas invasões a presídios, nas negociações com reféns, tampouco nas desativações de artefatos explosivos. Os maiores riscos que corri em minha carreira aconteceram nos deslocamentos em alta velocidade e nas perseguições policiais atrás de veículos suspeitos.
Recentemente houve uma mudança nos procedimentos operacionais que acabou por proibir a perseguição e recomendar uma nova conduta denominada “acompanhamento e cerco”. Em outras palavras, a medida visa diminuir o risco de um acidente que possa colocar em risco pessoas inocentes que trafegam com seus veículos pelas ruas da cidade ou a vida dos pedestres. Essa medida surgiu depois da constatação de que, seja ou não um criminoso, quem decide fugir da polícia em alta velocidade não vai respeitar os semáforos, os limites de velocidade nem terá a prudência necessária para evitar um acidente. Pelo contrário, a pessoa que foge está disposta a tudo para conseguir o seu objetivo. Ela pode fugir para evitar ser apanhada sem a carteira de habilitação, por estar embriagada ou com a documentação irregular. Enfim, os motivos são os mais variados.
Por outro lado, os ocupantes da viatura policial que optam por perseguir fugitivos – considerando que o veículo em fuga já se encontra em alta velocidade emitindo sinais sonoros e luminosos – fazem com que o suspeito acelere ainda mais, obrigando o motorista da viatura a fazer o mesmo. Isso potencializa o risco de acidentes, inclusive para os policiais. Assim, para desmontar esse cenário perigoso e, sobretudo, reconhecendo que não vale a pena colocar tantas vidas sob risco para prender um criminoso, decidiu-se que o melhor a fazer em caso de fuga é ampliar a distância da perseguição e providenciar o acionamento do Centro de Operações e de outras viaturas que estejam nas proximidades, a fim de montar um cerco e, assim, parar o veículo em condições menos arriscadas.
O outro aspecto importante é relativo ao sentimento do policial quando tem um envolvimento direto em um evento que resulta em morte. Durante os trinta anos que fiquei na polícia, a situação que mais me marcou foi o caso de uma menina de dez anos de idade que havia caído em um poço. Eu estava patrulhando a zona leste de São Paulo, quando uma pessoa na via pública fez sinal para a viatura de forma muito enérgica e desesperada. Imediatamente, parei a viatura e a pessoa me disse que tinha visto uma garota cair num poço, em um terreno baldio que ficava não muito longe dali. Eu acionei o Centro de Operações para que avisasse o Corpo de Bombeiros e nós fomos para o local.
Chegando lá, vimos que se tratava de um poço abandonado, profundo e de entrada muito estreita. Eu me senti impotente ao analisar a situação e não encontrar uma solução imediata. Por falta de equipamento de apoio, não tínhamos nenhuma condição de agir de imediato, descer e resgatar a garota. O alívio veio quando, em poucos minutos, a equipe do Corpo de Bombeiros chegou e, numa ação muito rápida, um cabo de segurança foi armado e um integrante da guarnição desceu, de cabeça para baixo, amarrado pelos pés e sustentado por seus companheiros. Desceram-no até o fundo do poço, quando ele informou que tinha alcançado a menina e que ela estava inconsciente.
Toda a ação dos bombeiros foi muito rápida, repito, e eficiente, e quando o soldado saiu do poço trazendo o corpo da garota eu tive esperanças de que tudo terminaria bem. Era uma menininha muito linda, tinha cabelos loiros e compridos e vestia short e camiseta. Sem perder tempo, os bombeiros começaram o procedimento para tentar reanimá-la. O meu alívio inicial, ao vê-la fora daquele buraco, segura e seca, o que afastava a hipótese de afogamento, voltou a se transformar em aflição, porque ela não voltava ao estado de consciência. Massagem cardíaca e respiração boca a boca não foram suficientes e a morte da garota foi constatada. Mesmo assim, ela foi levada para o hospital em caráter de urgência, mas nada pôde ser feito.
Depois me explicaram que o afogamento não é a única causa de morte nos casos de queda em poços. As camadas de gases venenosos que pairam logo acima da superfície da água, dentro do poço, são suficientes para provocar o óbito.
Foi muito triste ver aquela criança ter a vida ceifada tão precocemente.
Com relação aos criminosos em situação de confronto armado, o caso é outro. Eu sempre ouvi muitas histórias. A que mais me marcou foi a de um antigo tenente, um veterano. Ele me disse que, após o primeiro confronto com morte, passou a acordar muitas vezes durante a noite. Quando abria os olhos, via o morto em pé, próximo à sua cama. O tenente disse que essa cena se repetiu muitas vezes, o que, convenhamos, é assustador.
Havia colegas que menosprezavam incidentes desse tipo, quando criminosos morrem em confrontos. Como se o criminoso não fosse um ser humano. Alguns colegas se perderam com esse tipo de postura diante da vida do criminoso e acabaram se envolvendo em expedientes inapropriados, como que por força de uma compulsão. Quanto mais eles se envolviam em ocorrências que acabavam em mortes, mais se sentiam atraídos por elas ou procuravam estar próximos de situações que levariam a elas, fosse no cumprimento de sua escala de trabalho, fosse nas horas de folga. Alguns casos chamavam a atenção pela frequência com que se associavam a tais circunstâncias, e muitos desses colegas tiveram um fim igual ao que tantas vezes assistiram.
Parte da responsabilidade por esse desgaste notado no comportamento do policial é da Instituição. Uma vez que um desequilíbrio é percebido, seja com relação à banalização da vida, seja pelo rompimento dos laços familiares, pelo excesso de bicos e atividades extracorporativas ou outros problemas pessoais, é preciso que haja uma ação mais incisiva, mais proativa no sentido de tratar e recuperar o policial. Hoje, todo policial passa por uma avaliação de sua reação a um estresse pós-traumático. Isso tem ajudado muitos a lidar com esse tipo de vicissitude característica da sua carreira. De minha parte, nas ocorrências graves das quais participei, considero que me dei bem com cada situação. Correu muita adrenalina na corrente sanguínea, e penso que isso foi bom para tonificar meus músculos e aguçar meus sentidos. Depois delas, senti uma calmaria e, no limite do cansaço, uma noite de sono sempre foi suficiente para restaurar a minha disposição. Nunca tive sobressaltos durante a noite nem vi ninguém na cabeceira da minha cama. Continuo tendo mais precaução com os vivos do que com os mortos.