CAPÍTULO 9
O dia 27 de julho de 1998 foi um domingo. Por volta das 20 horas, eu estava em casa quando o telefone tocou. Era o rádio-operador do GATE, avisando que havia uma ocorrência com refém em um ônibus na avenida Tiradentes, na altura do no 440. Estranhei a localização, pois esse é o endereço do 1º Batalhão de Choque Tobias de Aguiar, a ROTA. A informação me fez perguntar por que um ônibus com um criminoso fazendo refém estaria parado em frente ao quartel?
A primeira hipótese tinha a ver com uma prática comum entre os taxistas. O motorista havia percebido algo errado entre os passageiros e, a fim de evitar qualquer risco, resolveu parar em uma área segura. Nesse sentido, poucos lugares em São Paulo seriam mais indicados do que em frente ao Batalhão da ROTA.
Quando cheguei ao local com minha equipe, já havia um cerco ao ônibus e alguns policiais do Batalhão realizavam a negociação dentro do próprio veículo. Bem, como se sabe, a ROTA é uma equipe considerada especial dentro da Polícia Militar por pertencer à Tropa de Choque. Seus integrantes levam a sério a doutrina interna e a atuação entre os oficiais e as equipes é muito próxima. A ROTA é um batalhão tradicional e sua vocação é a atuação em situações de maior risco, com ou sem reféns, e que não exijam muito em termos de alternativas de negociação, as quais são específicas de um grupo especializado. Por isso, o GATE estava lá.
Mesmo com o esforço de quem a conduzia, a negociação não avançava no sentido de uma resolução, em parte porque o contexto e a motivação do suposto criminoso eram bem peculiares. Nós o chamamos de “tomador de refém” e, no caso, tratava-se de um senhor nordestino, de cerca de sessenta anos de idade, com uma refém na faixa dos vinte anos que, não por acaso, era sua amante. A arma usada para manter a jovem sob ameaça era um podão, uma ferramenta de corte pequena, semelhante a uma foice, que é utilizada para podas de plantas e árvores. Com o podão, aquele senhor pressionava a garganta da moça de baixo para cima, próximo às artérias importantes, e isso imprimia à situação um risco considerável.
Enquanto eu acompanhava a negociação, a fim de me inteirar do cenário, minha equipe coletava informações sobre o casal e as circunstâncias geradoras do fato. Em pouco tempo, descobrimos como tudo havia começado e pudemos compreender o quadro diante de nós.
O tomador de refém não era de fato um criminoso. Era um homem maduro que se envolveu com uma garota bem mais nova, apaixonou-se por ela, mas não houve reciprocidade. Ela decidiu colocar um fim no relacionamento e a ideia não foi bem recebida por ele. Tentando fazê-la voltar atrás, o senhor a convidou para passar um final de semana romântico no Rio de Janeiro, onde ele imaginou viver um recomeço feliz.
Ela aceitou e eles tomaram o ônibus na sexta-feira, passaram o final de semana na cidade maravilhosa, mas algo deu errado enquanto voltavam para São Paulo, conforme descobrimos, embora não tenhamos apurado em que circunstâncias. A parada final do ônibus seria no Terminal Rodoviário do Tietê, a principal rodoviária de São Paulo, mas o senhor de coração ferido resolvera mudar o itinerário do ônibus, ameaçando matar a moça caso não fosse obedecido. Assim, dera a ordem para que o motorista conduzisse o ônibus até o quartel da ROTA e parasse bem em frente.
Com o ônibus estacionado no novo destino, ele mandou que todos os passageiros descessem, mas reteve a refém. Sentado no último banco do veículo, com a amante praticamente em seu colo, ele mantinha a ferramenta agrícola como arma, pressionando a garganta da jovem e aguardando a chegada do único repórter em que dizia confiar: o Cid Moreira, que à época apresentava o Jornal Nacional.
Embora pouco comum, ocorrências como essa são previstas nos manuais de negociação de crise com reféns. Nós a chamamos suicide by cop, isto é, suicídio praticado pela polícia. Ela ocorre quando, na falta de coragem para praticar o suicídio, a pessoa cria uma situação em que a polícia é acionada e movida a causar a morte do tomador de refém.
Ficou claro que o fato gerador da situação fora uma paixão obsessiva e, ao contrário do que alguns pensam, paixão pode levar uma situação a desfechos inusitados. Há casos em que é mais fácil lidar com criminosos que praticam crimes visando dinheiro, ou algo que possa ser transformado em dinheiro, pois esses indivíduos têm objetivos claros, ao contrário do que acontece quando se lida com mentes doentias ou transtornadas. Por isso, evitamos ao máximo usar força letal em casos assim, o que é um grande desafio para o policial que negocia, pois é necessário que ele mantenha o equilíbrio e não perca de vista o que chamamos “hierarquia das vidas”, a saber: colocar em primeiro lugar a vida do policial, em segundo a vida do refém, depois a vida dos demais cidadãos e, por último, a vida do criminoso.
Passava da meia-noite e a negociação seguia. Depois que ele mostrou algum cansaço, conseguimos que se acalmasse e afastasse o podão das partes sensíveis da garganta da refém. Insistimos mostrando com argumentos que valia a pena continuar vivendo, tanto para ele quanto para ela. Madrugada adentro e a negociação avançava, mas como sabíamos que o nível de tensão é um grande consumidor de energia, apostamos nele visando minar as forças daquele senhor e chegar à solução da crise. Algumas viaturas cercavam o ônibus e mantivemos todas elas com o Giroflex aceso. As sirenes eram acionadas em diferentes momentos, tudo para mantê-lo acordado e exigir-lhe atenção com estresse, a fim de esgotar mais rapidamente suas forças e energias.
Pouco a pouco, ficou claro que nenhum dos policiais faria o que ele gostaria que fosse feito – disparar um tiro; a inexistência de uma arma de fogo colocando em risco a vida da refém nos dava uma margem maior de segurança para prosseguirmos na estratégia adotada.
De vez em quando, a situação saia do trágico e entrava no cômico, porque, no decorrer da negociação, aquele senhor nos fez algumas confidências, revelando a intimidade do casal. Apesar de todos os agrados e mimos que o amante lhe proporcionava, ficou claro que a moça estava descontente com o desempenho sexual do namorado.
Por volta das cinco horas da manhã, os sinais de cansaço eram evidentes e logo que amanheceu o dia, exausto, ele se entregou. Foram oito horas de negociação, e essa foi a minha primeira ocorrência como Comandante do GATE.
No entanto, não seria a única ocorrência de risco com momentos cômicos de que eu participaria. No dia 7 de outubro de 1999, um criminoso viciado em cocaína desentendeu-se com sua amante e, por conta disso, acabou por transformá-la em sua refém. O policiamento de área foi acionado, mas os efeitos da droga tornaram seu comportamento bastante inconstante. Como o policiamento responsável não dispunha de preparo para negociações neste nível, nós fomos acionados.
Quando chegamos ao local, nos informamos a respeito dos fatos e coletamos as principais informações sobre o criminoso e a refém. O cara não era barra-pesada, mas havia um risco iminente, pois ele estava sob efeito de drogas e armado.
Como sabemos que, quando o efeito da cocaína começa a enfraquecer, cede lugar a um comportamento depressivo, procuramos retirar o maior número de pessoas de dentro do cativeiro e a amante era o nosso foco. Após algum tempo de conversa, conseguimos convencê-lo a liberar a amante e, com isso, ficamos esperançosos de que ele saísse em seguida, uma vez que não havia mais reféns. Entretanto, a solução da crise não foi tão simples e sofreu certa guinada, já que percebemos nele indícios de comportamento suicida.
Nós contamos com um repertório de estratégias para lidar com situações assim e uma delas é envolver algum familiar para desmobilizar a pessoa que planeja atentar contra a própria vida. No trabalho que, conforme nossa rotina, corre paralelamente, minha equipe havia apurado que a ex-esposa do viciado morava no mesmo bairro e se informou sobre o seu perfil, caráter e temperamento. Descobrimos que o motivo da separação tinha sido o próprio vício em cocaína, e que o criminoso viciado não conseguia superar as tentativas de internação para desintoxicação. Por isso, a ex-esposa cansara-se e pedira a separação.
Mas, durante a conversa com os policiais, uma informação muito importante veio à tona. Ela revelou que, embora o marido fosse um fracassado e não conseguisse manter-se firme em um emprego fixo, como pai ele era uma pessoa exemplar. Nunca deixou de visitar a filha pequena. Era atencioso e carinhoso, e só às vezes falhava no pagamento da pensão alimentícia, o que era compreensível, dado o desemprego constante.
Aproveitando a deixa, resolvi explorar seus sentimentos em relação à filha, que ele amava, e trouxe para o campo da negociação as questões familiares e a relação paterna. Notei que ele foi tocado emocionalmente e que o seu comportamento começou a mudar. Então, tive uma ideia. Pedi à minha equipe para providenciar uma fotografia da menina, filha do criminoso. Orientei que trouxessem uma fotografia, dessas de álbum de família, em que a criança aparecesse linda e feliz.
Quando finalmente trouxeram a tal fotografia, apanhei uma folha de papel e escrevi um bilhete, como se fosse uma cartinha escrita pela garota para o seu pai. Procurei ser cuidadoso com as palavras para que parecesse autêntica, deixando claro o tom emocionado e um apelo final: “Papai, preciso de você”.
Aproximei-me dele e retomei a negociação. Falei das suas qualidades como pai e usei muitas das informações obtidas com sua ex-esposa. Mencionei detalhes das várias demonstrações de afeto que ele tivera para com a filha e reforcei o amor que ele tinha pela garota. Ele ouvia tudo calmamente e sua respiração demonstrava que havia se tranquilizado e que estava nitidamente emocionado. O peixão estava rendido, mas ainda não havia sido tirado da água.
Para consolidar meu argumento, passei a fotografia da garota por baixo da porta que nos separava. Ele a recolheu e não suportou: desabou a chorar.
O ambiente se encheu de emoção e, como não podia me deixar seduzir pelos sentimentos envolvidos, decidi que era hora de dar o golpe final. Chamei-o mais perto da porta e disse que ele tinha um futuro pela frente e que, embora não estivesse presente naquele momento, sua filha querida gostaria de dizer algo a ele. Então, passei o bilhete que eu mesmo tinha escrito e ele rapidamente o recolheu. Bastante emocionado, abriu o bilhete e em alguns segundos ouvimos o seu comentário: “Nossa, mas que letrinha, hein!”.
Foi preciso um esforço maior do que a própria negociação para que contivéssemos o riso dos policiais, já que todos eles conheciam a fama da minha péssima caligrafia. Fosse nas anotações ou no despacho de documentos administrativos, muitas vezes o que eu escrevia precisava ser “traduzido”, porque a minha letra é, de fato, horrível. O que compensou a letra praticamente ilegível foi a foto da menina e o seu efeito positivo, o que fez o bilhete perder um pouco da importância.
Em poucos minutos o rapaz se entregou. A ocorrência logo foi esquecida, mas minha letra continua um desastre.