CAPÍTULO 15
© Sérgio Tomisaki/Agência O Globo
Tropa de choque se prepara para invadir a Casa de Custódia de Taubaté.
Dia 17 de dezembro de 2000: explode uma rebelião na Casa de Custódia no município de Taubaté. Havia exatamente um ano, também no mês de dezembro, que tínhamos atuado na contenção da rebelião no Presídio de Presidente Bernardes. Papai Noel voltou a abrir o seu saco de sacanagens nas dependências do GATE.
Toda a Tropa de Choque foi acionada e nos deslocamos para a região. A equipe de serviço do GATE acompanhou o comboio. Eu estava fora do quartel, empenhado em outra atividade, e tive de me deslocar em seguida, me encontrando com a equipe em Taubaté. Chegando, logo notei que toda a Tropa de Choque estava estacionada próxima ao presídio, em compasso de espera. Eles aguardavam o desenrolar do processo de negociação que ocorria no interior do presídio entre a direção-geral e a liderança dos presos.
A cena me chocou. A tropa permanecia embarcada nos micro-ônibus da PM e, do lado de fora de um desses veículos, havia uma roda de oficiais do Choque; todos estavam ali, parados, jogando conversa fora, como se o caso não tivesse nenhuma relação com eles. Apenas aguardavam os acontecimentos, dos quais ninguém tinha nenhuma informação. Quem quer que estivesse no controle da operação estava conduzindo as coisas de maneira absurdamente fora dos padrões.
Incomodado com a situação, senti que deveria fazer algo e rapidamente, antes que aquilo se voltasse contra nós. Afinal de contas, alguém acionou o GATE e o Choque, duas forças que não precisam sair de seus quartéis para assistir passivamente uma ocorrência de rebelião em presídio de segurança máxima, em lugar algum do estado! Eu não sei se estava exagerando, mas eu tinha “essa coisa” de perseguir obstinadamente a correção e o rigor nas ações da polícia. Procurei o comandante presente e o questionei sobre o motivo de os policiais estarem naquelas condições. Disse a ele que a Tropa de Choque não poderia ser utilizada daquela maneira. Qual era a motivação por trás daquela cena? Fazer bonito para a imprensa? Mostrar para a população que todos poderiam ficar tranquilos porque havia gente especializada nas redondezas?
Ora, se a direção do presídio pensou que aquele era um caso para solicitar a intervenção da Tropa de Choque, pensou assim porque entendeu a necessidade e a gravidade da situação. Nesse sentido, não havia razão para ficarmos de fora das negociações. Era preciso, ao menos como ouvintes, estarmos próximos das negociações, coletando informações fundamentais para o planejamento tático da operação – caso ela evoluísse para a ação policial –, identificando falhas na comunicação, e mesmo porque não faz sentido ter duas tropas estacionadas do lado de fora de um presídio rebelado, estando o processo de negociação em andamento. A minha sugestão foi acatada e o acesso de alguns integrantes da
Polícia Militar foi liberado para o acompanhamento dos trabalhos.
A equipe de negociadores do GATE, então, passou a acompanhar o processo que corria entre a direção do presídio e a liderança dos sentenciados. De saída, pudemos confirmar que não havia reféns e concluímos que o fato gerador da rebelião tinha sido uma disputa entre facções criminosas rivais. Em outras palavras, o presídio fora tomado pelos presos para um acerto de contas internas e o resultado foi apresentado em seguida com “prova material”: cinco mortes haviam ocorrido com requintes de crueldade, como tortura e decapitação. A imprensa já tinha a sua fatia do bolo e bastante trabalho para uma semana inteira no ar. A cúpula da polícia e a da Secretaria de Segurança, por outro lado, tinha um abacaxi enorme para descascar porque a fatura sempre vem.
O líder da rebelião e da facção dominante era o tal de Marcos Willians Herbas Camacho, o preso conhecido como Marcola.
O tumulto foi encerrado, mas era preciso restabelecer a ordem no interior do presídio. Para tanto, era necessário autorizar a entrada da Tropa de Choque, mas isso não é feito somente pela direção da casa; é necessário haver contato entre o comandante da Tropa de Choque e o líder da rebelião.
O comandante foi informado do próximo passo e logo se dirigiu até o limite da entrada para o pátio, onde Marcola estava parado com alguns de seus parceiros por perto. Ambos, comandante e Marcola, ficaram separados apenas pelo portão, que estava fechado para evitar uma fuga em massa, caso o plano dos presos fosse alterado numa sabotagem à negociação. O comandante chamou Marcola pelo nome e solicitou que providenciasse a entrega dos cadáveres, trazendo-os até o portão, de modo que os corpos pudessem ser removidos e levados para o Instituto Médico Legal, o IML, pela equipe que viria em seguida para fazer esse serviço. Marcola não proferiu palavra alguma.
O comandante então aproveitou e emendou outro pedido. Disse que, depois que os corpos fossem removidos, Marcola, como líder da maior facção e comandante dos presos, orientaria a todos para retornar às suas celas, porque era preciso fazer a contagem dos presos.
Marcola, em silêncio, só ouvia. A sua atitude era respeitosa, porém, sem mostrar submissão. Ele tinha o controle da Casa de Custódia. Nós observávamos tudo por uma fresta existente na carceragem, criada para que os carcereiros pudessem fazer a vigilância dos internos.
Quando o comandante terminou de falar, Marcola, frio, fez um sinal positivo acenando com a cabeça, mostrando que aceitava as orientações dadas. Ele determinou que alguns presos trouxessem os cadáveres que estavam dentro do presídio para próximo do portão principal apenas com um sinal com o indicador, apontando para que trouxessem os cinco corpos, assim como as cabeças dos que haviam sido decapitados. Um dos presos saiu em direção a uma das alas internas do complexo, e Marcola, antes de retirar-se e voltar para a sua cela com todos os outros presos, virou-se em direção ao comandante. Com a expressão grave, aproximou-se dois ou três passos, apontou-lhe o dedo e disse:
– Não vai ter esculacho, pois a rebelião está terminada e eu conheço bem o senhor.
Em seguida, desapareceu nos corredores internos.
O comandante da operação ficou visivelmente desconcertado diante de nós e dos presos, porque evidentemente ele sabia do risco que a quebra de um acordo com o líder da facção representava para ele e para a sua família.
A próxima cena a se formar diante de nossos olhos foi ainda pior e serviu para trazer à tona o nível de crueldade e desumanização que ocorre dentro do sistema prisional. Enquanto Marcola caminhava lentamente rumo ao interior do pavilhão, um único preso trazia o primeiro cadáver, arrastando-o pelos pés, deixando atrás de si um rastro de sangue que marcava todo o caminho percorrido. Um corpo masculino sem vida precisa de três ou quatro homens para carregá-lo, mas o descaso com o ser humano fazia parte da rotina daquelas pessoas. Essa era a mensagem que a imagem transmitia.
A cena se repetiu cinco vezes. O preso ia e voltava puxando pelos pés os corpos já sem vida, acumulando atrás de si um longo rastro de sangue no caminho por onde passava. Na minha memória, até hoje ecoa o ruído da carne e dos ossos sendo arrastados pelo cimento queimado do pátio da Casa de Custódia de Taubaté, o som produzido pela mais baixa brutalidade humana.