CAPÍTULO 3
As aparências enganam. Estávamos num dia de patrulhamento que dava indícios de ser um dia tranquilo. Ainda era de manhã. Patrulhávamos a região sul da cidade de São Paulo e o nosso destino era a periferia. De repente, um automóvel ocupado por cinco rapazes cruzou o nosso caminho, chamando a nossa atenção. Decidimos fazer o padrão, uma abordagem.
A abordagem policial é feita por qualquer equipe a pé ou motorizada. Ela é um dos procedimentos treinados exaustivamente durante a formação de um policial. Não estávamos ali para inventar nada, então, seguimos a rotina consagrada na execução de uma abordagem. A primeira decisão a ser tomada é sobre o local adequado. Um policial consciente considera sempre o cenário pessimista em qualquer ação, até porque a prudência nos mostra que devemos estar preparados para o pior. As coisas devem ser assim, porque o policial não é vidente, ele não sabe o que virá pela frente.
Ao iniciar uma abordagem, deve-se escolher bem o local em que ocorrerá, a fim de se evitar uma situação de risco para qualquer pessoa, seja para os próprios policiais, seja para as pessoas que não fazem parte daquele procedimento, assim como para o cidadão abordado. Afinal, uma abordagem em si não transforma o cidadão em criminoso. Ninguém é culpado de nada até que haja investigação e provas concretas, coisas que não são da competência de quem está patrulhando as ruas.
Quanto à ocorrência em questão, nós seguimos o carro, aguardando até chegarmos a um local adequado. Quando eles estacionaram, nós paramos a viatura atrás do carro com os cinco rapazes, de modo que tivéssemos certo ângulo de perspectiva em relação ao carro e pudéssemos manter os rapazes sob contato visual, além de nos proteger do movimento local. Desembarcamos protegidos pela porta da nossa viatura, abrimos nosso posicionamento em leque para obter melhor visualização dos dois lados do carro que seria averiguado e, como manda o procedimento, coube a mim, como encarregado da viatura, estabelecer o diálogo com os ocupantes do veículo. Pausadamente e em alto e bom som, orientei os ocupantes para que cumprissem as determinações.
Logo após a parada de qualquer viatura e o desembarque da equipe, o policial que assume a condução do procedimento estabelece a comunicação, iniciando com uma das duas frases seguintes: “Cidadão, por gentileza” ou “Motorista, por favor”. Essas duas chamadas não são ordens de comando, mas uma advertência para a ordem de comando que virá em seguida. O início da abordagem é feito desse modo para evitar que o cidadão se sinta acuado, entre em pânico ou se assuste, consequências que podem ser desastrosas. A polícia sabe que não faz parte da rotina das pessoas serem abordadas no dia a dia, e que não é fácil para ninguém ter uma viatura com farol alto ligado atrás de si, com Giroflex iluminando tudo com luzes vermelhas, e policiais de arma em punho dando ordens para que se fique imobilizado. Nessas circunstâncias, o nível de adrenalina sobe, a emoção domina os impulsos e a racionalidade fica de lado. Por isso, é importante iniciar bem, tranquilizando a cena, a fim de que todos ajam racional e conscientemente. E foi o que fizemos, com a melhor das intenções.
O primeiro contato foi estabelecido e, em seguida, ordenei que desligassem o carro, abrissem a porta, descessem com as mãos visíveis e se apoiassem sobre o carro. Todo policial de rua é muito preocupado com a posição das mãos das pessoas que estão sendo abordadas. Onde está a mão, está o perigo, e é nesse sentido que se justificam as ordens que as pessoas conhecem: “Levante as mãos”, “Ponha as mãos na cabeça”, “Ponha as mãos contra a parede”.
Naquele dia, as coisas estavam tranquilas, até que quatro dos ocupantes do carro desceram. Depois disso, os problemas começaram. Algo não dera certo e não sabíamos o quê. Quatro ocupantes seguiram nossas instruções, desceram do carro e nos atenderam, mas o quinto integrante permaneceu sentado no meio do banco traseiro, mantendo a cabeça e as mãos abaixadas.
Logo, o jovem que conduzia o veículo começou a insistir em falar conosco, mas minha atenção estava no ocupante sentado no banco de trás do veículo e comecei a exigir que ele saísse também. A situação começou a me deixar preocupado, e também aos demais policiais que estavam comigo. O que seria aquilo logo cedo? Sempre existe a hipótese de um risco potencial estar diante de nós. O que fazia aquele sujeito parado ali, dentro do carro, depois que os outros quatro haviam descido, apesar de receber ordens insistentes da polícia para que ele descesse? Só nos restou endurecer um pouco mais com os que estavam fora do carro, porque eles passaram a gritar ao mesmo tempo em que dávamos a ordem para o quinto rapaz sair. A cena estava ficando confusa e tumultuada; era preciso resolver logo a situação do sujeito dentro do veículo. O controle deveria estar conosco e faríamos tudo para que ocorresse exatamente assim.
Na dúvida entre uma situação normal e alguma surpresa que estivesse nos aguardando, mandei que se deitassem no chão e essa nova ordem não foi bem recebida pelos quatro rapazes que estavam na calçada. Eles não gostaram do que mandei fazer e começaram a reagir, manifestando sua insatisfação. Ficaram realmente inconformados e reclamaram bastante, dizendo que não eram bandidos para que agíssemos daquele modo com eles, e que não aceitariam uma abordagem policial feita daquela maneira.
O problema estava instaurado. Assim, uma manhã tranquila e sem sinal de problemas ficava para trás, por conta de um sujeito que não respondia à ordem para sair de dentro do carro, e de outros quatro rapazes que não queriam obedecer ao procedimento de segurança. Em meio a essa tensão, o motorista do veículo e os outros três passaram a gritar para o quinto rapaz sair, e aquilo só aumentava o grau de complicação da abordagem que, inicialmente, se apresentava como simples e corriqueira. Percebi que a aparência de todos eles era a de jovens de classe média alta e imaginei que estivessem voltando de alguma balada ou de uma festa.
Por um momento, pensei que poderia começar a afrouxar a atenção, mas para a minha surpresa, dois rapazes, em especial o motorista, começaram a reclamar além da conta. A questão era o modo como estávamos conduzindo a abordagem. Questionaram o comportamento da minha equipe e o meu próprio quanto ao procedimento que tomamos, mandando-os deitar no chão. Eles argumentavam insistentemente que não tinham “cara de bandido”. Ora, eu sei muito bem que bandido não tem cara. Bandido não avisa o que é e não é a aparência que faz o bandido. Tentei explicar isso para eles, dizendo que nós trabalhamos por amostragem e que toda aquela tensão havia sido gerada por eles mesmos. Mas o motorista continuou replicando e se manteve fora da linha, falando de um jeito que eu considerei muito pouco respeitoso.
Na ocasião, eu tinha vinte e dois anos de idade, muita gana pelo que fazia e pouca experiência com gente petulante. Aquela não era minha primeira abordagem, e eu sabia que estava bem treinado. A experiência para gerenciar uma crise assim viria com o tempo, e hoje tenho outras ferramentas para lidar com uma situação como aquela. Mas o que eu tinha disponível naquele momento era o que chamamos de “poder de polícia”, que me conferia autoridade para executar a abordagem, e era o que eu estava fazendo. No uso dessa prerrogativa, senti que estava sendo desacatado e tentei explicar as consequências que eles teriam se continuassem afrontando a equipe em serviço. Pois um erro levou a outro.
Na época em que isso aconteceu, um conjunto de rapazes porto-riquenhos estava no auge da fama. Eles cantavam músicas para adolescentes e eram uma febre nas rádios e nos programas de auditório. Era o grupo Menudo.
Eu não sei por qual motivo fiz aquilo, mas as reclamações repetidas pelos rapazes na calçada, a insistência e a atitude deles, por vezes mimadas, tomaram volume, até que eu disse: “Não sei por que vocês estão aí reclamando... deve ser porque vocês ‘se acham’ os Menudos, seus filhinhos de papai”. Ainda não sei se os ofendi mais por chamá-los de “filhinhos de papai” ou de “Menudos”. Talvez eles não fossem fãs do conjunto...
O fato é que isso os irritou ainda mais, e a maneira ofensiva como se dirigiam a nós se agravou. Isso me obrigou a “apertar o parafuso” e dei voz de prisão para todos.
Enquanto isso, o rapaz que estava dentro do carro, não esboçava nenhuma reação. Estaria morto? Era preciso fazer algo mais efetivo, tomar uma medida mais rígida, endurecer um pouco e evitar que o pior acontecesse, contra nós e contra eles. Mandei que todos se calassem e um auxiliar da minha equipe se aproximou do veículo. O rapaz permanecia lá dentro, imóvel, de cabeça baixa, mãos para baixo. Que diabos era aquilo? Ele poderia ter uma arma, um explosivo, sabe-se lá! Os quatro rapazes olhavam fixamente para dentro do veículo, agora evitando dizer qualquer palavra, pois eu havia determinado que não falassem e não tumultuassem a abordagem. A tensão era visível, para nós e para eles. Silêncio total. Meu auxiliar se aproximou do veículo, vindo por trás, colocou a cabeça dentro do carro e constatou que “o quinto elemento” estava apenas dormindo um sono profundo. Uma vez acordado, pedimos que saísse do carro para que pudéssemos revistá-lo, conferir seus documentos e o documento do veículo.
Seguindo a norma, salvo raras exceções, a pessoa que recebe voz de prisão deve ser conduzida em uma viatura por questão de segurança. No caso dessa condução, os rapazes deveriam ser algemados, e eu fiz cumprir o regulamento, “grampeando” todos eles. Nós os colocamos na viatura e partimos para o Distrito Policial.
Quando chegamos à delegacia, já havia um advogado nos aguardando. Aquilo cheirou mal logo de início e você pode suspeitar o motivo. O advogado estava ali para representar as partes, mas ele chegou à delegacia antes dos próprios representados. Devo imaginar que algum conhecido viu a ocorrência em andamento, já que estávamos em lugar público, e decidiu avisar alguém da família, que, por sua vez, acionou o advogado, e este foi imediatamente para o Distrito.
O advogado chamou a minha atenção por não ser um novato. Era evidente que tinha alguma experiência, pois era um senhor bem mais velho do que eu. Não era um advogado em início de carreira e sua abordagem deixou isso claro. À medida que se aproximou de mim, fez questão de dar mostras de que a operação simples que havíamos realizado não passara de um grande mal-entendido, e tentou logo uma solução rápida, ali mesmo, à porta da delegacia, antes até de que o caso fosse levado ao delegado de plantão. Bem, essa hipótese pode ter passado pela cabeça dele, mas não chegou perto da minha. Educadamente, rechacei qualquer manobra, pois, a partir do momento em que a pessoa é algemada, a apresentação da ocorrência ao delegado de plantão torna-se inevitável. Ponto. Isso eu não discutiria.
A tentativa de dissuadir o advogado das argumentações que ele apresentou não pareceu incomodá-lo de modo algum. A minha negativa em ceder às suas investidas não o desanimou nem o convenceu da minha determinação em entrar na delegacia para realizar o meu trabalho, e tudo aquilo começava a parecer bem estranho. Insisti, tentei contorná-lo, pois queria seguir o protocolo e levar os cinco para dentro. Finalmente, quando consegui passar por ele, fui direto à procura do delegado de plantão em sua sala. Apresentei-me a ele e relatei a ocorrência, mas suspeito que o advogado tenha passado na sala do delegado antes de mim, já que chegou tão cedo ao Distrito. Isso também ficou evidente quando senti certa inclinação, por parte do delegado, para colocar “panos quentes” no caso.
Enquanto expunha os fatos, um funcionário do Distrito avisou que havia uma ligação telefônica para mim e que deveria atendê-la rapidamente. Fiz o que o funcionário indicou e atendi ao telefonema. Era o subcomandante da ROTA. Eu mantinha um profundo respeito por ele, um oficial muito rigoroso em seus métodos, sério e trabalhador. Ele perguntou o que havia acontecido e eu expliquei toda a rotina, desde a abordagem até aquele momento, e percebi que ele ficou incomodado com o resultado da operação. Mas, como ele já sabia que havia “uma tal ocorrência” se eu ainda a estava relatando? Adivinhe... Sutilmente ele deixou no ar sua preocupação de que a situação não ganhasse corpo, não ocupasse tanto o nosso esforço e o leitor já pode entender o tom que aquela banda deveria tocar.
Para coroar “o êxito” da operação foi feita uma reunião. O delegado a dirigiu e estavam presentes o advogado, a guarnição policial e os jovens detidos. O delegado chamou a atenção dos jovens de maneira acentuada, acompanhado pelo advogado, o qual seguiu a mesma linha. Ambos deram a mim a chance de aceitar as desculpas dos jovens “arrependidos” que pareciam resignados, envergonhados com o próprio comportamento, tudo muito cortês e formal.
O delegado encerrou o teatro sugerindo que fosse feito um boletim de ocorrência de “averiguação de desacato”, mas não autuou ninguém em flagrante, o que deixou claro que aquilo não passava de uma armação, a fim de evitar qualquer consequência mais grave para os jovens. Peguei a cópia do B.O. e retornei para o patrulhamento até o final do dia, quando parecia que tudo iria acabar. Mas, como disse, as aparências enganam.
No final da minha escala, retornei à base e fiz o relatório comunicando os fatos do dia. Outro relatório já havia sido feito, este pelo subcomandante. Ele abriu um procedimento disciplinar contra mim, que acabei punido por ter praticado “violência psicológica” – isso numa época em que não havia uma política de Direitos Humanos nos moldes de hoje. Fiquei bastante desapontado, pois a abordagem ocorreu de modo normal para os padrões da época. Ninguém tomou um “cola-brinco”1 e não houve nenhum equívoco nos procedimentos de segurança reconhecidos.
A lição que aprendi cedo foi que o “bravão” com os subordinados pode ser o mansinho com o alto escalão ou com o pai dos Menudos, dos “filhinhos de papai”. A patente fala alto e pode fazer muita gente rir até de uma piada sem graça. Uma estrela a mais no ombro pode fazer alguém falar somente aquilo que o chefe gosta de ouvir, o que não é privilégio exclusivo das instituições militares.