CAPÍTULO 4
“Resistência seguida de morte” era a expressão utilizada para caracterizar uma ocorrência policial em que um confronto armado levava à morte do criminoso. Hoje os bandidos estão mais violentos e audaciosos quando comparados com os criminosos da década de 1980, mas, na iminência de um confronto, tanto naquela época quanto hoje, a maioria deles prefere se entregar. Infelizmente, há mortes de criminosos e de policiais em confronto e, lamentavelmente, algumas das mortes de bandidos não passam de execuções sumárias. Vez ou outra casos assim vêm à tona, e a imagem da instituição fica manchada. Na década de 1980, as coisas eram piores, pois algumas guarnições executavam bandidos e davam sumiço no corpo dos supostos criminosos, desovando-os em locais ermos, dificultando assim sua localização.
Considerada batalhão de elite, desde a sua criação até hoje, a ROTA atravessou uma evolução significativa, e as boas práticas são cada vez mais frequentes dentro dos seus quadros. Mas, no decorrer da história daquela unidade, alguns policiais deixaram de honrar as tradições do batalhão.
Numa dessas situações, algo não deu certo em uma ocorrência envolvendo uma das guarnições da ROTA e os policiais envolvidos resolveram, por sua conta e risco, “ajustar o B.O.” dando a ele uma solução ilegal. Não se sabe, ao certo, o que deu errado. Pode ter aparecido alguma testemunha que presenciou um excesso ou viu parte da ação com característica criminosa e sinalizou que levaria o caso ao conhecimento da Corregedoria da Polícia, não sabemos. O fato é que o cerco começou a se fechar em volta daqueles caras.
A Corregedoria da Polícia Militar, como todos sabem, trabalha para coibir desvios de conduta e na investigação de procedimentos contrários à prática comum e legal da PM. Em alguns casos, ela é tão rigorosa que beira o limite da legalidade, porque vai às últimas consequências possíveis na apuração dos fatos. Dentro da polícia se diz que “cair na Corregedoria é igual a cair num pilão: você vira paçoca”. E a Corregedoria começou a trabalhar no caso quando o desaparecimento do suposto criminoso passou a ganhar proporção midiática. Ela já apurava o caso de maneira sigilosa e tratou de reunir toda a guarnição nas suas dependências para “fazer o seu trabalho”.
Certos procedimentos são adotados numa investigação feita pela Corregedoria. Um dos mais comuns é ouvir cada um dos componentes da guarnição separadamente, e depois verificar as eventuais contradições na história. Mas cada pessoa reage diferentemente diante de situações com a complexidade dos casos que envolvem a Corregedoria, ainda mais quando há um agravante como a morte de um ser humano, possivelmente provocada por um dos policiais em serviço. Em situações assim, alguns sucumbem ao aperto psicológico. E foi isso que aconteceu naquele caso.
Quando houve a pressão, um dos componentes da guarnição “rachou” a ocorrência, e resolveu entregar o que havia acontecido em troca de uma atenuação da sua pena. Em sua confissão, ele disse que a guarnição havia prendido o suspeito no meio da noite, executando-o a sangue frio, e enterrado o corpo numa vala rasa em uma mata da periferia da cidade. O próximo passo seria o oficial encarregado do inquérito policial militar fazer a averiguação para que o corpo fosse localizado e o caso elucidado.
Um excelente trabalho foi feito, lançando-se mão da tecnologia disponível na época. Eu não me esqueço da sequência de fotos feitas no local indicado na confissão anexada ao processo. Havia uma foto panorâmica do local, seguida de outras que registravam a aproximação, e novas imagens feitas à medida que se aproximavam de onde o corpo havia sido enterrado. Havia fotos da escavação, passo a passo, de vários ângulos, até que surgiram as primeiras partes do cadáver, o qual estava em estado adiantado de decomposição. Foram fotografadas as suas vestes, a remoção do corpo e, para coroar a operação, uma foto do patuá que havia no corpo do defunto, preso por um colar que ele trazia pendurado no pescoço e que passava por baixo de um braço, bastante usado na época por criminosos que acreditavam que o objeto podia “fechar o corpo”, crença própria dos seguidores de religiões afro.
Esse patuá foi colocado em um saco plástico transparente e anexado à pasta do inquérito policial. A casa caiu para toda a equipe, que foi presa preventivamente, processada e condenada a muitos anos de cadeia a serem cumpridos no Presídio Romão Gomes, da Polícia Militar. Os tempos já eram outros. O regime de exceção estava enfraquecido, e o processo de abertura democrática, ainda que lento e gradual, iniciado pelo presidente Ernesto Geisel, em 1979, caminhava a passos largos. Esse processo teve grande repercussão no Estado de São Paulo. Todos os jornais e o noticiário da televisão repercutiram o caso e exigiram uma postura enérgica da Polícia Militar contra práticas dessa natureza. À época, o Comandante Geral de Polícia baixou uma determinação para que todos os oficiais da ROTA que tivessem registro de ocorrências com morte de criminosos em sua carreira fossem transferidos de unidade. A ordem caiu como uma bomba porque o batalhão poderia fechar, pois a maioria dos oficiais, incluindo os mais novos, já tinham se envolvido em ocorrências com morte. Ainda que a maioria das ações se desse em situações legais, dentro do cumprimento do dever ou em legítima defesa, a ordem havia sido dada pelo Comando Geral e seria cumprida.
O então comandante da ROTA não quis “peitar” a decisão e sinalizou que cumpriria a determinação. Isso gerou revolta na corporação. Não se sabe ao certo como aconteceu, mas uma manobra foi feita, talvez por um grupo de oficiais mais antigos que recorreram a alguma classe profissional simpática à atuação da ROTA, na tentativa de reverter o cenário. Uma das possibilidades era apelar para os motoristas de táxi, que sempre receberam atenção especial dos patrulheiros da ROTA.
Sabe-se que é arriscado para um motorista colocar um passageiro desconhecido dentro de seu táxi para fazer uma corrida. E, nesse caso, como é bom ter a polícia por perto para recorrer quando esse motorista desconfia de um passageiro, não é? Um dos truques antigos usados pelos taxistas ao suspeitar de qualquer situação anormal era manter aceso o luminoso do táxi, no teto do veículo, quando transportavam um passageiro que havia despertado sua suspeita. Sabemos que, no início da corrida, o táxi ocupado tem o luminoso desligado; essa é a praxe. Assim, quando uma viatura cruza com um táxi que transporta um passageiro e nota o sinal aceso, a abordagem é certa, pois o taxista pode estar sinalizando que algo está errado.
Alarmados pelos rumores sobre o desmantelamento da ROTA e a desmobilização de seus oficiais, os taxistas de São Paulo protagonizaram uma reação surreal. Eles se concentraram em grande número com seus carros em frente ao quartel da ROTA, na avenida Tiradentes, interrompendo o intenso fluxo de veículos naquela artéria central da cidade, e disseram que só sairiam dali quando o Comandante da Polícia Militar voltasse atrás em sua ordem.
A reação inicial do comandante foi no sentido de não mudar a sua decisão. Porém, a pressão se tornou insuportável, com os taxistas mostrando-se unidos, e ficou evidente que uma ação mais enérgica para enfraquecer o movimento envolveria a polícia numa situação ainda mais delicada. Finalmente, o comandante cedeu e deu sua palavra de que não moveria os oficiais dali, exigindo a liberação imediata da avenida. E ele foi atendido.
Depois que a mobilização dos taxistas se dispersou e o caso perdeu força na mídia, o comandante seguiu com o seu plano, tomando outro caminho. Ele se mostrou mais inteligente e começou a transferir os oficiais, mas um a um. Aos poucos, a medida atingiu grande parte do quartel, chegando a mim e pondo fim, prematuramente, a dois anos de trabalho e à minha tão sonhada passagem pela Unidade da ROTA.