CAPÍTULO 6
© Vidal Cavalcanti/Folhapress
O refém Abilio Diniz entre dois de seus sequestradores.
Em 4 de agosto de 1988, o Capitão Wanderley Mascarenhas de Souza assumiu o comando do GATE e a equipe recebeu novos componentes para a segunda etapa de trabalho.
O primeiro ato do Capitão Mascarenhas foi pedir guarida em um quartel que dispunha de algumas salas vazias, para que pudesse hospedar o GATE e garantir o seu funcionamento. Mais importante do que conseguir as salas vazias era o fato de o comandante do quartel ser o Coronel Ubiratan Guimarães, que já havia comandado a ROTA e tinha grande consideração pelos oficiais designados para criar e desenvolver o GATE. Seguramente, o Coronel Ubiratan ofereceria a proteção necessária às críticas e aos ataques que certamente viriam contra a formação de uma equipe tão inovadora para a época, mas que, na visão dele, era necessária. A escolha do batalhão comandado pelo Coronel Ubiratan foi uma decisão acertada e, com isso, pudemos trabalhar mais tranquilos.
Mas foi preciso acontecer o inesperado, uma ocorrência de grande repercussão, para que o nome do GATE fosse finalmente lançado ao conhecimento do público e apresentado à sociedade.
Em 11 de dezembro de 1989, enquanto se dirigia para o trabalho, o empresário Abilio Diniz foi vítima de um sequestro. Na ocasião, São Paulo vivia uma forte onda de sequestros, cujos alvos eram empresários de alto poder aquisitivo. Abilio Diniz presidia o Grupo Pão de Açúcar e seu sequestro foi amplamente noticiado no país e no exterior. Para complicar ainda mais, estávamos no segundo turno das eleições para a Presidência da República, sendo que os candidatos eram Fernando Collor de Mello e Luiz Inácio Lula da Silva.
Abilio Diniz saiu de sua casa dirigindo o próprio carro. Quando chegou à esquina entre as ruas Sabuji e Seridó, no Jardim Europa, região nobre da capital paulista, foi interceptado por uma Caravan branca e imediatamente parou o veículo que conduzia. Aparentemente, tratava-se de uma ambulância, pois essa era a característica do carro branco à frente do empresário. Mas logo a impressão de normalidade no trânsito foi desfeita. Assim que surgiu o segundo carro que participava da ação criminosa, tudo mudou naquela esquina e na vida dele. Dois sequestradores saíram de dentro do veículo, sendo um deles um argentino chamado Juan. Ambos dirigiram-se ao carro de Abilio, dominaram-no e zarparam para o cativeiro.
Assim que a denúncia sobre o desaparecimento do empresário chegou à polícia, investigadores e policiais foram para a rua à procura das primeiras pistas que orientariam as investigações. Logo naque la manhã foi encontrada uma pista importante, definitiva, eu diria, mas que, a princípio, não trazia nenhuma ligação com o sequestro. A Caravan branca caracterizada de ambulância que havia sido utilizada para bloquear a rua por onde o empresário passava foi abandonada pelos sequestradores no bairro do Morumbi, na zona sul de São Paulo.
Os criminosos que simularam uma situação qualquer para fazer o empresário parar o seu veículo acabaram se dividindo em dois grupos. Um deles seguiu com o empresário para o cativeiro e o outro partiu em outra direção, possivelmente para despistar a polícia e atrasar as investigações. Esse segundo grupo decidiu abandonar o carro da fuga, o qual foi encontrado pela polícia e levado para averiguação. Ninguém sabia qual era a procedência daquela Caravan, uma vez que não havia nenhuma testemunha do sequestro, assim como pistas de quem eram os sequestradores, quem eram os ocupantes que abandonaram o carro e, portanto, o carro apreendido não tinha, em princípio, nenhuma ligação com o sequestro.
A falsa ambulância foi vasculhada e os investigadores da Polícia Civil encontraram o cartão de visitas de uma oficina mecânica da zona oeste. O próximo passo era fazer contato com a tal oficina para saber se o proprietário do veículo era conhecido do mecânico que atendeu a manutenção, já que o cartão da oficina apontava essa possível ligação. Esse cartão também foi motivo de suspeita, porque na versão dada pelo então Secretário de Segurança Pública, Luiz Antônio Fleury Filho, havia uma anotação com o número do telefone de Pedro Segundo Solar Venega. Depois disso, Venega apareceu machucado e, como toda a imprensa estava reunida em função da cobertura das eleições, a atividade jornalística era intensa naquele momento, e a cobertura do caso mobilizou esses profissionais, a população e os analistas políticos de plantão.
A imagem de Venega machucado aliada às denúncias de corrupção que a polícia vinha sofrendo logo forjou a ideia de que a tortura − de que o recente regime de exceção era acusado −, se tornara uma prática comum, instalada no seio da polícia paulista. Fleury, porta-voz do governo, recusou a acusação de que a polícia havia torturado Venega, um chileno que tinha histórico de militância esquerdista na América Latina. Segundo a versão de Fleury, Venega havia se machucado quando ofereceu resistência a um dos delegados que trabalhou nas investigações. A investigação feita pela polícia passou pela oficina e descobriu que a falsa ambulância fora caracterizada ali e o contato da “encomenda” era Pedro Venega. Ele ocupava um flat no bairro de Santa Cecília, região central de São Paulo, e foi surpreendido pelos investigadores quando se preparava para deixar o imóvel. Os policiais interrogaram-no e chegaram a um novo endereço: um sobrado na praça Hachiro Miyazaki, no bairro do Jabaquara, zona sul da capital.
Até então a polícia trabalhava com as investigações do sequestro e todas as demais ocorrências diárias que a instituição deve atender. Rastrear o dono da Caravan branca era uma entre as dezenas de investigações feitas no cotidiano da Polícia Civil. E foi a procura pela informação sobre o veículo que levou um grupo de policiais àquela residência. Eles tocaram a campainha do sobrado e só não foram rendidos ou mortos a bala pelas pessoas que atenderam à porta por pura sorte, pois os policiais não sabiam que haviam chegado justamente ao cativeiro de Abilio Diniz. Os sequestradores, por sua vez, se viram cercados, imaginando que tudo já havia sido descoberto e que era hora de partir para o confronto com a polícia.
Os policiais conseguiram escapar da recepção e acionaram o apoio, solicitando reforço. Em pouco tempo, o local estava completamente cercado, e o fato mobilizou toda a imprensa.
O GATE em peso foi para o local e imediatamente foi montado um comitê para gerenciar a crise. Esse comitê foi composto por lideranças das Polícias Militar e Civil. Aos poucos chegaram autoridades dos órgãos de informação das Forças Armadas e da Polícia Federal; a coisa começou a se avolumar, e o clima esquentou bastante. Aparentemente, todos queriam aparecer diante das câmeras da imprensa, pois a cobertura para o caso era ampla, com repercussão nacional e internacional. Mas nem tudo o que a imprensa mostra, nem sempre o viés que apresenta, corresponde à leitura mais óbvia que a sociedade faz rapidamente.
As Forças Armadas e a Polícia Federal, que no primeiro momento trabalhavam a certa distância dos fatos, haviam apurado uma ligação mais ampla entre a onda de sequestros que ocorria na região de São Paulo e as atividades dos sequestradores com a militância esquerdista da América Latina. O que era veiculado por esses órgãos de informação extrapolava muito o simples abandono de um carro numa rua qualquer e o próprio sequestro do empresário Abilio Diniz. Estávamos envolvidos numa possível atividade terrorista em plena zona sul de São Paulo. O Capitão Mascarenhas foi chamado por um oficial de inteligência, que passou a ele a informação sobre o perfil dos sequestradores que mantinham o empresário refém. Quando ouvi o que ele disse, um arrepio percorreu a minha coluna de alto a baixo. Em seguida, o oficial apresentou a extensa ficha criminal dos que se supunha serem os sequestradores que continuavam dentro do sobrado, a pouca distância de onde nós estávamos.
A nossa percepção imediata foi a de que o desfecho de todo aquele imbróglio poderia ser trágico, o que traria uma grande repercussão, já que a imprensa estrangeira estava no país para a cobertura das eleições presidenciais. Sentimo-nos sufocados pela pressão da operação e pelo cerco da mídia e da opinião pública. As eleições haviam atraído a atenção da população para o acompanhamento permanente das informações que a imprensa veiculava, somada ao fato de que o sequestro, por si só, era um fato suficientemente forte para mobilizar um espetáculo que muitos desejam assistir.
O oficial da inteligência da Polícia Federal confirmou a nossa percepção e nos instruiu para nos prepararmos para o pior, pois aqueles criminosos com perfil de terroristas não iriam se render facilmente. Não era assim que eles costumavam reagir quando seus planos davam errado e eles se viam na iminência de ser presos.
A ficha de um dos sequestradores indicava o seguinte quadro: Juan, que estava na Caravan no momento da abordagem a Abilio, era argentino e um dos líderes do grupo. Seu nome era Humberto Eduardo Paz, militante da esquerda armada na América Latina, com dezenas de ações executadas em nome do Exército Revolucionário do Povo (ERP), do Movimento de Izquierda Revolucionária (MIR) e da Frente Popular de Libertação (FPL), de El Salvador. É preciso considerar que, naquele momento, vivíamos o período de transição para a democracia e esses grupos eram muito malvistos por aqui. Outro nome que aparecia era o de Raimundo Rosélio da Costa Freire, um dos fundadores do PT do Ceará e o único brasileiro envolvido. Raimundo havia feito a pesquisa dos nomes das vítimas que interessariam ao grupo. Os demais integrantes, como se descobriu depois, eram chilenos, argentinos e canadenses. A ligação de todos com o MIR era inequívoca.
Com essas informações preliminares em mãos, precisávamos traçar as estratégias. A negociação foi conduzida pelos policiais civis e coube a nós, do GATE, montar uma contingência para a invasão, no caso de as negociações fracassarem. O nosso primeiro passo foi pesquisar quem poderia fornecer a planta do sobrado. Após consegui-la, nos concentraríamos no tipo e na qualidade dos materiais utilizados na construção, na espessura das paredes, no posicionamento das vigas, na localização dos acessos, nos detalhes das partes elétrica e hidráulica, enfim, em absorver o maior número de informações sobre a estrutura do sobrado e a disposição dos cômodos. Munidos dessas informações, deveríamos montar um plano de ação para o caso de a invasão se tornar necessária. Depois de nos reunirmos por algum tempo, chegamos ao plano que consideramos adequado para aquela situação.
Há várias maneiras de acessar uma residência, mas cada uma possui suas peculiaridades. A melhor maneira de agir é escolhida considerando todas as informações que reunimos, além das circunstâncias que cada caso exige.
Tendo feito o reconhecimento da parte externa e juntado nossa percepção com as informações de que dispúnhamos, concluímos que a possível invasão deveria ocorrer pela parte da frente. Aquele sobrado tinha um pequeno muro e um portão de ferro que dava acesso rápido à porta de entrada. Então, consideramos que o plano deveria consistir na utilização de um caminhão do Corpo de Bombeiros que teria um cabo de aço, o qual seria amarrado ao portão. O caminhão arrancaria velozmente e, assim, sem trocadilhos, arrancaríamos o portão. A remoção do portão facilitaria nosso acesso ao imóvel.
O acesso à parte interna da residência seria realizado com a implementação do segundo passo do plano. Certamente, as portas estariam fechadas, possivelmente bloqueadas com móveis ou algum outro aparato mais resistente que pudesse impedir uma ação simples por parte da polícia. Para romper qualquer bloqueio que encontrássemos pelo caminho, utilizaríamos explosivos. Eles fariam uma abertura na parede dianteira da residência, possibilitando acesso rápido ao interior do imóvel.
Mas o GATE não dispunha desse tipo de material naquela época. Era preciso providenciá-lo rapidamente. Então, fomos atrás de um profissional especializado em implosões de prédios, para que nos ajudasse a calcular a quantidade de carga explosiva necessária para abrir um buraco na parede suficientemente amplo para que a equipe pudesse entrar sem maiores problemas.
Enquanto isso, a Polícia Civil prosseguia no processo de negociação com os sequestradores e já havia circulado a informação de que o valor de resgate pedido era de US$ 30 milhões.
Nós, do GATE, partimos com o engenheiro especializado em implosões e uma boa carga de dinamite para o extremo sul da cidade de São Paulo, onde, perto da represa Guarapiranga, havia algumas residências abandonadas. Lá nós pudemos testar o explosivo, simulando o cenário onde o sequestro estava em andamento. Fizemos vários experimentos com a finalidade de verificar a melhor técnica que deveria ser empregada, caso a necessidade de invasão se confirmasse. De fato, estávamos nos preparando para o pior, com o agente complicador que era estarmos às vésperas de uma eleição presidencial. O sequestro e as eleições disputavam a atenção do jornalismo brasileiro, e a pressão emocional e psicológica a que estávamos submetidos era intensa.
Corríamos contra o tempo, nos organizando contra um inimigo sobre quem pouco sabíamos. Boa parte daquela situação de risco era novidade, tanto para a polícia quanto para o GATE. Pelo fato de se tratar de uma organização terrorista, o elemento surpresa, a se confirmar, exigia um grau de reflexão dobrado sobre as medidas a serem empregadas e o exercício constante de procurar pensar “com a cabeça do outro”, prevendo as suas reações. Como em toda situação de conflito, é preciso entendê-la como parte das relações naturais entre as pessoas. Nós, policiais, somos humanos, assim como os criminosos. Reside aí a importância da informação, da organização do local onde estamos atuando e, especialmente, de considerar a alteridade que há. Viramos aquela noite trabalhando. A Polícia Civil estava empenhada nas negociações, amparada pela Polícia Militar; e nós, do GATE, atentos aos testes que havíamos feito, procurávamos refinar o planejamento elaborado a fim de evitar qualquer falha. Era o quinto dia de sequestro. Estávamos todos tensos e cansados, mas mantivemos a energia inicial e a expectativa de resgatar o Sr. Abilio Diniz com vida. Nenhum sinal dele havia sido dado pelos sequestradores, além daquilo que os negociadores conseguiam captar nas entrelinhas. Era confiar ou confiar. Uma saída positiva e bem-sucedida era aguardada por todos.
O quinto dia, 16 de dezembro de 1989, terminou. No dia seguinte, houve nova rodada de negociações e, surpreendentemente, todas as expectativas alimentadas pelas polícias não se confirmaram. Após 36 horas de cerco, os criminosos resolveram se entregar.
Mas ainda era preciso resgatar o sequestrado. Cabia a nós do GATE a localização do empresário refém, a sua captura e condução imediata para o nosso furgão, para que fosse encaminhado ao pronto-socorro mais próximo, prevenindo qualquer agravamento, caso ele estivesse ferido. Ao entrarmos no sobrado, parte de nossos policiais se separou rapidamente para percorrer os cômodos e inspecionar o local do cativeiro, e a outra parte se encarregou de amparar o empresário e conduzi-lo à nossa viatura, que já estava preparada para isso. O empresário, tão conhecido pelo seu vigor físico, estava em estado deplorável: magro, abatido, barbudo e sujo.
Com a libertação de Diniz, a polícia prendeu dez sequestradores. O único brasileiro do grupo, que posteriormente se formaria em História, era Raimundo Rosélio da Costa Freire. Ele foi preso, mas recuperou a liberdade graças a um indulto. Algum tempo depois, voltou a ser preso por tráfico de drogas, conforme a imprensa noticiou.
Sobre o grupo de estrangeiros, foi confirmado que pertenciam ao MIR, do Chile, que praticavam crimes com a finalidade de levantar recursos financeiros para ajudar a guerrilha em El Salvador. Documentos que comprovaram o envolvimento dos sequestradores de Diniz com grupos políticos de esquerda na América Latina foram localizados na Nicarágua, em instalações de guerrilheiros, mas o mais impressionante foi o dossiê encontrado no local do cativeiro. Uma pasta com todas as informações relevantes sobre a estrutura de segurança do Estado de São Paulo, a composição das polícias, a localização dos quartéis e das delegacias, o perfil dos chefes dos quartéis e muitos outros detalhes que indicavam que o planejamento do sequestro havia sido feito por gente experiente nesse tipo de ação.
Os criminosos passaram quase dez anos presos na Casa de Detenção do Carandiru, em São Paulo, e, beneficiados por uma nova lei, foram extraditados para seus respectivos países de origem.
O caso do sequestro de Abilio Diniz também foi envolvido numa espécie de trama política que incluiu os candidatos Collor de Mello e Lula, uma vez que circularam imagens e notícias dos sequestradores usando camisetas do PT. Rapidamente, a imprensa veiculou a informação e houve quem acreditasse que Lula foi prejudicado naquela ocasião por conta do informe negativo que surgiu nos dias que antecederam o segundo turno da eleição. Outros especialistas em política não confirmam essa ocorrência como a causa da derrota do candidato da esquerda, tendo sido ela provocada por outros fatores.
Da perspectiva policial, o desfecho da ocorrência foi altamente satisfatório e o nome do GATE foi projetado para a sociedade de um modo bastante positivo. Mas é preciso registrar que, a bem da verdade, o GATE ainda não estava preparado para enfrentar toda e qualquer operação que exigisse a presença de um grupo de elite e no dia 20 de março do ano seguinte nós tivemos a prova disso.