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O sistema processual penal, com seus princípios constitucionais, está interligado ao penal e seus princípios constitucionais. Portanto, deve-se visualizar o cenário único das ciências criminais, regidas que são pelos princípios maiores da dignidade da pessoa humana e do devido processo legal.

A nova Lei 12.403/2011 implantou reformas favoráveis ao entendimento de que a prisão do acusado é uma contingência excepcional, mas necessária, devidamente regrada e substancialmente motivada.

Visualiza-se o conjunto dos princípios constitucionais penais e processuais penais da seguinte forma: todos devem ser interpretados à luz do princípio maior da dignidade humana, além de todos convergirem para o devido processo legal.

É inviolável o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (art. 5.º, caput, CF). Observa-se, então, o natural confronto entre a liberdade e a segurança, quando se trata de aplicar, na prática, as normas penais e processuais penais. Porém, não havendo direito absoluto, flexibilizando-se cada um deles na medida exata da necessidade de aplicação dos demais, tem-se que a liberdade individual é de suma relevância, desde que não deva abrir espaço para a aplicação da pena – sanção fixada em decisão definitiva, respeitado o devido processo legal. Do mesmo modo, a liberdade individual cede espaço à segurança pública, também individualizada, sob o ângulo de cada cidadão beneficiado, abrindo caminho para a aplicação da prisão cautelar.

O sistema é harmônico e estruturado em regras mínimas de coerência e eficácia. De início, pois, vale lembrar que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (art. 5.º, LVII, CF). É a presunção de inocência, valor relevante, quando se trata do Estado Democrático de Direito.

Assim sendo, a inversão desse status de inocência transfere ao Estado, por seus órgãos constituídos, voltados à investigação, acusação e julgamento, o ônus de provar a culpa do réu. Considerando-se ser o acusado inocente, até prova definitiva em contrário, não deve ser recolhido ao cárcere antes da hora. Disso deduz-se, com lógica, ser a prisão cautelar um momento excepcional na vida do indiciado ou réu.

A liberdade individual é a regra; a prisão cautelar, exceção.

A estrutura dos direitos e garantias individuais, constante do art. 5.º da Constituição Federal, forma-se em torno do controle de legalidade absoluto da prisão, em particular, da provisória.

Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei (art. 5.º, LXI, CF). A prisão em flagrante, decorrente do poder de polícia do Estado, extensivo a qualquer cidadão (art. 301, CPP), precisa ser devidamente controlada, razão pela qual a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada (art. 5.º, LXII, CF; art. 306, CPP).

No ato da prisão, seja em flagrante ou por mandado judicial, o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogados (art. 5.º, LXIII, CF). O direito ao silêncio é instrumento de defesa, em momento delicado da vida do preso, no qual se encontra fragilizado e inseguro, merecendo ser respeitado não somente por ocasião da lavratura do auto de prisão em flagrante, mas também – e principalmente – quando se dá voz de prisão ao indiciado ou réu.

A identificação dos responsáveis pela prisão e pelo interrogatório policial tornou-se direito constitucional, buscando-se preservar a lisura do procedimento e, quando for o caso, a responsabilização da autoridade que abusar de seu poder (art. 5.º, LXIV, CF).

Outro importante aspecto, encontrando destaque na Constituição Federal e no texto da nova Lei 12.403/2011, é o controle da legalidade do flagrante pelo magistrado competente. Afinal, a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária (art. 5.º, LXV, CF).

Essa análise do juiz deve ser devidamente fundamentada, como, aliás, todas as decisões do Poder Judiciário (art. 93, IX, CF). O novo texto do art. 310, caput, do CPP, é bem claro ao exigir a motivação da decisão proferida.

Não sendo ilegal a prisão, portanto, afastado o relaxamento, deve o juiz avaliar a possibilidade de concessão da liberdade provisória, afinal, ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança (art. 5.º, LXVI, CF).

Neste ponto, torna-se imperiosa a avaliação do direito à liberdade provisória. Constitui preceito pacífico na doutrina (e na jurisprudência) inexistir prisão preventiva obrigatória, vale dizer, não há nenhum crime que implique decretação da prisão cautelar, pela simples existência da acusação contra determinado réu.

Ilustrando, se alguém responde por tráfico ilícito de drogas, não tendo sido preso em flagrante, o magistrado pode mantê-lo em liberdade, como lhe é possível decretar a prisão preventiva, se os requisitos do art. 312 do CPP estiverem presentes.

Dessa premissa, parte-se para o confronto com a ideia de inafiançabilidade ou vedação à liberdade provisória, sem fiança, para certas infrações penais, dentre as quais se destaca o próprio tráfico ilícito de drogas. Estabelece o art. 44 da Lei 11.343/2006 que os crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1.º, e 34 a 37 desta Lei são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos.

Analisemos o conjunto: se alguém for preso em flagrante por tráfico ilícito de drogas, seguindo-se a literalidade da lei ordinária, não pode obter liberdade provisória, com ou sem fiança. Deve aguardar preso o deslinde do processo-crime. Por outro lado, se a pessoa for investigada e, comprovando-se a materialidade e autoria do crime de tráfico ilícito de drogas, terminar processada com base nessa imputação, poderá permanecer em liberdade até o final do trâmite processual, pois não é obrigatória a decretação da preventiva.

Qual a diferença entre ambos os acusados pelo mesmo crime, imaginando-se, ainda, terem os dois, idênticas condições pessoais (primariedade, sem antecedentes)? A única resposta plausível é azar do primeiro e sorte do segundo, o que transforma a Justiça Criminal numa autêntica loteria, algo desprezível diante de um sistema tão regrado e justo como é a Constituição Federal, em matéria de direitos e garantias individuais.

Não é possível acatar a disposição legal infraconstitucional que padronize penas e medidas cautelares. Os mecanismos de engessamento do Judiciário, pretendendo transformá-lo em poder de segunda classe, devem ser prontamente rechaçados.

Por certo, cabe ao Legislativo a criação de leis, mas não cabe a tal Poder a sua concretização. A partir do momento em que se edita uma lei padronizada, cuja aplicação se dá de maneira automatizada, sem qualquer reflexão do juiz, está-se tomando atribuição de poder alheio.

Recebendo o auto de prisão em flagrante de acusado por tráfico ilícito de drogas, seguindo-se a lei ordinária, não sendo o caso de relaxamento, o juiz, simplesmente, nega a liberdade provisória e determina o prosseguimento do feito. Não há avaliação judicial, mas mera aplicação da vontade direta do legislador. Inexiste individualização da medida cautelar pertinente.

Assim procedendo, a lei poderá provocar maiores abusos, como retirar da esfera judicial os critérios flexíveis para a aplicação da pena. Aliás, essa foi uma das razões que levou o Supremo Tribunal Federal a considerar inconstitucional a vedação à conversão das penas do traficante em restritivas de direito.

A norma prevista no art. 5.º, LXVI, da CF, deve ser interpretada tal como se faz com a prevista no art. 5.º, XLVI. Neste caso, dispõe-se que a lei regulará a individualização da pena. No outro, preceitua-se que ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança. Associando-se ambos os dispositivos, temos que a lei deve fornecer os instrumentos necessários ao juiz, para que este possa individualizar a pena de cada réu. Por isso, a norma infraconstitucional regulará a individualização da pena. Porém, não pode, singelamente, afastar a possibilidade de individualização. Regular significa agir mediante regras, logo, cabe ao legislador estabelecer as regras em relação às quais se dará a individualização da pena. Eliminá-la, por lei ordinária, é inconstitucional.

Idêntica situação ocorre no contexto da liberdade provisória, que será cabível quando a lei a admitir, lendo-se, nesta hipótese, nos termos em que a lei a permitir. Cabe ao legislador fixar as regras gerais para a concessão da liberdade provisória, porém, não lhe cabe vedar, por completo, o direito a obtê-la.

Muitas vezes, o paradoxo se instala na prática: o mesmo juiz que nega a liberdade provisória ao preso em flagrante por tráfico ilícito de drogas, sem dar maiores justificativas, mas apenas aplicando a literalidade do art. 44 da Lei 11.343/2006, termina por não decretar a prisão preventiva a outro acusado, por tráfico de drogas, que, no entanto, não foi preso em flagrante.

O cerne da prisão em flagrante é a sua urgência, motivo pelo qual é autorizada pela Constituição Federal. Porém, como se vê da própria reforma instituída pela Lei 12.403/2011 (art. 310), ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá, motivadamente, optar por uma das três possibilidades: a) relaxar a prisão ilegal; b) converter a prisão em flagrante em preventiva, se presentes os requisitos constantes do art. 312 do CPP; c) conceder liberdade provisória, com ou sem fiança.

Não há uma quarta hipótese: a) solta o indiciado, pois o flagrante foi ilegal e não impõe nenhuma condição; b) mantém o indiciado preso, convertendo a sua prisão em flagrante em preventiva se – e somente se – os requisitos do art. 312 estiverem visíveis; c) solta o indiciado, aplicando-lhe fiança ou sem a fiança.

Embora se possa dizer que a Lei 11.343/2006 é especial em relação às normas do CPP, a verdade é que o sistema processual é um conjunto e, em nome da igualdade de todos perante a lei, como estabelece o art. 5.º, caput, da CF, não há o menor sentido de se manter preso o acusado por tráfico ilícito de drogas, sem os requisitos da preventiva.

Ademais, a nova regulação passa a valer a todos os delitos hediondos, podendo o magistrado determinar a soltura (liberdade provisória, sem fiança) do acusado por homicídio qualificado, por exemplo, se não estiverem presentes os requisitos do art. 312. O tráfico de drogas, crime equiparado a hediondo, manteria a mesma sistemática estabelecida pelo art. 44 da Lei de Drogas? À custa de que interpretação? De que lei especial afasta a lei geral? Mas, nesse caso, todo o sistema de prisão e liberdade pode entrar em contradição, sob o pretexto de se respeitar uma determinada norma para solver o conflito aparente de normas.

O princípio da especialidade não pode romper as barreiras sistêmicas, colocando em risco a sua própria coerência.

Aliás, há vários fatores contrários à interpretação literal do art. 44 da Lei de Drogas. Outro deles é a modificação introduzida pela Lei 11.464/2007, que alterou a Lei dos Crimes Hediondos, passando a prever, no art. 2.º, o seguinte: os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de: (...) II – fiança. Retirou-se a proibição à liberdade provisória, sem fiança.

Ora, para os que prezam a prevalência da lei especial sobre a geral, é fundamental considerar que a Lei 8.072/1990 é tão especial quanto a Lei 11.343/2006, sendo que aquela sofreu modificação em 2007, posterior à Lei de Drogas. Por isso, cabe aplicar o disposto na Lei dos Crimes Hediondos, mais recente, no sentido de que está permitida a liberdade provisória, sem fiança, para o tráfico ilícito de drogas.

Não bastasse, relembremos que o STF proclamou inconstitucional a vedação da conversão da pena privativa de liberdade em restritiva de direitos (art. 44, parte final, da Lei de Drogas), equivalendo dizer que a autorizou. Vejamos o contrassenso: o réu aguarda preso todo o desenvolvimento do processo para, ao final, ser condenado a prestar serviços à comunidade. Que justiça há nisso? Que lógica existe nessa situação? Se a pena privativa de liberdade pode transformar-se em restritiva de direitos, quando o réu é considerado efetivamente culpado, resultando em sua liberdade, por óbvio, não se pode retê-lo preso, cautelarmente, sem a análise dos requisitos da prisão preventiva (art. 312, CPP).

Além disso, acrescente-se ter o Supremo Tribunal Federal considerado inconstitucional o disposto pelos arts. 14, parágrafo único, 15, parágrafo único, e 21, da Lei 10.826/2003 (ADI 3.112-DF, Pleno, rel. Ricardo Lewandowski, j. 02.05.2007, m.v.). Registre-se o conteúdo do inconstitucional art. 21: os crimes previstos nos arts. 16, 17 e 18 são insuscetíveis de liberdade provisória.

A padronização da vedação da liberdade provisória é um ônus ao próprio Estado, pois favorece a superpopulação carcerária, sem qualquer ganho para a sociedade, visto que, ao final, muitos apenados terão direito a cumprir suas penas fora do presídio fechado.

O legislador cria a norma, mas tem limites estabelecidos pela própria Constituição. Aliás, já não bastasse a demagogia com que agiram os constituintes, em 1988, ao inserir vários dispositivos vedando a fiança. Sabiam – ou tinham obrigação de saber – que a fiança, no Brasil, há muito tempo, já não significava absolutamente nada. Crimes mais graves eram beneficiados pela liberdade provisória, sem fiança, enquanto os mais leves, que poderiam receber fiança, também seguiam a sorte dos outros, ou seja, eram favorecidos pela liberdade provisória, sem fiança.

Por isso, proclamou-se aos cantos do Mundo que a prática do racismo constitui crime inafiançável (art. 5.º, XLII, CF), assim como também o são a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os delitos hediondos (art. 5.º, XLIII, CF). Inafiançável, igualmente, a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (art. 5.º, XLIV, CF).

Quer-se crer tenha sido o intuito do constituinte dizer a todos que lessem a Constituição e fossem, basicamente, ignorantes em Direito, ao menos quanto à prática processual penal brasileira o seguinte: somos um País extremamente rígido com esses criminosos, pois todos eles, uma vez presos, assim ficarão, já que tais delitos são inafiançáveis.

Esqueceram – ainda bem – de contar a todos os leitores do Texto Magno que a prática, há décadas, privilegiava a liberdade provisória, sem fiança, motivo pelo qual a fiança era instituto morto, desprezível e ignorado.

Logo, com a devida vênia, os argumentos tecidos em torno da inafiançabilidade, como razão para não colocar em liberdade provisória os acusados por tráfico ilícito de drogas, são inconvincentes. Lê-se que os defensores dessa ideia trabalham com o seguinte raciocínio: se o próprio constituinte considerou inafiançável tal delito, natural seria que o legislador pudesse vedar o menos, que é a liberdade provisória, sem fiança.

Em primeiro lugar, quem assim argumenta olvida a realidade da demagogia construída no texto constitucional de 1988. Falar em inafiançabilidade para o mundo exterior soava medida rígida, mas para nós, brasileiros, ao menos os operadores do Direito, nada queria dizer de consistente.

Em segundo plano, a ideia da fiança é simplificar o processo de soltura, a quem pode pagar a garantia real. Noutros termos, não estando presentes os requisitos da preventiva, a melhor garantia de que o réu permanecerá por perto, acompanhando seu processo, é o desembolso de algum valor considerável. Afinal, caso fuja, no futuro, perderá esse montante. Caso infrinja as regras condicionantes, perderá metade do valor.

Nada mais que isso significa a fiança. Não quer dizer seja um mecanismo benévolo, a ponto de, extraído do sistema, termine por colocar todos os acusados no cárcere. Ao contrário, até para os crimes hediondos, atualmente, pode-se conceder liberdade provisória, sem fiança. Não fosse a demagogia do constituinte, poder-se-ia instituir fiança, sim, para os autores de tais delitos graves, a fim de fixá-los no distrito da culpa.

No mesmo prisma, Gustavo Badaró ensina: “desde a mudança da Lei 6.416/1977, com a introdução do antigo parágrafo único do art. 310, admitindo a liberdade provisória, para qualquer delito, independentemente de sua gravidade, nos casos em que não estivessem presentes quaisquer das hipóteses que autorizam a prisão preventiva, deixou de haver qualquer sentido em se considerar um crime inafiançável. Ou seja, se o investigado ou acusado tivesse sido preso em flagrante delito, não poderia obter a concessão de fiança, mas poderia responder o processo em liberdade provisória, sem fiança, nos termos do então introduzido parágrafo único do art. 310 do CPP. Em suma, ser um crime inafiançável deixou de ser sinônimo de responder o processo preso” (Og Fernandes (coord.). Medidas cautelares no processo penal – Prisões e suas alternativas. São Paulo: RT, 2012. p. 270).

Ser considerado crime inafiançável termina por constituir um favor legal e não um gravame. Sem nada pagar, o acusado, por delitos graves, deixa o cárcere.

Em terceiro lugar, é fundamental considerar que a ideia geral, hoje, especialmente em Direito Penal, é a desprisionalização, ou seja, retirar a força das penas privativas de liberdade, substituindo-as por penas alternativas, aliás, já previstas na Constituição Federal (art. 5.º, XLVI, a a e). Se a quase unanimidade dos juristas apoia a nova meta do direito material, qual é o sentido de se defender o encarceramento precoce, justamente de quem ainda é acusado, logo, inocente até sentença condenatória definitiva?

Vamos a fatos incontestáveis. Constatar a pura demagogia do constituinte em confronto com a lei ordinária é simples. O crime de racismo, segundo o texto constitucional, deve ser inafiançável, punido com reclusão e imprescritível. Parece um quadro terrível, onde se pretende manter preso o acusado de racismo, antes de sua condenação, bem como deve ele ser perseguido até o final da sua vida, pois o delito não está sujeito à prescrição.

Entretanto, esse gravíssimo delito conta com penas amenas, comportando, na totalidade, benefícios penais dos mais variados, mantendo-se o condenado em liberdade, ao final das contas. De que servem essas bandeiras de terror (inafiançabilidade e imprescritibilidade), se é possível conceder ao réu de racismo os seguintes favores legais: a) suspensão condicional do processo, para os crimes cuja pena mínima é de um ano (ex.: art. 5.º, Lei 7.716/1989); b) sursis, aos delitos cuja pena mínima é de dois anos (ex.: art. 4.º, Lei 7.716/1989); c) penas alternativas, a todos os delitos cuja condenação não ultrapasse quatro anos (praticamente todos os crimes da Lei 7.716/1989); d) regime aberto, aos delitos cuja condenação não seja superior a quatro anos (idem).

Noutros termos, aplicando-se a pena, após o devido processo legal, é praticamente impossível manter em regime fechado o condenado por racismo. Sendo primário, de bons antecedentes, e contando com a famosa política da pena mínima, institucionalizada por grande parte da magistratura brasileira, o réu jamais sofrerá pena privativa de liberdade, na sua inteireza.

Ora, se o condenado fica solto, qual a razão de ser para manter o acusado preso?

Quem conseguir decifrar esse enigma, pode justificar, de outra maneira, o que estamos chamando de demagogia constitucional, em relação à questão da inafiançabilidade de certos crimes. E é por essa razão que devemos desprezar, por completo, como fundamento para manter determinados réus presos, o fato de constar no texto constitucional a tal figura da inafiançabilidade.

A mesma demagogia emerge com a Lei Maria da Penha. Impõe-se a viabilidade de decretação da prisão preventiva, sabendo-se que a grande maioria dos delitos, envolvidos no cenário da violência doméstica e familiar, possuem penas pífias (ameaça, detenção de um a seis meses, ou multa; lesão corporal qualificada, detenção, de três meses a três anos). Logo, é perfeitamente viável concluir que o legislador deseja um processo penal de efeitos especiais, simbólico e maniqueísta, ou seja, bateu na mulher vai para a cadeia imediatamente. Mas, depois, quando a sociedade esquece o fato, o intento legislativo passa a ser outro, construindo um direito penal brando e, por vezes, ineficiente, aplicando-se penas impositivas da liberdade do condenado, necessariamente.

É preciso que o Judiciário coloque um basta nessa manipulação de massas ignorantes, envolvendo a mídia e os índices de audiência, quando se pretende apresentar um processo penal rigoroso, limitado por um direito penal benigno.

Qual marido-companheiro agressor termina, efetivamente, preso, quando advém a condenação por violência doméstica (exceto quando transcende para o campo de delitos hediondos, como homicídio e estupro)? Qual é a possibilidade de uma ameaça levar alguém ao cárcere, por conta de pena final? Se as respostas são negativas, não há razão alguma para sustentar a prisão cautelar desses agentes, justamente na fase em que são considerados inocentes, até prova definitiva em contrário.

O sabor da legislação penal midiática é nítido e lamentável. O sistema entra em colapso, justamente porque, vez ou outra, concretiza-se um crime qualquer, que ingressa nos meios de comunicação, com fervor, provocando alterações na legislação penal e processual penal. Não se legisla com racionalidade, mas com pura emoção.

Nem bem terminou a tragédia do Realengo, no Rio de Janeiro, quando um matador eliminou a vida de crianças, já se pretende instalar um novo plebiscito, discutindo a posse de armas, nos mesmos moldes que se fez em 2005. É pura decorrência do episódio, pois não havia tal discussão em andamento no Congresso Nacional.

Aliás, a Lei 11.340/2006 leva o codinome Lei Maria da Penha, em função de uma das vítimas da violência doméstica e familiar. No Brasil, seria fácil apelidar várias leis penais e processuais penais com os nomes dos autores ou vítimas de crimes que as inspiraram.

Outro ponto a evidenciar o fracasso legislativo, em nome da harmonia sistêmica, envolve a Lei dos Crimes Hediondos. Primeiramente, elevaram-se as penas e proibiu-se a progressão de regime, bem como a liberdade provisória. Com o tempo, o próprio Executivo constatou a superlotação carcerária, da qual nunca deu conta satisfatoriamente, passando a agir nos bastidores do Legislativo para derrubar o rigor da referida lei.

As idas e vindas provocaram a tentativa de eliminação do exame criminológico, para aumentar a vazão da progressão de outros delitos (conforme se constata do art. 112 da Lei 7.210/1984 – LEP, dada pela Lei 10.792/2003). O Judiciário vedou essa afronta à individualização executória da pena. Seguiu-se a proclamação da inconstitucionalidade da vedação à progressão de regime (STF, fevereiro de 2006). Cuidou o Legislativo de editar a Lei 11.464/2007, autorizando a progressão e a liberdade provisória, sem fiança.

O mesmo Legislativo, um ano antes, editou as Leis 11.340/2006 (violência doméstica) e 11.343/2006 (drogas), contendo novas pinceladas de ilogicidade, como apontamos. Medidas processuais rigorosas para ambas, embora, no direito material não se encontre a mesma severidade.

Surge, agora, a Lei 12.403/2011, contendo novas regras para a prisão e liberdade. Muitas dessas novas normas já deveriam estar em execução há muito tempo, como o dever judicial de motivar suas decisões acerca de prisão e liberdade.

Essa lei, fruto de um projeto apresentado em 2001, amadureceu no Congresso Nacional por dez anos, até ser, finalmente, editada. Não contém o ranço de qualquer crime de mídia, razão pela qual possui mais pontos positivos que negativos.

Espera-se possa ser, realmente, utilizada pelo Judiciário, que precisa abandonar a cultura da prisão compulsória, analisando caso a caso, conforme a gravidade concreta. Aos poucos, a fiança pode renascer como instituto louvável de vínculo do réu ao distrito da culpa. Novas medidas cautelares, se aplicadas corretamente, podem dar ensejo à criação de outras, diminuindo-se o índice elevado de prisões provisórias.

Em suma, há fundamentos constitucionais para o êxito da nova sistemática da prisão e da liberdade no direito processual brasileiro. Depende – e muito – da boa vontade dos operadores do Direito.

Finalizando, o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional a vedação à liberdade provisória, constante da Lei de Drogas, em decisão tomada pelo Pleno, no dia 10 de maio de 2012. Em verdade, colocou fim a mais um excesso do Legislativo, que, de tempos em tempos, cisma em não compreender os preceitos constitucionais garantistas da Constituição de 1988.

Mantemos os nossos comentários em relação à proibição da liberdade provisória, hoje considerada inconstitucional, pois valem para a reflexão do leitor, bem como para outros casos em que torne o legislador a vedar a liberdade provisória indiscriminadamente.

STF: “O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, declarou, incidenter tantum, a inconstitucionalidade da expressão ‘e liberdade provisória’, constante do caput do art. 44 da Lei 11.343/2006, vencidos os Senhores Ministros Luiz Fux, Joaquim Barbosa e Marco Aurélio. Em seguida, o Tribunal, por maioria, concedeu parcialmente a ordem para que sejam apreciados os requisitos previstos no artigo 312 do Código de Processo Penal para, se for o caso, manter a segregação cautelar do paciente, vencidos os Senhores Ministros Luiz Fux, que denegava a ordem; Joaquim Barbosa, que concedia a ordem por entender deficiente a motivação da manutenção da prisão do paciente, e Marco Aurélio, que concedia a ordem por excesso de prazo. O Tribunal deliberou autorizar os Senhores Ministros a decidirem monocraticamente os habeas corpus quando o único fundamento da impetração for o artigo 44 da mencionada lei, vencido o Senhor Ministro Marco Aurélio” (HC 104.339-SP, Pleno, m.v., rel. Min. Gilmar Mendes, 10.05.2012).

Tal medida não inviabiliza, completamente, a vedação à liberdade provisória no tocante ao traficante, desde que os fatos concretos indiquem a necessidade de se manter a prisão cautelar.

Nessa ótica, STF: “Se as circunstâncias concretas da prática do crime indicam o envolvimento profundo do agente com o tráfico de drogas e, por conseguinte, a periculosidade e o risco de reiteração delitiva, está justificada decretação ou a manutenção da prisão cautelar para resguardar a ordem pública, desde que igualmente presentes boas provas da materialidade e da autoria.” (HC 103.206-MG, 1.ª.T., v.u., rel. Min. Rosa Weber, 12.06.2012).