II
A constituição do Ego
O Ego não é diretamente unidade das consciências refletidas. Existe uma unidade imanente dessas consciências, é o fluxo da consciência se constituindo a si mesma como unidade de si mesma[c] – e uma unidade transcendente: os estados e as ações. O Ego é unidade dos estados e das ações – facultativamente das qualidades. Ele é unidade de unidades transcendentes e ele mesmo transcendente. É um polo transcendente de unidade sintética, como o polo-objeto da atitude irrefletida. Mas esse polo aparece apenas no mundo da reflexão. Nós examinaremos sucessivamente a constituição dos estados, das ações e das qualidades e a aparição do Moi como polo dessas transcendências[46].
A) Os estados como unidades transcendentes das consciências
O estado aparece à consciência reflexiva. Ele se dá a ela e constitui o objeto de uma intuição concreta. Se eu odeio Pedro, meu ódio por Pedro é um estado que eu posso apreender pela reflexão. Esse estado está presente diante do olhar da consciência reflexiva, ele é real. Deve-se concluir daí que ele seja imanente e certo? Claro que não. Não devemos fazer da reflexão um poder misterioso e infalível, nem creio que tudo o que a reflexão alcança seja indubitável porque alcançado pela reflexão. A reflexão tem limites de direito e de fato. É uma consciência que põe uma consciência. Tudo o que ela afirma sobre esta consciência é certo e adequado. Mas se outros objetos lhe aparecem por meio dessa consciência, esses objetos não têm razão alguma de participar das características da consciência. Consideremos uma experiência reflexiva de ódio[47]. Eu vejo Pedro, e sinto como que um tremor profundo de repulsa e de cólera à sua vista (já estou sobre o plano reflexivo): o tremor é consciência. Não posso enganar-me quando digo: eu sinto nesse momento uma violenta repulsa por Pedro. Mas esta experiência de repulsa é o ódio? Evidentemente não. Além do mais, ela não se dá como tal. Com efeito, eu odeio Pedro há muito tempo e penso que o odiarei para sempre. Uma consciência instantânea de repulsa não poderia, portanto, ser meu ódio. Mesmo que eu a limitasse ao que ela é, a uma instantaneidade, já não poderia mais falar de ódio. Eu diria: “Tenho repulsa por Pedro neste momento” e dessa forma não comprometo o futuro. Mas, precisamente por essa recusa de comprometer o futuro, eu deixaria de odiar.
Ora, meu ódio me aparece ao mesmo tempo que minha experiência de repulsa. Mas ele aparece através dessa experiência. Ele se dá precisamente como não limitando-se a essa experiência. Ele se dá, em e por cada movimento de desgosto, de repulsa e de cólera, mas ao mesmo tempo ele não é nenhum deles, ele escapa a cada um enquanto afirma a sua permanência. Afirma que já aparecia ontem quando pensei em Pedro com tanto furor e que aparecerá amanhã. Ele opera por si mesmo, ademais, uma distinção entre ser e aparecer, uma vez que se dá como constituinte de ser mesmo quando estou absorvido em outras ocupações e nenhuma consciência o revela. Isso parece o bastante para poder afirmar que o ódio não é da consciência. Ele ultrapassa a instantaneidade da consciência e não se dobra à lei absoluta da consciência pela qual não existe distinção possível entre a aparência e o ser. Assim, o ódio é um objeto transcendente. Cada “erlebnis”[48] o revela inteiramente, mas, ao mesmo tempo, isso é apenas um perfil, uma projeção (uma “Abschattung”). O ódio é um crédito para uma infinidade de consciências coléricas ou repugnadas, no passado e no futuro. É a unidade transcendente dessa infinidade de consciências. Assim, dizer “eu odeio” ou “eu amo”, por ocasião de uma consciência singular de atração ou de repulsa, equivale a operar uma verdadeira passagem ao infinito bastante análoga àquela que operamos quando percebemos um tinteiro ou o azul do buvar.
Não é preciso mais que isso para que os direitos da reflexão sejam singularmente limitados: é certo que Pedro me repugna, mas é e será sempre duvidoso que eu o odeie[49]. Essa afirmação ultrapassa infinitamente, com efeito, o poder da reflexão. Não é preciso concluir, naturalmente, que o ódio seja uma simples hipótese, um conceito vazio: é um objeto bem real, que eu apreendo através da “Erlebnis”, mas esse objeto está fora da consciência e a natureza mesma de sua existência implica sua “dubitabilidade”. Também a reflexão possui um domínio certo e um domínio duvidoso, uma esfera de evidências adequadas e uma esfera de evidências inadequadas. A reflexão pura (que não é, no entanto, necessariamente a reflexão fenomenológica) atém-se sem erigir pretensões para o futuro. É o que se pode ver quando alguém, depois de dizer em sua cólera: “eu te detesto”, recompõe-se e diz: “Não é verdade, eu não te detesto, eu disse isso em minha cólera”. Vemos aqui duas reflexões: uma, impura e cúmplice, que opera uma passagem ao infinito nesse caso e que constitui bruscamente o ódio através da “Erlebnis” como seu transcendente; a outra, pura, simplesmente descritiva, que desarma a consciência irrefletida devolvendo-lhe sua instantaneidade. Essas duas reflexões apreenderam os mesmos dados verdadeiros, mas uma afirmou mais do que sabia e dirigiu-se através da consciência refletida sobre um objeto situado fora da consciência.
Quando deixamos o domínio da reflexão pura ou impura e meditamos sobre seus resultados, somos tentados a confundir o sentido transcendente da “Erlebnis” com seu caráter imanente. Essa confusão leva o psicólogo a dois tipos de erros: em um deles, eu concluo que a introspecção é enganosa, pelo fato de, muitas vezes, enganar-me em meus sentimentos, chegando a crer, por exemplo, que amo quando odeio; nesse caso, separo definitivamente meu estado de suas aparições; estimo que é necessária uma interpretação simbólica de todas as aparições (consideradas como símbolos) para determinar o sentimento e suponho uma relação de causalidade entre o sentimento e suas aparições: eis aqui o inconsciente que reaparece – e no outro caso, por eu saber, ao contrário, que minha introspecção é justa, que não posso duvidar de minha consciência de repulsa, pois eu a tenho, creio-me autorizado a transportar essa certeza para o sentimento, e concluo que meu ódio possa encerrar-se na imanência e na adequação de uma consciência instantânea.
O ódio é um estado. E com esse termo tentei exprimir o caráter de passividade que lhe é constitutivo. Sem dúvida, dir-se-á que o ódio é uma força, um impulso irresistível etc. Mas a corrente elétrica ou a queda d’água também são forças temíveis: isso elimina minimamente a passividade e a inércia de sua natureza? Daí receberiam eles menos sua energia de fora? A passividade de uma coisa espaçotemporal se constitui a partir de sua relatividade existencial. Uma existência relativa não pode ser mais que passiva, já que a menor atividade a liberaria do relativo e a constituiria como absoluto. Da mesma forma o ódio, existência relativa à consciência reflexiva, é inerte. E, naturalmente, falando da inércia do ódio, não pretendemos dizer nada mais senão que ele aparece dessa forma à consciência. Não dizemos com efeito: “Meu ódio foi despertado...”, “Seu ódio era combatido pelo desejo violento de... etc.”? As lutas do ódio contra a moral, a censura etc. não são representados como conflitos de forças físicas, a ponto inclusive de Balzac e a maioria dos romancistas (às vezes o próprio Proust) aplicarem aos estados o princípio da independência das forças? Toda a psicologia dos estados (e a psicologia não fenomenológica em geral) é uma psicologia do inerte.
O estado é dado de algum modo como intermediário entre o corpo (a “coisa” imediata) e a “Erlebnis”. Apenas que ele não é dado como atuando da mesma maneira do lado do corpo e do lado da consciência. Do lado do corpo, sua ação é francamente causal. Ele e a causa de minha mímica, causa de meus gestos: “Por que você foi tão desagradável com Pedro?” “Porque eu o detesto”. Mas ele não poderia ser assim (exceto nas teorias construídas a priori e com conceitos vazios, como o freudismo) do lado da consciência. Em nenhum caso, com efeito, a reflexão pode enganar-se sobre a espontaneidade da consciência refletida: é o domínio da certeza reflexiva. Também a relação entre o ódio e a consciência instantânea de desgosto é construída de maneira a lidar, ao mesmo tempo, com as exigências do ódio (ser primeiro, ser origem) e os dados certos da reflexão (espontaneidade): a consciência de desgosto aparece à reflexão como uma emanação espontânea do ódio. Nós vemos aqui pela primeira vez esta noção de emanação, tão importante cada vez que se trata de ligar os estados psíquicos inertes às espontaneidades da consciência. A repulsa se dá, de certo modo, como produzindo-se ela própria por ocasião do ódio e às expensas do ódio. O ódio aparece através dela como aquilo de que ela emana. É fácil reconhecermos que a relação do ódio com a “Erlebnis” particular de repulsa não é lógica. É um vínculo mágico, seguramente[50]. Mas quisemos apenas dar uma descrição e, quanto ao mais, veremos logo que é em termos exclusivamente mágicos que se deve falar das relações do eu com a consciência.
B) Constituição das ações
Não tentaremos estabelecer uma distinção entre consciência ativa e a consciência simplesmente espontânea. Parece-nos, por outro lado, que é um dos problemas mais difíceis da fenomenologia. Gostaríamos simplesmente de observar que a ação concertada é antes de tudo (qualquer que possa ser a natureza da consciência ativa) um transcendente. Isso é evidente para ações como “tocar piano”, “conduzir um automóvel”, “escrever”, porque essas ações são “tomadas” no mundo das coisas. Mas as ações puramente psíquicas como duvidar, raciocinar, meditar, fazer uma hipótese, devem, também elas, ser concebidas como transcendências. O enganoso aqui é que a ação não é apenas a unidade noemática de um fluxo de consciência: é também uma realização concreta. Mas não se pode esquecer que a ação demanda tempo para se realizar. Ela possui as articulações, momentos. A esses momentos correspondem consciências concretas ativas e a reflexão que se dirige sobre as consciências apreende a ação total em uma intuição que a entrega como a unidade transcendente das consciências ativas. Nesse sentido, pode-se dizer que a dúvida espontânea que me invade quando entrevejo um objeto na penumbra é uma consciência, mas a dúvida metódica de Descartes é uma ação, quer dizer, um objeto transcendente da consciência reflexiva. Vê-se aqui o perigo: quando Descarte diz: “Duvido, logo existo”, trata-se da dúvida espontânea que a consciência reflexiva apreende em sua instantaneidade, ou trata-se justamente da empresa de duvidar? Essa antiguidade, já o vimos, pode ser a fonte de graves erros.
C) As qualidades como unidades facultativas dos estados
O Ego, como veremos, é diretamente a unidade transcendente dos estados e das ações. No entanto, pode haver um intermediário entre esses e aquelas: é a qualidade. Quando nós experimentamos diversas vezes ódio em relação a diferentes pessoas, ressentimentos tenazes ou longa cólera, nós unificamos essas diversas manifestações intencionando uma disposição psíquica de produzi-las. Esta disposição psíquica (eu sou muito rancoroso, sou capaz de odiar violentamente, sou colérico) é, naturalmente, algo mais, e uma coisa diferente, do que um simples meio. É um objeto transcendente. Representa o substrato dos estados como os estados representam o substrato das “Erlebnisse”. Mas sua relação com os sentimentos não é uma relação de emanação. A emanação liga apenas as consciências às passividades psíquicas. A relação da qualidade com o estado (ou a ação) é uma relação de atualização. A qualidade é dada como uma potencialidade, uma virtude que, sobre a influência de fatores diversos, pode passar à atualidade. Sua atualidade é precisamente o estado (ou a ação). Vê-se a diferença essencial entre a qualidade e o estado. O estado é unidade noemática de espontaneidades, a qualidade é unidade de passividades objetivas. Na ausência de toda consciência de ódio, o ódio se dá como existente em ato. Ao contrário, na ausência de todo sentimento de rancor, a qualidade correspondente permanece uma potencialidade. A potencialidade não é simples possibilidade[51]: ela se apresenta como alguma coisa que existe realmente, mas cujo modo de existência é ser em potência. São desse tipo naturalmente os defeitos, as virtudes, os gostos, os talentos, as tendências, os instintos etc. Essas unificações são sempre possíveis. A influência de ideias preconcebidas e de fatores sociais é aqui preponderante. Por outro lado, elas não são jamais indispensáveis, porque os estados e as ações podem encontrar diretamente no ego a unidade que reclamam.
D) Constituição do Ego como polo das ações, dos estados e das qualidades
Aprendemos assim a distinguir o “psíquico”[52] da consciência. O psíquico é o objeto transcendente da consciência reflexiva[d], e também o objeto da ciência chamada psicologia. O Ego aparece à reflexão como um objeto transcendente que realiza a síntese permanente do psíquico. O Ego está do lado do psíquico[53]. Observemos aqui que o Ego que consideramos é psíquico e não psicofísico. Não é por meio de uma abstração que separamos esses dois aspectos do Ego. O Moi psicofísico é um enriquecimento sintético do Ego psíquico, que pode muito bem (e sem redução de nenhuma espécie) existir em estado livre. É certo, por exemplo, que, quando se diz: “Eu sou um indeciso”, não se visa diretamente o Moi psicofísico.
Seria tentador constituir o Ego como “polo-sujeito” como o “polo-objeto” que Husserl situa no centro do núcleo noemático. Esse polo-objeto é um X que suporta as determinações.
“Predicados são predicados de “alguma coisa”; esse “alguma coisa” pertence também ao núcleo em questão e é óbvio que não pode separar-se dele. Ele é o ponto de unidade central do qual falamos mais acima. É o ponto de ligação dos predicados, seu suporte; mas não é absolutamente unidade dos predicados, no sentido de um complexo qualquer, de uma ligação qualquer de predicados. Deve ser necessariamente distinto deles, embora não se possa colocá-lo à parte, nem separá-lo deles. São, então, seus predicados: impensáveis sem ele e, no entanto, distintos dele”[e]. Desse modo, Husserl entende indicar que considera as coisas como sínteses ao menos idealmente analisáveis. Sem dúvida, essa árvore, essa mesa são complexos sintéticos e cada qualidade está ligada a todas as outras. Mas está ligada na medida em que cada uma pertence ao mesmo objeto X. O que é logicamente primeiro são as relações unilaterais segundo as quais cada qualidade pertence (direta ou indiretamente) a esse X comum predicado a um sujeito. Disso resulta que uma análise é sempre possível. Essa concepção é muito discutível[54]. Mas não é aqui o lugar de examiná-la. O que nos importa é que uma totalidade sintética indissolúvel e que se suportasse a si mesma não teria necessidade alguma de um suporte X, com a condição, naturalmente, de que fosse real e concretamente inanalisável. É inútil, por exemplo, se tomarmos em consideração uma melodia, supor um X que serviria de suporte às diferentes notas[55]. A unidade vem aqui da indissolubilidade absoluta dos elementos que não podem ser concebidos separadamente, exceto por abstração. O sujeito do predicado será aqui a totalidade concreta, e o predicado será uma qualidade abstratamente separada da totalidade e que adquire todo o seu sentido somente se a ligarmos à totalidade[f].
Por essas mesmas razões não nos permitiremos ver no Ego uma espécie de polo X que seria o suporte dos fenômenos psíquicos. Um tal X seria, por definição, indiferente às qualidades psíquicas das quais seria o suporte. Mas o Ego, como veremos, jamais é indiferente a seus estados, está “comprometido” por eles. Ora, precisamente um suporte não pode estar assim comprometido por aquilo que ele suporta senão no caso de ser uma totalidade concreta que suporte e contenha suas próprias qualidades. O Ego nada é fora da totalidade concreta dos estados e das ações que ele suporta. Sem dúvida, ele é transcendente a todos os estados que unifica, mas não como um X abstrato cuja missão é apenas unificar: em vez disso, é a totalidade infinita dos estados e das ações que não se deixa jamais reduzir a uma ação ou a um estado. Se fôssemos buscar uma equivalência para a consciência irrefletida daquilo que o Ego é para a consciência do segundo grau, pensaríamos antes que seria necessário pensar o Mundo concebido como a totalidade sintética infinita de todas as coisas. Desse modo, com efeito, podemos apreender o Mundo para além de nosso ambiente circundante imediato como uma vasta existência concreta. Nesse caso as coisas que nos rodeiam aparecem apenas como a extrema ponta desse Mundo que as transcende e as engloba. O Ego é para os objetos psíquicos o que o Mundo é para as coisas. Apenas que a aparição do Mundo como fundo das coisas é bastante rara; são necessárias circunstâncias especiais (muito bem descritas por Heidegger em Sein und Zeit) para que ele se “desvele”[56]. O Ego, ao contrário, aparece sempre no horizonte dos estados. Cada estado, cada ação se dá como incapaz de ser separada do Ego, sem abstração. E se o juízo separa o Eu de seu estado (como na frase: Eu estou apaixonado), não pode fazê-lo senão para ligá-lo imediatamente. O movimento de separação conduziria a uma significação vazia e falsa se não se desse a si mesmo como incompleto e não se completasse por meio de um movimento de síntese.
Essa totalidade transcendente participa do caráter duvidoso de toda transcendência; quer dizer que tudo aquilo que nos é dado por nossas intuições do Ego pode sempre ser contradito por intuições subsequentes, e é assim que se dá. Por exemplo, posso ver com clareza que sou colérico, ciumento etc., e no entanto posso enganar-me. Em outras palavras, eu posso enganar-me pensando que tenho um tal Moi. O erro, ademais, não se comete no nível do juízo, mas já no nível da evidência prejulgada.
Esse caráter duvidoso de meu Ego – o mesmo erro intuitivo que cometo – não significa que eu tenha um verdadeiro Moi que ignoro, mas apenas que o Ego intencionado traz em si mesmo o caráter da dubitabilidade (em certos casos o da falsidade). Não está excluída a hipótese metafísica segundo a qual meu Ego não se comporia de elementos que existiram na realidade (há dez anos ou há um segundo), mas se constitui apenas de falsas recordações. O poder do malin génie estende-se até aí.
Mas se é da natureza do Ego ser um objeto duvidoso, disso não se pode concluir que seja hipotético. Com efeito, o Ego é a unificação transcendente espontânea de nossos estados de nossas ações. Como tal, ele não é uma hipótese. Eu não digo: “Pode ser que eu tenha um Ego”, como posso dizer: “Pode ser que eu odeie Pedro”. Não busco aqui um sentido unificador de meus estados. Quando eu unifico minhas consciências sob a rubrica “ódio”, acrescento-lhes um certo sentido, eu as qualifico. Mas quando eu incorporo meus estados à totalidade concreta Moi, eu não lhes acrescento nada. É que, com efeito, a relação entre o Ego e as qualidades, os estados e as ações não é nem uma relação de emanação (como a relação entre a consciência e o sentimento), nem uma relação de atualização (como a relação entre a qualidade e o estado). É uma relação de produção poética (no sentido de ποιεῖν), ou, se se preferir, de criação.
Cada um, reportando-se aos resultados de sua intuição, pode constatar que o Ego se dá como produzindo seus estados. Empreenderemos aqui uma descrição desse Ego transcendente tal como se revela à intuição. Partimos, portanto, deste fato inegável: cada novo estado está ligado diretamente (ou indiretamente pela qualidade) ao Ego como à sua origem. Esse modo de criação é, efetivamente, uma criação ex nihilo, no sentido de que o estado não é dado como tendo sido antes no Moi. Mesmo se o ódio se dá como atualização de uma certa potência de rancor ou de ódio, ele permanece alguma coisa de novo em relação à potência que atualiza. Assim o ato unificador da reflexão religa cada novo estado de uma maneira muito especial à totalidade concreta Moi. A reflexão não se limita a apreender o novo estado como alcançando essa totalidade, fundindo-se com ela: ela intenciona uma relação que atravessa o tempo inversamente e que dá o Moi como a fonte do estado. O mesmo acontece, naturalmente, para as ações em relação ao Eu. Quanto às qualidades, embora elas qualifiquem o Moi, elas não se dão como alguma coisa por meio de que ele existiria (como é o caso, por exemplo, para um agregado: cada pedra, cada tijolo existe por si mesmo e seu agregado existe em razão de cada uma dessas coisas). Mas, ao contrário, o Ego mantém suas qualidades por uma verdadeira criação contínua. No entanto, não apreendemos o Ego como se fosse, finalmente, uma fonte criadora pura do lado de cá das qualidades. Não nos parece que poderíamos chegar a um polo esquelético caso retirássemos, uma a uma, todas as qualidades. Se o Ego aparece para lá de cada qualidade ou mesmo de todas, é porque ele é opaco como um objeto: seria-nos necessário proceder a um desnudamento infinito para retirar todas as suas potências. E ao termo desse desnudamento não sobraria mais nada, o Ego se teria esvaído. O Ego é criador de seus estados e sustenta suas qualidades na existência por uma espécie de espontaneidade conservadora. Não se deveria confundir essa espontaneidade criadora ou conservadora com a Responsabilidade, que é um caso especial e produção criadora a partir do Ego. Seria interessante estudar os diversos tipos de processão do Ego a seus estados. Trata-se, na maior parte do tempo, de uma processão mágica. Outras vezes ela pode ser racional (no caso da vontade refletida, por exemplo). Mas sempre com um fundo de ininteligibilidade, cuja razão daremos em breve. Com as diferentes consciências (pré-lógicas, infantis, esquizofrênicas, lógicas etc.) a nuança da criação varia, mas permanece sempre uma produção poética. Um caso muito particular e de um interesse considerável é o da psicose de influência. O que quer dizer o doente com estas palavras: “Fazem-me pensar coisas ruins”? Nós tentaremos analisar isso em outra obra[57]. Notemos aqui, no entanto, que a espontaneidade do Ego não é negada: ela é de alguma maneira enfeitiçada[58], mas permanece.
Essa espontaneidade, no entanto, não deve ser confundida com a da consciência. Com efeito, o Ego, sendo objeto, e trata-se por. Tanto de uma pseudoespontaneidade que encontraria símbolos convenientes na manifestação súbita de uma fonte, de um gêiser etc. Quer dizer, trata-se de uma aparência apenas. A verdadeira espontaneidade deve ser perfeitamente clara: ela é aquilo que produz e não pode ser nada diferente. Ligada sinteticamente a alguma coisa distinta de si mesma, ela envolveria, com efeito, alguma obscuridade e mesmo certa passividade na transformação. Seria necessário, com efeito, admitir uma passagem de si mesma a outra coisa, o que suporia que a espontaneidade se escapa a si mesma. A espontaneidade do Ego se escapa a si mesma, já que o ódio do Ego, embora não possa existir por si só, possui apesar de tudo uma certa independência em relação ao Ego. De modo que o Ego é sempre sobrepassado por aquilo que produz, mesmo que, de outro ponto de vista, ele seja aquilo que produz. Daí, os assombros clássicos tais como: “Eu, fui capaz de fazer isso!?”, “Eu, pude odiar meu pai!?” etc. etc. Aqui, evidentemente, o conjunto concreto do Moi observado internamente até esse dia sobrecarrega esse Eu produtor e o mantém um pouco atrás do que acaba de produzir. O vínculo do Ego aos seus estados permanece, portanto, uma espontaneidade ininteligível[59]. É esta espontaneidade que Bergson descreveu nos Dados imediatos da consciência, é ela que ele toma pela liberdade sem dar-se conta de que descreve um objeto e não uma consciência e que a ligação que estabelece é perfeitamente irracional, porque o produtor é passivo em relação à coisa criada. Por irracional que seja, essa ligação não deixa de ser aquela que constatamos na intuição do Ego. E o seu sentido é: o Ego é um objeto apreendido, mas também constituído pela ciência reflexiva. É um núcleo virtual de unidade, e a consciência o constitui em sentido inverso do que segue a produção real: o que é primeiro realmente são as consciências, através das quais se constituem os estados, depois, através destes, o Ego. Mas, como a ordem é revertida por uma consciência que se aprisiona no Mundo para fugir de si própria, as consciências são dadas como imanando dos estados e os estados como produzidos pelo Ego[60]. Segue-se que a consciência projeta sua própria espontaneidade no objeto Ego para lhe conferir o poder criador que lhe é absolutamente necessário. Somente essa espontaneidade, representada e hipostaseada em um objeto, torna-se uma espontaneidade bastarda e degradada que conserva magicamente sua potência criadora ao mesmo tempo em que se torna passiva. Daí a irracionalidade profunda da noção de Ego. Conhecemos outros aspectos degredados da espontaneidade consciente. Citarei apenas um: uma mímica expressiva[61] e fina pode nos apresentar a “Erlebnis” de nosso interlocutor com todo seu sentido, todas as suas nuanças, todo seu frescor. Mas ela no-la apresenta degradada, quer dizer, passiva. Estamos deste modo rodeados de objetos mágicos que guardam como que uma recordação da espontaneidade da consciência, mas sem deixarem de ser objetos do mundo. Eis por que o homem é sempre um feiticeiro para o homem. Com efeito, esta ligação poética de duas passividades em que uma cria a outra espontaneamente, é o fundo mesmo da feitiçaria, é o sentido profundo da “participação”. Eis também por que somos feiticeiras para nós mesmos, cada vez que consideramos nosso Moi.
Em virtude dessa passividade, o Ego é suscetível de ser afetado. Nada pode agir sobre a consciência, porque ela é causa de si. Mas, ao contrário, o Ego produtor sofre, em retorno, o choque daquilo que produz. Ele fica “comprometido”[62] por aquilo que produz. Aqui a relação se inverte: a ação ou o estado se volta sobre o Ego para qualificá-lo. Isso nos leva de volta à relação de participação. Todo novo estado produzido pelo Ego tinge e matiza o Ego no momento em que o Ego o produz. O Ego é, de algum modo, enfeitiçado por essa ação, ele participa dela. Não é o crime cometido por Raskolnikoff que se incorpora ao Ego deste. Ou melhor, para ser exato, é o crime, mas sob uma forma condensada, sob a forma de um golpe mortal. Assim, tudo o que o Ego produz deixa nele sua impressão. Devemos acrescentar: e somente o que ele produz. Alguém poderia objetar que o Moi pode ser transformado por eventos exteriores (catástrofes, luto, decepções, mudança de ambiente social etc.). Mas é apenas enquanto constituem para ele a ocasião de estados ou de ações. Tudo se passa como se o Ego estivesse protegido por sua espontaneidade fantasmal de todo contato direto com o exterior, como se ele pudesse comunicar-se com o Mundo apenas por intermédio dos estados e das ações. Vejamos a razão desse isolamento: é simplesmente devido ao fato de que o Ego é um objeto que aparece apenas à reflexão e que, por isso, é radicalmente separado do Mundo. Ele não vive no mesmo plano.
Assim como o Ego é uma síntese irracional de atividade e de passividade, é também síntese de interioridade e de transcendência. Em certo sentido, ele é mais “interior” à consciência do que os estados. É exatamente a interioridade da consciência refletida, contemplada pela consciência reflexiva. Mas é fácil compreender que a reflexão, contemplando a interioridade, faz dela um objeto colocado à sua frente. O que entendemos, com efeito, por interioridade? Simplesmente que, para a consciência, ser e conhecer-se são uma só e mesma coisa. Isso pode ser expresso de diferentes maneiras: eu posso dizer, por exemplo, que, para a consciência, a aparência é o absoluto na medida em que é aparência ou ainda que a consciência é um ser cuja essência implica a existência[63]. Essas diferentes formas nos permitem concluir que se vive a interioridade (que se “existe internamente”), mas que não se a contempla, já que ela mesma estaria para além da contemplação, por sua condição. De nada serviria objetar que a reflexão põe a consciência refletida e, desse modo, sua interioridade. O caso é especial: a reflexão e o refletido são apenas um, como bem demonstrou Husserl[64]. E a interioridade de uma se funde com a do outro. Mas colocar diante de si a interioridade é forçosamente dar-lhe o peso de um objeto. É como se ela se fechasse sobre si mesma e não nos mostrasse mais que seu exterior; como se precisássemos “fazer um tour” para compreendê-la. É exatamente assim que o Ego se dá à reflexão: como uma interioridade fechada sobre si mesma. Ele é interior para si, não para a consciência. Naturalmente, trata-se novamente de um complexo contraditório: com efeito, uma interioridade absoluta jamais possui exterioridade. Ela pode ser concebida somente por si mesma e é por isso que não podemos apreender as consciências dos outros (apenas por isso e não porque os corpos nos separam). Na realidade essa interioridade degradada e irracional pode ser analisada em duas estruturas muito particulares: a intimidade e a indistinção. Em relação à consciência o Ego se dá como íntimo. É como se o Ego fosse da consciência, com a única e essencial diferença que ele é opaco à consciência. E essa opacidade é apreendida como indistinção. A indistinção, que é usada frequentemente de formas diferentes na filosofia, é a interioridade vista de fora ou, se preferirmos, a projeção degradada da interioridade. É essa indistinção que encontraríamos, por exemplo, na famosa “multiplicidade de interpenetração”, de Bergson. É ainda essa indistinção, anterior às especificações da natureza naturada, que se encontra no Deus de inúmeros místicos. Pode-se compreendê-la ora como uma indiferenciação primitiva de todas as qualidades, ora como uma forma pura do ser, anterior a toda qualificação. Essas duas formas de indistinção pertencem ao Ego, de acordo com o modo como o considerarmos. Na espera, por exemplo – (ou quando Marcel Arland explica que é necessário um evento extraordinário para revelar o Moi verdadeiro[65]) – o Ego se dá como uma potência nua que se fixará e se precisará no contato com os eventos[g][66]. Ao contrário, após a ação, parece que o Ego reabsorve o ato realizado em uma multiplicidade de interpenetração. Em ambos os casos, trata-se de totalidade concreta, mas a síntese totalitária é operada com intenções diferentes. Pode ser que se pudesse chegar a dizer que o Ego, em relação ao passado, é multiplicidade de interpenetração e, em relação ao futuro, potência nua. Mas é preciso desconfiar aqui de uma esquematização excessiva.
O Moi permanece desconhecido para nós. Isso pode ser compreendido facilmente: ele se dá como um objeto. Portanto, o único método para conhecê-lo é a observação, a aproximação, a espera, a experiência. Mas esses procedimentos, que convêm perfeitamente a todo transcendente não íntimo, não convêm aqui. Pelo fato da intimidade própria do Moi. Ele está por demais presente para que se possa tomar sobre ele um ponto de vista verdadeiramente exterior. Se nos retiramos para tomar distância, ele nos acompanha nesse recuo. Ele é infinitamente próximo e não posso rodeá-lo. Sou preguiçoso ou trabalhador? Posso sabê-lo, sem dúvida, dirigindo-me àqueles que me conhecem e perguntando-lhes sua opinião. Ou, então, posso reunir os fatos que me dizem respeito e tentar interpretá-los tão objetivamente quanto se se tratasse de outra pessoa. Mas seria inútil dirigir-me ao Moi diretamente e tentar aproveitar de sua intimidade para conhecê-lo. Porque é ela, ao contrário, que nos barra o caminho. Assim, “conhecer-se bem” é fatalmente tomar sobre si o ponto de vista de outrem, quer dizer, um ponto de vista necessariamente falso[67]. E todos aqueles que tentaram se conhecer concordarão que essa iniciativa de introspecção se revela desde a origem como um esforço para reconstituir com peças soltas, com fragmentos isolados, algo que é dado originalmente todo inteiro, de uma vez. Desse modo, a intuição do Ego é uma miragem perpetuamente decepcionante, pois, a um só tempo, entrega tudo e não entrega nada. E, ademais, como poderia ser diferente, uma vez que o Ego não é a totalidade real das consciências (essa totalidade seria contraditória como todo o infinito em ato), mas a unidade ideal de todos os estados e de todas as ações. Sendo ideal, naturalmente, essa unidade pode abraçar uma infinidade de estados. Mas se percebe bem que o que se entrega à intuição concreta e plena é apenas essa unidade na medida em que se incorpora ao estado presente. A partir desse núcleo concreto uma quantidade mais ou menos grande de intenções vazias (por direito uma infinidade) se dirigem rumo ao passado e rumo ao futuro e visam os estados e as ações que não estão presentemente dadas. Aqueles que possuem algum conhecimento da Fenomenologia compreenderão sem dificuldade que o Ego é ao mesmo tempo uma unidade ideal de estados cuja maioria estão ausentes e uma totalidade concreta dando-se inteiramente à intuição: isso significa simplesmente que o Ego é uma unidade noemática e não noética. Uma árvore ou uma cadeira não existem de outra forma. Naturalmente as intenções vazias podem sempre ser preenchidas e qualquer estado, qualquer ação pode sempre reaparecer à consciência como sendo ou tendo sido produzida pelo Ego.
Enfim, o que impede radicalmente de adquirir reais conhecimentos sobre o Ego é a maneira toda especial como ele se dá à consciência reflexiva. Com efeito, o Ego sempre aparece apenas quando não olhamos para ele. É preciso que o olhar reflexivo se fixe sobre a “Erlebnis”, na medida em que ela emana do estado. Então, por trás do estado, no horizonte, o Ego aparece. Portanto, ele nunca é visto senão “de canto de olho”. Assim que volto meu olhar para ele querendo alcançá-lo sem passar pela “Erlebnis” e o estado, ele se esvai. Pois, com efeito, ao procurar apreender o Ego por si mesmo e como objeto direto de minha consciência, eu caio novamente no plano irrefletido e o Ego desaparece com o ato reflexivo. Daí essa impressão inquietante de incerteza que muitos filósofos se expressam colocando o Eu aquém do estado de consciência e afirmando que a consciência deve voltar sobre si mesma para perceber o Eu que está atrás dela. Não é isso: é que, por natureza, o Ego é fugidio.
É certo, contudo, que o Eu aparece sobre o plano irrefletido. Se me perguntam “O que você está fazendo?” eu respondo preocupadamente: “Estou tentando pendurar este quadro” ou “Estou consertando o pneu traseiro”, essas frases não nos transportam para o plano da reflexão, eu as pronuncio sem interromper o trabalho, sem cessar de visar unicamente às ações, enquanto são feitas ou devem ser feitas. Mas esse “Eu” de que se trata aqui não é, contudo, uma simples forma sintáxica. Ele possui um significado; é simplesmente um conceito vazio e destinado a permanecer vazio. Da mesma forma que posso pensar em uma cadeira na ausência de qualquer cadeira e por um simples conceito, assim eu posso pensar o Eu na ausência do Eu. É o que evidencia a consideração de frases tais como: “O que você vai fazer hoje à tarde?”, “Vou ao escritório”, ou “Encontro meu amigo Pedro”, ou “Preciso escrever-lhe” etc. etc. Mas o Eu, caindo do plano refletido ao plano irrefletido, não simplesmente se esvazia. Ele se degrada: perde sua intimidade. O conceito não poderia jamais ser preenchido pelos dados da intuição porque ele visa agora algo que não são eles. O Eu que encontramos aqui é de algum modo o suporte das ações que (eu) faço ou devo fazer no mundo enquanto elas são qualidades do mundo e não unidade de consciências. Por exemplo: a lenha deve ser partida em pequenos pedaços para que o fogo acenda. Ela deve: é uma qualidade da lenha e uma relação objetiva da lenha com o fogo que deve ser acendido. Nesse momento, eu parto a lenha, ou seja, a ação se realiza no mundo e o apoio objetivo e vazio dessa ação é o Eu-conceito. Eis por que o corpo e as imagens do corpo podem consumar a degradação total do Eu concreto da reflexão ao Eu-conceito servindo a este último como cumprimento ilusório[68]. Eu digo “Eu” parto lenha, e vejo e sinto o objeto “corpo” envolvido no ato de partir a lenha. O corpo serve, nesse caso, de símbolo visível e tangível para o Eu. Vê-se, portanto, a série de refrações e degradações da qual uma “egologia” deveria ocupar-se.
E) O Eu e a consciência no Cogito
Alguém poderia se perguntar por que o Eu aparece por ocasião do Cogito, uma vez que o Cogito, corretamente operado, é apreensão de uma consciência pura, sem constituição de estado nem de ação. A bem dizer, ou Eu não é necessário aqui, já que não é jamais unidade direta das consciências. Pode-se inclusive supor uma consciência operando um ato reflexivo puro que a entregasse a si mesma como espontaneidade não pessoal. Apenas é preciso considerar que a redução fenomenológica nunca é perfeita. Aqui intervém uma imensidão de motivações psicológicas. Quando Descartes efetua o Cogito, ele o efetua em relação com a dúvida metódica, com a ambição de “fazer progredir a ciência” etc., que são ações e estados. Assim o método cartesiano, a dúvida etc. se dão por natureza como empreendimentos de um Eu. É absolutamente natural que o Cogito, que aparece ao termo desses empreendimentos e que se dá como logicamente ligado a dúvida metódica, veja aparecer um Eu em seu horizonte. Esse Eu é uma forma de ligação ideal, uma maneira de afirmar que o Cogito está tão bem apreendido quanto a dúvida. Em uma palavra, o cogito é impuro, é uma consciência espontânea, sem dúvida, mas que permanece ligada sinteticamente a consciências de estados e de ações. A prova é que o Cogito se dá ao mesmo tempo como resultado lógico da dúvida e como aquilo que lhe põe fim[69]. Uma apreensão reflexiva da consciência espontânea como espontaneidade não pessoal como exigiria ser realizada. Isso é sempre possível em direito, mas permanece muito improvável ou, no mínimo, algo extremamente raro em nossa condição humana. De todo modo, como dissemos anteriormente, o Eu que aparece no horizonte do “Eu penso” não se dá como produtor da espontaneidade consciente. A consciência se produz diante dele e vai em direção a ele, vai unir-se a ele. É tudo que se pode dizer.
[c]. Cf. Zeitbewusstsein, passim.
[46]. O problema da relação do Ego com os estados, as ações e as qualidades, que tematiza essa segunda parte, será retomado brevemente em O Ser e o Nada no capítulo “A temporalidade”, p. 221ss.
[47]. Cf. o ódio como possibilidade de minha relação com outrem (O Ser e o Nada, p. 509ss.).
[48]. Erlebnis: experiência vivida
vivência intencional
Para a significação desse termo, em uma nota de L’Imagination (p. 144), Sartre remete às Ideen, § 36, e acrescenta: “Erlebnis, termo intraduzível em francês, vem do verbo erleben. ‘Etwas erleben’ significa ‘viver alguma coisa’. Erlebnis teria, mais ou menos, o sentido de ‘vivência’ no sentido em que o entendem os bergsonianos”.
[49]. “O certo” e “O provável” constituem as duas grandes partes do estudo sobre L’Imaginaire. São certas somente minhas “consciências-de”, em seu movimento espontâneo de elã rumo às coisas; o paradoxo dessas consciências de primeiro grau é que elas se apreendem ao mesmo tempo como interioridades puras e como explosões rumo às coisas, externamente. Fora destas, todo objeto, como objeto para a consciência, quer seja meu ódio ou esta mesa, continuará sendo sempre duvidoso, pois nenhuma intuição poderá jamais entregá-lo a mim de uma vez por todas em sua totalidade.
[50]. Sartre constata aqui pela primeira vez a aparição de processos mágicos na consciência. Ele analisará (em 1939) a conduta mágica singular que é a emoção, fuga irrefletida de uma consciência diante de um mundo que a invade violentamente e que ela gostaria de aniquilar.
[51]. O possível, cf. O Ser e o Nada: “O para-si e o ser dos possíveis”, p. 147ss.
A potencialidade. Id., p. 249ss.
[52]. Sartre remete aqui ao seu tratado de psicologia fenomenológica intitulado La Psyché, escrito em 1937-1938. Tendo descoberto a noção de “objeto psíquico”, tal como é esboçada no estudo sobre o Ego, ele a desenvolveu aplicando-a a diversos estados ou sentimentos. Mas essa psicologia não o satisfez, particularmente porque faltava-lhe ainda a ideia de nadificação (néantisation), que será descoberta em O Ser e o Nada. La Psyché, foi, portanto, abandonada. Apenas um extrato dela foi publicado em 1939: trata-se de Esquisse d’une théorie des émotions (Esboço de uma teoria das emoções).
Sobre esse ponto, veja as indicações dadas por Simone de Beauvoir, em La force de l’âge (A força da idade), p. 326.
[d]. Mas ele também pode ser visado e alcançado através da percepção dos comportamentos. Pretendemos nos explicar alhures52 sobre a identidade de fundo de todos os métodos psicológicos.
[53]. O Ser e o Nada é a sequência explícita das conclusões desse ensaio. No capítulo intitulado “O Eu e o Circuito da Ipseidade” o Ego passa definitivamente para o lado do em-si, que se torna a razão de ser de sua transcendência, tal como é estabelecida aqui. “Tentamos mostrar em um artigo das Recherches philosophiques (Investigações filosóficas) que o Ego não pertence ao domínio do para-si. Não retornaremos a isso. Observemos aqui somente a razão da transcendência do Ego: como polo unificador das “Erlebnisse”, o Ego é em-si, não para-si. Se ele fosse “da consciência”, com efeito, seria por si mesmo seu próprio fundamento na translucidade do imediato. Mas então seria algo que não seria e não seria o que seria – o que não é, de modo algum, o modo de ser do Eu. Com efeito, minha consciência do Eu jamais o esgota, e tampouco é ela que o faz vir à existência: ele se dá sempre como tendo sido aí antes dela – e, ao mesmo tempo, como possuidor de profundidades que hão de revelar-se pouco a pouco. Assim, o Ego aparece à consciência como um em-si transcendente, um existente do mundo humano, e não como da consciência” (p. 155).
[e]. Ideen, § 131, p. 270.
[54]. Porque não é absolutamente certo que, na percepção de uma coisa, cada consciência (das qualidades desta coisa) se reporte de cara a alguma coisa diferente de si. De fato, não é nem um pouco, pois precisamente há uma autonomia da consciência irrefletida.
[55]. Husserl toma como exemplo a melodia nas Leçons sur la conscience interne du temps (Lições sobre a consciência interna do tempo), § 14 (Trad. p. 51-52).
[f]. Husserl conhece, ademais, muito bem esse tipo de totalidade sintética, à qual dedicou um estudo notável: L.U. II, Untersuchung III.
[56]. Para que o mundo apareça por detrás das coisas é preciso que se desfaçam nossas categorias habituais de apreensão do mundo. Com efeito, captá-las nos permite ver apenas o mundo espaçotemporal da ciência. Mas acontece de, repentinamente, um outro mundo surgir, presença nua, por trás dos instrumentos quebrados.
[57]. Trata-se, novamente, de La Psyche (A Psique). Veja a nota 52.
[58]. Assim o desejo é descrito por Sartre em O Ser e o Nada como uma “conduta de feitiço” (p. 488).
[59]. “É essa ambiguidade que põe em claro a teoria de Bergson sobre a consciência que dura e que é ‘multiplicidade de interpenetração’. O que Bergson alcança aqui é o psíquico, não a consciência entendida como Para-si” (O Ser e o Nada, p. 226).
[60]. É por isso que o Ego desempenha um papel tão grande no aprisionamento da consciência em-si, ou seja, nas condutas de má-fé (cf. O Ser e o Nada, 1ª parte, cap. 2, p. 92-118).
[61]. Sartre analisará em L’Imaginaire (O Imaginário) as implicações dos jogos da consciência que procedem à reificação do sentido. A mímica expressiva, por exemplo, pode envolver uma relação de posse, no sentido mágico, entre o sentido a ser veiculado e a matéria onde ele se prende (rosto, carne, corpo): “Um imitador é um possuído” (p. 45).
[62]. Assim, “o desejo me compromete; sou cúmplice de meu desejo” (O Ser e o Nada, p. 482).
[63]. Cf. “Introdução em Busca do Ser”, p. 15-40, de O Ser e o Nada.
[64]. Na unidade de uma cogitatio concreta, conforme as Ideen I, § 38 (Trad. Ricoeur, p. 123).
Mas Husserl assimila a tese de minha vivência pessoal à tese de meu eu puro, como igualmente necessárias e indubitáveis, para opô-las juntamente à tese contingente do mundo. Equivale a dizer que não coloca o Ego no domínio do transcendente psíquico.
[65]. Em um artigo da N.R.F., talvez Sur un nouveau Mal du Siècle (Sobre um novo Mal do século), publicado em 1924, reproduzido nos Essais critiques (Ensaios críticos), Gallimard, 1931, p. 14; é um tema familiar a Marcel Arland, veja na mesma coletânea seu ensaio sobre Oscar Wilde, p. 118.
[g]. Como no caso em que o apaixonado66 querendo significar que não sabe até onde sua paixão o arrastará, diz: “Tenho medo de mim”
[66]. Cf. a análise do apaixonado feita por Simone de Beauvoir em Pour une morale de l’ambiguïté (Por uma moral da ambiguidade), p 90ss.; e O Ser e o Nada, I, 2: “As condutas de má-fé”, p. 101.
[67]. Porque “é como objeto que apareço ao Outro”, é isso que mostra O Ser e o Nada (p. 290).
[68]. Cf. O Ser e o Nada, Parte 3, cap. 2: “O corpo”, p. 385-441. “A profundidade de ser de meu corpo para mim é o perpétuo ‘fora’ de meu ‘dentro’ mais íntimo”, p. 442.
[69]. Sobre o empreendimento de Descartes, reportar-se ao artigo de Situations I (Gallimard, 1947) intitulado “A liberdade cartesiana” (p. 314-335).