O ANO DE 1892 começou frio, com quinze centímetros de neve no chão e temperaturas que passavam de vinte graus abaixo de zero. Com certeza não era o tempo mais frio já vivido por Chicago, mas frio o bastante para congelar as válvulas dos três sistemas de abastecimento de água da cidade e temporariamente impedir o fornecimento de água potável em Chicago. Apesar do clima, as obras no Jackson Park progrediram. Os operários fizeram um abrigo móvel aquecido, que lhes permitia a aplicação de estafe no exterior do Edifício das Minas, a despeito da temperatura. O Edifício das Mulheres estava quase terminado, já sem os andaimes; o gigantesco Edifício das Manufaturas e das Artes Liberais começara a erguer-se de suas fundações. No total, havia quatro mil operários no parque. Entre as fileiras havia um carpinteiro e marceneiro chamado Elias Disney, que nos anos seguintes contaria muitas histórias sobre a construção do mágico reino à beira do lago.1 O filho Walt registraria tudo.
Fora da cerca da exposição, com seus dois metros e meio de altura e suas duas camadas de arame farpado, havia tumulto. As reduções de salário e as demissões fomentavam a agitação entre operários no país inteiro. Sindicatos ganhavam força; a agência nacional de detetives Pinkerton obtinha lucro. Um sindicalista em ascensão chamado Samuel Gompers passou pelo escritório de Burnham para discutir alegações de que a exposição estava discriminando operários sindicalizados.2 Burnham mandou o superintendente de construção, Dion Geraldine, investigar. Enquanto as disputas trabalhistas aumentavam e a economia vacilava, os números de casos de violência subiam. Ao avaliar o ano de 1891, o Chicago Tribune informou que 5.906 pessoas tinham sido assassinadas nos Estados Unidos, quase 40% a mais do que em 1890. O aumento incluía o sr. e a sra. Borden, de Fall River, Massachusetts.
A constante ameaça de greve e a chegada do frio intenso tornaram o novo ano sombrio para Burnham, mas o que o preocupava acima de tudo era a velocidade com que a verba da companhia da exposição encolhia. Adiantando as obras com grande rapidez, e numa escala tão imensa, o departamento de Burnham consumira muito mais dinheiro do que qualquer um teria previsto. Os diretores agora falavam em pedir uma verba de 10 milhões de dólares ao Congresso, mas enquanto isso não acontecia a única solução era reduzir as despesas. Em 6 de janeiro, Burnham ordenou aos chefes do seu departamento que tomassem providências imediatas, em alguns casos draconianas, para cortar gastos. Mandou o desenhista-chefe, encarregado das obra de exposição em andamento no sótão do Rookery, que demitisse no ato qualquer pessoa que fizesse “trabalho impreciso ou desleixado”3 ou que deixasse de cumprir suas tarefas completas. Escreveu ao superintendente de paisagismo de Olmsted, Rudolf Ulrich, para dizer o seguinte: “Parece-me que você agora pode cortar a sua equipe pela metade, e ao mesmo tempo se livrar de muitos homens que nos custam caro.”4 A partir de então, ordenou Burnham, todo trabalho de carpintaria deveria ser feito apenas por homens empregados pelos empreiteiros da feira. Para Dion Geraldine, escreveu: “Por favor, demita todos os carpinteiros da sua equipe...”5
Até aquela altura, Burnham tinha demonstrado pelos operários um grau de compaixão extraordinário para a época. Pagava-lhes até mesmo quando doenças ou ferimentos os impediam de trabalhar e criou um hospital na exposição que dava assistência médica gratuita. Construiu alojamentos dentro do parque, onde eles recebiam três fartas refeições diárias e dormiam em camas limpas e em cômodos bem aquecidos. Um professor de economia política de Princeton chamado Walter Wyckoff disfarçou-se de trabalhador não qualificado e passou um ano viajando e trabalhando em meio ao crescente exército de desempregados do país, incluindo um período no Jackson Park. “Protegidos por sentinelas e altas barreiras contra contatos indesejados com tudo lá fora, formávamos grandes grupos de homens saudáveis e robustos vivendo e trabalhando num maravilhoso mundo artificial”, escreveu ele. “Nenhum sinal de miséria nos perturba, nem da desesperadora pobreza causada pela vã procura de emprego... Trabalhamos oito horas por dia, em pacífica segurança e na absoluta confiança de que vamos receber pagamento.”6
Contudo, agora até a feira estava dispensando operários, e o momento era péssimo. Com o inverno, a tradicional temporada de construções chegara ao fim. A disputa pelos novos empregos disponíveis intensificara-se, e milhares de desempregados de todo o país — carregando com tristeza o rótulo de “hobo”, possivelmente derivado do grito das ferrovias “ho, boy”7 — convergiam em Chicago na esperança de conseguir trabalho na exposição. Os homens dispensados, Burnham bem o sabia, defrontavam-se com a pobreza e a falta de lugar para morar, e suas famílias corriam o risco muito real de morrer de fome.
A feira, porém, vinha em primeiro lugar.
A ausência de um desafiante para Eiffel continuava frustrando Burnham. As propostas ficavam cada vez mais esquisitas. Um visionário propôs uma torre 150 metros mais alta do que a Torre Eiffel, mas construída só de toras de madeira, com uma cabana no topo, oferecendo abrigo e lanches. A cabana seria de toras de madeira.
Se um engenheiro capaz de superar Eiffel não se apresentasse logo, Burnham sabia que não haveria mais tempo de construir nada que fosse digno da feira. De alguma forma, ele precisava despertar os engenheiros dos Estados Unidos. A oportunidade veio quando o convidaram para uma palestra no Saturday Afternoon Club, um grupo de engenheiros que começara a reunir-se aos sábados num restaurante no centro da cidade para discutir os desafios técnicos da construção da feira.
Serviram a refeição de costume, com vários pratos, vinho, charutos, café e conhaque. A uma mesa estava sentado um engenheiro de 33 anos, natural de Pittsburgh, que dirigia uma empresa de inspeção de aço com filiais em Nova York e Chicago e que já firmara contrato para inspecionar o aço utilizado nos prédios da feira. De rosto anguloso, cabelo e bigode negros e olhos escuros, tinha o tipo de aparência que logo passaria a ser cobiçado pela indústria à qual Thomas Edison começava a dar vida. “Era eminentemente simpático e sociável e tinha um agudo senso de humor”, escreveram seus sócios. “Em qualquer reunião logo se tornava o centro das atenções, tendo um vivo domínio da fala e um constante repertório de anedotas e experiências.”8
Como os outros membros do Saturday Afternoon Club, esperava ouvir Burnham falar sobre os desafios de construir uma cidade inteira em tão pouco tempo, mas foi surpreendido. Depois de afirmar que “os arquitetos dos Estados Unidos se cobriram de glória”9 com os projetos apresentados para a exposição, Burnham repreendeu os engenheiros civis do país por não terem alcançado o mesmo nível de brilhantismo. Acusou-os de “terem dado pouca ou nenhuma contribuição, não criando novas características, nem mostrando as possibilidades do exercício da engenharia moderna nos Estados Unidos”.
Um tremor de descontentamento percorreu a sala.
“Precisamos de um elemento distinto”, prosseguiu Burnham, “alguma coisa que ocupe na Exposição Colombiana Mundial posição equivalente à ocupada pela Torre Eiffel na exposição de Paris.”
Mas que não fosse uma torre, disse ele. Torres não eram originais. Eiffel já tinha construído uma. “Só tamanho” também não bastaria. “Uma coisa inédita, original, ousada e única precisa ser projetada e construída se os engenheiros dos Estados Unidos quiserem preservar o prestígio e a reputação.”
Alguns profissionais ficaram ofendidos; outros reconheceram que Burnham tinha lá suas razões. O engenheiro de Pittsburgh se sentiu “atingido pela verdade daqueles comentários”.10
Ali sentado entre colegas, ocorreu-lhe uma ideia, “como uma inspiração”. Veio não como um impulso meio resolvido, disse ele, mas com riqueza de detalhes. Podia vê-la e tocá-la, ouvi-la girando no céu.
Não havia muito tempo sobrando, mas se agisse com rapidez para produzir desenhos e conseguisse convencer o comitê de assuntos fiscais da feira da viabilidade da ideia, achava que a exposição poderia, de fato, ultrapassar Eiffel. E, se o que aconteceu com Eiffel acontecesse com ele, sua fortuna estaria garantida.
Deve ter sido reanimador para Burnham ficar de pé na frente do Saturday Afternoon Club e repreender abertamente seus membros por incapacidade, pois a maior parte das outras reuniões sobre a exposição acabava se tornando mero exercício de comedimento, sobretudo quando ele se apresentava diante dos numerosos comitês da feira — que não paravam de multiplicar-se. Esse constante minueto vitoriano de fingida elegância consumia tempo. Ele precisava de mais poder — não para satisfazer o ego, mas para o bem da exposição. A menos que o processo de decisões ganhasse velocidade, ele sabia que a feira sofreria atrasos irreparáveis, mas a verdade é que os obstáculos à eficiência aumentavam de tamanho e de número. Os minguantes fundos de reserva da companhia da exposição tinham piorado suas relações com a comissão nacional, e o diretor-geral Davis argumentava que qualquer dinheiro federal a mais deveria ser controlado por sua comissão. Ela parecia criar novos departamentos todos os dias, cada um com um chefe na folha de pagamento — Davis nomeou um superintendente de ovelhas,11 com salário anual equivalente a cerca de 60 mil dólares hoje — e cada qual reclamando uma fatia de jurisdição que Burnham julgava ser de sua propriedade.
Logo a disputa pelo controle degenerou em briga pessoal entre Burnham e Davis, sendo o principal campo de batalha um desentendimento sobre quem deveria controlar o projeto artístico de exposições e interiores. Para Burnham era óbvio que o território lhe pertencia. Já Davis pensava o contrário.
Primeiro Burnham tentou a via indireta. “Estamos agora organizando uma equipe especial de decoração e arquitetura de interiores para cuidar dessa parte”, escreveu ele a Davis, “e tenho a honra de oferecer os serviços do meu departamento para o seu nesses assuntos. Sinto que seria indelicado da parte de meus homens sugerir às suas composições artísticas, formas e decorações para exposições sem contar com a sua total aprovação, que venho por meio desta, respeitosamente, solicitar.”12
Mas Davis disse a um repórter: “Acho que está bem entendido a esta altura que ninguém, a não ser o diretor-geral e seus agentes, tem qualquer coisa a ver com exposições.”13
O conflito fervia. Em 14 de março, Burnham se juntou a Davis para um jantar com o representante do Japão para a feira, no Chicago Club. Depois Davis e Burnham ficaram no clube discutindo educadamente até as cinco da manhã. “Foi um tempo bem gasto”, escreveu ele a Margaret, que na ocasião estava fora da cidade, “e chegamos a um melhor entendimento, de modo que o caminho daqui para a frente será mais tranquilo.”14
Uma fadiga pouco característica manifestou-se nessa carta. Ele disse a Margaret que planejava encerrar o expediente mais cedo naquela noite para ir a Evanston, “dormir em sua querida cama, meu amor, e sonhar com você. Que correria, esta vida! Para onde vão os anos?”.
Havia momentos agradáveis. Burnham esperava sempre com prazer as noites no terreno quando assessores e arquitetos em visita se reuniam para jantar no barracão e conversar até altas horas, diante da sua imensa lareira. Ele dava grande valor à camaradagem e às histórias contadas. Olmsted falava das infindáveis provações de proteger o Central Park contra intervenções mal inspiradas. O coronel Edmund Rice, chefe da guarda colombiana da exposição, descrevia como tinha sido ficar parado numa floresta sombria de Gettysburg enquanto Pickett lançava seus soldados pelo campo.
No fim de março de 1892, Burnham convidou os filhos para lhe fazerem uma de suas periódicas visitas de pernoite.15 Eles não chegaram na hora prevista. De início, a demora foi atribuída a qualquer atraso ferroviário de rotina, mas com o passar das horas Burnham ficava mais ansioso. Como todo mundo, sabia que desastres de trem em Chicago eram ocorrências quase diárias.
Começou a escurecer, e finalmente os meninos chegaram. O trem fora detido por uma ponte quebrada na linha Milwaukee & St. Paul. Eles apareceram no barracão, escreveu Burnham a Margaret, “a tempo de ouvir o coronel Rice contar algumas histórias da guerra e da vida nas planícies, entre batedores e índios”.
Enquanto Burnham escrevia essa carta, os filhos estavam ali perto. “Parecem muito contentes de estarem aqui e agora olham o grande álbum de fotografias com o sr. Geraldine.” O álbum era uma coleção de fotos de obras tiradas por Charles Dudley Arnold, fotógrafo de Buffalo, Nova York, que Burnham contratara como fotógrafo oficial da feira. Arnold também estava presente, e logo os meninos participavam com ele de uma sessão de esboços.
Burnham concluiu: “Estamos todos bem e satisfeitos com a quantidade e a variedade de trabalho que nossa boa sorte colocou diante de nós.”
Intervalos tranquilos como aquele nunca duravam muito.
O conflito entre Burnham e Davis voltou a pegar fogo. Os diretores da companhia da exposição acabaram resolvendo pedir verba diretamente ao Congresso, porém seu pedido deflagrou uma investigação parlamentar dos gastos da feira. Burnham e o presidente Baker esperavam que fosse uma inspeção geral, mas em vez disso tiveram de responder a perguntas sobre despesas mais triviais. Por exemplo, quando Baker apresentou o gasto total com aluguel de carruagem, o subcomitê quis saber os nomes das pessoas que tinham viajado nas carruagens. Numa sessão em Chicago, o comitê pediu a Davis que fizesse uma estimativa do custo final da exposição. Sem consultar Burnham, o diretor-geral deu um número 10% abaixo do cálculo que Burnham apresentara ao presidente Baker e que este tinha incluído em sua própria declaração para os investigadores. O depoimento de Davis continha a acusação implícita de que Burnham e Baker haviam inflacionado o montante necessário para concluir a feira.
Burnham se levantou de um salto. O diretor do subcomitê ordenou-lhe que sentasse. O arquiteto continuou de pé. Estava furioso, mal conseguia manter a compostura. “O sr. Davis não foi me ver, nem a ninguém da minha equipe”, contou, “e qualquer cifra que lhes deu foi pura adivinhação. Ele não entende nada do assunto.”16
Sua explosão ofendeu o diretor do subcomitê. “Rejeito esses comentários dirigidos a uma testemunha deste comitê”, afirmou, “e pediria ao sr. Burnham que retirasse o que disse.”
A princípio, Burnham se recusou. Então, relutantemente, concordou em desdizer a parte relativa a Davis não entender nada do assunto. Mas só essa parte. E não pediu desculpas.
O comitê partiu para Washington a fim de estudar as provas e informar se uma verba seria autorizada. Os congressistas, escreveu Burnham, “estão abismados com o tamanho e o alcance desse empreendimento. Demos a cada um deles uma montanha de dados para digerir, e acho que seu relatório será engraçado, porque sei que meses seriam insuficientes para que eu preparasse um relatório, mesmo com o conhecimento que tenho”.17
Ao menos no papel, o Midway Plaisance da feira começou a tomar forma. O professor Putnam achava que o Midway deveria antes e acima de tudo oferecer conhecimentos sobre culturas diversas. Sol Bloom não sentia nenhuma obrigação desse tipo. O Midway precisava ser divertido, um grande jardim de delícias estendendo-se por quase dois quilômetros até o Jackson Park, por todo o limite do Washington Park. Comoveria, empolgaria e, se tudo desse certo, provavelmente até chocaria. Ele achava que sua grande força estava em “fazer anúncios espetaculares”.18 Publicou notas em publicações do mundo inteiro, para que todos soubessem que seria um lugar exótico, de cenas, sons e cheiros inusitados. Haveria autênticas aldeias de terras distantes, habitadas por autênticos aldeões — até mesmo pigmeus, se o tenente Schufeldt tivesse êxito. Bloom reconhecia também que, como czar do Midway, já não precisava mais se preocupar em pedir uma concessão para sua Aldeia Argelina. Ele mesmo poderia aprová-la. Assim, elaborou um contrato e enviou-o a Paris.
O talento de Bloom para fazer propaganda chamou a atenção de outros funcionários da feira, que lhe pediram ajuda para dar mais destaque ao perfil geral da exposição. A certa altura, solicitaram que ele ajudasse a fazer os repórteres entenderem como seria imenso o Edifício das Manufaturas e das Artes Liberais. Até então tudo que o departamento de publicidade da exposição dera à imprensa foi uma relação minuciosa de estatísticas monumentais, mas áridas. “Eu sabia que eles não tinham o menor interesse em números de hectares ou toneladas de aço”, escreveu Bloom, “por isso eu lhes disse: ‘Vejam a coisa deste ângulo — vai ser grande o suficiente para abrigar todo o exército regular da Rússia.’”19
Bloom sequer sabia se a Rússia tinha um exército regular, menos ainda com quantos soldados contava esse exército ou quantos metros quadrados ocupariam. Apesar disso, o fato se tornou verdade bíblica nos Estados Unidos. Leitores do guia Rand McNally da exposição um dia acabariam se emocionando com o espetáculo de milhões de homens de chapéu de pele espremidos no piso de treze hectares do prédio.
Bloom não sentiu nenhum remorso.