“A verdade nua e crua”

NO COMEÇO DE janeiro de 1893, a temperatura esfriou e permaneceu fria, caindo para quase trinta graus abaixo de zero. Em seus passeios ao amanhecer, Burnham enfrentava um mundo hostil e pálido. Montes de esterco de cavalo congelado entremeavam-se com a paisagem. Ao longo das margens da Wooded Island, uma camada de gelo de sessenta centímetros de espessura cristalizava os juncos e junças de Olmsted em cruéis contorções. Burnham via que o trabalho de Olmsted estava muito atrasado. E àquela altura o homem de Olmsted em Chicago, Harry Codman, de quem todos acabaram dependendo, estava hospitalizado, recuperando-se de uma cirurgia. Descobrira-se, afinal, que sua persistente doença era apendicite. A operação, com uso de éter, transcorrera sem problemas, e Codman se restabelecia, mas levaria um bom tempo. Só faltavam quatro meses para o Dia da Abertura.

O frio extremo acentuava a ameaça de fogo. Só o fogo necessário — as salamandras e as panelas dos funileiros — já tinha causado dezenas de pequenos incêndios, facilmente debelados, mas o frio aumentava a probabilidade de coisa muito pior. Congelava tubulações e hidrantes e fazia os operários fumarem e acenderem fogueiras, violando a proibição de Burnham. Os homens da guarda colombiana redobraram a vigilância. Eram eles que mais sofriam com o frio, montando guarda 24 horas por dia nos lugares mais distantes do parque, onde não existiam abrigos. “O inverno entre 1892 e 1893 será sempre lembrado por aqueles que serviram na guarda durante esse período”, escreveu o coronel Rice, seu comandante.1 O que os guardas mais temiam era serem destacados para um setor especialmente desolado, na extremidade sul do parque, abaixo do Edifício da Agricultura. Chamavam o lugar de Sibéria. O coronel Rice tirava partido desse medo: “Qualquer guarda que for mandado para o posto ao longo da cerca meridional saberá que é culpado de algum deslize de disciplina ou que sua aparência pessoal o tornou pouco apresentável para as partes mais públicas do terreno.”

George Ferris combatia o frio com dinamite, único meio eficiente de penetrar a crosta de quase um metro de solo congelado que agora cobria o Jackson Park.2 Mesmo rompido, o chão ainda apresentava dificuldades. Logo abaixo da crosta ficava uma camada de seis metros de areia movediça que os construtores de Chicago sempre tinham de enfrentar, com a diferença de que agora estava gelada e era um tormento para os operários. Os homens usavam jatos de vapor para derreter a terra e impedir que o cimento recém-despejado congelasse. Enfiavam estacas de madeira até o subsolo firme, dez metros abaixo da superfície. Em cima delas colocavam uma estacaria de aço, que enchiam de cimento. Para manter as câmaras de escavação o mais secas possível, eles usavam bombas 24 horas por dia. Repetiram o processo para cada uma das oito torres de mais de quarenta metros que apoiariam o gigantesco eixo da Roda de Ferris.

De início, a grande preocupação de Ferris era adquirir aço suficiente para construir sua máquina. Porém ele percebeu que levava vantagem sobre qualquer outro que tentasse fazer uma nova encomenda. Graças à sua empresa de inspeção de aço, ele conhecia a maioria dos executivos da indústria do aço e os produtos que fabricavam. Era capaz de obter favores e distribuir suas encomendas entre muitas empresas diferentes. “Nenhuma loja poderia sequer começar a dar conta de todo o trabalho, por isso foram feitos contratos com uma dúzia de firmas diferentes, cada uma delas escolhida em razão de uma vantagem particular para a missão que lhe era confiada”, de acordo com um relato da empresa de Ferris.3 Além disso, ele comandava uma legião de inspetores que avaliavam a qualidade de cada componente que ia saindo das fábricas. Era uma vantagem vital, uma vez que a roda era um conjunto complexo de cem mil peças, que iam de pequenos ferrolhos ao eixo gigantesco — que, na época em que foi feito pela Bethlehem Steel, era a maior peça fundida fabricada até então. “A mais absoluta precisão era necessária, pois poucas peças poderiam ser montadas enquanto não estivessem no terreno, e um erro, por menor que fosse a fração de polegada, poderia ser fatal.”

A roda que Ferris concebeu a rigor consistia em duas rodas, separadas no eixo por uma distância de nove metros. O que assustou Burnham no início foi a aparente insubstancialidade do projeto. Cada roda era, em essência, uma gigantesca roda de bicicleta. Finas varetas de ferro, de apenas seis centímetros e meio de espessura e dois metros e meio de comprimento, ligavam o aro, ou camba, de cada roda a uma “aranha” fixada ao eixo. Esteios e hastes diagonais passavam entre as duas rodas para firmar o conjunto e lhe dar a força de uma ponte ferroviária. Uma corrente de nove toneladas ligava uma roda dentada no eixo a dentes de roda impulsionados por dois motores de mil cavalos a vapor. Por razões estéticas, as caldeiras seriam instaladas a 215 metros do Midway, com o vapor desviado para os motores através de tubos subterrâneos de 25 centímetros.

Isso, pelo menos, era o que estava no papel. Entretanto, a tarefa de cavar e instalar a fundação havia sido mais difícil do que Ferris e Rice esperavam, e eles sabiam que tinham obstáculos muito maiores pela frente, e o maior deles era o desafio de levantar aquele eixo imenso até sua armação no alto das oito torres. Com os acessórios, o eixo pesava 64.420 quilos.4 Nada tão pesado jamais fora levantado antes, menos ainda a toda essa altura.

Em Brookline, Olmsted recebeu a notícia por telegrama: Harry Codman estava morto. Seu protegido, a quem amava como a um filho. Tinha 29 anos. “Você já deve estar sabendo de nossa grande calamidade”, escreveu Olmsted para o amigo Gifford Pinchot. “Agora me sinto como alguém que está no meio de um naufrágio e mal consegue imaginar quando será capaz de navegar novamente.”5

Olmsted se deu conta de que ele mesmo teria de assumir a supervisão direta dos trabalhos da exposição a partir de então, porém mais que nunca se sentia incapaz de desempenhar a tarefa. Ele e Phil, irmão de Harry, chegaram a ­Chicago no começo de fevereiro, encontrando a cidade sob um frio brutal, de 22 graus negativos. Em 4 de fevereiro, ele se sentou pela primeira vez à mesa de Codman, abarrotada de pilhas de faturas e memorandos. A cabeça de Olmsted era um tumulto de ruídos e dores. Tinha dor de garganta. Estava profundamente triste. A tarefa de separar os papéis acumulados de Codman e assumir as obras da exposição lhe parecia impossível. Perguntou a um antigo assistente, Charles Eliot, que se tornara um dos melhores arquitetos paisagistas de Boston, se poderia vir ajudá-lo. Depois de certa hesitação, Eliot concordou. Ao chegar, percebeu que Olmsted estava doente. No começo da noite de 17 de fevereiro de 1893, enquanto uma nevasca fustigava Chicago, Olmsted já estava sob cuidados médicos, confinado ao hotel.

Naquela mesma noite, Olmsted escreveu para John em Brookline. A fadiga e a tristeza sobrecarregavam cada página da carta. “Parece que é chegada a hora de você não contar mais comigo”, dizia.6 O trabalho em Chicago começava a parecer sem solução. “Ficou bem claro que, no pé em que as coisas estão, não conseguiremos cumprir nossas obrigações aqui.”

No começo de março, Olmsted e Eliot estavam de volta a Brookline, Eliot já como sócio pleno, e a firma com o novo nome de Olmsted, Olmsted & Eliot. Os trabalhos da exposição continuavam bastante atrasados e eram uma grande fonte de preocupações, porém a saúde de Olmsted e a pressão de outra obra o obrigaram a abandonar Chicago. Muito apreensivo, ele deixou a responsabilidade nas mãos do superintendente Rudolf Ulrich, em quem já perdera a confiança. Em 11 de março, Olmsted mandou uma longa carta para Ulrich repleta de instruções.

“Nunca antes, nas numerosas obras pelas quais fui amplamente responsável, confiei tanto no discernimento de um assistente ou colaborador”, escreveu Olmsted. “E como resultado, na situação difícil em que nos deixaram a morte do sr. Codman e a minha saúde debilitada e a consequente pressão excessiva de outros deveres, estou mais do que nunca disposto a adotar essa política e a levá-la adiante. Mas confesso que não consigo fazê-lo sem grande ansiedade.”7

Deixou claro que sua ansiedade era graças a Ulrich, especificamente à “propensão constitucional” dele para perder de vista o plano geral e mergulhar em tarefas menores, que poderiam ser confiadas a subordinados. Esse era um traço de caráter que, para temor de Olmsted, poderia deixar Ulrich vulnerável às exigências de outras autoridades, sobretudo de Burnham. “Tenha sempre em mente o fato de que nossa responsabilidade especial como artistas de paisagem se aplica, basicamente, ao amplo e abrangente cenário da exposição”, escreveu Olmsted. (As ênfases são dele.) “Essa tarefa não consiste em fazer um jardim ou em produzir efeitos de jardinagem, mas diz respeito ao cenário da ­exposição em sua totalidade; antes de tudo e mais essencialmente o cenário, num sentido amplo e abrangente... Se, por falta de tempo e de recursos ou de boas condições climáticas, não correspondermos às expectativas em questões de detalhes da decoração, nosso fracasso será perdoável. Se deixarmos de corresponder em questões relativas a efeitos paisagísticos gerais, teremos fracassado em nossa função básica e essencial.”

Em seguida, identificou para Ulrich as coisas que mais o deixavam preocupado em relação à feira; entre elas se destacava o esquema de cores escolhido por Burnham e pelos arquitetos. “Vale lembrar que toda a área da exposição já se tornou popularmente conhecida como ‘a cidade branca’... Temo que, em contraste com o céu azul e o lago azul, grandes massas altaneiras de branco, fulgurando na clara e quente luz solar do verão de Chicago, com o brilho da água que teremos dentro e fora do terreno da exposição, venham a ser avassaladoras.” Isso, escreveu ele, tornava mais importante do que nunca oferecer um contrapeso de “densos, vastos e luxuriantes agrupamentos verdes de folhagem”.

Claramente ocorrera a Olmsted a possibilidade de fracassar na exposição, e isso o perturbava. O tempo era curto, e o clima, terrível. O período de plantio na primavera seria breve. Ele começou a pensar em esquemas alternativos. E advertiu Ulrich: “Não se meta a fazer nada em termos de plantios decorativos que não esteja seguro de ter tempo e recursos suficientes para aperfeiçoar. É difícil apontar defeitos na relva simples e esmerada. Não tema superfícies singelas, desadornadas e lisas.”

Seria muito melhor, apontou Olmsted, enfeitar de menos do que demais. “Melhor que nos julguem singelos e simples demais, até mesmo desguarnecidos, do que berrantes, espalhafatosos, reles e excessivamente vistosos. Manifestemos nosso gosto de cavalheiros.”

A neve caía, uma calamidade de neve. Nevava ininterruptamente, até que centenas de toneladas de neve cobriram os telhados do Jackson Park. A exposição deveria ser um evento de tempo quente, prevista para o período de maio a outubro. Ninguém se preocupara em projetar telhados capazes de resistir a uma sobrecarga tão extrema de neve.

Operários que trabalhavam no Edifício das Manufaturas e das Artes Liberais ouviram o som agudo de aço cedendo e correram em busca de abrigo. Num grande borrão de neve e vidro prateado, o teto do edifício — aquela maravilha de insolência do século XIX, que cobria o maior volume de espaço livre da história — desabou.

Logo depois, um repórter de São Francisco chegou ao Jackson Park. Viera preparado para admirar a grande façanha do exército de operários de Burn­ham, mas, em vez disso, o que viu o deixou perplexo diante da hirta paisagem congelada.

“Parece uma coisa impossível”, escreveu. “Na verdade, os encarregados afirmam que tudo estará pronto dentro do prazo. Porém a verdade nua e crua que nos salta à vista é que só o Edifício das Mulheres está mais ou menos concluído, por dentro e por fora.”8

Apesar disso, a inauguração da feira estava marcada para dali a pouco menos de dois meses.