NUMA MANHÃ EM agosto de 1886, quando o calor subia das ruas com a intensidade da febre numa criança, um homem que se identificava como H. H. Holmes entrou numa das estações ferroviárias de Chicago. O ar estava rançoso e parado, impregnado com o cheiro de pêssegos estragados, esterco de cavalo e antracito de Illinois parcialmente queimado. Havia meia dúzia de locomotivas paradas no pátio exalando vapor num céu já amarelado.
Holmes comprou passagem para um vilarejo chamado Englewood, distrito da cidade de Lake, municipalidade de duzentas mil pessoas na fronteira sul de Chicago. O município abrangia a Union Stock Yards e dois grandes parques: o Washington Park, com gramados, jardins e uma famosa pista de corrida de cavalos, e o Jackson Park, um ermo desolado e sem benfeitorias à margem do lago.
Apesar do calor, Holmes parecia bem-disposto e viçoso. Ao caminhar pela estação, olhares femininos eram lançados ao seu redor como pétalas atiradas pelo vento.
Andava com confiança e vestia-se bem, causando uma impressão de riqueza e realização. Estava com 26 anos. Tinha 1,73 metro de altura e pesava apenas setenta quilos.1 Tinha cabelos escuros, e seus olhos azuis eram marcantes, certa vez comparados aos de um mesmerista. “Os olhos são bem grandes e arregalados”, diria, posteriormente, um médico chamado John L. Capen. “São azuis. Grandes assassinos, assim como grandes homens em outras esferas de atividade, têm olhos azuis.”2 Capen também observou seus lábios finos, cobertos por um denso bigode escuro. O que achou mais notável, porém, foram as orelhas de Holmes. “É uma orelha maravilhosamente pequena, e o topo tem o formato e entalhe no mesmo estilo com que os escultores antigos costumavam indicar diabrura e vício em suas estátuas de sátiros.” No geral, observou Capen, “ele é feito num molde muito delicado”.
Para as mulheres que ainda não sabiam de suas obsessões particulares, era um deleite para os olhos. Ele rompia as regras vigentes de intimidade casual: aproximava-se demais, encarava com muita intensidade, tocava muitas vezes e por muito tempo. E as mulheres o adoravam por isso.
Holmes desceu do trem no centro de Englewood e fez uma pausa para estudar os arredores. Parou no cruzamento da rua 63 com a rua Wallace. Um poste telegráfico na esquina continha a Caixa de Alarme de Incêndio no 2475.3 Ao longe, erguiam-se as estruturas de várias casas de três andares em construção. Ele ouviu as pancadas de martelo. Árvores recém-plantadas distribuíam-se em fileiras militares, mas no calor e na névoa mais pareciam tropas do deserto há muito tempo sem água. O ar estava parado, úmido e impregnado do cheiro de macadame novo, que lembrava alcaçuz queimado. Na esquina ficava uma loja com uma placa que a identificava como E. S. Holton Drugs.
Seguiu em frente. Chegou à rua Wentworth, que se estendia de norte a sul e era, claramente, a principal avenida comercial de Englewood, com o pavimento atulhado de cavalos, carroças e faetontes. Perto da esquina da rua 63 com a Wentworth, passou por um quartel do corpo de bombeiros que abrigava a Engine Company no 51. Ao lado, ficava uma delegacia de polícia. Anos depois, um morador, um tanto cego para o lado macabro da vida, escreveria: “Embora por vezes houvesse grande necessidade de uma força policial no distrito dos currais, Englewood vivia a mesmice de sua existência quase sem precisar da presença da polícia, a não ser como adorno da paisagem e para garantir que as vacas não fossem perturbadas em suas pacíficas pastagens.”4
Holmes voltou para a rua Wallace, onde tinha visto a placa da Holton Drugs. Trilhos passavam pelo cruzamento. Um guarda ali sentado apertava a vista contra o sol, atento aos trens, e a pequenos intervalos baixava a cancela para que outra locomotiva passasse resfolegando. A farmácia ficava na esquina da rua Wallace com a 63. Do outro lado da Wallace, havia um grande terreno baldio.
Holmes entrou na loja e ali encontrou uma mulher idosa, a sra. Holton.5 Percebeu certa vulnerabilidade, da mesma forma que outro homem captaria o rastro de um perfume feminino. Apresentou-se como médico e farmacêutico e perguntou se a mulher precisava de ajuda na loja. Falava em tom suave, sorrindo com frequência, encarando-a com seus francos olhos azuis.
Ele era bom de conversa, e não demorou para que a senhora lhe revelasse sua mais profunda tristeza: o esposo, no apartamento em cima da loja, estava morrendo de câncer. Ela confessou que tomar conta do estabelecimento enquanto cuidava do marido se tornara um grande fardo.
Holmes ouviu com olhos marejados. Tocou o braço dela. Disse que poderia aliviar-lhe o fardo. Não apenas isso, poderia transformar a farmácia num negócio próspero e vencer a concorrência no quarteirão.
Seu olhar era tão claro e azul... Ela disse que precisava conversar com o marido.
Ela subiu as escadas. O dia estava quente. Moscas pousavam no parapeito da janela. Lá fora passou outro trem, estrondeando pelo cruzamento. Cinzas e fumaça flutuavam, como gaze manchada, do lado de fora da janela. Ela iria conversar com o marido, sim, mas ele estava morrendo, e naquele momento era ela quem tomava conta da loja e assumia as responsabilidades e já tomara uma decisão.
Só de pensar no jovem médico lhe dava uma sensação de contentamento que havia muito tempo não vivenciava.
Holmes já estivera em Chicago antes, mas apenas para visitas rápidas. A cidade o impressionava, diria mais tarde, o que era surpreendente, porque em regra nada o impressionava, nada o comovia. Acontecimentos e pessoas roubavam sua atenção como o movimento de objetos atiçava a percepção de um anfíbio: primeiro um registro quase automático da proximidade, depois uma estimativa de valor e por último a decisão entre agir ou permanecer imóvel. Quando enfim resolveu se mudar para Chicago, ele ainda usava seu nome de batismo, Herman Webster Mudgett.
Como para a maioria das pessoas, seu primeiro contato sensorial com Chicago tinha sido o terrível mau cheiro que resistia na vizinhança da Union Stock Yards, um vento Chinook de putrefação e pelos incinerados, “um odor primitivo”, como escreveu Upton Sinclair, “cru e bruto; rico, quase rançoso, sensual e forte”.6 A maioria das pessoas achava-o repulsivo. Os poucos que o consideravam revigorante quase sempre eram homens que tinham atravessado seu “rio da morte”,7 nas palavras de Sinclair, e garimpado em suas grandes riquezas. É tentador imaginar que todas aquelas mortes e todo aquele sangue tenham feito Mudgett sentir-se bem recebido, contudo é mais realista supor que o lugar transmitia a sensação de que ali enfim estava uma cidade que tolerava uma diversidade mais ampla de comportamento do que Gilmanton Academy, New Hampshire, onde ele nascera e passara a infância como um menino franzino, estranho e excepcionalmente brilhante — e onde, por consequência, na cruel imaginação de seus companheiros, ele se tornou vítima.
A lembrança de um episódio acompanhou-o a vida inteira. Tinha cinco anos e usava seu primeiro terno de menino quando os pais o mandaram à escola do vilarejo para iniciar os estudos. “Todos os dias eu precisava passar pelo consultório de um médico do vilarejo, cuja porta raramente, senão nunca, estava fechada”, escreveu mais tarde numa autobiografia.8 “Em parte por estar identificado, em minha mente, como fonte de todos os compostos nauseantes que tinham sido o terror da minha infância (isso foi antes dos remédios para crianças), e em parte devido a vagos rumores que eu ouvira sobre o que havia lá dentro, aquele lugar me despertava particular aversão.”
Naquela época, um consultório médico poderia, de fato, ser um lugar apavorante. Todos os médicos eram, em certo sentido, amadores. Os melhores compravam cadáveres para estudo. Pagavam em dinheiro vivo, sem fazer perguntas, e conservavam pedacinhos particularmente interessantes de vísceras de doentes em grandes potes transparentes. Havia nos consultórios esqueletos pendurados que serviam de referências anatômicas rápidas; alguns transcendiam suas funções e se transformavam em obras de arte tão minuciosas, tão precisamente articuladas — cada osso desbotado preso ao osso seguinte com latão, sob um crânio risonho exalando bonomia e afetuosidade —, que pareciam estar prestes a correr pela rua, chacoalhando, para pegar o próximo bonde.
Dois meninos mais velhos descobriram o medo de Mudgett e um dia pegaram-no e arrastaram-no “debatendo-se e gritando” até o consultório médico. “E só desistiram”, escreveu Mudgett, “quando me colocaram face a face com um dos esqueletos sorridentes, que, com braços estendidos, pareciam prontos para se virar e me agarrar.”9
“Era uma coisa cruel e perigosa para se fazer com uma criança de idade tenra e saúde frágil”, escreveu ele, “porém acabou se revelando um heroico método de tratamento, que enfim me curaria de meus temores e inculcaria em mim, de início, um forte sentimento de curiosidade e, mais tarde, um desejo de aprender, que me levaria, anos depois, a abraçar a medicina como profissão.”
O incidente de fato deve ter ocorrido, mas com uma sequência de acontecimentos diferente. É mais provável que os dois meninos mais velhos tenham descoberto que sua vítima de cinco anos não se incomodaria com a excursão — e que, em vez de se debater e gritar, ele simplesmente tenha olhado para o esqueleto com um frio olhar de avaliação.
Quando seus olhos se voltaram para os captores, foram eles que fugiram.
Gilmanton era um vilarejo agrícola na região dos lagos de New Hampshire, tão remoto que os moradores não tinham acesso a jornais diários e raramente ouviam o apito das locomotivas. Mudgett tinha um irmão e uma irmã. O pai, Levi, era agricultor, como seu próprio pai por sua vez havia sido. Os pais de Mudgett eram metodistas devotos, que recorriam muito ao uso da vara e da oração até mesmo para lidar com as malcriações mais rotineiras, além de castigos no sótão e dias inteiros sem falar e sem comer. A mãe sempre insistia para que ele a acompanhasse nas orações no quarto dela, depois impregnava o ar em volta dele com trêmula paixão.
Ele era, segundo sua própria avaliação, um “filhinho da mamãe”.10 Passava boa parte do tempo sozinho no quarto lendo Júlio Verne e Edgar Allan Poe e inventando coisas. Construiu um mecanismo movido a vento que produzia um barulho para espantar passarinhos das plantações da família e decidiu inventar uma máquina de moto-perpétuo. Escondia seus tesouros favoritos em pequenas caixas — como o primeiro dente arrancado e uma foto de sua “namoradinha aos doze anos”11 —, embora mais tarde especialistas tenham conjecturado que essas caixas também continham tesouros mais macabros, como crânios de pequenos animais que ele aleijara e dissecara vivos no bosque que cercava Gilmanton. Essas especulações se baseavam nas duras lições aprendidas no século XX sobre o comportamento de crianças de caráter parecido. O único amigo íntimo de Mudgett era um menino mais velho chamado Tom, que morreu numa queda quando os dois brincavam numa casa abandonada.12
Mudgett gravou suas iniciais na casca de um velho olmo na fazenda do avô, onde a família marcava seu crescimento com cortes no batente de uma porta. O primeiro tinha menos de noventa centímetros de altura. Um de seus passatempos favoritos era escalar uma pedra alta e gritar até produzir eco. Certa época, fazia pequenos serviços para um “fotógrafo itinerante”13 que passou uma temporada em Gilmanton. O homem mancava muito e agradecia a ajuda. Uma manhã o fotógrafo deu a Mudgett um pedaço de madeira partido e pediu-lhe que fosse ao carpinteiro de carroças da cidade para trocá-lo. Quando Mudgett voltou com a nova peça, o fotógrafo estava sentado à porta, parcialmente vestido. Sem preâmbulos, o homem removeu uma das pernas.
Mudgett ficou pasmo. Nunca tinha visto uma perna artificial e observou, com o maior interesse, o fotógrafo inserir a nova peça de madeira num pedaço da perna. “Se ele em seguida tivesse removido a cabeça da mesma forma misteriosa, eu não teria me espantado”, escreveu Mudgett.14
Alguma coisa na expressão do garoto chamou a atenção do fotógrafo. Ainda equilibrando-se numa perna só, ele foi até a câmera e preparou-se para tirar uma foto de Mudgett. Pouco antes de abrir o obturador, segurou a perna falsa e balançou-a para o menino. Dias depois, entregou a foto pronta para Mudgett.
“Guardei-a por muitos anos”, registrou Mudgett, “e ainda vejo o rosto magro e aterrorizado daquele menino descalço que usava roupas feitas em casa.”
Quando descreveu esse encontro em sua autobiografia,15 Mudgett estava sentado numa cela de prisão esperando provocar uma onda de compaixão pública. Embora seja cativante imaginar a cena, o fato é que com as câmeras existentes na meninice de Mudgett era quase impossível capturar flagrantes como esse, especialmente quando o objeto fotografado era uma criança. Se o fotógrafo viu alguma coisa nos olhos de Mudgett, foi um vazio azul-claro que, como ele próprio sabia, para sua tristeza, nenhum filme jamais poderia registrar.
Aos dezesseis anos, Mudgett terminou o colegial e, apesar da pouca idade, conseguiu emprego como professor, primeiro em Gilmanton e depois em Alton, New Hampshire, onde conheceu uma jovem chamada Clara A. Lovering. Ela nunca havia conhecido ninguém como Mudgett. Ele era jovem, mas desenvolto, e tinha facilidade para fazê-la sentir-se bem mesmo quando estava inclinada a sentir-se mal. Ele falava muito bem, e com extrema cordialidade, tocando-a sempre, de um jeito delicado e carinhoso, mesmo em público. Seu maior defeito era a persistente exigência para que ela permitisse que os dois tivessem mais intimidade, não como num namoro formal, mas de uma maneira que só deveria ocorrer após o casamento. Clara o mantinha à distância, porém não podia negar que Mudgett despertava dentro dela um desejo tão intenso que coloria seus sonhos. Mudgett tinha dezoito anos quando lhe pediu que fugisse com ele — e ela aceitou. Casaram-se em 4 de julho de 1878, perante um juiz de paz.
De início havia uma paixão que ia muito além das expectativas que as fofocas ranzinzas das mulheres mais velhas fizeram Clara criar, mas o relacionamento logo esfriou. Mudgett ausentava-se de casa por longos períodos. Não demorou para que ficasse dias fora, até que simplesmente desapareceu. Nos registros de casamento de Alton, New Hampshire, continuavam casados, com o contrato legal transformado numa coisa sem vida.
Aos dezenove anos Mudgett entrou na faculdade. A princípio, pensava em estudar em Dartmouth, contudo mudou de ideia e foi direto para a faculdade de medicina. Matriculou-se primeiro no programa de medicina da Universidade de Vermont, em Burlington, mas achou a escola muito pequena e apenas um ano depois se mudou para a Universidade de Michigan, em Ann Arbor, uma das principais faculdades científicas de medicina do oeste, famosa pela ênfase dada à controvertida arte da dissecação.16 Matriculou-se em 21 de setembro de 1882. Durante o verão do seu terceiro ano, cometeu o que chamou, em sua autobiografia, de “o primeiro ato realmente desonesto de minha vida”.17 Arranjou emprego de caixeiro-viajante de uma editora, encarregado de vender exemplares de um único livro em toda a região noroeste de Illinois. Em vez de entregar o lucro ao patrão, embolsou-o. No fim do verão, voltou para Michigan. “Dificilmente poderia considerar minha viagem ao oeste um fracasso”, escreveu, “pois eu tinha visto Chicago.”18
Graduou-se em junho de 1884, com um histórico escolar pouco brilhante, e partiu em busca de “algum lugar favorável” onde pudesse montar consultório. Para tanto, arranjou outro emprego de caixeiro-viajante, dessa vez para uma empresa de venda de plantas situada em Portland, Maine. A rota o levou por cidades que, em outras circunstâncias, talvez ele nunca tivesse conhecido. Acabou chegando à pequena Mooers Forks, Nova York, onde, de acordo com o Chicago Tribune, os administradores da escola primária, “impressionados com os modos cavalheirescos de Mudgett”, o contrataram como diretor, cargo que exerceu até abrir um consultório.19 “Ali fiquei um ano fazendo um trabalho bom e honesto, pelo qual recebia muita gratidão, mas pouco ou nenhum dinheiro.”
Aonde quer que fosse, coisas problemáticas pareciam acontecer. Seus professores em Michigan tinham pouco a dizer de seus talentos acadêmicos, porém recordavam muito bem de que ele se distinguia por outras razões. “Alguns professores aqui se lembram dele como um patife”, declarou a universidade.20 “Ele tinha quebrado uma promessa de casamento com uma cabeleireira, uma viúva, que veio de Saint Louis, Michigan, para Ann Arbor.”
Em Mooers Forks, corria o boato de que um menino visto em sua companhia tinha desaparecido. Mudgett afirmava que o menino havia voltado para casa em Massachusetts. Nenhuma investigação foi feita. Ninguém poderia imaginar que o encantador dr. Mudgett fosse capaz de fazer mal a alguém, muito menos a uma criança.
À meia-noite, muitas vezes, Mudgett andava de um lado para o outro na frente do lugar onde morava.
Mudgett precisava de dinheiro. O salário de professor era uma miséria; seu trabalho como médico rendia apenas um pouco mais. “No outono de 1885”, escreveu ele, “a fome era uma possibilidade cada vez mais real.”21
Ainda na faculdade de medicina, ele e um colega canadense tinham conversado sobre como seria fácil para qualquer um deles fazer um seguro de vida em nome do outro e usar um cadáver para forjar a morte do segurado. Em Mooers Forks, Mudgett voltou a pensar no assunto. Fez uma visita ao ex-colega e descobriu que suas condições financeiras não eram muito melhores. Juntos, planejaram uma complicada maneira de fraudar o seguro de vida, que Mudgett descreveu em sua autobiografia. Era um plano impossivelmente complexo e macabro, cuja execução devia estar além dos poderes de qualquer pessoa, mas a descrição merece ser registrada pelo que revela — ainda que essa não fosse a intenção — sobre sua alma distorcida.
Em linhas gerais, o plano previa o recrutamento de mais dois cúmplices, que juntos fingiriam a morte de uma família de três e substituiriam as pessoas por cadáveres. Os corpos apareceriam mais tarde em avançado estágio de decomposição, e os conspiradores dividiriam os 40 mil dólares do seguro (equivalentes a mais de um milhão de dólares em valores do século XXI).
“O plano requeria uma quantidade considerável de material”, escreveu Mudgett, “na verdade nada menos do que três corpos”,22 querendo dizer com isso que ele e o amigo precisariam, de alguma forma, conseguir três cadáveres mais ou menos parecidos com marido, mulher e filho.
Mudgett achou que não haveria dificuldade em conseguir os corpos, muito embora naquela época uma escassez de cadáveres para instrução médica tenha levado médicos a vasculharem cemitérios em busca de mortos recentes. Admitindo que nem mesmo um médico poderia obter três corpos de uma vez sem despertar suspeitas, Mudgett e o cúmplice chegaram à conclusão de que cada um deveria contribuir com “o suprimento necessário”.23
Mudgett afirmou que foi a Chicago em novembro de 1885 e que ali adquiriu sua “porção” de corpos. Incapaz de achar emprego, conseguiu um local para armazená-la e partiu para Minneapolis, onde encontrou trabalho numa farmácia. Ficou em Minneapolis até maio de 1886, quando partiu para Nova York, pensando em levar “uma parte do material para lá” e deixar o resto em Chicago. “Isso”, disse ele, “exigia que fosse embalado novamente.”24
Ele contou que depositou o pacote com um cadáver desmembrado no Armazém Fidelity Storage em Chicago. O outro seguiu com ele para Nova York, onde foi acondicionado “num lugar seguro”. Durante a viagem de trem para Nova York, porém, leu dois artigos de jornal sobre crimes contra seguradoras “e pela primeira vez percebi como as grandes empresas de seguro estavam bem organizadas e preparadas para detectar e punir esse tipo de fraude”.25 Os artigos, segundo ele, o levaram a abandonar o plano e a desistir de qualquer esperança de um dia ter sucesso nesse tipo de esquema.
Mudgett estava mentindo. Na verdade, estava convencido de que a parte essencial daquela ideia tinha seu valor — de que, forjando a morte de outras pessoas, ele seria capaz de tirar dinheiro das seguradoras. Como médico, estava ciente de que não existiam meios para determinar a identidade de corpos queimados, desmembrados ou desfigurados. E não tinha escrúpulos para lidar com cadáveres. Eram apenas “material”, em nada diferentes de lenha, apesar de um pouco mais difíceis de descartar.
Estava mentindo também ao dizer que precisava de dinheiro. O proprietário da casa em Mooers Forks onde Mudgett se hospedava, D. S. Hays, notou que o rapaz exibia grandes somas em dinheiro.26 Hays começou a suspeitar de alguma coisa e passou a observar Mudgett atentamente — embora não atentamente o bastante.
Mudgett saiu de Mooers Forks à meia-noite, sem pagar o aluguel que devia a Hays. Seguiu para a Filadélfia, onde esperava arranjar emprego numa farmácia e, com o tempo, tornar-se sócio ou proprietário. Porém não achou nada que servisse e, em vez disso, começou a trabalhar como “cuidador” num manicômio, o Norristown Asylum. “Aquela”, escreveu ele, “foi minha primeira experiência com pessoas insanas, e foi tão terrível que anos mais tarde, às vezes até mesmo agora, ainda vejo seus rostos em meu sono.”27 Em poucos dias se demitiu.
Acabou achando emprego numa das farmácias da Filadélfia. Logo depois uma criança morreu após tomar um remédio comprado lá. Mudgett deixou a cidade imediatamente.
Tomou o trem para Chicago, mas logo se deu conta de que não poderia trabalhar como farmacêutico em Illinois sem primeiro passar num exame de licenciamento na capital do estado, Springfield. Ali, em junho de 1886, pegando emprestado um dos sobrenomes mais notáveis desde aquela época, Mudgett registrou seu nome como Holmes.
Holmes compreendeu que forças novas e poderosas atuavam em Chicago, provocando uma expansão quase miraculosa. A cidade crescia em todas as direções possíveis e às margens do lago passou a crescer verticalmente, fazendo disparar o valor da terra dentro do Loop. Para onde quer que olhasse, ele via sinais de prosperidade. Até a fumaça era prova disso. Os jornais da cidade adoravam vangloriar-se do fabuloso aumento do número de operários empregados pelas indústrias de Chicago, sobretudo na indústria de embalagem e venda de carnes. Holmes sabia — todo mundo sabia — que, enquanto os arranha-céus crescessem e os currais expandissem seus matadouros, a demanda por operários continuaria nas alturas e que os operários e seus supervisores procurariam morar nos subúrbios, com suas promessas de estradas lisas, água limpa, escolas decentes e, acima de tudo, o ar não contaminado pelo mau cheiro das carniças da Union Yards.
Enquanto a população da cidade inchava, a procura por moradia transformava-se numa “febre de apartamentos”. Quando as pessoas não conseguiam encontrá-los ou pagar por eles, iam atrás de quartos em residências particulares e pensões, onde o aluguel costumava incluir refeições. Especuladores prosperavam e criavam paisagens sinistras. Em Calumet, mil postes de luz ornamentados ficavam em um pântano, onde nada faziam além de clarear a neblina e atrair mosquitos. Theodore Dreiser chegou a Chicago mais ou menos na mesma época que Holmes e ficou impressionado com essa paisagem de prelibação. “A cidade abrira quilômetros e mais quilômetros de ruas e instalara esgotos em regiões onde, talvez, houvesse apenas uma única e solitária casa”, escreveu ele em Sister Carrie. “Havia setores, expostos ao vento e à chuva, que apesar disso ficavam iluminados a noite toda, com longas e pestanejantes fileiras de lâmpadas de gás balançando ao vento.”28
Um dos subúrbios que cresciam mais rápido era Englewood. Mesmo um recém-chegado como Holmes percebia a explosão de progresso do vilarejo. Anúncios de propriedades estavam repletos de depoimentos sobre sua boa localização e valorização. Englewood, na verdade, vinha crescendo muito desde o Grande Incêndio de 1871. Um morador lembrou que, logo após o incêndio, “houve uma intensa corrida para adquirir casas em Englewood, e a população cresceu com tanta rapidez que era impossível manter-se atualizado”.29 Os ferroviários mais antigos ainda o chamavam de Chicago Junction [Entroncamento de Chicago] ou Junction Grove [Bosque do Entroncamento], ou simplesmente Junction, por causa das oito linhas ferroviárias que convergiam dentro de seus limites, mas depois da Guerra de Secessão os moradores se cansaram da ressonância industrial do nome. Em 1868, uma sra. H. B. Lewis sugeriu um novo: Englewood, nome de uma cidade de Nova Jersey onde ela havia morado e que por sua vez fora batizada em homenagem a uma floresta de Carlisle, na Inglaterra, lendária por ter dado abrigo a dois fora da lei da categoria de Robin Hood.30 Foi ali, no que os moradores de Chicago chamavam de um subúrbio “de bonde”, que os supervisores dos currais decidiram se instalar, assim como os empregados de empresas sediadas nos arranha-céus do Loop. Compravam casas grandes em ruas chamadas Harvard e Yale, percorridas por fileiras de olmos, freixos, sicômoros e tílias e cheias de placas proibindo toda espécie de tráfego, com exceção das indispensáveis carroças. Mandavam os filhos para a escola, iam para a igreja e compareciam às reuniões dos maçons e de outras 45 sociedades secretas que tinham lojas, reinos e colmeias no vilarejo. Aos domingos passeavam entre a grama relvada do Washington Park e, se queriam estar sós, aproveitavam as alturas e a ventania do Jackson Park, no extremo leste da rua 63, à beira do lago.
Tomavam trens e bondes para o trabalho e se consideravam felizardos por morarem num lugar onde o vento soprava na direção dos currais. O incorporador de um grande terreno de Englewood apregoava seu patrimônio num catálogo que promovia o leilão de duzentos lotes residenciais chamados de Loteamento Bates: “Para os homens de negócios da Union Stock Yards é particularmente conveniente e acessível, e livre dos odores soprados pelos ventos dominantes para as localidades mais elegantes da Cidade.”31
O dr. Holton morreu. Holmes fez uma oferta à viúva: compraria a loja, e ela continuaria a morar no apartamento do segundo andar. Fez a oferta numa prosa que dava a impressão de estar propondo a compra não em benefício próprio, mas só para livrar a enlutada sra. Holton da obrigação de trabalhar. Tocava-lhe o braço enquanto falava. Depois que ela assinou a escritura transferindo a propriedade, ele se levantou e agradeceu-lhe com lágrimas nos olhos.
Holmes financiou a compra basicamente com dinheiro levantado pela hipoteca das instalações e do estoque da loja, comprometendo-se a pagar o empréstimo em prestações de 100 dólares mensais (cerca de 3 mil dólares em valores do século XXI). “Foi um bom negócio”, disse ele, “e pela primeira vez na vida eu tinha um empreendimento que me parecia satisfatório.”32
Colocou uma placa nova: FARMÁCIA H. H. HOLMES.33 Quando se espalhou a notícia de que um jovem médico, bonito e aparentemente solteiro, passara a ficar atrás do balcão, um número cada vez maior de jovens solteiras na faixa dos vinte anos começou a lhe dar preferência. Eram bem-vestidas e compravam coisas de que não precisavam. Fregueses antigos também gostaram do novo proprietário, apesar de sentirem falta da presença confortadora da sra. Holton. Os Holton estiveram presentes quando seus filhos adoeciam; haviam oferecido consolo quando as doenças se revelavam fatais. Eles sabiam que a sra. Holton tinha vendido o lugar. Mas por que não a viam mais na cidade?
Holmes sorria e explicava que ela resolvera visitar parentes na Califórnia, coisa que havia muito tempo tinha vontade de fazer mas nunca encontrava tempo nem dinheiro, e que certamente não poderia ter feito com o marido acamado.
Com o passar do tempo, e a diminuição da curiosidade, Holmes mudou um pouco a história. Explicou que a sra. Holton tinha gostado tanto da Califórnia que decidira ficar lá de vez.