Maré montante

E DE REPENTE eles começaram a chegar. O entusiasmo que Olmsted identificara durantes suas viagens, embora longe de constituir um maremoto, finalmente parecia estar impulsionando visitantes para o Jackson Park. No fim de junho, embora as ferrovias ainda não tivessem baixado as tarifas, o número de pagantes que visitavam a exposição tinha mais que dobrado, elevando a média mensal dos desanimados 37.501 de maio para 89.170.1 Ainda era bem abaixo dos duzentos mil visitantes diários com que os organizadores da feira sonhavam, mas a tendência era encorajadora. De Englewood até o Loop, os hotéis enfim começaram a lotar. O Roof Garden Café, no Edifício das Mulheres, passara a atender duas mil pessoas por dia, dez vezes mais do que no Dia da Abertura.2 O volume de lixo resultante sobrecarregou seu sistema de descarte, que consistia em zeladores rolando grandes barris de detritos fétidos pelos mesmos três lances de escadas usados pelos frequentadores. Os zeladores não podiam usar elevadores, pois Burnham mandara desligá-los ao anoitecer a fim de conservar energia para a iluminação da feira. Com o acúmulo de manchas e mau cheiro, o gerente do restaurante construiu uma rampa no telhado e ameaçou jogar o lixo direto nos preciosos gramados de Olmsted.

Burnham revogou a ordem.

A feira se tornara tão intensamente atraente que uma mulher, a sra. Lucille Rodney, de Galveston, Texas, percorreu a pé dois mil quilômetros, andando ao longo de trilhos ferroviários, para visitá-la.3 “Não vamos mais chamá-la de Cidade Branca à Beira do Lago”, escreveu sir Walter Besant, o historiador e romancista inglês, na Cosmopolitan, “mas de Terra dos Sonhos.”4

Até Olmsted parecia satisfeito, ainda que tivesse suas críticas, é claro. Ele também quisera gerenciar as primeiras impressões dos visitantes num ponto central de entrada. O fracasso dessa ideia, escreveu numa crítica formal para The Inland Architect, “tirou muito” do valor da feira, embora ele tenha se apressado a acrescentar que fazia suas críticas “nem um pouco como quem reclama”, mas como um profissional que oferece conselhos a outros que porventura se vejam diante de problema semelhante.5 Ainda queria que a ­Wooded Island tivesse sido deixada de lado e condenou a proliferação não planejada de prédios de concessões que “interceptavam vistas e perturbavam espaços destinados a servir de alívio aos olhares diante da quase constante demanda de atenção para os edifícios da exposição”. O efeito, escreveu ele, “foi ruim”.

No geral, porém, estava satisfeito, sobretudo com o processo de construção. Escreveu: “Realmente acho muito satisfatório e estimulante que tenha sido possível recrutar e organizar com tamanha rapidez tantos homens com instrução técnica e habilidade e que eles tenham trabalhado tão bem juntos e num curto prazo. Acho notável ter havido tão poucos atritos, tão poucas manifestações de ciúme, inveja e combatividade, como foi o caso durante o curso dessa iniciativa.”

Atribuía essa circunstância a Burnham: “Impossível exagerar o valor da diligência, da habilidade e do tato com que esse resultado foi alcançado pelo mestre de nós todos.”

Os visitantes usavam suas melhores roupas, como para ir à igreja, e se comportavam surpreendentemente bem. Nos seis meses da feira a guarda colombiana fez apenas 2.929 prisões, cerca de dezesseis por dia, em geral por desordem, pequenos furtos e roubos de carteira — nesses casos, os batedores de carteira davam preferência ao sempre concorrido aquário da feira.6 A guarda identificou 135 ex-condenados, alijando-os da feira. Emitiu trinta multas por portarem câmeras Kodak sem permissão, 37 por tirarem fotos sem autorização. Também investigou o caso de três fetos encontrados no terreno; um detetive da Pinkerton “atacando frequentadores” no Pavilhão da Tiffany; e um “zulu agindo de modo impróprio”. Em seu relatório oficial a Burnham, o coronel Rice, comandante da guarda, escreveu: “Com dezenas de milhares de empregados e milhões de visitantes, é preciso reconhecer que nosso sucesso foi fenomenal.”7

Com tanta gente espremida entre máquinas a vapor, rodas gigantescas, veículos de bombeiro puxados a cavalo e trenós em disparada, as ambulâncias supervisionadas por um médico chamado Gentles estavam constantemente levando visitantes machucados, ensanguentados e muito agitados ao hospital da exposição. Durante a existência da feira, o hospital tratou 11.602 pacientes, 64 por dia, por ferimentos e doenças que sugeriam que os sofrimentos mundanos das pessoas não tinham mudado muito no decorrer das eras.8 A lista incluía:

820 casos de diarreia;

154 de gripe;

21 de hemorroidas;

434 de indigestão;

365 corpos estranhos nos olhos;

364 com fortes dores de cabeça;

594 episódios de desmaio, síncope e exaustão;

1 caso de flatulência extrema;

e 169 envolvendo dentes que doíam como diabo.

Uma das delícias da feira era não saber nunca quem poderia de repente estar ao nosso lado na Vênus de Milo de chocolate, numa exposição de carros funerários ou debaixo do cano do monstro de Krupp; ou quem poderia sentar-se à mesa ao lado no Restaurante Big Tree, no Filadélfia Café ou do White Horse Inn, réplica do pub descrito por Dickens em As aventuras do sr. Pickwick; ou quem poderia, de repente, agarrar nosso braço a bordo da Roda de Ferris quando a cabine começasse a subir. O arquiduque Francisco Ferdinando, descrito por um acompanhante como “meio grosseiro, meio sovina”,9 percorria a área incógnito — mas preferia de longe as zonas boêmias de ­Chicago. Índios que já tinham usado machadinhas para desnudar o crânio de homens brancos saíam do complexo de Buffalo Bill, assim como Annie Oakley e grupos de cossacos, hussardos, lanceiros e membros da Sexta Cavalaria dos Estados Unidos, de licença temporária para atuarem no espetáculo do coronel Cody. O chefe Urso em Pé andou na Roda de Ferris com seu cocar cerimonial, as duzentas penas imaculadamente em ordem. Outros índios montavam os cavalos de madeira envernizados do carrossel do Midway.

Havia Ignacy Jan Paderewski, Harry Houdini, Nikola Tesla, Thomas Edison, Scott Joplin, Clarence Darrow, um professor de Princeton chamado Woodrow Wilson e uma senhora gentil, num vestido de seda negra estampado com não-me-esqueças azuis, chamada Susan B. Anthony. Burnham encontrou-se com Teddy Roosevelt para almoçar. Durante anos depois da feira, Burnham ainda usava a exclamação “Bully!” [Bravo!]. Diamond Jim Brady jantou com Lillian Russell e se entregou à sua paixão por milho verde.

Ninguém viu Mark Twain. Ele foi a Chicago ver a feira, mas adoeceu e ficou onze dias trancado em seu quarto de hotel, depois foi embora sem jamais ter visto a Cidade Branca.

Logo ele.

Encontros inesperados produziam mágica.

Frank Haven Hall, superintendente da Instituto para a Educação dos Cegos de Illinois, apresentou um novo dispositivo que fazia placas para imprimir livros em braille.10 Anteriormente, Hall tinha inventado uma máquina capaz de datilografar em braille, que nunca patenteou por achar que o lucro não deveria macular a causa da defesa dos cegos. Ele estava ao lado de sua mais nova máquina quando uma menina cega e sua acompanhante se aproximaram. Ao saber que Hall era o inventor da máquina de escrever que ela usava com tanta frequência, a menina passou os braços em volta do pescoço dele e lhe deu um grande abraço e um beijo.

A partir daquele momento, sempre que Hall contava como conhecera Helen Keller, seus olhos se enchiam de água.

Certo dia, quando o conselho de administradoras discutia se deveria apoiar ou se opor à abertura da feira aos domingos, um zangado sabatariano enfrentou Susan B. Anthony no saguão do Edifício das Mulheres, contestando seu argumento de que a feira deveria permanecer aberta. (Anthony não era administradora e portanto, apesar de sua importância nacional, não poderia participar das reuniões do conselho.) Utilizando-se da analogia mais chocante que foi capaz de imaginar, o religioso perguntou a Anthony se ela preferia que um filho dela comparecesse num domingo ao espetáculo de Buffalo Bill em vez de ir à igreja.

Sim, respondeu ela. “Ele aprenderia muito mais.”11

Para os devotos, essa permuta confirmou a maldade fundamental do movimento sufragista de Anthony. Quando Cody soube disso, achou tão divertido que imediatamente mandou a Anthony um bilhete de agradecimento e um convite para assistir ao espetáculo.12 Ofereceu-lhe um camarote em qualquer apresentação que quisesse.

No começo do show, Cody entrou na arena montado, os longos cabelos grisalhos flutuando debaixo do chapéu branco, o enfeite prateado do paletó branco refulgindo ao sol. Fez o cavalo galopar e se dirigiu ao camarote de Anthony. A plateia perdeu o fôlego.

Ele parou o cavalo, espirrando terra e poeira, tirou o chapéu e com um gesto impetuoso curvou-se até quase encostar a cabeça na lua da sela.

Anthony se levantou, respondeu à mesura e — “entusiasmada como uma menina”, segundo palavras de um amigo — acenou com o lenço para Cody.13

O significado do momento não escapou a ninguém. Ali estava um dos maiores heróis do passado americano saudando uma das principais heroínas do futuro. O encontro fez a audiência levantar-se numa trovoada de aplausos e aclamações.

Talvez a fronteira tivesse finalmente cerrado suas portas, como proclamou Frederick Jackson Turner em seu histórico discurso na feira, mas naquele momento, estava ali, faiscando ao sol, como o rastro de uma lágrima vertida.

Houve tragédias.14 Os britânicos enrolaram sua elaborada maquete do navio H.M.S. Victoria em bandeira negra. Em 22 de junho de 1893, durante manobras na costa de Trípoli, essa maravilha da tecnologia naval fora abalroada pelo H.M.S. Camperdown. O comandante do Victoria ordenou que o navio seguisse à velocidade máxima para terra, numa tentativa de encalhá-la em cumprimento das ordens dadas à frota para facilitar o içamento de navios afundados. Dez minutos depois, com as máquinas ainda a todo vapor, o cruzador adernou e foi a pique, ainda com boa parte da tripulação presa abaixo do convés. Outros tripulantes, que tiveram a sorte de pular, acabaram golpeados pelas hélices ou mortalmente queimados na explosão das caldeiras. “Ouviram-se guinchos e berros, e na espuma branca apareceram braços e pernas vermelhos e corpos torcidos e despedaçados”, segundo a descrição de um repórter. “Troncos sem cabeça foram lançados para fora do torvelinho, flutuaram por um tempo na superfície e sumiram de vista.”

O acidente custou quatrocentas vidas.

A Roda de Ferris logo se tornou a atração mais popular da exposição. Milhares de pessoas andavam nela todos os dias. Na semana que começou no dia 3 de julho, Ferris vendeu 61.395 bilhetes, no valor bruto de 30.697,50 dólares.15 A companhia da exposição ficava com mais ou menos metade, deixando para Ferris um lucro operacional para aquela semana de 13.948 dólares (equivalente a cerca de 400 mil dólares hoje).

Ainda havia dúvidas sobre a segurança da roda, e corriam histórias infundadas sobre suicídios e acidentes, incluindo uma que alegava que um cãozinho pug assustado tinha morrido ao pular da janela de uma cabine. Mentira, informou a Ferris Company; a história fora inventada por um repórter, “parco de notícias e rico de invenção”.16 Mas, se não fosse pelas janelas e grades da roda, sua crônica poderia ter sido diferente. Durante um passeio, um latente terror de altura de repente tomou conta de um homem chamado Wherritt, que normalmente era calmo. Ele ia muito bem até que a cabine começou a se movimentar. Quando ela subiu, o homem se sentiu mal e quase desmaiou. Não havia como pedir ao técnico lá embaixo que parasse a roda.

Wherritt cambaleou, apavorado, de um lado para o outro da cabine, empurrando os passageiros à sua frente como se fossem “ovelhas assustadas”, segundo um relato.17 Ele começou a se jogar contra as paredes com tamanha força que entortou um pedaço do ferro de proteção. O condutor e outros homens tentaram detê-lo, porém ele os afastou com um empurrão e correu para a porta. Seguindo os procedimentos operacionais da roda, o condutor tinha trancado a porta no início da viagem. Wherritt sacudiu-a e quebrou o vidro, mas não conseguiu abri-la.

Quando a cabine começou a descer, Wherritt ficou mais calmo e ria e soluçava de alívio — até perceber que a roda não ia parar. Ela sempre fazia duas voltas completas. Ele mais uma vez se descontrolou, e mais uma vez o condutor e seus aliados o subjugaram, contudo estavam ficando cansados. Tinham medo do que poderia acontecer se Wherritt lhes escapasse. Estruturalmente, a cabine era sólida, mas suas paredes, janelas e portas tinham sido projetadas apenas para desencorajar tentativas de autodestruição, e não para resistir a um bate-estacas humano. Wherritt já havia quebrado o vidro e entortado o ferro.

Uma mulher adiantou-se e desabotoou a saia. Para o espanto de todos a bordo, ela tirou a saia, jogou-a na cabeça de Wherritt e segurou-a com firmeza enquanto murmurava promessas gentis. O efeito foi imediato. Ele ficou “tão sossegado quanto um avestruz”.

Uma mulher tirando a roupa em público, um homem com uma saia na cabeça — as maravilhas da feira pareciam não ter fim.

A exposição era o grande orgulho de Chicago. Graças principalmente a Daniel Burnham, a cidade tinha demonstrado que era capaz de realizar algo maravilhoso, enfrentando obstáculos que, por qualquer critério, deveriam ter amedrontado os construtores. O senso de posse estava em toda parte, e não só entre os milhares de cidadãos que tinham comprado ações da exposição. Hilda Satt notou-o na mudança que se operava em seu pai enquanto ele lhe mostrava o terreno. “Ele parecia orgulhar-se pessoalmente da feira, como se tivesse ajudado a planejá-la”, disse ela. “Quando relembro aqueles dias, percebo que a maioria das pessoas em Chicago sentia a mesma coisa. Chicago recepcionava o mundo naquela época, e éramos parte disso.”18

Entretanto, a feira fez mais do que apenas estocar orgulho. Ela deu a ­Chicago uma luz para segurar contra a escuridão crescente da calamidade econômica. A Erie Railroad vacilou e em seguida entrou em colapso. Depois veio a Northern Pacific. Em Denver, três bancos nacionais faliram num único dia, arrastando com eles uma série de outros negócios. Temendo protestos contra a fome, as autoridades municipais convocaram a milícia. Em Chicago, os editores do The Inland Architect tentaram tranquilizar todos: “As condições existentes são apenas um acidente. O capital está apenas escondido. A iniciativa privada está apenas assustada, não vencida.”19 Os editores estavam enganados.

Em junho, dois homens de negócios cometeram suicídio no mesmo dia no mesmo hotel de Chicago, o Metropole.20 Um cortou a garganta com uma navalha às dez e meia da manhã. O outro soube do suicídio por intermédio do barbeiro do hotel. Naquela noite, em seu próprio quarto, amarrou em volta do pescoço uma ponta da faixa de seda do roupão de fumar, estirou-se na cama e amarrou a outra ponta na cabeceira. E rolou o corpo.

“Todo mundo está num horrível acesso de terror”, escreveu Henry Adams, “e cada indivíduo acha que está mais arruinado do que o outro.”21

Bem antes de a feira terminar, as pessoas começaram a lamentar seu inevitável fim. Mary Hartwell Catherwood escreveu: “O que vamos fazer quando o Reino das Maravilhas fechar? Quando desaparecer... Quando o encantamento chegar ao fim?”22 Uma administradora, Sallie Cotton, da Carolina do Norte, mãe de seis filhos que passava o verão em Chicago, registrou em seu diário uma preocupação comum: a de que, depois de ver a feira, “tudo vai parecer pequeno e insignificante”.23

A feira era tão perfeita, e sua graça e beleza eram como uma garantia de que, enquanto ela durasse, nada ruim de verdade poderia acontecer a ninguém, em parte alguma.