“Propriedade de H. H. Holmes”

O DETETIVE FRANK GEYER era um homem grande, de rosto agradável e sincero, um imenso bigode de pontas caídas e uma nova seriedade no olhar e no comportamento. Um dos melhores detetives da Filadélfia, tinha pertencido à força policial por vinte anos, durante os quais investigara cerca de duzentos assassinatos.1 Entendia bem de homicídios e de seus moldes imutáveis. Maridos matavam mulheres, mulheres matavam maridos, e pobres matavam pobres, sempre pelas mesmas razões: dinheiro, ciúme, paixão e amor. Raramente um assassinato envolvia os elementos misteriosos dos romances baratos ou das histórias de suspense. No entanto, desde o início, o trabalho atual de Geyer — em junho de 1895 — se desviara do padrão. Uma grande novidade era que o suspeito já estava sob custódia, preso sete meses antes, por fraude contra seguro, e no momento trancafiado na Prisão de Moyamensing, na Filadélfia.

O suspeito era um médico chamado Mudgett, mais conhecido, porém, pelo pseudônimo de H. H. Holmes. Tinha morado em Chicago, onde ele e um cúmplice, Benjamin Pitezel, administraram um hotel durante a Exposição Colombiana Mundial de 1893. De Chicago, os dois se mudaram para Fort Worth, no Texas, depois para Saint Louis e de lá para a Filadélfia, cometendo fraudes pelo caminho. Na Filadélfia, Holmes tinha dado um golpe de quase 10 mil dólares na Fidelity Mutual Life Association, ao que tudo indicava simulando a morte do segurado, Ben Pitezel. Holmes comprara a apólice em 1893, no escritório da Fidelity em Chicago, pouco antes do encerramento da exposição. Enquanto as provas de fraude se acumulavam, a Fidelity contratara a agência de detetives nacional Pinkerton — “O olho que nunca dorme” — para procurar Holmes. Os agentes pegaram sua pista em Burlington, Vermont, e o seguiram até Boston, onde conseguiram que a polícia o prendesse. Holmes confessou a fraude e concordou em ser extraditado para a Filadélfia para julgamento. Àquela altura, o caso parecia encerrado. Mas agora, em junho de 1895, tornava-se cada vez mais evidente que Holmes não tinha simulado a morte de Ben Pitezel; na verdade, ele o matara, adulterando a cena mais tarde para que a morte parecesse acidental. Três dos cinco filhos de Pitezel — Alice, Nellie e Howard — estavam desaparecidos, vistos pela última vez em companhia de Holmes.

A missão de Geyer era encontrar as crianças.2 Foi convidado para entrar no caso pelo procurador público da Filadélfia George S. Graham, que, ao longo dos anos, aprendera a recorrer a Geyer nas investigações mais delicadas da cidade. Dessa vez, porém, Graham tinha pensado duas vezes, pois sabia que poucos meses antes Geyer tinha perdido a mulher, Martha, e a filha de doze anos, Esther, num incêndio.3

Geyer entrevistou Holmes em sua cela, mas não descobriu mais nada. Holmes insistiu em dizer que quando viu os filhos de Pitezel pela última vez eles estavam vivos e viajavam com uma mulher chamada Minnie Williams, a caminho do lugar onde o pai estava escondido.

O detetive achou Holmes afável e loquaz, um camaleão social. “Holmes é dado a mentir com uma espécie de flórida ornamentação”, escreveu Geyer, “e suas histórias são todas adornadas com muitos ornamentos extravagantes, com a intenção de dar mais plausibilidade a suas declarações. Falando, ele transmite a impressão de candura, às vezes tornando-se patético, quando ser patético lhe convém, pronunciando as palavras com um tremor de voz, geralmente acompanhado de olhos úmidos, e de repente volta a adotar um jeito determinado e vigoroso de falar, como se indignação ou resolução tivessem brotado de ternas lembranças que lhe tocaram o coração.”4

Holmes disse ter adquirido um cadáver parecido com o de Ben Pitezel e colocado no segundo andar de uma casa alugada especialmente para cometer a fraude.5 Por coincidência ou por uma maligna manifestação de humor, a casa ficava bem atrás do necrotério da cidade, poucas quadras ao norte da prefeitura. Holmes admitiu que arranjara o cadáver para sugerir que Pitezel tinha morrido numa explosão acidental. Derramou solvente no tronco do corpo e ateou fogo, então o posicionou no chão, expondo-o diretamente à luz solar. Quando foi descoberto, tinha os traços tão deformados que era impossível reconhecê-lo. Holmes se ofereceu para ajudar o médico-legista a fazer a identificação. No necrotério, não só ajudou a localizar uma verruga inconfundível no pescoço do homem, como também tirou sua própria lanceta e a removeu, entregando-a, em seguida, prosaicamente, ao legista.

O legista quis que alguém da família Pitezel também estivesse presente para fazer a identificação.6 A esposa de Pitezel, Carrie, estava adoentada e não pôde ir. Mandou em seu lugar a segunda filha mais velha, Alice, de quinze anos. Os ajudantes do legista cobriram o corpo para que Alice só pudesse ver os dentes. Ela parecia segura de que era o pai. A Fidelity pagou o seguro. Depois disso, Holmes viajou para Saint Louis, onde a família Pitezel vivia na época. Ainda de posse de Alice, ele convenceu Carrie a deixá-lo levar a menina e mais dois filhos, explicando que o pai, em seu esconderijo, estava desesperado para vê-los. Pegou Nellie, de onze anos, e Howard, de oito, e embarcou com as três crianças numa estranha e triste viagem.

Geyer sabia, pelas cartas de Alice, que inicialmente ela achara a viagem uma aventura. Numa carta para a mãe, datada de 20 de setembro de 1894, Alice escreveu: “Eu gostaria que você visse o que vi.”7 Na mesma carta, manifestou aversão aos modos pegajosos de Holmes. “Não gosto que ele me chame de benzinho, criança, querida, nada dessas bobagens.” No dia seguinte, escreveu novamente: “Mamãe, você já viu ou provou banana vermelha? Comi três. São tão grandes que quando seguro uma delas meu polegar e o próximo dedo mal se tocam.”8 Desde que saíra de Saint Louis, Alice não teve mais notícias de casa e temia que a doença da mãe tivesse piorado. “Você recebeu quatro cartas minhas além desta?” escreveu Alice. “Você ainda está doente na cama ou se levanta? Eu gostaria de ter notícias.”

Uma das poucas coisas de que o detetive Geyer tinha certeza era que nenhuma dessas cartas jamais chegou a Carrie Pitezel. Alice e Nellie tinham escrito para a mãe inúmeras vezes enquanto estavam sob os cuidados de Holmes e davam as cartas a ele na expectativa de que as pusesse no correio. Ele jamais o fez. Pouco depois de sua prisão, a polícia descobriu uma latinha, com os dizeres “Propriedade de H. H. Holmes”,9 contendo vários documentos e uma dúzia de cartas das meninas. Ele as guardava na vasilha como se fossem conchas catadas na praia.

Agora a sra. Pitezel estava quase despedaçada de ansiedade e dor, apesar das garantias posteriores de Holmes de que Alice, Nellie e Howard estavam em Londres sob os competentes cuidados de Minnie Williams. A Scotland Yard fez uma busca e não encontrou vestígios algum das crianças. Geyer tinha pouca esperança de que sua própria busca desse melhor resultado. Depois de mais de meio ano sem que ninguém tivesse ouvido notícia das crianças, escreveu Geyer, “a tarefa não era muito encorajadora, e a crença geral de todos os interessados era que as crianças jamais seriam encontradas. A procuradoria pública achava, porém, que uma tentativa final de encontrar as crianças deveria ser feita, ao menos pelo bem da mãe aflita. Eu não estava submetido a quaisquer restrições, mas fui orientado a confiar em meu próprio julgamento nessa questão e a seguir para onde quer que as pistas me levassem”.10

Geyer iniciou sua busca na noite de 26 de junho de 1895, uma noite quente de um verão quente. No começo de junho, uma zona de alta pressão, a “elevação permanente”, se estabelecera sobre os estados do médio atlântico e empurrara as temperaturas na Filadélfia para bem acima dos trinta. Uma estagnação úmida tomava conta da zona rural. Mesmo à noite, o ar dentro do trem em que Geyer viajava era estagnado e úmido. Restos de fumaça de cigarro desgarravam-se dos ternos dos homens, e em cada parada o ruído de sapos e grilos enchia o vagão. Geyer dormia a intervalos irregulares.

No dia seguinte, enquanto o trem avançava para o oeste pelos vales vaporosos da Pensilvânia e de Ohio, Geyer releu cópias das cartas das crianças à procura de qualquer pista que talvez lhe tivesse escapado e que pudesse orientar sua investigação. As cartas não só ofereciam provas irrefutáveis de que as crianças estiveram com Holmes, como continham referências geográficas que permitiam a Geyer traçar os vagos contornos do trajeto que Holmes e as crianças tinham feito. A primeira parada parecia ter sido Cincinnati.

O detetive Geyer chegou a Cincinnati às sete e meia da noite da quinta-feira, 27 de junho.11 Hospedou-se no hotel Palace. De manhã dirigiu-se à sede da polícia para informar o superintendente de polícia da cidade sobre sua missão. O superintendente destacou um detetive para ajudá-lo, John Schnooks, um velho amigo de Geyer.

Geyer esperava reconstruir as viagens das crianças de Cincinnati em diante. Não havia um jeito fácil de alcançar esse objetivo. Dispunha de poucas ferramentas, além de cérebro, seu caderno, um punhado de fotografias e as cartas das crianças. Ele e o detetive Schnooks fizeram uma lista de todos os hotéis de Cincinnati próximos de estações ferroviárias e depois saíram a pé para visitar cada um e examinar seus registros à procura de algum sinal das crianças e de Holmes. Parecia fora de dúvida que Holmes usaria um pseudônimo, por isso Geyer levou também as fotos, até mesmo um desenho do baú “de tampa chata” das crianças. Porém muitos meses haviam transcorrido desde que as crianças haviam escrito as cartas. Geyer tinha pouca esperança de que alguém se lembrasse de um homem com três crianças.

Nisso, como se verá, estava errado.

Os detetives se arrastavam de um hotel para outro. O dia não parava de esquentar. Eles eram gentis e nunca demonstravam impaciência, apesar de terem de fazer as mesmas apresentações e contar a mesma história inúmeras vezes.

Na avenida Central, entraram num hotel pequeno e barato, o Atlantic House. Como nos outros hotéis, pediram na recepção para ver o livro de registros. Procuraram primeiro na sexta-feira, 28 de setembro de 1894, o dia em que Holmes, já de posse de Alice, fora buscar Nellie e Howard em sua casa em Saint Louis. Geyer calculou que Holmes e as crianças tinham chegado a Cincinnati no fim daquele mesmo dia. Geyer correu o dedo pela página e parou numa anotação sobre “Alex E. Cook”, hóspede que, de acordo com o registro, viajava com três crianças.

Aquela anotação cutucou a memória de Geyer. Holmes tinha usado esse nome antes, para alugar uma casa em Burlington, Vermont. Além disso, ­Geyer a essa altura já conhecia bem a letra de Holmes. A escrita no livro pareceu-lhe familiar.

O grupo de “Cook” ficou apenas uma noite, segundo o registro. Mas ­Geyer sabia, pelas cartas das meninas, que eles tinham permanecido mais uma noite em Cincinnati. Parecia estranho que Holmes se desse ao trabalho de mudar-se para outro hotel, contudo a experiência ensinara a Geyer que fazer suposições a respeito do comportamento de criminosos era sempre perigoso. Ele e Schnooks agradeceram ao funcionário da recepção por sua gentileza e saíram para investigar outros hotéis.

O sol ia alto, das ruas subia um vapor. Cigarras arranhavam mensagens de todas as árvores. Na esquina da rua Seis com a rua Vine, os detetives se depararam com um hotel chamado Bristol e descobriram que no sábado, 29 de setembro de 1894, um homem identificado como “A. E. Cook” ali se hospedara com três crianças. Ao ver as fotos de Geyer, o funcionário confirmou que os hóspedes eram Holmes, Alice, Nellie e Howard. Eles partiram de manhã, no domingo, 30 de setembro. A data era compatível com a cronologia dos acontecimentos: Geyer sabia pelas cartas das crianças que naquela manhã de domingo eles tinham deixado Cincinnati e chegado à noite em Indianápolis.

No entanto, o detetive ainda não estava pronto para deixar Cincinnati. Nesse momento começou a seguir uma intuição. Os Pinkerton tinham descoberto que Holmes às vezes alugava casas nas cidades por onde viajava, como o fizera em Burlington. Geyer e Schnooks voltaram suas atenções para os agentes imobiliários de Cincinnati.

A busca acabou levando-os à imobiliária de J. C. Thomas, na rua Três Leste.

Alguma coisa em Holmes devia chamar a atenção das pessoas, porque tanto Thomas como seu funcionário se lembravam dele. Holmes alugara uma casa na rua Poplar, 305, em nome de “A. C. Hayes”, e pagara uma quantia substancial como adiantamento.

A data do contrato, segundo Thomas, era 28 de setembro de 1894, a sexta-feira em que Holmes e as crianças chegaram a Cincinnati. Holmes ficou com a casa por apenas dois dias.

Thomas não soube dar mais detalhes, mas encaminhou os detetives a uma mulher chamada Henrietta Hill, que morava na casa ao lado.

Geyer e Schnooks partiram imediatamente para a residência da srta. Hill e descobriram que era uma arguta observadora e uma bisbilhoteira. “Não há muito o que contar”, disse e em seguida contou-lhes muita coisa.12

A primeira vez que ela notou o novo inquilino foi no sábado, 29 de setembro, quando uma carroça de móveis parou na frente da casa alugada. Um homem e um menino desceram. O que mais chamou a atenção da srta. Hill foi o fato de que a carroça estava vazia, salvo por um fogão de ferro que parecia grande demais para uma residência particular.

A srta. Hill achou o fogão tão estranho que chegou a comentar com os vizinhos. Na manhã seguinte, Holmes bateu à sua porta e disse que acabara decidindo não ficar na casa. Se ela quisesse o fogão, podia ficar com ele.

O detetive calculou que Holmes talvez tivesse percebido um excesso de curiosidade dos vizinhos e mudado de planos. Mas que planos eram esses? Na época, Geyer escreveu: “Fui incapaz de perceber o grande significado do aluguel da casa da rua Poplar e da entrega de um fogão tão imenso.”13 Mas estava certo de que tinha “agarrado firmemente a ponta do fio” que o levaria às crianças.

Com base nas cartas das meninas, a próxima parada de Geyer era óbvia. Agradeceu ao detetive Schnooks pelo companheirismo e tomou um trem para Indianápolis.

Fazia ainda mais calor em Indianápolis. Folhas pendiam paradas, como as mãos de alguém que acabou de morrer.

Domingo de manhã bem cedo, Geyer foi à delegacia de polícia e conseguiu um novo parceiro local, o detetive David Richards.

Uma parte da pista foi fácil de encontrar. Na carta que escreveu em Indianápolis, Nellie Pitezel tinha dito: “Estamos no H. English.” O detetive Richards conhecia o lugar: o Hotel English.

Nos registros do hotel, Geyer descobriu uma anotação referente a 30 de setembro sobre “as três crianças Canning”. Ele sabia que Canning era o nome de solteira de Carrie Pitezel.

Mas nada era simples. De acordo com os registros, as crianças Canning partiram no dia seguinte, segunda-feira, 1o de outubro. Apesar disso, Geyer sabia, também graças às cartas, que as crianças tinham ficado pelo menos mais uma semana em Indianápolis. Parecia que Holmes tinha repetido o padrão estabelecido em Cincinnati.

Geyer iniciou o mesmo exame minucioso que fizera em Cincinnati. Ele e o detetive Richards estiveram em todos os hotéis, mas não encontraram nenhuma outra referência às crianças.

Entretanto, descobriram uma outra coisa.

Num hotel chamado Circle Park, encontraram uma anotação sobre uma “srta. Georgia Howard”. Howard era um dos pseudônimos mais usados por Holmes, como Geyer a essa altura já sabia. Achava que essa mulher talvez fosse a última esposa de Holmes, Georgiana Yoke. Os registros mostravam que a “srta. Howard” tinha chegado no domingo, 30 de setembro de 1894, e ficado quatro noites.

Geyer mostrou as fotografias à proprietária do hotel, a sra. Rodius, que reconheceu Holmes e Yoke, mas não as crianças. A sra. Rodius explicou que ela e Yoke ficaram amigas. Numa conversa, Yoke lhe dissera que o marido era “um homem muito rico e que possuía propriedades e ranchos de criação de gado no Texas; também tinha uma quantidade considerável de imóveis em Berlim, para onde pretendiam ir logo que o marido pusesse os negócios em ordem para partir”.14

A cronometragem dessas estadas em hotéis era espantosa. Tanto quanto Geyer percebia, naquele domingo, 30 de setembro, Holmes de alguma forma conseguira levar as três crianças e sua própria mulher para três hotéis diferentes na mesma cidade, sem que as crianças soubessem da existência da mulher e a mulher da existência das crianças.

Mas para onde foram as crianças em seguida?

Geyer e Richards examinaram os registros de todos os hotéis e pensões de Indianápolis, porém não descobriram nenhum outro traço delas.

A etapa da busca de Geyer em Indianápolis parecia ter chegado ao fim, quando Richards se lembrou de que um hotel chamado Circle House tinha funcionado no outono de 1894, mas depois fechara. Ele e Geyer indagaram em outros hotéis para descobrir quem tinha administrado o Circle House e foram informados pelo antigo recepcionista de que os registros estavam de posse de um advogado do centro da cidade.

Os registros estavam malconservados, mas entre os hóspedes que chegaram na segunda-feira, 1o de outubro, Geyer descobriu uma anotação familiar: “Três crianças Canning.” Mostravam que as crianças eram de Galva, Illinois — a cidade onde a sra. Pitezel crescera. Geyer sentiu uma necessidade urgente de conversar com o antigo gerente do hotel e descobriu que ele administrava um bar na parte oeste de Indianápolis. Seu nome era Herman Ackelow.

Geyer explicou sua missão e imediatamente mostrou a Ackelow as fotos de Holmes e das crianças Pitezel. Ackelow ficou calado por um instante. Depois disse que sim, que tinha certeza: o homem da foto estivera no hotel.

Mas era das crianças que ele se lembrava com mais clareza e contou ao detetive por quê.

Até aquele momento tudo o que Geyer sabia sobre a estada das crianças em Indianápolis era o que tinha lido nas cartas guardadas na latinha. Entre 6 e 8 de outubro, Alice e Nellie tinham escrito pelo menos três cartas, que Holmes interceptara. As cartas eram curtas e mal escritas, mas ofereciam pequenos e vívidos vislumbres da rotina das crianças e do estado de quase cativeiro em que Holmes as mantinha. “Estamos todos bem”, escreveu Nellie no sábado, 6 de outubro. “Está um pouquinho mais quente hoje. Há tantos cabriolés passando que a gente não consegue pensar. Primeiro eu lhe escrevi uma carta com uma caneta de cristal... É toda de vidro e precisei ter cuidado para não quebrar, custou só cinco centavos.”15

Alice escreveu uma carta no mesmo dia. Era a que estava havia mais tempo longe da mãe, e para ela a viagem se tornou aborrecida e triste. Era sábado, chovia muito. Ela pegou um resfriado e estava lendo A cabana do Pai Tomás sem parar até os olhos começarem a doer. “E espero que este domingo passe mais devagar do que sei lá o quê... Por que você não me escreve? Não recebi nenhuma carta sua desde que saí e depois de amanhã vai fazer três semanas.”16

Na segunda-feira, Holmes permitiu que uma carta da sra. Pitezel fosse lida pelas crianças, o que levou Alice a responder imediatamente, observando: “É como se você estivesse com uma terrível saudade de casa.”17 Nessa carta, que Holmes nunca pôs no correio, Alice informava que o pequeno Howard estava sendo um pouco difícil. “Certa manhã o sr. H me disse para dizer a ele para ficar em casa na manhã seguinte, que ele queria assim e viria apanhá-lo e levá-lo.” Mas Howard não obedecera, e quando Holmes foi buscá-lo o menino tinha desaparecido. Holmes ficou furioso.

Apesar da tristeza e do tédio, Alice descobriu alguns motivos para comemorar. “Ontem comemos purê de batata, uva, frango, um copo de leite cada um, um sorvete cada um, um grande prato de molho cheio, muito bom, também torta de limão, você não acha que é muito bom?”

O fato de as crianças estarem tão bem alimentadas teria consolado a sra. Pitezel se ela tivesse recebido a carta. Mas não a história que o antigo gerente do hotel contou a Geyer.

Todos os dias Ackelow mandava o filho mais velho subir ao quarto das crianças e chamá-las para as refeições. Com frequência o menino voltava dizendo que as crianças estavam chorando, “evidentemente desconsoladas e loucas para rever a mãe, ou ter notícias dela”, escreveu Geyer.18 Uma camareira alemã chamada Caroline Klausmann tinha arrumado o quarto das crianças e assistido às mesmas cenas tristes. Ela se mudara para Chicago, informou Ackelow. Geyer anotou o nome no caderno.

“Holmes disse que Howard era um menino muito mau”, lembrou-se ­Ackelow, “e que estava tentando interná-lo em alguma instituição ou colocá-lo como aprendiz de algum fazendeiro, pois queria se livrar da responsabilidade de cuidar dele.”19

Geyer ainda alimentava uma pequena esperança de que as crianças estivessem vivas, como Holmes continuava afirmando. Apesar de seus vinte anos na polícia, Geyer tinha dificuldade para acreditar que qualquer pessoa fosse capaz de matar três crianças absolutamente sem motivo algum. Por que Holmes se daria ao trabalho e incorreria nas despesas de levar as crianças de cidade em cidade, de hotel em hotel, se só queria matá-las? Por que comprara uma caneta de cristal para cada uma, e as levara ao zoológico de Cincinnati, e fizera questão de que comessem torta de limão e sorvete?

Geyer partiu para Chicago, mas sentindo uma profunda relutância em deixar Indianápolis — “alguma coisa parecia me dizer que Howard não saíra de lá vivo”.20 Em Chicago, para sua surpresa, descobriu que o departamento de polícia da cidade não sabia coisa alguma sobre Holmes. Procurou Caroline Klausmann, que no momento trabalhava no Swiss Hotel, na rua Clark. Quando lhe mostrou as fotos das crianças, os olhos dela se encheram de lágrimas.

Geyer tomou o trem para Detroit, a cidade onde Alice tinha escrito a última das cartas guardadas na latinha.

Geyer começou a ter noção de quem era sua presa. Não havia nada de racional em Holmes, mas seu comportamento parecia seguir um padrão. Geyer sabia o que procurar em Detroit e, com a ajuda de outro detetive de polícia, mais uma vez iniciou uma paciente investigação por hotéis e pensões. Embora tenha contado sua história e mostrado as fotografias uma centena de vezes, nunca se cansava e era sempre paciente e educado. Eram suas virtudes. Sua fraqueza era a crença de que o mal tinha limites.

Mais uma vez retomou a pista das crianças e os registros paralelos de Holmes e Yoke, mas então descobriu uma coisa ainda mais estranha — que durante o mesmo período Carrie Pitezel e os outros dois filhos, Dessie e o bebê Wharton, também tinham se hospedado em Detroit no hotel Geis’s. ­Geyer se deu conta, para seu assombro, de que Holmes naquele momento estava conduzindo três diferentes grupos de viajantes, de um lugar para outro, empurrando-os pela paisagem como se fossem brinquedos.21

E descobriu outra coisa.

Andando de hospedagem em hospedagem, ele viu que Holmes não só tinha mantido Carrie longe de Alice, Nellie e Howard: ele os pusera em estabelecimentos a apenas três quadras de distância um do outro. De repente, as implicações do que Holmes tinha feito ficaram claras para ele.

Releu a última carta de Alice. Ela a escrevera para os avós no domingo, 14 de outubro, o mesmo dia em que a mãe, juntamente com Dessie e o bebê, tinham se hospedado no hotel Geis’s. Era a carta mais triste de todas. Alice e Nellie estavam ambas resfriadas, e o tempo se tornara invernoso. “Diga a Mamãe que preciso de um casaco”, escreveu Alice. “Estou quase congelando nesta jaqueta fina.”22 A falta de roupa quente obrigava as crianças a ficarem no quarto, dia após dia. “Tudo o que Nell e eu podemos fazer é desenhar, e me canso tanto de ficar sentada que poderia me levantar e quase voar. Gostaria de ver vocês todos. Estou ficando com tanta saudade de casa que não sei mais o que fazer. Acho que a esta altura Wharton já anda, não anda? Eu gostaria que ele estivesse aqui, ele ajudaria bem a passar o tempo.”

Geyer ficou estupefato: “Então, enquanto essa pobre criança Alice estava escrevendo para os avós em Galva, Illinois, queixando-se do frio, mandando uma mensagem para a mãe, pedindo roupas mais grossas e confortáveis, desejando o pequeno Wharton, o bebê que os ajudaria a passar o tempo — enquanto essa criança cansada, solitária e saudosa escrevia esta carta, a mãe e a irmã, e o muito desejado Wharton, estavam a dez minutos de distância dali e lá continuaram por mais cinco dias.”23

Geyer percebeu que para Holmes aquilo era um jogo. Ele os possuía a todos e deleitava-se com a posse.

Uma frase adicional da carta de Alice ficou girando na cabeça de Geyer.

“Howard”, escrevera ela, “não está conosco agora.”24