A feira

A FEIRA TEVE forte e duradouro impacto na psique nacional, em questões grandes e pequenas. O pai de Walt Disney, Elias, ajudou a construir a Cidade Branca; o Magic Kingdom, de Walt, pode muito bem ser um descendente.1 Sem dúvida a feira causou poderosa impressão na família Disney. Foi um incentivo financeiro tão grande que, quando o terceiro filho nasceu naquele ano, Elias queria chamá-lo de Colombo em sinal de gratidão. A mulher, Flora, interveio; o bebê chamou-se Roy. Walt veio em seguida, em 5 de dezembro de 1901. O escritor L. Frank Baum e seu sócio-artista William Wallace Denslow visitaram a feira; sua grandiosidade influenciou a criação de Oz pela dupla.2 O templo japonês da Wooded Island encantou Frank Lloyd Wright e pode ter influenciado a evolução dos projetos residenciais “Prairie”, de sua autoria.3 A feira induziu o presidente Harrison a designar 12 de outubro feriado nacional, Dia de Colombo, que hoje serve para ancorar alguns milhares de desfiles e um fim de semana de três dias.4 Todo festival, desde 1893, inclui uma avenida central como o Midway e uma roda-gigante como a de Ferris, e toda mercearia americana contém produtos nascidos na exposição. O cereal Shredded Wheat sobreviveu. Toda casa tem dezenas de lâmpadas incandescentes alimentadas por corrente alternada, duas coisas que se revelaram dignas de utilização em larga escala na feira; e quase toda cidade de qualquer tamanho tem seus pedacinhos de Roma Antiga, algum querido banco, biblioteca ou agência postal com colunas. Cobertas de grafite, talvez, ou até de uma mal inspirada camada de tinta, mas debaixo de tudo persiste o fulgor da Cidade Branca. Até mesmo o Lincoln Memorial em Washington pode remontar suas origens à feira.5

O maior impacto da feira foi a mudança na forma como os americanos viam suas cidades e seus arquitetos. Ela deixou os Estados Unidos inteiros — não apenas alguns patronos da arquitetura — preparados para pensar nas cidades de uma forma que nunca tinham pensado. Elihu Root disse que a feira conduziu “nossa gente do ermo do lugar-comum para novas ideias de beleza e nobreza arquitetônicas”.6 Henry Demarest Lloyd viu-a como uma revelação, para a grande massa de americanos, “de beleza, utilidade e harmonia social com as quais sequer tinham sido capazes de sonhar. Nenhuma visão dessas poderia, de outra forma, penetrar na prosaica monotonia de sua vida, e ela será sentida em seu desenvolvimento até a terceira ou quarta geração”.7 A feira ensinou homens e mulheres cercados e impregnados apenas do necessário a verem que as cidades não precisavam ser sombrios, sujos e inseguros bastiões do estritamente pragmático. Podiam também ser bonitas.

William Stead reconheceu o poder da feira de imediato.8 A visão da Cidade Branca e seu profundo contraste com a Cidade Negra levou-o a escrever If Christ Came to Chicago, livro ao qual geralmente se atribui o lançamento do movimento Cidade Bonita, que procurava elevar as cidades americanas ao nível das grandes cidades da Europa. Como Stead, autoridades públicas em todas as partes do mundo viram a feira como modelo daquilo pelo qual se deveria lutar. Pediram a Burnham que aplicasse o mesmo pensamento urbanista usado na construção da Cidade Branca em suas cidades.9 Ele se tornou um pioneiro do planejamento urbano moderno. Criou planos diretores para Cleveland, São Francisco e Manila e liderou o esforço da virada do século para ressuscitar e ampliar a visão de L’Enfant em Washington, D. C. Em todos esses casos, trabalhou sem cobrar nada.

Enquanto ajudava a desenhar um novo plano para Washington, Burnham convenceu o chefe da Pennsylvania Railroad, Alexander Cassatt, a retirar seus trilhos e armazém de carga do centro do National Mall, criando, com isso, o espaço verde desobstruído que se estende hoje do Capitólio ao Lincoln Memorial.10 Outras cidades procuraram Daniel Burnham para elaborar planos diretores, entre elas Fort Worth, Atlantic City e Saint Louis, mas ele recusou, para se concentrar em seu último plano, para a cidade de Chicago.11 Ao longo dos anos, muitos aspectos de seu plano para Chicago foram adotados, entre eles a criação do adorável cinturão de parques à beira do lago e a “Magnificent Mile” da avenida Michigan. Um trecho da beira do lago, chamado Burnham Park em sua homenagem, contém o Soldier Field e o Field Museum, por ele projetados. O parque corre para o sul numa estreita margem verde pela beira do lago até o Jackson Park, onde o Palácio de Belas-Artes da feira, transformado em um edifício permanente, agora abriga o Museu de Ciência e Indústria. Tem vista para as lagoas e a Wooded Island, hoje um lugar ermo e intricado que talvez fizesse Olmsted sorrir — muito embora certamente achasse pontos para criticar.

No começo do século XX, a feira se tornou fonte de acalorado debate entre arquitetos. Detratores sustentavam que ela havia extinguido a Escola de Arquitetura de Chicago, uma linguagem nativa, e a substituíra por uma renovada devoção a obsoletos estilos clássicos. Repetida de tese em tese, essa opinião de início ganhou destaque através de uma dinâmica curiosamente pessoal, que a tornava difícil e — como em geral acontece nas apertadas e asfixiantes salas do debate acadêmico — até perigosa de resistir.

Foi Louis Sullivan quem primeiro, e estridentemente, condenou a influência da feira sobre a arquitetura, mas bem tarde da vida e muito depois da morte de Burnham.

As coisas não correram bem para Sullivan após a exposição. No primeiro ano de depressão pós-feira, a firma de Adler & Sullivan recebeu apenas duas encomendas; em 1895, nenhuma. Em julho de 1895, Adler deixou a firma. Sullivan tinha 38 anos e era incapaz de cultivar as relações que pudessem ter gerado encomendas suficientes para mantê-lo solvente. Era um homem solitário e intelectualmente intolerante. Quando um colega arquiteto pediu sugestões a Sullivan sobre como melhorar um de seus projetos, este respondeu: “Se eu lhe dissesse você não saberia de que eu estava falando.”12

Quando sua clientela rareou, Sullivan se viu obrigado a deixar o escritório no Auditorium e vender seus objetos pessoais. Bebia muito e usava medicamentos chamadas brometos, que alteravam o humor. De 1895 a 1922, Sullivan ergueu apenas 25 construções, mais ou menos uma por ano. De vez em quando, recorria a Burnham em busca de dinheiro, embora não se saiba ao certo se pedia empréstimos abertamente ou se lhe vendia objetos de arte de sua coleção pessoal. Uma anotação do diário de Burnham em 1911 declara: “Louis Sullivan recorreu a DHB para conseguir mais dinheiro.”13 Naquele mesmo ano, Sullivan escreveu numa coleção de desenhos: “Para Daniel H. Burnham, com os melhores votos de seu amigo Louis H. Sullivan.”14

Entretanto, Sullivan temperou a autobiografia, de 1924, com hiperbólicos ataques a Burnham e ao impacto da feira nas massas que passaram por seus portões. A arquitetura clássica da Cidade Branca causou impressão tão profunda que, segundo Sullivan, condenou os Estados Unidos a outro meio século de imitação. A feira foi uma “doença contagiosa”,15 um “vírus”,16 uma forma de “meningite cerebral progressiva”.17 Em sua opinião, teve consequências fatais. “Assim a Arquitetura morreu na terra dos livres e no lar dos bravos — numa terra que declara sua férvida democracia, sua inventividade, sua desenvoltura, sua ousadia, sua iniciativa e seu progresso únicos.”18

A opinião pouco positiva de Sullivan sobre Burnham e a feira só era contrabalançada por sua própria visão exaltada de si mesmo e do que julgava ser seu papel na tentativa de trazer para a arquitetura algo novo e distintamente americano. Frank Lloyd Wright pegou a bandeira de Sullivan. Este o demitira em 1893, mas posteriormente Wright e Sullivan ficaram amigos. Quando a estrela de Wright subiu, a de Sullivan também. Burnham despencou do céu. Tornou-se obrigatório entre críticos e historiadores de arquitetura afirmar que ele, com sua insegurança e sua abjeta devoção às aspirações clássicas dos arquitetos do Leste, tinha, na verdade, matado a arquitetura americana.

Entretanto, essa opinião pecava pelo simplismo, como mais recentemente o reconheceram historiadores e críticos de arquitetura. A feira despertou os Estados Unidos para a beleza e, nesse sentido, foi uma passagem necessária, que preparou o terreno para homens como Frank Lloyd Wright e Ludwig Mies van der Rohe.

Para Burnham, pessoalmente, a feira tinha sido um triunfo incondicional. Ela lhe permitiu cumprir a promessa feita aos pais de tornar-se o maior arquiteto dos Estados Unidos, pois sem dúvida é isso que ele foi em sua época. Durante a feira, aconteceu algo cujo significado para Burnham só foi percebido pelos amigos mais íntimos: tanto Harvard como Yale lhe concederam diplomas honorários de mestrado em reconhecimento de sua heroica façanha na construção da feira.19 As duas cerimônias ocorreram no mesmo dia. Ele compareceu à de Harvard. Para ele, as honrarias eram uma forma de reparação. Não ter conseguido ingressar nas duas universidades — a recusa a lhe permitirem o “começo justo” — foi um insucesso cuja má lembrança o perseguira durante toda a vida. E anos depois de ter recebido as distinções, quando tentava convencer Harvard a aceitar o filho Daniel, cujo desempenho nos exames de admissão não fora nem um pouco excepcional, Burnham escreveu: “Ele precisa saber que é um vitorioso, e, tão logo o faça, mostrará seu verdadeiro valor, da mesma maneira como eu fiz. O maior desgosto da minha vida é ninguém ter ido comigo a Cambridge... para convencer as autoridades do que eu era capaz.”20

Burnham lhes mostrara pessoalmente do que era capaz em Chicago, com o tipo de trabalho mais difícil de todos. Reagia com raiva e indignação à persistente crença de que John Root merecia mais crédito do que ele pela beleza da feira. “O que se fez até a época da sua morte foi apenas a mais vaga sugestão de um plano”, disse. “A impressão relativa à sua contribuição tem sido construída aos poucos por algumas pessoas, seus amigos íntimos e, na maioria, mulheres, que naturalmente, depois que a feira ficou bonita, quiseram que sua memória ficasse mais amplamente identificada com ela.”21

A morte de Root arrasara Burnham, porém também o deixara livre para ser um arquiteto melhor e mais distinto. “Muitos se indagaram se a morte do sr. Root não teria sido irreparável”, escreveu James Ellsworth em carta a Charles Moore, biógrafo de Burnham.22 Ellsworth concluiu que a morte de Root “trouxe à tona qualidades do sr. Burnham que talvez não se desenvolveriam, pelo menos não tão cedo, se o sr. Root continuasse vivo”. A opinião geral sempre fora a de que Burnham cuidava dos negócios da firma, enquanto Root fazia todos os projetos. Burnham dava a impressão de “apoiar-se mais ou menos” nas aptidões artísticas do sócio, contou Ellsworth, acrescentando, porém, que depois da morte de Root “ninguém jamais teria imaginado qualquer coisa desse tipo... ou jamais teria sabido, por seus atos, que ele algum dia teve um sócio, ou que nem sempre comandara nos dois sentidos”.

Em 1901, Burnham construiu o Fuller Building, na interseção triangular entre a rua 23 e a Broadway em Nova York, mas moradores das redondezas descobriram nele uma estranha semelhança com um aparelho doméstico de uso comum, e o rebatizaram de Flatiron [Ferro de Passar] Building.23 Burnham e sua firma ergueram ainda dezenas de construções, entre elas a loja de departamentos Gimbel, em Nova York, a Filene’s, em Boston, e o Obser­vatório de Monte Wilson, em Pasadena, Califórnia. Dos 27 edifícios que ele e John Root construíram no Loop de Chicago, só restam três, entre eles o Rookery, com a biblioteca do último andar, mais ou menos do jeito que era naquela mágica reunião de fevereiro de 1891, e o Reliance, lindamente transformado no hotel Burnham.24 Seu restaurante se chama Atwood, em homenagem a Charles Atwood, que substituiu Root como o principal projetista de Burnham.

Burnham foi um dos primeiros ambientalistas. “Até a nossa época”, disse ele, “a economia estrita no uso de recursos naturais não foi praticada, mas precisa ser de agora em diante, a menos que sejamos suficientemente imorais para prejudicar as condições em que hão de viver nossos filhos.”25 Tinha uma grande, apesar de inapropriada, fé no automóvel. O desaparecimento do cavalo colocaria “fim a uma epidemia de barbárie”, disse ele. “Quando essa mudança vier, um passo real de civilização terá sido dado. Sem fumaça, sem gases, sem sujeira de cavalos, nosso ar e nossas ruas serão limpos e puros. Isso não quer dizer que a saúde e o ânimo dos homens serão melhores?”

Nas noites de inverno em Evanston, ele e a mulher iam andar de trenó com o sr. e a sra. Frank Lloyd Wright. Burnham tornou-se ávido jogador de bridge, embora tivesse fama de ser totalmente inepto. Tinha prometido à mulher que depois da exposição seu ritmo de trabalho seria mais relaxado. Porém isso não aconteceu. Contou a Margaret: “Achei que a feira fosse uma vida intensa, mas descobri que levar adiante todas essas importantes atividades também me ocupa completamente os dias, as semanas e os anos.”26

A saúde de Burnham começou a se deteriorar no começo do século XX, quando passou dos cinquenta. Desenvolveu uma colite e, em 1909, descobriu que tinha diabetes. Os dois males o obrigaram a adotar uma dieta mais saudável. O diabetes danificou seu sistema circulatório, favorecendo uma infecção no pé que o atenazou pelo resto da vida. Com o passar dos anos, revelou um interesse pelo sobrenatural. Certa noite em São Francisco, num bangalô que tinha construído no topo coberto de neblina de Twin Peaks, a choupana onde fazia seus projetos, disse a um amigo: “Se eu tivesse tempo disponível, acho que seria capaz de demonstrar a continuação da vida além-túmulo, usando como argumento a necessidade, filosoficamente falando, da crença num poder absoluto e universal.”27

Ele sabia que seu tempo estava chegando ao fim. Em 4 de julho de 1909, contemplando, com um grupo de amigos no telhado do Reliance, a cidade que adorava, disse o seguinte: “Um dia vocês hão de vê-la linda. Eu nunca a verei. Mas ela será linda.”28