Existem motivos distintos para que um livro se torne clássico. Por vezes a paciência da minúcia e a argúcia das classificações constituem o esteio da obra relevante. Noutros casos, o inesperado da descoberta de uma senda nova faz rever toda uma tradição e dá ao livro notoriedade. Nem sempre, entre os livros que permanecem como marcos de uma cultura, o estilo prima sobre o conteúdo; mais raramente ainda uma obra pode sustentar-se por sua pura forma. No caso de Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, já na primeira edição os contemporâneos sentiram a força de um clássico. Por quê?
O estilo é, sem dúvida, escorreito e a erudição — enorme — faz-se sentir discretamente, como manda o figurino. Mas não terá sido por suas virtudes formais, e convém gabá-las, que o livro de Sérgio nasceu clássico. Foi principalmente porque ele sintetiza um debate e aponta um caminho. O debate em causa diz respeito ao “afinal, o que somos?”, que é a pergunta que os povos novos sempre se fazem; o caminho para o qual a resposta a esta questão se abre engloba a possibilidade de, ao reconhecer o peso do passado, adivinhar também um horizonte alternativo.
É esta para mim a grandeza maior de Raízes do Brasil. Com jeito, quase displicentemente, mas ao mesmo tempo com muito carinho, Sérgio Buarque vai mostrando ao leitor o peso dos muitos problemas derivados das estruturas de um país em formação. Primeiro, o estranhamento do mundo: somos uma herança ibérica, mas recriada. As aves que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá, embora tenham sido transumantes. Desde o início o colonizador português, com sua “plasticidade social”, deixou-se levar caprichosamente pela natureza irrequieta do trópico. Em lugar de impor à paisagem a marca de sua vontade, como os espanhóis, o colonizador lusitano emaranhou-se nela.
Mas atenção. A displicência da herança portuguesa não entra no livro como elemento para desatar o cântico de Hosana às virtudes de uma cultura adaptativa por excelência. Se este fosse o caminho percorrido, Raízes do Brasil estaria hoje dormente ao lado das tantas obras de tom culturalista, dessas que gabam as virtudes ou menoscabam os defeitos “naturais” dos povos. Ao contrário, o que dá o toque de exemplaridade ao livro é que, beirando a cada instante os riscos da explicação fácil, de repente explodem os temas mais pertinentes sob os ângulos mais criativos. Há formas de trabalho e experiência de vida que condicionam a “plasticidade da cultura”. E há também limites — e bem óbvios — para refazer toda a herança cultural lusitana na experiência do Novo Mundo. Há o peso das estruturas agrárias permeadas pela escravidão e há também as vicissitudes da construção de uma sociedade urbana a partir de experiências de vida associativa ilhadas no particularismo dos “grupos primários”, isto é, do círculo das relações imediatas e diretas, de pessoa a pessoa, como na família.
É este o nervo do livro: as oposições, as contradições, para a criação de uma sociedade urbana e “moderna” dispõem-se como armadilhas nos caminhos do futuro. Decifrar o Brasil, nesta perspectiva, implica entender o passado e, ao mesmo tempo, interrogar o futuro para perguntar “onde está o Ródano? Será que poderemos saltá-lo?”.
Outro segredo do êxito deste livro parece-me ser seu discreto otimismo. A crítica acerba, a destruição dos mitos autocomplacentes a respeito de nós como povo e de nossas raízes históricas, não impedem um voto pela possibilidade de realização. Mas esta realização, embora o autor não se socorra do linguajar engajado da luta entre as classes e das alternativas revolucionárias, supõe uma transformação radical. Por certo, o brasileiro seria o “homem cordial”. A tese foi lida polemicamente por Cassiano Ricardo, que contra-atacou para mostrar que haveria um certo toque de irrealismo em Sérgio Buarque. Em vão, ou com alvo errado: nosso autor quis dizer apenas que, enrascados na visão afetiva dos que convivem proximamente nos círculos de familiares, de amigos e de inimigos, os brasileiros utilizariam menos a Razão abstrata — do que a paixão. E esta leva também à violência e ao arbítrio. O desafio proposto para o futuro será exatamente o de substituir o personalismo, que fundamenta as oligarquias, pela racionalidade da vida pública, que pode fundamentar a democracia.
Mas não foi só como ato de fé no futuro e através dele que Sérgio Buarque reavaliou, apesar das heranças distorcedoras, os caminhos possíveis do Brasil. Há em sua análise um fundamento real: a urbanização e a industrialização refazem a experiência cultural histórica e apresentam novos desafios e novas possibilidades para os brasileiros.
Tudo isso, diga-se de passagem, escrito em 1936, às vésperas do Estado Novo, quando boa parte da intelectualidade se alinhava no fascismo, justificando-o a partir de fatos, processos e características muitas vezes próximos daqueles que Sérgio Buarque assinala em seu livro como próprios dos brasileiros.
Não estamos, portanto, diante de uma análise de tipo meramente cultural das características herdadas ou recriadas pelos brasileiros; nem do ensaio que intui sem buscar apoio nos fatos; nem da descrição do que ocorre, como se da soma de muitos fatos pudesse resultar um conhecimento novo. Sérgio Buarque interpreta, sintetizando, analisando, instruindo e apontando alternativas. E é por isto, porque o autor inova ao recolocar o passado e não o estiola pela ausência de perguntas sobre o futuro, que Raízes do Brasil é um clássico. Como todo clássico, o livro de Sérgio mantém atualidade. Noutro patamar da história, há quem recoloque hoje os argumentos sobre as características de relatividade política do Brasil e a impossibilidade de uma organização institucional na qual a democracia — fundamentada na ordem pública e no direito — possa impor-se sem qualificativos que a distorçam. A leitura do livro serve para mostrar que hoje, como quando Sérgio Buarque escreveu Raízes do Brasil — nas vésperas do Estado Novo —, é possível que o autoritarismo se afiance; mas, se isto ocorrer, não será certamente com o aval do que de melhor se serve a inteligência para demonstrar suas teses. E, de qualquer maneira, o aríete posto como arma da imaginação por nosso autor, o horizonte das alternativas à herança de um passado que pode e deve ser superado, continuará à disposição de todos nós. A partir de certo limiar, nos ensina o mesmo Sérgio, a concretização das opções deixa de ser questão de talento para ser questão da existência de vontade (e de força, por certo) capaz de articular interesses sociais novos para permitir que nossas raízes, com enxertos de futuro, sofram as mutações necessárias.
* “Brasil: as raízes e o futuro”. Senhor Vogue, 1978, p. 140. Prefácio da série Livros Indispensáveis à Compreensão do Presente, 1, publicada na seção “Resumo do mês” referente à obra de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil.