A história e seu sentido*

Há várias maneiras pelas quais um livro e um autor se tornam clássicos. Caio Prado, com sua Formação do Brasil contemporâneo, passou a ser autor obrigatório de qualquer estante de estudos brasileiros, pelo caminho mais sólido. Pode não ser um livro tão brilhante, do ponto de vista da forma, como alguns dos ensaios clássicos sobre o Brasil. Pode não ser um livro tão documentado e baseado em pesquisas pessoais nos arquivos poeirentos como as obras dos mais famosos historiadores que o antecederam. Mas poucos livros fincaram tão duramente em solo tão profundo as raízes de nosso conhecimento sobre o Brasil Colônia.

O arcabouço do livro é feito à moda de certa arquitetura moderna: sem esconder os materiais que compõem a obra e deixando à vista o travejamento principal. As linhas fundamentais do estudo são despojadas de tal forma que, não fosse a solidez do argumento, não haveria como esconder os furos eventuais da obra. Não será essa a maneira mais honesta e mais difícil de passar a prova dos nove para entrar no rol dos clássicos?

Já foi dito por mim e por outros mais competentes, como Antonio Candido, que a obra de Caio Prado marcou uma geração logo que publicada. Uma geração, não; gerações sucessivas.

Exatamente porque terá sido nela que, pela primeira vez, de forma sintética se interpretou o sentido da colonização portuguesa, seus fundamentos econômicos, sociais e políticos e sua crise. E, ao mesmo tempo, Caio Prado mostrou que muito da crise colonial perdurou pelos séculos afora, vindo mesmo a alcançar até hoje a base de certas instituições brasileiras.

Quase todas as grandes obras são projetos inacabados. O próprio Marx legou-nos apenas esboços do que seria o desenvolvimento completo da sua obra. Talvez, só os muito dogmáticos possuídos pelo gênio — ou pela paranoia — da explicação total, num arroubo que os faz aproximarem-se imodesta e pecaminosamente do sentimento de que participam em algo da natureza divina, pretendam explicar tudo em todos os tempos. Caio é o oposto disso.

Penetrou em nossa história com a modéstia de trabalhador intelectual. Escreveu apenas um volume sobre a Colônia. Tenho a impressão, no entanto, de que se houve autor que descrevendo a parte chegou ao todo, esse autor foi Caio Prado. Seu ensaio mais recente, A revolução brasileira, completa, também despretensiosamente, como quem não quer nada, a Formação do Brasil contemporâneo, dando-nos num flash, quase flashback, a imagem dinâmica de como o passado colonial se refez no presente, amarrando-nos a uma situação de dependência econômica e a instituições político-sociais que, não sendo as mesmas da Colônia, não são também as de um país capitalista avançado, apesar — e por causa — da industrialização vinculada ao exterior e da forma como o capitalismo se refez no campo. Mais ainda: a mesma imagem de um Estado burocrático que nasceu das cinzas do Estado absolutista português, reaparece agora como Estado burocrático-capitalista, enroscando as instituições econômicas e sufocando as instituições políticas, como outrora.

Entre as muitas contribuições importantes do livro básico de Caio Prado está, em primeiro lugar, o enfoque que ele apresenta sobre a relação entre Colônia e Metrópole. Em vez de perder-se na discussão estéril e falsa sobre a qualidade “feudal” das instituições coloniais ou sobre a réplica moderna do mesmo equívoco — o de que existiu um modo de “produção escravista” —, Caio Prado traça com segurança o mapa da mina: sem que se com­preenda a natureza da economia mercantilista, não se pode entender o sentido da economia colonial. De fato, tudo que se fez em terras da América ibérica, e talvez com mais nitidez na América portuguesa, foi construir uma empresa que era de vocação comercial e de base agroescravista. Foi o capitalismo comercial em expansão (e não, portanto, a economia feudal europeia) que instaurou a grande propriedade agrária. E foi a escravidão moderna, isto é, capitalista-comercial, que mercantilizou não a força de trabalho, mas o homem, lucrando no comércio de escravos, e foi como mostram vários autores, através de monopólios régios, dos estancos, que a economia metropolitana se viabilizou.

Assim, comércio colonial, escravidão, grande propriedade e monocultura exportadora constituíram as bases do sistema colonial. Este continha em si contradições essenciais: era “capitalista”, mas se baseava na escravidão; era empresarial, mas reproduzia a cada instante as amarras de instituições que não davam espaço às grandes transformações tecnológicas e sociais que o capitalismo criava com maior vigor na Europa a partir da Revolução Agrária e da Revolução Industrial.

A estrutura social do Brasil Colônia e sua estrutura política, erigidas sobre essa base, não podiam ser senão acanhadas e contraditórias: Estado burocrático poderoso, convivendo com o latifúndio escravista no qual o senhor dispensa a figura do funcionário real; uma elite senhorial pedantesca e rude — explorando uma massa enorme de escravos e de não proprietários.

E esta foi a segunda grande contribuição da obra de Caio Prado: mostrou como o empreendimento mercantilista-escravocrata gerou uma sociedade simples em seus lineamentos fundamentais de exploração econômica e social. Daí a enorme contemporaneidade do livro: ao ressaltar a exploração da Metrópole sobre a Colônia, o autor não obscurece o fundamental, a saber: na Colônia havia os mecanismos internos de exploração, articulados aos interesses externos. Mais ainda, na dinâmica entre dependência externa e exploração interna, Caio mostra como na fase da “crise do mundo colonial” a pressão dos Cofres Reais portugueses sobre a camada setorial local, especialmente no caso da mineração, terminou por constituir, na Colônia, germes de rebeldia entre as classes dominantes locais e como a estes se somou o clamor da plebe.

Estamos longe, portanto, dos simplismos que costumavam caracterizar os enfoques globalizantes. E longe também das caracterizações gerais. A paixão do autor pela geografia, o senso do concreto — eu quase diria, não fora o medo de ser mal compreen­dido, que neste ponto há uma semelhança entre Caio Prado e, pasmem, seu antigo amigo Lévi-Strauss, não na fase dos mitos, mas nas agudas observações dos Tristes trópicos —, legaram-nos uma obra de interpretação colada à realidade. A descrição do povoamento, da expansão migratória da economia do gado, assim como a busca atormentada de “por que o escravo?” mostram a qualidade do pesquisador.

Tudo isso, last but not least, no contexto de uma interpretação histórico-materialista, dialética. O método e achados interpretativos vão juntos no livro de Caio Prado. Sem que ele esteja a cada instante batendo no peito para fazer o ato de contrição dos marxistas acadêmicos. Usa o método com a singeleza de quem sabe que não basta crer, é preciso aprender. E não se aprende sintetizando a partir do vazio: só a dura busca da rede que articula os fatos e a elaboração de conceitos, mesmo quando toscos, mas que mostrem a história concreta no movimento das coisas, permite as grandes sínteses abertas. Abertas à controvérsia, sempre prontas a serem revistas ante o dado novo; construídas sobre o provisório, pois o permanente só se pode alcançar no dogma, e a ciência, embora não derive da opinião, tampouco se alicerça em certezas metafísicas. Neste sentido também Formação do Brasil contemporâneo é um livro clássico. Propõe uma interpretação seguramente mais sólida do que tudo que havia sido escrito anteriormente sobre nossa história. Não é complacente com as interpretações analógicas, cheias de organicismos ultrapassados, de determinismos geográficos e raciais insustentáveis. Mostra como a chave para explicar o passado e a bússola para ver o rumo do futuro têm de ser buscadas nas instituições que as classes criaram e que estas se fundam na exploração econômica. Mas não afoga nesta constatação a surpresa da história, nem deriva mecanicamente a cultura e a política da anatomia econômica.

Ao contrário, no livro se procura refazer como problema cada passo de consolidação do sistema colonial, mostrando sempre as incertezas e contradições que finalmente o minavam. Não basta a referência a estes pontos para mostrar a razão de escolha desse grande livro como um dos clássicos da literatura sobre o Brasil? Poucas outras obras possuem tantas virtudes escondidas em tão grande simplicidade expositiva.

 

 

 

 


* “A história e seu sentido”. Senhor Vogue, 1978, p. 125. Prefácio da série Livros Indispensáveis à Compreensão do Presente, 6, publicada na seção “Resumo do mês” referente à obra de Caio Prado Jr., Formação do Brasil contemporâneo.