A propósito de Formação
Terminada a leitura de Celso Furtado e a formação econômica do Brasil: Edição comemorativa dos 50 anos de publicação (1959-2009), assaltou-me a dúvida: o que acrescentar? A memória de Celso e sua obra mereciam um livro deste quilate. Não houve ângulo do Formação econômica do Brasil que deixasse de ser esquadrinhado. Mesmo seus trabalhos que antecederam este livro e outros que lhe foram posteriores encontram neste volume apreciações positivas e críticas que, no conjunto, valorizam a obra de Celso Furtado. Antes de me referir a alguns dos capítulos do livro, gostaria de acrescentar umas palavras mais pessoais.
Conheci Celso Furtado em 1963, quando ele voltara a dirigir a Sudene. Fui ao Recife, com um companheiro sociólogo, Leôncio Martins Rodrigues, para entrevistar alguns empresários locais, pois estava escrevendo o livro Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil, que publiquei em 1964. Antes desse encontro, quando Celso Furtado foi ministro do Planejamento, eu o seguia cada vez que vinha a São Paulo. Da plateia, bebia cada palavra sua sobre o Plano Trienal. Celso — já famoso e referência para minha geração — recebeu-nos em seu modesto apartamento térreo, na praia da Boa Viagem. Para nossa surpresa conversou longamente sobre o tema que nos interessava, com uma paciência que não era de esperar de tão atarefado e importante personagem. Incitou-nos a que fôssemos ver o que estava ocorrendo no campo, pondo-nos à disposição um jipe que, noutro dia, levaria um casal de jornalistas iugoslavos para os lados do Engenho Galileia, terras nas quais imperava Francisco Julião. Dessa viagem resultou um “informe” do motorista às autoridades da polícia política, implicando a mim e ao Leôncio numa “trama” com jornalistas estrangeiros, altamente suspeitos... Estávamos, sem que adivinhássemos, à beira do golpe de 1964.
O golpe levou-nos ao Chile. Santiago não era para Celso Furtado desconhecida. Ele vivera vários anos naquelas terras no período inicial da Cepal. Era admirado e respeitado por seus colegas de jornada na formação da “escola estruturalista latino-americana”. Os azares da vida fizeram com que eu tivesse a oportunidade, a partir de então, de conviver mais proximamente com ele. Vivemos na mesma casa por alguns meses, enquanto minha família não chegava a Santiago e ao longo do tempo em que Celso, antes de ir para Yale, morou no Chile. Repartíamos nossa frugalidade, Celso, Francisco Weffort, Wilson Cantoni e eu. E, sem ter o que dar, sugávamos a sabedoria de Celso num seminário que fazíamos sob o comando de Raúl Prebisch no velho casarão do Instituto Latino-Americano de Planejamento Econômico e Social, o Ilpes, na rua José Miguel Infante. O Ilpes era o domínio de Prebisch, depois de sua experiência na formação da Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento, a Unctad. Ele era ao mesmo tempo assessor da presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento, o bid. Do alto de seu prestígio e competência, a cavaleiro dessas duas posições, Prebisch continuava sendo a grande figura inspiradora da Cepal, à qual o Ilpes era associado.
Foram meses preciosos nos quais fizemos uma reavaliação dos resultados intelectuais da Cepal. Além de Celso Furtado — figura dominante mesmo naquele cenáculo de ilustres pensadores — e de Raul Prebisch, que, com um brilho inesquecível no olhar e uma bonomia que encobria seu instinto de mando, comandava e resumia o resultado de cada sessão, estavam presentes Aníbal Pinto, José Medina Echavarría, Oswaldo Sunkel, Carlos Matus e, entre outros mais, os novatos no grupo, Francisco Weffort, Enzo Faletto e eu. Foi dos debates que se iniciaram neste seminário que, mais tarde, nasceu o livro que escrevi com Enzo Faletto, Dependência e desenvolvimento na América Latina.
Furtado nem sempre concordava com Prebisch e, quanto me recordo, tinha respeito intelectual também por Jorge Ahumada e por Regino Botti, economista cubano. Reviviam-se naquele seminário os primórdios da Cepal. Entre os temas havia o que se chamava de la brecha, ou seja, o desequilíbrio da balança de pagamentos e a escassez de divisas, gerando um estrangulamento nas contas externas, derivado da variação de preços e quantidade das exportações em confronto com as importações. Aníbal Pinto vinha com sua “heterogeneidade estrutural” e, raro na época, com as preocupações sobre o financiamento da Previdência Social e a oferta de proteção social. Sunkel esboçava as generalizações que fez depois sobre o funcionamento do que hoje se chamaria de economia global e da necessidade de um “impulso interno” para o crescimento econômico. Medina Echavarría corrigia as tendências deterministas com seu ceticismo liberal, e Furtado, com senhorilidade, era visto por todos como o verdadeiro sucessor do maestro, Don Raúl.
A fala de Celso era como sua escrita, sóbria, poucas palavras para dizer o essencial, um Graciliano Ramos da economia (alguém anotou isso neste livro). Figura elegante, olhar penetrante, sabedor de suas qualidades intelectuais e físicas, um tanto reservado, atraía a atenção de todos, homens e mulheres. Não diria que “pontificava”, porque Celso nunca foi presunçoso nem pedante, mas a força de sua presença, a precisão de seus comentários, distinguia-o de todos. Isso sempre junto a uma frugalidade marcante no modo de viver.
Desta época em diante convivi com Celso Furtado até que os caminhos da política me levaram a militância distinta da que ele praticava no pmdb e, mantida a amizade, nos encontramos menos no cotidiano. Em Paris, quantas vezes jantamos juntos, sós ou com outros amigos, sendo Luciano Martins, querido amigo de ambos, parceiro constante. Passei férias, junto com Ruth, em sua casa da Rue de la Brosse, perto da Halle aux Vins. Duas vezes hospedou-se em meu apartamento de Brasília quando eu era senador. Como intelectual de mente aberta e com incrível capacidade para estruturar quadros de referência e situar os acontecimentos, em minha longa experiência de lidar com professores, pensadores e políticos, se vi outros iguais, foram pouquíssimos.
Junto com alguns de seus colegas de geração, como Hélio Jaguaribe, Furtado foi uma figura como as que existiam no Renascimento: seu olhar humanístico abrangia muito mais que um campo específico da economia. Este modo de abordar as ciências sociais foi se formando desde o aprendizado na França.
Um dos capítulos mais interessantes deste livro foi escrito por Alain Alcouffe, analisando as influências cruzadas dos economistas franceses na formação de Furtado. Na época foi marcante a influência de Braudel, o grande historiador da École des Annales, e também professor da usp. De igual modo como marcaram gerações os trabalhos de Henri Pirenne ou de François Perroux. Furtado assimilou as contribuições desses mestres, bem como a de seu orientador de tese, Maurice Byé. Por trás de alguns desses autores, especialmente de Perroux, havia a sombra de Schumpeter, com a ênfase no papel das inovações, das técnicas e dos ciclos de investimentos. Perroux “historicizou” e deu abrangência global a suas abordagens: sem a análise da dominação e da desigualdade nas relações internacionais, não se entenderiam as características do capitalismo contemporâneo. Henri Pirenne abrira o caminho na História para tais interpretações. Sem um planejamento, ainda que indutivo, acrescenta Perroux, a concentração regional e funcional da renda manteria as desigualdades dentro dos países e entre os países.
Este ensaio que trata de seus primeiros trabalhos é muito interessante, pois mostra que Furtado, antes de sofrer a influência da Cepal, já tinha de onde haver haurido ideias estruturalistas. A citação que Perroux faz de Sombart, na Enciclopédia das ciências sociais, é particularmente esclarecedora. Nela o capitalismo é descrito como um sistema de trocas entre mercadorias, sem maiores considerações sobre o valor de uso delas. Perroux vê no lucro um desequilíbrio entre valor produzido e valor apropriado, sem mencionar nada de semelhante à “mais-valia” ou ao processo produtivo no qual se assenta a exploração da força de trabalho. Deixa na sombra Marx, o grande revelador dos segredos do capitalismo. Será diferente nas análises de Furtado?
Não creio. É difícil dizer que o “historicismo” de Furtado ou seu estruturalismo advieram, ainda que por intermédio dos autores franceses, da influência de Marx. A noção de desenvolvimento desigual e de dominação de grupos e classes, assim como de nações, salta à vista nas contribuições de Perroux, mas sem passar por Marx. É dentro do próprio capitalismo que os autores que mais influenciaram Celso Furtado vão buscar solução para os problemas do desenvolvimento. Ninguém apela a nenhuma superação, ao socialismo: “a economia de mercado entre as nações não pode ser salva senão por uma intervenção apropriada da economia dominante, principal e imediata beneficiária da economia de mercado”, é como Alain Alcouffe resume a visão de Perroux. Furtado sofreu, é certo, além do impacto da bibliografia francesa e das elucubrações cepalinas, o impacto de Keynes, que fora grande também em Prebisch, mas, se houve influência de Marx, ela foi posterior às obras fundamentais de Furtado sobre a formação da economia brasileira.
Embora Luiz Carlos Bresser-Pereira, no capítulo que escreveu sobre a teoria econômica em Celso Furtado, diga que o modelo por ele adotado é tanto keynesiano quanto marxista, não se pode afirmar que sua interpretação seja dialética. Nem mesmo se reduzirmos a compreensão da dialética ao ciclo de inovações e de sua difusão, o que seria um procedimento schumpeteriano, mas não necessariamente marxista. Na verdade Furtado não se resume à perspectiva de Schumpeter, como ressalta o próprio Bresser na parte final de seu interessante capítulo. Apavorado com as desigualdades e com a concentração da renda que dificultariam ou mesmo impediriam a formação do mercado interno, Furtado ultrapassa a visão do economista e vê na política o desafio para mudar os padrões econômicos que acentuavam as desigualdades entre as classes e as nações. Mais ainda, em seus escritos posteriores à década de 1970 há um pessimismo difuso que decorre de um tipo de crítica cultural-civilizatória: o estilo de capitalismo consumista, à moda dos Estados Unidos, não se pode generalizar, sob pena de tocarmos nos limites das possibilidades de uso racional dos recursos naturais. Daí a modernidade de Celso Furtado.
Nas análises de nosso autor há muita lucidez. Bresser-Pereira ressalta ainda que a própria ideia de desenvolvimento econômico é social e historicamente definida: “É a elevação do nível material da vida na forma como determinada sociedade o define partindo de uma escala de valores que reflete o equilíbrio de forças que prevalece nessa sociedade”, diz texto de Furtado de 1975. Isso, que é boa sociologia, não é, em si mesmo, marxismo. É repúdio de um economicismo e pode ter derivado da influência de qualquer dos autores mencionados que ajudaram a formação intelectual de Furtado. No caso do Brasil e dos países subdesenvolvidos, a imensa massa de trabalhadores disponíveis reduz as possibilidades para que o avanço tecnológico tenha efeitos positivos no equilíbrio de forças prevalecente na sociedade. É este o miolo da questão: a oferta ilimitada de mão de obra retida na economia de subsistência e nos setores “desocupados” barateia a força de trabalho, não induz aperfeiçoamentos tecnológicos que a poupem e freia os avanços distributivos que o aumento de produtividade poderia permitir. Daí um certo pessimismo de Furtado sobre se existiria um verdadeiro “desenvolvimento” enquanto esta situação permanecer. Pior: mesmo quando ela começa a mudar (e muda quando o assalariamento capitalista se expande), induz mais ao consumo conspícuo das classes dominantes (e à importação de bens de consumo de luxo) do que ao consumo das massas.
Há, portanto, uma visão crítica do capitalismo, pelo menos de seus efeitos na Periferia. Assim como pode haver elementos de “nacionalismo” ou de “eficientismo”, como caracteriza Bresser-Pereira, mas não de marxismo. Para corrigir as desigualdades estruturais, Furtado não tinha dúvidas em valorizar o planejamento e a intervenção estatal tópica. Tudo isso “com moderação”, como acentua Bresser-Pereira. Mas seu ângulo de análise não é o do Capital e o do desenvolvimento de suas formas. Furtado a cada instante subjetiviza a análise e culpa as elites pelos desvios das boas práticas, entra em ondas de pessimismo, vê tendências à estagnação e obstáculos ao mercado, como, por exemplo, no caso dos trabalhadores imersos na economia de subsistência (no Nordeste), que não responderiam aos estímulos de mercado graças aos liames de dependência e favorecimento que os ligam aos dominadores.
É por este motivo que Fernando Pedrão, em texto provocativo que escreveu a respeito do Nordeste e da Sudene, diz:
A teoria do desenvolvimento de origem keynesiana não distinguia entre a análise consolidada das fábricas e a análise das empresas, pelo que não via a indústria como um reflexo do movimento geral do capital onde as opções industriais e as dos demais setores são interdependentes.
Na visão de Pedrão, Celso Furtado teria preferido oferecer um plano de incentivos para manter a estrutura de produção industrial já existente a
criar novos estilos de produção industrial e industrializada, que surgem como negação das formas de acumulação que foram empreendidas no início do século xx. A proposta de industrialização da Sudene pautou-se ainda pelo velho estilo de atrair indústrias e de apoiar projetos novos de velhas empresas regionais tornando-se uma contradição com o delineamento da política regional, que clamavam por uma reestruturação da política regional em seu
conjunto.
Sem que eu necessariamente endosse as críticas de Pedrão, é inegável que, no raciocínio de Celso Furtado, as questões da demanda agregada e dos incentivos governamentais primam sobre a análise dos desdobramentos dos movimentos do Capital à maneira da dialética marxista.
No seu texto, Tamás Szmrecsányi esmiúça a Formação econômica do Brasil, refaz seu percurso e vê os desdobramentos de suas interpretações. Chama a atenção o zelo com que Tamás reconstrói a escritura de Furtado e a insistência com que defende o método histórico adotado e a base empírica das análises. Como se refere mais ao livro A fantasia organizada, de 1985, percebeu com agudeza que Furtado, diante da precariedade dos dados disponíveis, utilizava a imaginação em algumas de suas interpretações. Não dispensava, porém, sua validação, ainda que para isso dispusesse apenas de fragmentos informativos. Sem ser propriamente um historiador (creio que Tamás Szmrecsányi discordará desta apreciação), utilizou a história da maneira como os sociólogos ou economistas podem fazê-lo, substituindo a falta de dados pela imaginação congruente com o desenrolar histórico. Em caracterização mais elegante Maurício Coutinho (que escreveu um ensaio central para a compreensão de como Furtado encarava a questão cambial) diz que Furtado fazia “esquemas de abstração da história”. Conceito que ressalta, de outro modo, o mesmo que Tamás Szmrecsányi assevera.
Não seria possível nem necessário resumir neste prefácio cada um dos ensaios da obra. Mas quero mencionar ainda duas vertentes que me parecem interessantes. A primeira diz respeito ao esforço feito para desvendar as relações entre a obra de Furtado e a de dois outros importantes intelectuais brasileiros, Caio Prado e Roberto Simonsen. O ponto de partida do texto de André Tosi Furtado sobre Caio Prado é correto: a contribuição de Caio Prado não se limitou a “uma interpretação marxista” de nossa história. Trata-se de uma visão original, baseada no conhecimento do capitalismo comercial português, analisado na inteireza de sua formação social. Embora caracterizado por seu sentido “predatório”, instaurou uma economia capitalista no Novo Mundo, ligada ao comércio mundial. O predomínio da grande propriedade e da escravidão na produção da cana-de-açúcar foi a marca original da monocultura escravista de exportação. Do primeiro livro importante de Caio, o Formação do Brasil contemporâneo, até às análises de Furtado sobre a economia mineradora o autor do capítulo mostra que houve uma evolução na análise. Mais e mais Furtado vai se interessar pelos efeitos dos fluxos diferenciais de renda na economia açucareira e na mineradora, gerando complexos sociais distintos em cada uma dessas situações. A produção mineira permitiu maiores encadeamentos internos e menores coeficientes de importação. Esta evolução continuou até chegar-se à produção cafeeira, que permitiu que o país começasse a romper o padrão anterior.
Assim, se Caio Prado nos dá o painel de uma economia comercial-exportadora, Furtado desenha com mais nitidez as transformações internas da economia brasileira desde o período colonial. Mais ainda, desvenda alguns mecanismos específicos da sociedade escravista brasileira comparando-a com a norte-americana. E, sobretudo, põe ênfase naquilo que passou a ser seu tema preferido: a formação do mercado interno pós-Abolição e a dinâmica que poderia levar à industrialização e ao desenvolvimento. Ressaltou as diferenças entre a produção propriamente colonial e a cafeeira, pois nesta última houve mudanças como consequência da redução da oferta de mão de obra e, depois, da importação de imigrantes. Essas mudanças levaram à transformação de todo o complexo social produtivo. Por isso, influenciado por Caio Prado, Celso Furtado escapou de alguns simplismos, como, por exemplo, o de um enfoque culturalista, ou de outros pontos de vista muito presos ao condicionamento geográfico, quando não ao racismo. Sem deixar de dar ênfase ao circuito exportador, mola da economia colonial e da dependente, Furtado mostra como o assalariamento e o encadeamento de elos da economia cafeeira para outros tipos de atividade geraram um dinamismo interno que abriu espaço para uma nova economia. O próprio efeito do capital estrangeiro é visto por Caio Prado de modo mais limitado, enquanto Celso Furtado o vê no circuito das relações internacionais. Estas são desiguais, por certo, mas não por isso o capital estrangeiro tem um papel menos significativo, pois é parte da engrenagem que liga a economia nacional ao comércio internacional.
Quanto a Simonsen, é inegável que seu livro fundamental, a História econômica do Brasil, de 1937, serviu de base para muitas das análises de Furtado. Ao elaborar suas interpretações na Formação econômica do Brasil, em Cambridge, Celso lança mão dos dados e de algumas interpretações de Simonsen, cujo livro é mais de vinte anos anterior à redação da Formação. Mas não se baseia, como o autor paulista, na abordagem comum da época, a dos ciclos: o do pau-brasil, da cana, da mineração, do café. Simonsen, é verdade, registra que a produção cafeeira não constitui a repetição das características de um mesmo ciclo. Pelas razões já mencionadas, a economia cafeeira mudou as perspectivas de funcionamento da economia primário-exportadora. Sendo ele próprio industrial e proponente da industrialização como forma de ruptura com a economia primário-exportadora, chamou a atenção também para a necessidade de políticas econômicas indutoras do desenvolvimento. Nesse sentido foi precursor, fonte e referência para Furtado. Entretanto, os dois autores diferem na motivação de suas análises e na avaliação das consequências do “industrialismo”. É mérito do ensaio escrito por Flávio Azevedo Marques de Saes mostrar que, embora partindo de enfoque semelhante ao de Simonsen, Furtado se preocupou mais com a concentração regional da renda, com a baixa produtividade que a abundância de mão de obra causava e, sobretudo, com o que seria a tendência ao aumento da pobreza e da desigualdade produzida pelas distorções do comércio internacional em situações estruturais de dependência. Simonsen é mais otimista quanto aos efeitos positivos da industrialização e chega a ver nesta o antídoto ao comunismo, que era a ameaça da época a seus olhos. Só tardiamente inseriu suas análises numa perspectiva na qual as relações econômicas internacionais e a assimetria nelas vigente contavam. Furtado, como Azevedo Marques mostra em páginas esclarecedoras sobre seu pensamento político, é menos otimista quanto à redução da pobreza no subdesenvolvimento, mesmo com a industrialização (dadas as desigualdades regionais e a heterogeneidade estrutural). Por outro lado, era enfático em crer na possibilidade de uma conciliação entre desenvolvimento, mitigação da pobreza e manutenção de valores democráticos. Rechaçava a gangorra entre menos liberdade e mais prosperidade. Reconhecia os resultados pouco animadores das políticas econômicas prevalecentes (mesmo com a industrialização nascente) e clamava por padrões de desenvolvimento mais igualitários, dentro dos marcos da democracia.
A última vertente que quero abordar diz respeito a dois pontos da segunda parte do livro. O primeiro é a apreciação conjunta dos três trabalhos de Celso Furtado: sua tese de doutorado sobre Economia colonial no Brasil nos séculos XVI e XVII (de 1948); A economia brasileira (de 1954); e, finalmente, a Formação (de 1958). Em interessante síntese dos três trabalhos, João Antônio de Paula relê os três livros de Furtado como complementares. A partir dessa leitura conclui haver determinantes estruturais, postos pela situação periférica da economia brasileira, e elementos contingentes (estrutura do capital e da riqueza, distribuição da renda, progresso tecnológico) que se relacionariam dialeticamente. Pode ser. Mas tratar-se-ia de uma dialética sem sujeitos históricos, uma dialética movida por categorias econômicas abstratas. Esse tipo de interpretação pode ser compatível com a apreciação que João Antônio de Paula faz de Celso Furtado quando diz que Formação econômica do Brasil não é um livro de história econômica, senão que uma reconstrução global da formação econômica do Brasil a partir da aplicação de uma “certa teoria econômica aos aspectos históricos subjacentes à realidade” (citando o próprio Furtado). Ocorre que esta “certa teoria econômica” é a teoria da Cepal, onde a “dialética” entre o Centro e a Periferia também entrou em consideração, mas sem fundamentos propriamente marxistas.
Termino observando que, se as contribuições dos estudos históricos e regionais mais recentes obrigam a corrigir um ou outro ponto, o esquema geral das análises de Celso Furtado permanece vigoroso. Tanto o apanhado geral sobre o caso nordestino, escrito por Fernando Pedrão, como os capítulos sobre o Brasil meridional (escrito por Pedro Cezar Dutra Fonseca), sobre o Maranhão (de Regina Helena Martins de Faria) e a excelente revisão produzida por Flavio Rabelo Versiani sobre “Trabalho livre, trabalho escravo, trabalho excedente: mão de obra na feb”, bem como a já referida comparação entre a situação brasileira e a norte-americana feita por Rui Guilherme Granziera, são testemunhos do quanto avançou nossa bibliografia baseada em pesquisa mais sofisticada e com foco mais específico em processos e regiões. Tenho certeza de que Celso Furtado, se lesse esses capítulos, ainda que visse que num ou noutro ponto haveria que rever o que escrevera, teria a dupla satisfação de ver que seus insights e suas análises continuam a iluminar as interpretações atuais e que houve imenso progresso em nossa produção acadêmica.
* “Prefácio”. In: Francisco da Silva Coelho; Rui Guilherme Granziera (orgs.). Celso Furtado e a formação econômica do Brasil: Edição comemorativa dos 50 anos de publicação (1959-2009). São Paulo: Ordem dos Economistas do Brasil (oeb)/Atlas, 2009, pp. 8-14.