Epílogo

Livros que inventaram o Brasil*

Logo que iniciei atividades não acadêmicas — atividades políticas —, uma das maiores dificuldades que tive foi falar nas câmaras municipais. Habitualmente, em campanha eleitoral faz-se um périplo pelas câmaras, e os governos militares dotaram as câmaras de muito boas condições físicas. Na medida em que elas foram esvaziadas de poder, seu aspecto ornamental ficou melhor servido, como aconteceu também com os sindicatos. Mas nas câmaras isso é notável. Só que a arquitetura das câmaras brasileiras — já que vou falar sobre o Sérgio Buarque, que sempre gostou muito de analisar os planos das cidades, e sobre o Gilberto Freyre das casas-grandes, permito-me aqui uma digressão arquitetônica — obedece à mesma disposição deste anfiteatro do Itamaraty: uma mesa, onde ficam os notáveis, como agora, e de outro lado o “Terceiro Estado”. Entre os notáveis e o Terceiro Estado há um vazio, que come a palavra. Por isso eu tinha muita dificuldade de falar nas câmaras; o professor está sempre mais acostumado a falar próximo, e eu tinha que falar longe do público, e isso dá a sensação de que a palavra cai no vazio. Venho hoje aqui, e se repete a cena. De modo que eu me desloquei da mesa principal para este púlpito não para ser imponente, mas para ficar um pouquinho mais perto da audiência e sentir menos medo de que a palavra desapareça no vazio, uma vez que a falta de pensamento original sobre a matéria já aumenta esse risco, e será pior ainda se a arquitetura ajudar na tarefa de jogar o pensamento rio abaixo.

Dito isto, eu quero lhes dizer que gostaria de conversar nesta tarde com bastante liberdade sobre três autores: Caio Prado, Sérgio Buarque e Gilberto Freyre. Para tanto farei um misto de evocação e interpretação. Evocação porque, por circunstâncias da vida, eu conheci os três. Conheci menos o Gilberto Freyre, por diferença não só de geração mas de região. Talvez tenha conhecido mais de perto Sérgio Buarque, de quem fui amigo e que me examinou duas vezes, uma delas numa tese de cátedra. Com Caio Prado, trabalhei no conselho da Revista Brasiliense. Tive, portanto, um contato mais prolongado com o Caio e com o Sérgio. Quando se conhecem os autores de perto, na hora de fazer-se a interpretação fica-se talvez mais toldado e, ao mesmo tempo, mais motivado.

Num dos prefácios do Raízes do Brasil há um estudo de Antonio Candido de Mello e Souza, um pequeno estudo no qual Candido diz que esses três personagens foram básicos para a sua geração porque dois escreveram seus livros principais nos anos 1930 e Caio Prado escreveu em 1945, próximo, portanto, da época de formação da geração de Antonio Candido. Nossos autores influíram quase que diretamente nas pessoas da coorte geracional de Antonio Candido. Formaram os três pilares fundamentais do pensamento sobre o Brasil até então. Se Antonio Candido pudesse escrever mais recentemente o mesmo prefácio, talvez acrescentasse outro autor, que, tenho certeza, é muito de seu agrado: Celso Furtado.

O curioso é que, se alguém for pensar hoje sobre as contribuições básicas para a interpretação do Brasil, esses três autores estarão no panteão dos notáveis do mesmo jeito. E não por acaso foram selecionados para servir de marco nesta reflexão sobre o Brasil. Trata-se de autores com contribuições muito díspares, muito diferentes umas das outras. Embora seus livros principais tenham sido escritos proximamente uns dos outros, especialmente o do Sérgio Buarque e o do Gilberto Freyre — Casa-grande & senzala é de 1933 e Raízes do Brasil é de 1936 e, portanto, estavam reagindo ao mesmo clima intelectual e político —, eles analisaram o país de ângulos bastante diferentes. Não obstante, surgem na mesma leva de pensamento e foram motivados pela mesma matriz que originou esse esforço de repensar o Brasil.

Nas interpretações sobre o Brasil dos anos 1930 e até mesmo um pouco antes, com Alberto Torres, havia um forte predomínio de ideias antiliberais. Os grandes autores eram Oliveira Vianna e, depois, Azevedo Amaral. Neste último, a defesa do Estado autoritário é aberta, e Oliveira Vianna mal a esconde. Já os dois livros de Sérgio e de Gilberto Freyre — depois eu vou ao Caio — têm uma visão bem diferente. A visão de Gilberto Freyre foi revolucionária, embora mais tarde a minha geração custasse a crer que Gilberto Freyre tivesse tido um papel revolucionário.

Foi-me pedido em algum momento que fizesse uma síntese crítica do pensamento de Gilberto Freyre e eu a escrevi. Ao tentar realizá-la, comecei fazendo uma alusão um pouco perversa à sensação que tive quando voltei ao Chile, em 1974, depois do golpe de Pinochet. Regressava ao país pela primeira vez depois de seis anos (fui lá para participar de uma reunião na Cepal). Eu tinha vivido no Chile de Alessandri, de Frei e de Allende; quando voltei, o regime era ditatorial, e vários dos meus amigos ainda estavam presos ou haviam sido desterrados. Quando se volta a um país muito próximo — eu lá havia ficado quatro anos seguidos, no exílio —, as evocações são inevitáveis. Eu tinha muita reserva em voltar, porque havia gostado imensamente do Chile. Lá vivi numa época muito fecunda intelectualmente, não só para mim, mas para muita gente, época em que a Cepal produzia um pensamento crítico bastante forte e a Universidade chilena pulsava democracia. Por isso, eu tinha certo medo de voltar ao Chile no regime militar. Voltei. A recordação, nas circunstâncias, era inevitável, porque o cheiro das árvores e das flores é o mesmo, os frutos têm o mesmo sabor, a cordilheira dos Andes, com aquela cor esbranquiçada de sempre, o céu, que às vezes parece o de Brasília, tudo aquilo é tão grato, tão agradável, tão prazeroso. É estranho a gente ter uma sensação agradável num país ao qual politicamente se está odiando. Na ocasião, li num jornal, El Mercurio, que é o mais importante do Chile, uma longa conferência de Borges, de Jorge Luis Borges. Ele tinha ido ao Chile para receber um prêmio dos militares. Li e me deliciei, o que me produziu em seguida uma certa indignação: eu me sentia feliz com o Chile-físico e deliciado pela leitura de Borges, apesar do horror que sentia do regime de Pinochet. Era demais; fiquei indignado comigo. A conferência de Borges sobre a língua espanhola, sobre o idioma castellano era admirável. Mas fazia a defesa mais reacionária possível da intangibilidade da língua, da necessidade de evitar que a língua evo­luísse. Tudo escrito de uma maneira tão bela, tão convincente, que eu me empolguei com a conferência. Fiquei com raiva de mim tal era o ódio político que eu nutria pelo Chile dos militares: não deveria ser possível ser tão cerebrino e separar a emoção estética das circunstâncias.

Comecei a crítica a Gilberto Freyre referindo esse fato porque fui reler — faz lá uns quinze anos isso, não sei — o Casa-grande & senzala e aconteceu a mesma coisa. Uma releitura do Casa-grande & senzala, feita não com o olhar do jovem sociólogo militante, que quer, naturalmente, cobrar dos outros uma postura de recusa da ordem estabelecida, mas uma releitura de alguém mais maduro — a idade inevitavelmente acalma —, uma releitura um pouco mais serena do Casa-grande & senzala, sem que se fique na torcida para saber qual é o método, mas simplesmente tratando de ver o que diz o livro, apaixona. E apaixona, em primeiro lugar, pela literatura, porque Gilberto Freyre faz com as palavras o que quer. Convém pular os prefácios, porque são tão cabotinos que podem dar uma impressão menos à altura do que o livro propriamente é. Mas o livro apaixona. E, mais ainda, é um livro no qual a vida cotidiana aparece. Hoje isso é banal. E na sociologia, então, a sociologia do cotidiano, a antropologia do cotidiano, se tornou algo normal, mas o livro é de 1933! Gilberto Freyre foi discípulo de Franz Boas, mas nem Boas tinha esse interesse pelo cotidiano. É verdade que os antropólogos são muito mais voltados para a vida comum do que os sociólogos ou mesmo do que os historiadores, que, geralmente, descrevem os grandes feitos, mesmo na história social. Mesmo assim, não era comum erigir a vida cotidiana em grande personagem.

O fato é que Gilberto Freyre, de alguma maneira, introduz na literatura sobre o Brasil a vida cotidiana, a família, a cozinha, a vida sexual, os maus hábitos, ou bons, não sei. Enfim, assume uma dimensão que não é a dimensão usual do intelectual brasileiro. A dimensão usual é desconhecer — era, e ainda é, desconhecer — o peso da rotina e sublinhar os fatos que são mais significativos, e, portanto, esvaziá-los de vivência. Gilberto Freyre não. Descreve uma história social, às vezes idílica, mas mesmo quando idílica, quando não corresponde a uma pesquisa ou a dados documentais, a referência analítica abrange aspectos antropológicos do cotidiano. Isso num grande livro em que se está pensando o Brasil.

Depois, Gilberto proclama que nós somos mestiços e que ser mestiço é bom. Ele não está isento de preconceitos, por exemplo, com relação aos índios, que nunca foram de seu maior agrado. Mas com relação à cultura africana e aos negros, Gilberto até os idealiza. E isso também é absolutamente revolucionário para a época. Oliveira Vianna, que era mulato, tinha horror disso. Em outros autores, a busca de uma espécie de branqueamento era constante, branqueamento não só físico — não se consegue tan­to —, mas espiritual. Então, para que tocar nesses aspectos discutíveis de uma formação histórica que está fincada na África, em grupos tribais? Gilberto Freyre não tem medo disso, vai diretamente a essas questões.

Ao fazer esse tipo de revolução, quase copernicana, tendo em vista a literatura da época, coloca o negro como primazia. Mas, ao mesmo tempo, mostra a contradição fundamental entre a casa-grande e a senzala. Euclides da Cunha já havia feito algo semelhante, com o sertanejo, que era “antes de tudo um forte”. Mas o sertanejo não é um negro; o sertanejo é o branco queimado, às vezes mestiço de índio, até cafuzo, mas não um negro. Gilberto Freyre coloca o negro, junto com o português, como parte fundamental da plasticidade da cultura que aqui se foi constituindo. E não o faz, apenas — eu volto ao tema daqui a pouco —, de forma, digamos, retórica. Quer dizer, ao mesmo tempo em que enaltece a casa-grande, não deixa de mostrar que a casa-grande é inseparável da senzala. E mostra, o que era sabido — porém mostra com maestria sociológica —, que a sociedade patriarcal estava fundada num tipo de exploração econômica que supunha, evidentemente, a grande propriedade, o latifúndio. Mostra, enfim, que a fidalguia da casa-grande coexistia com a massa de escravos.

Evidentemente, a partir daí, na visão do patriciado constituído pela classe senhorial, Gilberto Freyre idealiza muito. Em toda a análise posterior sobre a inexistência do preconceito, de que tudo se assimila em nossa cultura, não resiste à crítica mais objetiva. Eu próprio escrevi um trabalho sobre o negro no Rio Grande do Sul para contrastar com a visão idealizada de Gilberto Freyre, do que era até mesmo a relação com as mucamas, o que era o escravo doméstico, a distinção entre o escravo do eito, da lavoura, e o escravo doméstico, a “bondade” na relação com o escravo doméstico, e a influência da mucama sobre o senhorzinho. Tudo isso é visto de uma perspectiva bastante adulterada, bastante deformada. Mas, dentro dessa deformação, que é inegável a partir de qualquer ângulo mais objetivo de análise sociológica, na verdade Gilberto Freyre pintou um mural. E talvez seja essa a primeira razão pela qual um livro como Casa-grande & senzala permanece vivo: tem a capacidade de sintetizar (característica também da obra dos outros dois autores que estamos considerando). Na hora da síntese muito se esfuma, desvanece. Uma porção de aspectos, especialmente a rugosidade do real, que é sempre desagradável, podem desaparecer na síntese, sempre purificada de eventuais distorções ou imperfeições, à luz da teoria que se quer enaltecer.

Gilberto Freyre faz uma síntese com força intelectual que não é fácil encontrar nas análises sobre outros povos. Sobre os Estados Unidos existe um painel vigoroso feito por um francês, Alexis de Tocqueville. Em A democracia na América, Tocqueville faz isso. As páginas de Weber têm estatura intelectual ainda maior. Mas, no caso de Gilberto Freyre, trata-se de alguém que está refletindo sobre a sua própria história, sua própria realidade. É sempre mais difícil uma síntese crítica (embora, no caso em tela, também laudatória) quando se fala do próprio umbigo.

O outro lado que me parece fazer com que Casa-grande & senzala permaneça é o da produção de um mito. O encanto do livro de Gilberto Freyre é que ele, ao mesmo tempo em que desvenda, oculta e mistifica. Mas Gilberto faz um mito que é nosso mito. De alguma maneira propõe uma imagem que as pessoas gostariam que fosse verdadeira. Essa imagem, sendo mítica, deforma. O mito tem que ter sempre uma estrutura simples de oposições binárias. Quem leu Lévi-Strauss sabe disso. E tem de conter oposições claras. A estrutura de Casa-grande & senzala é uma estrutura simples, a oposição é clara também. O “nós” que se forma é o “nós” que está baseado na casa-grande e na senzala, nas raças formadoras, e se opõe aos outros, que não são assim. Não é o holandês quem vai plasmar o Brasil: não poderia; é o português, porque o português conseguiu essa amálgama com o negro que permitiu a individualidade da civilização brasileira, criando uma identidade redefinida miticamente por Gilberto Freyre. E criou uma identidade que fez com que o leitor, ao lê-la, não a rejeitasse. Não se trata de um espelho horroroso, para mostrar uma cara que nós não gostaríamos de ter. Será um espelho narcisista, como o próprio autor, aliás, sempre foi? Quem o mirar achará que nossa cara é bela e gostosa de ser vista.

É esse misto de grande escritor, com uma sólida formação em ciências sociais, treinado na Universidade Columbia, discípulo de Franz Boas, que sabia das coisas, que era versado em literatura, especialmente inglesa e americana, que faz de Gilberto Freyre o autor de um livro permanente; esse misto de alguém com base acadêmica e que é capaz de sintetizar — síntese que não deixa de ter algum elemento crítico, mas, ao mesmo tempo, abre-se para uma dimensão utópica, mítica, duradoura.

É fácil, de um ponto de vista objetivo, destruir alguns fundamentos de Casa-grande & senzala. Não, é claro, o mural inteiro; mas muito do que Gilberto diz é fácil de ser contrastado com uma boa base empírica. É só mandar fazer dez, vinte teses de mestrado, e se pulverizam muitos argumentos do livro. Mas isso não lhe tira a força. Não tira o que ele teve de inovador para a época, ao colocar em evidência a vida cotidiana, requisito fundamental para a compreensão do país; ao assumir uma cara própria do Brasil, embora mistificada, mas uma cara que não era convencional; ao aceitar o que os franceses chamariam de négritude, embora um pouco disfarçada, amulatada; ao mesmo tempo, ao não esconder a perversidade e endeusar os senhores; e ao mostrar que, apesar de tudo, esse sistema, esse patriarcado brasileiro, foi capaz de criar uma civilização.

Essas são, digamos assim, as características que tornam Casa-grande & senzala um livro contemporâneo. Sua contemporaneidade deriva precisamente da sua atemporalidade. Ele criou o mito que, ao mesmo tempo em que deforma, explica. Daqui a quinhentos anos, talvez, os antropólogos do futuro vão tomar o livro de Gilberto Freyre como os antropólogos hoje estudam certos mitos, que contêm formas de explicação da sociedade, embora não “científicas”. Qualquer leitor mais rigoroso, qualquer sociólogo positivista ou funcionalista, ou marxista, pega o livro e pode estraçalhá-lo. Não tem muita importância isso. O que tem importância é que o livro realmente abriu uma vereda, um caminho. E talvez tenha influenciado menos do que devesse, porque as posições de Gilberto Freyre, mais tarde, foram posições conservadoras, que afastaram a jovem intelectualidade da possibilidade de entender o significado de Casa-grande & senzala. Gilberto Freyre não escreveu outro livro com a mesma força. Tentou fazer algo do gênero com Sobrados e mucambos e, até certo ponto, com Ordem e progresso. Mas eles não tiveram a capacidade de pintar um painel com igual força.

Já o livro de Sérgio Buarque de Holanda — escrito três anos depois de Casa-grande & senzala, em que Gilberto Freyre lhe agradece pela contribuição prestada (pois Sérgio traduziu algumas obras do alemão para que Gilberto Freyre pudesse usá-las) — tem uma conotação distinta. E eu diria que, embora o livro de Gilberto Freyre seja mais vulnerável à crítica, é uma arquitetura de grande porte, enquanto o de Sérgio não é assim. Raízes do Brasil é quase uma miniatura de pintor, daquelas que revelam muito, como se fosse da lavra dos pintores geniais das Flandres que, ao fazer uma miniatura, às vezes no interior do quadro maior, revelam na minúcia tudo que pode ser visto em ponto maior na grande obra.

Do ponto de vista da história das ideias, Sérgio Buarque, em Raízes do Brasil, talvez tenha produzido uma revolução maior do que a feita por Gilberto Freyre. Não é maior quanto à arquitetura da obra ou quanto à compreensão do Brasil, nem as categorias do Sérgio são categorias de tipo estrutural. Gilberto Freyre, bem ou mal, faz uma análise estrutural — histórica e estrutural. O diálogo que Sérgio mantém é o de uma iluminura, é mais sofisticado, não tem as características de um vasto mural. Mas Raízes do Brasil tem algo de mais — palavra ruim — moderno. O livro de Gilberto foi um livro que comoveu pelas razões que eu disse: fez um mito sobre nós próprios. O de Sérgio não comoveria tanto desse ponto de vista, embora também desvende alguns aspectos importantes da cultura brasileira, e até mesmo do comportamento dos brasileiros; mas creio que a parte mais significativa do trabalho do Sérgio é outra. É que Sérgio é um pensador radicalmente democrata, coisa que Gilberto Freyre não era. O pensamento de Gilberto Freyre é docemente conservador, ele concede ao povo ou ao escravo, mas não está interessado em explicar se as coisas vão mudar, por que vão mudar, até que ponto a estrutura patriarcal, em vez de ter o lado positivo ressaltado, tinha também lados que obstaculizavam as mudanças e perpetuavam uma ordem injusta.

Sérgio não. Ele está o tempo todo tratando de mostrar que temos raízes até ibéricas — Gilberto Freyre também fala nisso, não em raízes portuguesas, mas ibéricas —, mas, ao mesmo tempo em que está procurando as raízes ibéricas, faz distinções. Distingue a América criada pelo português da América criada pelo espanhol, e, sobretudo, reconhecendo, mostrando e criticando a formação patrimonialista brasileira (e para isso usa Weber), tenta vislumbrar brechas para a emergência de um possível comportamento diferente do comportamento brasileiro tradicional.

Deixem-me precisar um pouco mais o que quero dizer com isso. Num dos capítulos mais bonitos do livro, que é “O ladrilhador e o semeador” (e que ganhou este título na sexta edição), Sérgio Buarque compara a presença espanhola com a presença portuguesa. Diz que a presença espanhola se marca por uma vontade férrea e abstrata de criar cidades com planos traçados de antemão. A cidade espanhola é uma cidade geométrica, com a praça maior e as ruas paralelas que saem dela, de tal modo que a geografia é dominada pelo planejador que a antecipa mentalmente. O próprio plano vinha da Espanha. Em contraposição a esse espírito, a essa vontade mais abstrata, mais racionalizadora, mais impositiva, dos espanhóis, os portugueses como que se espreguiçavam na geografia. A cidade portuguesa é desorganizada, é a cidade que sobe e desce o morro em zigue-zague, embora os portugueses preferissem ficar no alto, com seus fortes. Eles tinham visão estratégica, ocuparam o espaço brasileiro de uma maneira admirável, souberam construir fortificações onde era necessário, mas não tinham a preocupação com a ordem geométrica, nem talvez com a disciplina; o espírito improvisador do português era muito forte para se conformar a planos. Assim a cidade vai se formar de uma maneira muito mais desordenada.

Mais adiante, Sérgio Buarque vai mostrar, em vários capítulos, sendo cada um deles uma obra de arte em si, que há certas condicionantes da vida do português no Brasil, da nossa formação colonial, da nossa formação histórica, que levam à valorização de elementos culturais que, digamos assim, para usar a expressão que Weber utilizava, tomando emprestada de Goethe, não têm afinidades eletivas com o espírito do capitalismo, com a modernidade.

Eu me referi há pouco a Tocqueville, que escreveu páginas admiráveis sobre como foi possível enraizar nas Américas uma sociedade mais igualitária, mais democrática e mais afim com o espírito do capitalismo moderno. Pois bem, aqui não há nada disso. Não existe na formação cultural brasileira essa propensão ao abstrato, ou ao racional, nem o amor às hierarquias. Esse desamor às hierarquias estamentais — que vigiam na Europa, porém não na América —, compensado pela disciplina individual e pela solidariedade grupal de fundo religioso, levou, na América do Norte, à competição capitalista. Entre nós, a inexistência da racionalidade abstrata e do gosto pela disciplina levou ao personalismo.

Sérgio vai construir sua interpretação — uma das suas, pois são tantas — ao redor da ideia de que, embora a nossa sociedade seja uma sociedade de privilégios, esses privilégios — e ele diz que essa característica vem do mundo ibérico — não estão basea­dos nas distâncias estáticas das hierarquias sociais preestabelecidas. De alguma maneira a realização individual pesa mais do que, como diriam os sociólogos americanos, as virtudes prescritivas e as posições herdadas, advindas de privilégios de nascença, de posições preestabelecidas na sociedade. Porque sempre houve alguma possibilidade de mobilidade. Curiosamente Sérgio Buarque contrasta essa situação com outras nas quais existe um sistema de normas estruturadas que valorizam o exercício da motivação individual. Entre nós acontece o oposto: a ação pessoal, numa sociedade que não valoriza as regras abstratas, transforma a realização individual em dom, acaso e sorte.

Não se trata propriamente da mobilidade que a sociedade permite em função de um parâmetro mais amplo, que contempla a mobilidade como um valor e lhe aponta caminhos institucionais. Senão que se trata de algo que se consegue pela desordem, pela vontade pessoal, pela imposição, e que acaba sempre sendo algo particular. Nossa formação leva-nos a exacerbar as virtudes pessoais e arbitrárias. Não se cria, assim, uma sociedade verdadeiramente democrática. A democracia requer regras, requer a igualdade formal, que assegure chances iguais a todos. O valor que se preza, entre nós, é o oposto: o êxito é sempre uma proeza única, pessoal, a despeito das regras.

Na visão de Sérgio Buarque, se existe um espírito irrequieto entre nós, que permite explosões pessoais que quebram a rigidez da sociedade, essa quebra de rigidez não se dá pela transformação das estruturas em benefício de todos, e sim em termos do aplauso para quem consegue quebrar as regras, momentaneamente, graças a um percurso com marca própria, patenteado, e não generalizável.

Um dos capítulos mais importantes do livro é sobre “o homem cordial”. Na verdade, Sérgio está fazendo uma crítica, e não o endeusamento das “virtudes brasileiras”, porque o homem cordial, para ele, é o homem do coração, que se opõe ao homem da razão. Cordial não quer dizer “bom”, quer dizer da “emoção”. E a emoção perturba o estabelecimento das regras gerais, formais, democráticas. A leitura do homem cordial como homem afável é equivocada. Com o conceito, Sérgio Buarque está mostrando outra coisa, está mostrando que esta “cordialidade”, na verdade, é uma maneira de reter vantagens individuais. Até mesmo nas análises quase antropológicas deste livro admirável (Sérgio Buarque é um excelente escritor que sempre foi capaz de disfarçar a erudição) aparecem as características dos modos de comportamento no Brasil que, sendo aparentemente muito agradáveis e parecendo romper com fórmulas estabelecidas, na verdade utilizam a displicência e a falta de ordem em benefício dos que são capazes do exercício do poder pessoal.

Em nossa própria prática religiosa, é muito difícil manter o ritual. Citando Saint-Hilaire, diz que mesmo durante o culto as pessoas conversam, mais interessadas nelas próprias do que na vida em comum. O ritual, que pode parecer alguma coisa de impositivo e, portanto, negativo, é também condição da vida democrática. O não ter regra, aparentemente, é o estar à vontade que igualiza; mas na verdade não é bem assim, é propiciar que as pessoas que são formalmente iguais deixem de sê-lo, porque, sendo uns “mais iguais que os outros”, são tão superiores que podem ser condescendentes, “democratas”, como uma concessão pessoal e não em função do direito do outro.

Confundimos muito no Brasil essa situação, que é de manipulação pela ausência de regras gerais e conhecidas, com “informalidade democrática”. Tem-se a impressão de que convém quebrar todas as regras para haver democracia. Quando se quebram todas as regras, entretanto, não há possibilidade da generalização de situações de igualdade, não há possibilidade efetiva de se criar uma situação de democracia.

Não tenho visto muitas análises politizando Raízes do Brasil, e eu estou politizando. Existem muitas análises que valorizam a contribuição de Raízes do Brasil para a história cultural, que ressaltam a graça do texto para descrever situações, ao fazer citações eruditas e usar linguagem coloquial. O livro, ao mesmo tempo em que exibe enorme simplicidade vocabular e de estilo, de repente faz uma interpretação extremamente sofisticada. Tudo isso é verdadeiro, mas acho que pode haver uma outra leitura do Raí­zes do Brasil, que valoriza a crítica profunda de nossa sociedade não democrática.

É muito significativo que toda a construção intelectual do livro termine com uma pergunta: o que podemos fazer para construir uma sociedade mais democrática? Uma sociedade que ao invés do personalismo e do caudilhismo permita o acesso de todos às oportunidades existentes, que tenha regras gerais, como na democracia? A resposta de Sérgio Buarque não é pessimista. Ele não se limita a descrever uma situação definida por uma “herança histórica”. Especula sobre alternativas democráticas. No ano em que foi escrito o livro, 1936, isso era raríssimo. Sérgio se coloca contra a onda dominante, que era ou fascista ou comunista. Seu livro é radicalmente democrático. E faz também a crítica da liberal-democracia cabocla, mostrando que ela era outra forma de poder pessoal disfarçada em belas palavras, perfeitamente assimiláveis pela elite de poder no Brasil, que aceita, do ponto de vista abstrato e ideológico, a posição liberal-democrática mas que se esquece dos fundamentos sociais necessários para a existência de uma situação democrática efetiva. Raízes do Brasil faz a crítica da democracia liberal a partir do ponto de vista democrático, não a partir do ponto de vista conservador, e muito menos fascista ou comunista, ideologias repelidas pelo autor durante toda a sua vida e que estavam na moda quando o livro foi escrito.

Na parte final de Raízes do Brasil, Sérgio Buarque deixa transparecer os fundamentos de seu otimismo, de sua esperança: a de que virá uma revolução “de baixo”. Não fala em revolução, pois primava em não usar palavras tão amedrontadoras. Mas tem a firmeza de, não usando as palavras, discutir as condições para uma mudança mais radical. Em suma, o livro discute as possibilidades de se mudarem as raízes, as heranças culturais, a ordem vigente. E a mudança que ele antevê é a de que, com a urbanização, o peso da herança rural cederá à presença das massas populares que ele via com bons olhos, uma vez que possibilitaria um movimento “de baixo para cima”. A urbanização traria à cena novos protagonistas da política, dessa vez realmente democráticos.

Diferentemente de Gilberto Freyre, que não superou Casa-grande & senzala, Sérgio Buarque escreveu outro livro que, a meu ver, é maior do que Raízes do Brasil (ele achava isso também, embora não fosse presunçoso, pois era, nesse aspecto de vaidade pessoal, o oposto de Gilberto Freyre). Trata-se da História geral da civilização brasileira, que ele dirigiu. O volume sobre a Monarquia foi todo escrito diretamente por Sérgio Buarque. É um livro admirável, já de pós-maturidade, com a mesma visão penetrante do Raízes do Brasil mas fazendo uma história factual que reinterpreta todo o Império brasileiro. É um livro difícil de ser lido, porque Sérgio Buarque conhecia como ninguém as minúcias do Império, e uma das desvantagens da Monarquia é que, se para o historiador já é terrível, para o leitor pior ainda: as pessoas têm vários nomes — o próprio, o de família, o título nobiliárquico e suas variações no tempo. Sérgio conhecia aquilo como a palma da mão. Ele se refere ao personagem, ora pelo nome de família, ora pelo nome próprio, ora pelo título, e às vezes o título era barão e passa a ser conde, e assim vai. Não é fácil, para quem não está atento às minudências da história, acompanhar o texto. Mas, quando se penetra na leitura e se deixa levar pelo gênio de Sérgio, vê-se que, ao mesmo tempo em que ele está fazendo uma história factual, está descrevendo o funcionamento de um sistema com a competência dos grandes mestres.

Dessa análise da Monarquia brota um painel tão importante quanto o de Gilberto Freyre em Casa-grande & senzala, mais profundo e mais objetivo do que nosso clássico da escravidão, embora não tão sugestivo, pois falta-lhe — e nem seria o caso — o caráter mítico e até certo ponto apologético que Gilberto deu à sua obra. Da análise do jogo político do Império depreende-se que se vivia numa situação de faz de conta. Na verdade, o imperador, dotado de certa sensibilidade e de luzes iluministas e sabedor de que os nossos partidos não tinham força, fazia, ele próprio, a alternância no poder. Dissolvia as câmaras e constituía novo gabinete que nomeava os presidentes de província. Os novos presidentes de província “faziam” a eleição. Ao fazer a eleição, o partido do gabinete que tinha sido constituído ganhava a eleição. Não se aferiam maiorias na Câmara, só muito raramente, até porque as câmaras eram quase unânimes. A derrubada de uma situação conservadora, ou a derrubada de uma situação liberal, dependia de um jogo feito pelo que se chamava na época de “opinião pública”, na verdade a opinião dos homens influentes junto ao Paço Imperial de São Cristóvão. Essa opinião atuava até que o imperador se sensibilizasse para derrubar o ministério. Derrubado o antigo ministério, o novo ministério escolhia os presidentes de província que faziam a eleição e, depois desta, a Câmara vinha com a bandeira política oposta: se era conservadora a dissolvia, seria liberal a recém-construída; se era liberal, vinha conservadora.

As mudanças da lei partidária ou do sistema eleitoral nunca chegaram a ter efeito maior sobre o entrosamento entre o poder monárquico e a base da sociedade escravocrata. Como Nabuco já mostrara, o esgotamento do Império não se deveu às crises políticas, mas à grande crise social e econômica gerada pelo fim do tráfico, pela escassez de mão de obra escrava e pela luta abolicionista interna e internacional.

A análise de Sérgio Buarque de Holanda sobre a Monarquia tem a mesma estatura de Casa-grande & senzala. Escrita em outra época, no bojo de uma coleção pesada, não teve, entretanto, a repercussão que, a meu ver, merece. Há tempo ainda para corrigir isso.

Já Caio Prado Jr. vem de outra tradição intelectual. Caio escreveu, na mesma década de 1930, Evolução política do Brasil. Mas seu grande livro, livro de referência, é a História econômica do Brasil e, antes dele, Formação do Brasil contemporâneo, obra-prima de nossa historiografia.

Caio Prado foi uma pessoa bastante diferente mentalmente do autor de Raízes do Brasil e de Gilberto Freyre. Sérgio Buarque combinava sofisticação intelectual com vocação crítica radicalmente democrática. Gilberto talvez tivesse menos erudição do que Sérgio e juntava a uma sensibilidade conservadora uma capacidade de síntese com muita liberdade. Caio Prado era quase geógrafo por formação. Falava de geografia e até de geologia com fluidez muito grande. Foi aluno irregular da Universidade de São Paulo, na época da primeira leva de professores franceses. Conviveu com a elite cultural da época, frequentava a Universidade e os salões de São Paulo. Caio Prado foi amigo de Lévi-Strauss, foi aluno de Deffontaines, o pai da geografia humana moderna, e de Pierre Monbeig. Tinha noções bastante sólidas de mineralogia e poderia ter sido geógrafo — era muito preciso na descrição das condicionantes físicas do país. Isso, se não aparece na Evolução política do Brasil, aparece de uma maneira admirável na Formação do Brasil contemporâneo e depois, na retomada dos mesmos temas, na História econômica.

A ocupação do Brasil pelos portugueses e pelos imigrantes, a colonização, em suma, foi descrita por Caio Prado à perfeição, sempre fundindo análises sobre o meio físico com os processos de exploração econômica e as formas históricas de organização do trabalho e da sociedade. Caio Prado, que era bastante rico, sempre viajou, sempre andou pelo interior, tanto do Brasil quanto da Europa e da América Latina. As noções que transmite nos livros não advêm propriamente do que leu em outro autor apenas, mas também do que ele viu. Leu e viu. Alguns historiadores criticaram Caio Prado dizendo que ele não recorria às fontes primárias, utilizando-se principalmente de fontes secundárias. Mas isso é um preconceito. Na verdade, Caio Prado Jr. tomou as fontes secundárias e deu vida e significação interpretativa mais ampla a elas, e foi capaz de oferecer um vasto e novo quadro do Brasil.

Quando Caio Prado escreve sobre imigração e colonização, por exemplo, em alguns capítulos admiráveis, sabe do que está falando, porque viu e porque leu. Conviveu desde menino com essa realidade, porque pertenceu à família Prado, que incentivou a imigração. A maior fazenda de café do século xix era de propriedade dos Prado. E Caio, embora comunista, marxista, sempre soube expressar uma vivência pessoal. Eu sempre me impressionei com o jeito como Caio pensava, porque juntava, ao mesmo tempo, categorias abstratas e descrições muito concretas. Quando se dedicou à filosofia, perdeu-se em análises equivocadas. Mas com sua tremenda vocação para o concreto, com a base de formação de geógrafo, sabia corrigir-se nas análises históricas e sociais. Conseguiu fazer na História econômica um painel muito realista, com ideias relativamente simples, que convencem pela argumentação. Se Caio escreve claro, não tem a graça na elaboração das visões do Brasil de Sérgio Buarque, nem o encantamento de Gilberto Freyre. Mas, se às vezes a sofisticação dos tipos ideais de Raízes do Brasil encobre construções menos sólidas, se Gilberto idealizou muito o patriarcado e pode ser acusado de amar demais a Casa-Grande em prejuízo da Senzala, em Caio Prado os fundamentos da obra são visíveis e sólidos, como se fosse uma construção sem reboque.

Qual é o problema central do Brasil colonial? Escravidão, latifúndio. Como é que se dá a ocupação? Nosso autor descreve como o português chegou, como fez a expansão pelo interior, como se deu a simbiose entre região e produção etc. Descreve admiravelmente, por exemplo, a expansão da pecuária, e assim por diante. No meu modo de ver, a análise patina um pouco quando se refere à cidade e à indústria. Até chegar à cidade e à indústria, enquanto descreve o grande painel da Colônia, Caio Prado é insuperável. Eu acho que, talvez, só um outro autor tenha tido força de pensamento para abarcar toda a Colônia em termos conceituais equivalentes: Fernando Novais. O que Caio Prado escreveu sobre a Colônia, sobre o papel da cidade e do latifúndio, sobre a mão de obra escrava, é definitivo, até chegar-se à época da industrialização. A partir daí, a análise não tem a mesma força de argumentação. A partir do período, digamos, pós-30, o gosto pelo conceito abstrato e simplificador leva-o a idealizar a descrição do processo histórico. Caio passa a condicionar a análise à visão do imperialismo, à crença em certa impossibilidade do desenvolvimento industrial na periferia do capitalismo, à deformação da indústria nacional pelo capitalismo monopólico internacional. É interessante ver como nosso autor contrapõe a isso o que parecia ser um idílico capitalismo de concorrência. Entretanto, o que pulsa no coração de Caio Prado é outra coisa: o socialismo. Na ideologia prevalecente naquela época, entretanto, passar-se-ia, primeiro, por uma “etapa” capitalista. Mas não a monopolista e sim a concorrencial. A razão, nestes termos, fraqueja, e a análise, embora continuando a apresentar oposições binárias simples, não leva ao conhecimento, como no caso das análises sobre o Brasil Colônia.

Por outro lado, parece-me que havia um certo preconceito de senhor de terra, uma certa malquerença dessa sociedade urbana, populacheira e injusta. Malquerença que do ponto de vista político foi positiva, porque motivou uma ação crítica, radical. Mas há em Caio Prado uma certa malquerença do mundo moderno. Sérgio Buarque não a tinha. Ele queria ver como seria possível mudar as instituições, as formas de comportamento, para que pudéssemos ter democracia, e acreditava nas forças urbanas que criariam a possibilidade para que “los de abajo” pressionassem. Caio Prado, embora fosse comunista, guardava uma visão mais aristocrática: só o partido — de quadros — poderia mudar uma sociedade tão injusta que sufocava o proletariado no Lumpenproletariat.

Eu não sei quais os livros de Caio Prado que irão perdurar. Acho que é a Formação do Brasil contemporâneo. A História econômica, já lida por várias gerações, é um livro de referência, mas será um livro de referência mais factual do que uma fonte de inspiração de análises futuras, embora algumas de suas ideias possam fecundar, crescer.

Mas ele escreveu um livro, depois dos clássicos já referidos, que ainda não mereceu dos críticos o reconhecimento da importância que tem. Trata-se de A revolução brasileira. Nele, Caio retoma alguns temas que havia desenvolvido na Revista Brasiliense e na própria História econômica e trava um diálogo muito bom com a esquerda.

Caio Prado terá sido talvez quem tenha expressado com maior clareza e radicalidade o pensamento brasileiro sobre a questão agrária. Participei de grandes discussões com ele. Brigando com a esquerda, com o “progressismo” da época, Caio era quem via mais claramente a natureza do sistema agrário capitalista no Brasil. Sabia como ninguém como se davam as relações sociais de produção no campo. Num artigo publicado na Revista Brasiliense, retomou essa questão: a “meação” era uma forma disfarçada de assalariamento, mas era vista muito frequentemente como se fosse um indício de “vestígios feudais”. Caio Prado nunca se enganou nessa matéria; nunca confundiu seus avós e bisavós com barões feudais; eles eram exportadores, eram homens inseridos na grande expansão do capitalismo mundial. E a ideia de que, apesar disso, haveria vestígios feudais no campo, por causa da sesmaria, por não sei o quê, porque havia uma superexploração, nunca atraiu nosso autor, e a discussão de tudo isso, em certa época, foi apaixonante.

Na questão agrária, Caio Prado foi muito preciso e deu uma contribuição enorme. Na Revolução brasileira mostra como funciona de fato o sistema capitalista, como era possível haver desenvolvimento apesar do imperialismo, fazendo, assim, crítica de algumas de suas posições anteriores. Não é um livro de historiador, nem é um livro que contenha um grande painel sobre o Brasil, mas é um livro que faz uma crítica do pensamento de esquerda muito avançada para a época, um livro no qual faz a crítica da proposta política que permanecia vigente na esquerda dos anos 1960. Trata-se de um livro com grande vitalidade.

Em síntese, de modo muito diverso esses três autores procuraram, no fundo, dar uma resposta sobre a questão de nossa identidade, sobre as condicionantes da história e as alternativas de futuro do Brasil. Eu sei que existe esta paixão em outros povos, é claro. Quem não conhece o Facundo de Sarmiento? Eu fui amigo de Gino Germani, que fez estudos importantes sobre a Argentina como sociedade de massas. Os argentinos sempre falam do seu “desenraizamento”. É natural que os povos procurem indagar-se sobre si e sobre seus destinos, mas eu não sei se há muitos exemplos de tanta paixão pela descoberta do “ser nacional” ou da sociedade nacional por intelectuais válidos. Porque esta obsessão pode gerar muitas simplificações, pode gerar a busca de diferenças nacionais e culturais que deem dimensão de “superioridade” aos povos. Mas nós não estamos falando disso; estamos falando de grandes autores, que são mestres, capazes de lidar com fenômenos complexos, que não constroem visões simplistas de seu país. Esse é um traço curioso da cultura brasileira, e que talvez tenha se esmaecido nos últimos tempos. Essa paixão por uma interrogação contínua sobre nossas origens, sobre o que somos, o que podemos ser, que sustenta ora a ideia de um legado ora a de um peso que tem que ser posto à margem, não deixa de ser curiosa e, mesmo, produtiva.

As gerações mais recentes criticaram muito essas visões grandiosas. O grosso da produção das universidades se dirigiu para monografias, para estudos mais especializados, mais profundos, mais detalhados, que enriqueceram muito o conhecimento de aspectos do Brasil. Mas eu creio que está faltando alguém que retome esse tipo de abordagem global à mesma altura dos autores aqui discutidos, de maneira que pensemos outra vez sobre nossas potencialidades e que possamos, ao mesmo tempo, fazer uma análise que sacuda a poeira que vai se acumulando no decorrer da história quanto a certas ideias preestabelecidas.

Não é o método que o autor A, B ou C usou que interessa saber. Vale mais saber o que disse e propôs, saber se o livro avançou ou não no conhecimento da temática proposta, mesmo que, às vezes, sem muito rigor. De Sérgio Buarque de Holanda diz-se que era weberiano, de Gilberto Freyre que era “culturalista” e pouco objetivo, pois toma partido. E Caio Prado fez uma coisa que só no Terceiro Mundo foi possível fazer: uma análise marxista na qual a servidão tomou o lugar proeminente do proletariado, e os senhores do latifúndio não se transformaram em barões feudais, mas em capitalistas exportadores “modernos”. Usou a dialética para entender processos, sem estar muito preocupado com a “negação da negação” a todo instante.

Em outros termos, quando o livro é grande, quando realmente diz alguma coisa, os andaimes pesam menos. Neste curso os senhores terão de haver-se com grandes construtores de ideias. Preocupem-se menos com a maquinaria utilizada e desfrutem a beleza da obra construída. Cada qual a seu modo, a seu estilo, cada um dos autores aqui mencionados colocou uma pedra fundamental no conhecimento do Brasil. Foram gigantes.

 

 

 

 


* Originalmente aula magna ministrada aos alunos do Instituto Rio Branco (8 de maio de 1993) pelo então ministro das Relações Exteriores do Brasil, publicada em Novos Estudos Cebrap, n. 37, nov. 1993, pp. 21-35.