Posfácio
Nunca escrevi posfácio. Creio, no entanto, que não deve ser introdução, tarefa do prefácio, nem resenha, trabalho, digamos, extrafácio. Nesta crença, decidi, neste posfácio, registrar algumas impressões causadas por uma primeira leitura dos originais.
Trata-se de dezoito ensaios, entre resenhas, introduções, conferências, depoimentos, escritos ao longo de 35 anos, de 1978 a 2013. Une-os, além da autoria, o fato de que são estudos sobre dez grandes intérpretes, ou, como quer o título do livro, dez grandes inventores do Brasil. A escolha dos nomes parece ter obedecido, como era natural, às preferências do autor, motivadas por amizade, empatia, admiração, reconhecimento. Mas todos eles integram, e nisto se unem, a maioria das listas dos principais e mais influentes intérpretes do Brasil. Seis deles, por exemplo, integram a prestigiosa coleção Intérpretes do Brasil da Nova Aguilar coordenada por Silviano Santiago e publicada em 2000: Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha, Paulo Prado, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Florestan Fernandes. Os outros quatro, Celso Furtado, Antonio Candido, Caio Prado, Raymundo Faoro, aparecem em listas semelhantes. São poucos, na verdade, os nomes que costumam aparecer em tais listas e que não constam do livro. Lembro-me, sobretudo, dos de Alberto Torres, Oliveira Vianna, Victor Nunes Leal e Vianna Moog.
Como se trata de pensadores lidos e relidos, há inevitavelmente reiterações nos comentários de que são objeto. Evitarei reiterar essas reiterações. Vou concentrar-me em alguns pontos que me chamaram a atenção pela originalidade, pela diferença em relação ao que geralmente se diz. Alguns terão alcance geral, outros dirão respeito à análise de pensadores específicos. E, por razões de espaço, nem todos os ensaios serão comentados.
Começo comentando um aspecto geral que chama a atenção de um leitor não paulista. Trata-se da forte presença da Universidade de São Paulo na formação de Fernando Henrique Cardoso e na lista dos autores por ele analisados. Fernando Henrique lá se formou (ingressou em 1949) e lá ensinou (até ser aposentado forçadamente pelo governo militar em 1968). Foram professores dessa universidade, e de Fernando Henrique, Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Candido e Florestan Fernandes. A esses, poder-se-ia acrescentar um quarto, Caio Prado Jr., que lá fez estudos. Outro que poderia ter entrado na lista do autor é Fernando de Azevedo, de quem Florestan Fernandes e Antonio Candido foram assistentes.
A década de 1950 foi a da ascensão da usp a posição de destaque no cenário intelectual do país, fazendo sombra à Universidade do Brasil. Evidencia essa relevância a autossuficiência da universidade. Fernando Henrique só registra como importantes em sua formação a usp e a experiência chilena na Cepal de Raul Prebisch. Outro grande centro de estudos que se destacou na época por se dedicar a pensar o Brasil foi o Instituto Superior de Estudos Brasileiros, Iseb, criado no Rio de Janeiro em 1955 e fechado pelos militares em 1964. Nele ensinaram importantes pensadores, como Hélio Jaguaribe, Guerreiro Ramos e Álvaro Vieira Pinto, entre outros. No entanto, o Iseb só é mencionado uma vez, e ligeiramente. Também não aparecem nomes de destaque da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, como Victor Nunes Leal e Evaristo de Moraes Filho. De outros estados, comparecem três nomes importantes, mas alheios ao meio acadêmico, o paraibano Celso Furtado, o pernambucano Gilberto Freyre e o gaúcho Raymundo Faoro. São Paulo, graças à usp, passou a disputar vantajosamente com a então capital federal a escrita e a interpretação do Brasil.
Aluno de Ciências Sociais da Faculdade de Ciências Econômicas da então Universidade de Minas Gerais na década de 1960, onze anos após a entrada de Fernando Henrique na usp, testemunhei a ascensão da universidade paulista. Na sala de aula, líamos muito, como na usp, os clássicos Marx, Weber e Durkheim, guiados por Georges Gurvitch. Mas líamos, também muito, autores brasileiros, na maioria pertencentes ao Iseb. Começávamos, no entanto, a ler os jovens professores da usp. A Revista Brasileira de Ciências Sociais, editada na Faculdade por meu professor, Júlio Barbosa, a melhor do país na época em sua área, publicava Hélio Jaguaribe e Álvaro Vieira Pinto, mas também, e cada vez mais, Florestan Fernandes, Octavio Ianni, José Arthur Giannotti. O número 1 de 1962 publicou artigo de Fernando Henrique intitulado “O método dialético na análise sociológica”. Este mesmo número trazia artigo de Celso Furtado e um relatório da Cepal, duas referências, Celso e a Cepal, de Fernando Henrique. Coincidentemente, no mesmo número, apareceu um artigo de Florestan Fernandes sobre “A sociologia como afirmação”. Tratava-se de discurso presidencial do autor proferido na abertura do ii Congresso Brasileiro de Sociologia, realizado em Belo Horizonte em 1962.
Nesse artigo, aparecia com clareza a preocupação do sociólogo em afirmar o caráter científico da sociologia, em enfatizar a necessidade de se seguirem, no exercício da profissão, os protocolos relativos a métodos e teorias, além da crença, que hoje nos pareceria um tanto ingênua, na capacidade da ciência de reformar a realidade. O artigo de Fernando Henrique na revista registrava nova dimensão da orientação da usp nas ciências sociais. Tratava-se da influência do marxismo, originada no Seminário Marx, dedicado à leitura de O capital, que funcionou de 1958 a 1964. Participaram do seminário professores de sociologia, filosofia e história, incluindo Fernando Henrique, não incluindo, curiosamente, Florestan Fernandes. O grupo contribuiu poderosamente para marcar a produção da usp na área de ciências sociais e na história com um viés teórico de orientação marxista, embora utilizado, o viés, de maneira distinta pelos participantes do grupo.
O que acabo de dizer sobre Florestan Fernandes serve como ponte para os três capítulos que examinam sua atuação como professor e sua obra sociológica. O primeiro é um depoimento de 1986, o segundo, uma introdução a A revolução burguesa no Brasil, escrita em 2000, o terceiro, de 2008, uma introdução à quarta edição revista do livro de Roger Bastide e Florestan, Brancos e negros em São Paulo. Interessaram-me particularmente os dois primeiros, sobretudo o depoimento, que falam do professor e do sociólogo Florestan Fernandes entre 1945, quando começou a lecionar, e 1969, quando foi aposentado compulsoriamente. Essa fase importante de sua vida ficou ofuscada, pelo menos para os que não conviveram com ele, por sua produção acadêmica e militância político-partidária posterior. Sua recuperação é um dos muitos méritos deste livro.
O que nos é contado sobre Florestan Fernandes coincide com o artigo dele acima citado. Ele é o grande professor de sociologia, competente, exigente, preocupado em afirmar o caráter científico da disciplina, o profissionalismo de seus praticantes e seu uso para promover a reforma democrática do país. É sintomático que ele e Antonio Candido dessem aulas de avental branco como se fossem cientistas em seus laboratórios. O mesmo faziam os assistentes: “o professor entrava na sala de aula com seu avental branco, os assistentes acompanhavam-no também com seus aventais brancos e assistíamos a todas as aulas”. A Faculdade de Filosofia da usp parecia uma faculdade de Medicina. Por mais exótico e exagerado, se não cômico, que isso nos pareça hoje, creio que a insistência de Florestan na importância de uma formação sólida em teoria e método e da leitura dos clássicos pode ter vacinado seus alunos, pelo menos os melhores deles, entre os quais estava sem dúvida Fernando Henrique, contra simplismos e reducionismos fáceis, tornados atraentes pela situação política criada após o golpe de 1964.
Pergunto-me, talvez para surpresa do próprio Fernando Henrique, se a formação recebida de Florestan Fernandes não serviu também para evitar que ele, sob a influência do Seminário Marx, se tornasse um ortodoxo rígido e desinteressante, como aconteceu com outros. Os textos deste livro mostram com abundância que isto não se deu, mostram a abertura e a agilidade mental que ele manteve, e tem mantido, ao longo de sua vida acadêmica. Na verdade, as leituras clássicas podem ter ajudado o próprio Florestan Fernandes. Como anota Fernando Henrique no texto de 2000, há um corte entre os primeiros capítulos de A revolução burguesa no Brasil e os últimos, escritos sete anos depois, de natureza claramente marxista, onde predomina o esquema das etapas de acumulação de capital. No entanto, anota o autor, Florestan Fernandes nunca sucumbiu ao marxismo vulgar e a reducionismos economicistas. O livro de seu ex-professor não demonstraria, segundo ele, a superioridade de um esquema (marxista) sobre outro (weberiano), ou vice-versa, mas a qualidade de um sociólogo de sólida formação teórica e apaixonado pela pesquisa.
Sobre Antonio Candido há dois textos, um depoimento de ex-aluno, de 1992, e uma resenha de Os parceiros do Rio Bonito, de 1979. No depoimento, o autor relembra o assistente, ao lado de Florestan Fernandes, de Fernando de Azevedo, impecável no avental branco, límpido, elegante e erudito no falar. Mas é a resenha que eu gostaria de ressaltar por recuperar um livro importante, publicado em 1964, e posteriormente ofuscado pela obra de crítica literária de Antonio Candido e, sobretudo, pela explicação oferecida para o ofuscamento. Fernando Henrique convincentemente mostra as virtudes de um livro que combinava antropologia, sociologia e economia no esforço de entender o mundo caipira paulista, mantendo o tempo todo a preocupação de combinar a abstração da teoria e a concretude do cotidiano. Teria sido isto, conclui, que impediu que o livro fizesse escola ao aparecer num ambiente intelectual preocupado prioritariamente com formulações teóricas, categorias, esquemas interpretativos, estruturas. Um ambiente, em outras palavras, em que não havia lugar para a experiência humana.
Abertura e agilidade estão certamente presentes na análise de autores aos quais o autor se vincula por laços intelectuais e afetivos, como Florestan Fernandes, Antonio Candido, Sérgio Buarque, Caio Prado, ou por afinidade de ideias, como Joaquim Nabuco. Mas elas ressaltam mais quando o objeto de estudo é alguém que não se enquadra nessas características, como são os casos de Gilberto Freyre e Raymundo Faoro. O primeiro é estudado em três textos, de 1993, 2005 e 2010. Durante os anos 1950-
-60, e mesmo além, ele foi uma bête noire para a intelectualidade uspiana, inclusive, e confessadamente, para o próprio Fernando Henrique, e também para a esquerda em geral. Ele dividia com o fluminense Oliveira Vianna, xingado de reacionário, racista e elitista, o papel de saco de pancada da intelectualidade de esquerda. Gilberto Freyre, acusava-se, não tinha rigor científico, era conservador, saudosista do mundo patriarcal e escravista, criador do mito da democracia racial e o que mais seja.
No entanto, já no texto de 1993, uma aula magna dada no Instituto Rio Branco quando o autor era ministro das Relações Exteriores, sua atitude já é aberta, admite aspectos positivos na obra freyriana, sobretudo em Casa-grande & senzala. Sem abrir mão das críticas, noblesse oblige, confessa que uma releitura desse livro, agora sem os olhos do jovem sociólogo militante mas preocupada apenas em “ver o que diz o livro”, se revelou apaixonante, inclusive pelas qualidades literárias do texto, muito maiores, acrescento eu, do que as da “pedreira” dos escritos de Florestan Fernandes. A mesma sensação é confessada na conferência de 2010, feita na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), quando fala em encanto e deslumbramento. Além de ressaltar de novo a qualidade da escrita como um dos fatores da permanência da obra de Gilberto Freyre, acrescenta aspectos substantivos como a solidez acadêmica, a descoberta da importância do cotidiano e da vida privada, antes mesmo que os franceses o fizessem (poderia ter mencionado um precursor entre nós, o Alcântara Machado de Vida e morte do bandeirante, de 1929), a incorporação na análise da vivência, de valores e sentimentos, o distanciamento da ênfase no papel do Estado, predominante esta numa época em que era grande a influência de Alberto Torres, via a Sociedade de Amigos que levava seu nome, de Oliveira Vianna e de Azevedo Amaral, todos defensores de maior protagonismo do governo central. E, por fim, em interpretação original, atribui ainda a perenidade da obra de Gilberto Freyre em parte ao fato de ter ele criado o mito da identidade brasileira como sendo uma feliz combinação de raças e culturas. Esse mito, conclui, seria nosso mito, aquele em que gostaríamos de acreditar, daí sua grande receptividade.
Outro sem grande afinidade intelectual com Fernando Henrique é Raymundo Faoro. O texto sobre esse autor, de 2013, é um comentário relativamente longo sobre Os donos do poder, livro de 1958, com segunda edição, muito aumentada mas pouco melhorada, em 1975. A tese central de Raymundo Faoro, como se sabe, é a da persistência no Brasil de uma dominação burocrático-estamental de natureza patrimonial, conceito inspirado na sociologia weberiana. Nessa linha, Faoro vê a história do Brasil marcada, da Colônia à República, pelo domínio persistente de um estamento burocrático vinculado ao Estado que controla a política, a sociedade e a economia, esta última via um esterilizante capitalismo de Estado. Haveria no Brasil, resume o autor, na linha do liberalismo e do dualismo de Tavares Bastos, um Estado que, desde os primórdios, se projeta independente e hegemônico sobre as classes sociais.
Trata-se de tese forte, mas formulada de maneira tão radical que não faz nem mesmo justiça à complexidade da análise histórica desenvolvida em Os donos do poder. Eu próprio tentei mostrar a dificuldade de provar empiricamente a estamentalização entre nós da burocracia estatal no século xix. Fernando Henrique não poderia deixar de criticar o exagero da formulação faoriana. Ele o faz, mas não insiste nessa fragilidade. Com acuidade, escolhe ressaltar os pontos positivos. Busca no patrimonialismo caracterizado por Raymundo Faoro elementos úteis para interpretar o Brasil de hoje (a segunda edição do livro foi publicada ainda no período ditatorial, quando o estamento militar — na visão de Faoro — predominava). Fernando Henrique julga que o estamento, agora mais civil que militar, ainda está presente entre nós, num conluio que sobreviveu, se não se reforçou, paralelamente ao avanço capitalista, englobando burocracia, empresas e sindicatos. Ele próprio, aliás, já se referira ao fenômeno do patrimonialismo de hoje cunhando a expressão “anéis burocráticos”. A consequência seria que esta mutação do patrimonialismo, acoplada a políticas populistas e coberta com o manto da esquerda, o torna popular e, portanto, o fortalece. O autor não usa a expressão, mas seria possível falar em esquerda patrimonial, nova invenção brasileira que não surpreenderia Raymundo Faoro e lembraria o conceito de nacionalismo cartorial desenvolvido por Hélio Jaguaribe na década de 1960. Os breves comentários finais de Fernando Henrique à obra de Raymundo Faoro mereceriam ser expandidos em análise mais aprofundada do Brasil de hoje.
Também lúcida é a resenha de Os sertões, feita em artigo de 1978. A presença no livro da forte influência cientificista da antropogeografia, dominante na época, não consegue desviar a atenção do comentador para os aspectos inovadores da obra. Euclides da Cunha, anota, consegue, a despeito de seus esquemas teóricos, e contra eles, fazer uma sociologia do cotidiano e dos movimentos sociais, sobretudo do messianismo. Isto e a ira santa de Euclides contra o “crime da nacionalidade” teriam conferido a Os sertões seu caráter de livro permanente.
Volto aos autores caros a Fernando Henrique. Os três textos sobre Nabuco, um discurso de 1999, um prefácio a Balmaceda, de 2000, e uma conferência na abl em 2010, destilam admiração e simpatia, sobretudo em relação a O abolicionismo. Nabuco, segundo ele, aliava as qualidades de sociólogo à de reformador social, receita perfeita para entusiasmar o jovem aluno de sociologia da usp. É justificada, a meu ver, a caracterização de O abolicionismo, o melhor panfleto político já produzido entre nós, como um texto sociológico. Ninguém melhor do que Nabuco viu com clareza as metástases da escravidão em toda a vida nacional, na economia, na política, nas relações sociais, nos valores. Foi detectando esse enraizamento que ele profetizou que seriam necessários cem anos para nos livrarmos da herança escravista. Florestan Fernandes, com sua insistência na cientificidade da sociologia, talvez não admitisse conceder a Nabuco a qualificação de sociólogo. Mas, com mais acerto, Guerreiro Ramos certamente o incluiria em sua lista de sociólogos anônimos de que faziam parte, entre outros, Euclides da Cunha, Sílvio Romero, Alberto Torres.
Inovadora na análise feita sobre Joaquim Nabuco é a interpretação das possíveis razões que levaram o abolicionista a se dedicar integralmente, a partir de 1879, à luta contra a escravidão. É conhecida a versão do próprio Nabuco que a vincula a sua convivência com os escravos no engenho da madrinha, sobretudo ao episódio dramático do escravo de um fazendeiro vizinho que se lançou a seus pés solicitando que a madrinha o comprasse para servir a ele, ainda um menino. E, mais ainda, à visita que fez, já adolescente, ao cemitério dos escravos do engenho, quando teria prometido dedicar a vida a combater a instituição responsável pela sorte deles. Fernando Henrique, inspirado em análises psicanalíticas, sugere um fator adicional para a decisão, a sensação de perda sofrida pelo próprio Nabuco por ocasião da morte da madrinha, sua mãe de criação. Choraram os escravos e chorou ele, perdiam os escravos e perdia ele, um menino de oito anos. O trauma pessoal, segundo a hipótese, teria contribuído para imprimir com mais força em seu espírito a convicção profunda dos males da escravidão e, consequentemente, para fazê-lo decidir-se a dedicar a vida à causa da abolição. No mínimo, é bene trovato.
Uma nota final sobre o capítulo dedicado a Sérgio Buarque de Holanda. Trata-se de artigo sobre Raízes do Brasil publicado em 1978 na revista Senhor Vogue. O texto é curto demais para permitir ao autor desenvolver análise aprofundada do livro. Aproveito-o, no entanto, para uma nota metodológica. É tendência quase geral entre os comentadores de Raízes do Brasil, Fernando Henrique aí incluído, com raríssimas exceções, entre elas a de Robert Wegner, não prestar atenção no prefácio da segunda edição, feita em 1948, doze anos após a primeira. Nele, Sérgio Buarque alerta o leitor sobre o fato de se tratar de edição “consideravelmente modificada” e confessa não ter hesitado em “alterar abundantemente” o livro onde lhe pareceu necessário “retificar, precisar ou ampliar sua substância”. O historiador das ideias teria, então, necessariamente, que levar em conta essas mudanças, sob pena de considerar como sendo de 1936 posições que seriam, de fato, de 1948.
É conhecida a trajetória de Sérgio Buarque. De 1921, quando tinha dezenove anos, até 1946, ele morou no Rio de Janeiro e participou intensamente da vida cultural da cidade. Foram 25 anos. No Rio, foi jornalista, professor da Universidade do Distrito Federal de 1936 a 1939, e, já durante a ditadura do Estado Novo, funcionário público como diretor de publicação do Instituto Nacional do Livro e, em 1944, diretor da divisão de consultas da Biblioteca Nacional, então presidida por Rodolfo Garcia. Um ano após o fim do Estado Novo, voltou para São Paulo, onde assumiu a direção do Museu Paulista. As alterações no texto de Raízes, introduzidas dois anos após a volta a São Paulo, sem dúvida se deveram à mudança de endereço, sem excluir, naturalmente, as alterações na conjuntura política. Não é possível fazer aqui o cotejamento completo entre as duas edições. Limito-me a dois exemplos.
O primeiro tem a ver com o conceito de homem cordial, tomado de empréstimo a Ribeiro Couto, que ainda gera muita discussão. Na primeira edição, fica claro que ele é sinônimo de bondade: “Com a cordialidade, a bondade, não se criam os bons princípios” (p. 156). Ora, a palavra “bondade” sumiu na segunda edição. A correção foi, sem dúvida, para melhor, mas é de 1948. Não parece ser apenas uma “ampliação” do conceito como se justifica Sérgio Buarque em carta a Cassiano Ricardo, incluída na segunda edição. A alteração faz parte de uma tentativa de afastamento em relação às ideias de Gilberto Freyre, seu editor de 1936, tão presentes em Raízes. Evidência disso é o fato de o nome e o elogio desse autor contidos na página 105 da primeira edição terem sido expurgados da segunda. O elogio era dirigido a Casa-grande & senzala, publicado três anos antes, e qualificava o livro de “o estudo mais sério e mais completo sobre a formação social do Brasil”.
Outro autor que sofreu cortes nos elogios foi, et pour cause, Max Weber, que Sérgio Buarque teve o mérito de introduzir no Brasil. Na primeira edição, na citação do livro A ética protestante e o espírito do capitalismo, o autor alemão é chamado, em nota, de “o mais eminente sociólogo moderno”. Na segunda, Weber é rebaixado a “grande sociólogo”, e a nota expande-se em crítica ao excessivo peso que ele dá à dimensão moral e intelectual dos fenômenos sociais em detrimento de outros fatores, como o econômico. Seguramente, no texto de 1948 aparece um autor com ideias mais organizadas, mas também diferentes das de 1936. É importante que a modificação seja reconhecida, pois ela faz parte da própria biografia intelectual do autor e, mais ainda, tem a ver com distintas tradições de pensamento, a que se formou no Rio de Janeiro e a que, a partir dos anos 1930, se consolidou em São Paulo. Sérgio Buarque, após 1946, se paulistizou.
Esta posfação já se alonga, é preciso lhe pôr termo. Faço-o insistindo no que me parece ser a principal virtude dos capítulos que formam este livro. Escritos, em boa parte, em momento histórico em que entre nós o estudo das ideias quase se limitava à busca de suas determinações estruturais, em que elas eram reduzidas a ideologias, seu autor neles revela a preocupação de buscar conteúdo e não de detectar métodos e abordagens. Como ele próprio afirma no epílogo, a aula magna dada no Instituto Rio Branco em 1993, o importante na leitura é perguntar “se o livro avançou ou não no conhecimento da temática proposta, mesmo que, às vezes, sem muito rigor”. Ou, ainda mais radicalmente, no conselho aos alunos do mesmo Instituto: “Preocupem-se menos com a maquinaria utilizada e desfrutem a beleza da obra construída”. Trata-se de postura perfeitamente compatível com os tempos democráticos que hoje vivemos e com a prática atual da história social das ideias. Não por acaso, tempos cuja construção muito deve a Fernando Henrique Cardoso.
José Murilo de Carvalho
Rio de Janeiro, abril de 2013