IV
Situação do escritor em 1947

Falo do escritor francês, o único que se manteve burguês, o único que deve acomodar-se a uma língua que foi quebrada, vulgarizada, amolecida por cento e cinquenta anos de dominação burguesa, recheada de “burguesismos” que parecem pequenos suspiros de satisfação e abandono. O americano, antes de escrever livros, com frequência exerceu ofícios manuais, e retorna a eles; entre dois romances, sua vocação se manifesta no rancho, na oficina, nas ruas da cidade; não vê na literatura um meio de proclamar sua solidão, mas uma ocasião de escapar dela; escreve cegamente, movido por uma necessidade absurda de se livrar de seus medos e de suas cóleras, um pouco como uma fazendeira do Meio-Oeste escreve aos locutores de uma rádio nova-iorquina para explicar seu coração; aspira menos à glória do que à fraternidade; não é contra a tradição, mas pela falta de uma tradição que ele inventa seu modo, e suas audácias mais extremadas não passam, em certos aspectos, de ingenuidades. A seus olhos o mundo é novo, tudo está por dizer, ninguém antes dele falou do céu nem dos campos de trigo. Raramente aparece em Nova York e, se passa por lá, é às pressas, ou então, como Steinbeck, trancando-se três meses para escrever, e ei-lo quite por um ano; um ano que ele passará nas estradas, nas construções ou nos bares; é verdade que pertence a “grêmios” e “associações”, mas apenas para defender seus interesses materiais: não tem solidariedade para com os outros escritores, muitas vezes está separado deles pelas dimensões do continente[1]; nada está mais distante dele do que a ideia de colegiado, ou de “intelectualidade”; festejam-no por algum tempo, depois o abandonam, esquecem-no; reaparece então com um novo livro para fazer um novo mergulho[2]; assim, ao sabor de vinte glórias efêmeras e vinte desaparições, flutua continuamente entre esse mundo operário, onde vai buscar suas aventuras, e seus leitores de classe média (não ouso chamá-los de burgueses, pois duvido que exista uma burguesia nos Estados Unidos), tão duros, tão brutais, tão jovens, tão perdidos, e que amanhã darão aquele mesmo mergulho. Na Inglaterra os intelectuais são menos integrados do que nós na coletividade; formam uma casta excêntrica e um pouco rabugenta, sem muito contato com o resto da população. É que não tiveram a mesma sorte que nós: visto que nossos longínquos predecessores, que nós já nem merecemos, prepararam a Revolução, a classe que hoje está no poder, depois de um século e meio, ainda nos dá a honra de nos temer um pouco (muito pouco); ela nos administra; nossos confrades de Londres, que não têm essas lembranças gloriosas, não metem medo em ninguém, são considerados perfeitamente inofensivos; além disso, a vida dos clubs não se presta tanto a difundir sua influência como a vida dos salões se prestou a difundir a nossa: entre eles, quando se respeitam, os homens falam de negócios, de política, de mulheres ou de cavalos, nunca de literatura, ao passo que nossas anfitriãs, que praticavam a leitura como arte recreativa, facilitaram, com suas recepções, a aproximação entre políticos, financistas, generais e literatos. Os escritores ingleses se ocupam em fazer da necessidade uma virtude, e exagerando a singularidade de seus hábitos, tentam assumir como opção livre o isolamento que lhes foi imposto pela estrutura de sua sociedade. Mesmo na Itália, onde a burguesia, que nunca foi muito levada em conta e está arruinada pelo fascismo e pela derrota, a condição do escritor, padecendo necessidades, mal pago, alojado em palácios desmantelados, demasiado vastos e grandiosos para que se possa aquecê-los ou mesmo mobiliá-los, às voltas com uma língua principesca, muito pomposa para ser manejável, está muito distante da nossa.

Somos, portanto, os escritores mais burgueses do mundo. Bem-alojados, decentemente vestidos, menos bem-alimentados, talvez: mas até isso é significativo, pois o burguês gasta proporcionalmente menos que o operário com a alimentação; muito mais com roupas e habitação. Todos nós, aliás, imbuídos da cultura burguesa: na França, onde o bacharelado é um diploma de burguesia, não se admite que alguém tenha o projeto de escrever sem ser ao menos bacharel. Noutros países, possessos de olhos vidrados agitam-se e refugam sob o domínio de uma ideia que os agarrou pelas costas e que nunca chegam a ver de frente; no fim, depois de tentar de tudo, procuram despejar sua obsessão no papel e deixá-la secar com a tinta. Mas nós, bem antes de começarmos nosso primeiro romance, já tínhamos o hábito da literatura; parecia-nos natural que os livros crescessem numa sociedade civilizada, como as árvores num jardim; foi por muito amar Racine e Verlaine que descobrimos em nós, aos quatorze anos, na sessão noturna de estudos ou no pátio do liceu, uma vocação de escritor; antes mesmo de nos envolvermos com alguma obra em execução, esse monstro tão sem graça, tão pegajoso com todos os nossos sumos, tão casual, estávamos nos alimentando da literatura já feita, e pensávamos ingenuamente que nossos futuros escritos sairiam de nossos espíritos no estado de acabamento em que encontrávamos os escritos alheios, com a chancela do reconhecimento coletivo e aquela pompa que vem da consagração secular; em suma, como bens nacionais. Para nós a última transformação de um poema, seu retoque derradeiro antes de ingressar na eternidade, era – depois de ter sido publicado em magníficas edições ilustradas, depois de acabar impresso em caracteres diminutos num volume encadernado com dorso de pano verde, cujo cheiro branco de serragem e tinta nos parecia o próprio perfume das Musas – comover os filhos sonhadores, com os dedos manchados de tinta, da burguesia futura. O próprio Breton, que queria atear fogo à cultura, levou seu primeiro choque literário na sala de aula, no dia em que seu professor leu-lhe Mallarmé; em suma, por muito tempo acreditamos que a finalidade derradeira das nossas obras era fornecer material para a “interpretação de texto” das aulas de francês em 1980. Em seguida, bastaram cinco anos, após nosso primeiro livro, para podermos apertar a mão de todos os nossos confrades. A centralização nos reuniu a todos em Paris; com um pouco de sorte, um americano apressado pode encontrar todos nós em vinte e quatro horas, conhecer em vinte e quatro horas nossas opiniões sobre a Unrra[*], a ONU, a Unesco, o caso Miller, a bomba atômica; em vinte e quatro horas um ciclista bem-treinado pode entregar a domicílio, de Aragon a Mauriac, de Vercors a Cocteau, passando por Breton em Montmartre, Queneau em Neuilly e Billy em Fontainebleau, levando em conta os escrúpulos e casos de consciência que fazem parte de nossas obrigações profissionais, um desses manifestos, abaixo-assinados ou protestos a favor ou contra a devolução de Trieste a Tito, a anexação do território do Sarre ou a utilização das V3 na futura guerra, pelos quais gostamos de marcar nossa posição como homens deste século; em vinte e quatro horas, sem precisar de ciclista, um mexerico percorre todo o nosso círculo de escritores e volta, amplificado, àquele que o lançou. Encontram-nos todos juntos – ou quase – em certos cafés, nos concertos da Pléiade e, em certas circunstâncias propriamente literárias, na embaixada da Inglaterra. De tempos em tempos um de nós, estafado, anuncia que vai partir para o campo; vamos todos despedir-nos, dizemos-lhe que essa é mesmo a melhor decisão, que é realmente impossível escrever em Paris, e o acompanhamos com nossa inveja e nossos melhores votos: quanto a nós, uma velha mãe, uma jovem amante, uma tarefa urgente nos prendem à cidade. Ele parte, com os repórteres do Samedi-soir que vão fotografar seu retiro, fica entediado e volta. “No fundo”, diz ele, “só existe Paris”. É em Paris que os escritores de província, quando bem-nascidos, se instalam para praticar o regionalismo; foi em Paris que os representantes qualificados da literatura norte-africana resolveram expressar sua nostalgia da Argélia. Nosso caminho está traçado; para o irlandês de Chicago, obsidiado, que de repente, e como último recurso, decide escrever, a vida nova que aborda é uma coisa intimidante e sem ponto de comparação, é um bloco de mármore escuro que levará muito tempo para desbastar; mas nós conhecemos desde a adolescência os traços memoráveis e edificantes das grandes existências; aprendemos desde o colégio, ainda que nosso pai não desaprovasse nossa vocação, como se responde aos pais recalcitrantes, qual o período de tempo razoável em que o autor de gênio deve permanecer desconhecido, em que idade é normal que seja coroado de glória, quantas mulheres deve ter e quantos amores infelizes, se é desejável que intervenha na política e em que momento: tudo está escrito nos livros, basta fazer bem as contas; desde o início do século, Romain Rolland já demonstrou em Jean-Christophe que se pode obter uma personagem bastante verossímil combinando características de alguns músicos célebres. Mas podemos traçar outros planos: não há mal em começar a vida como Rimbaud, iniciar lá pelos trinta anos um retorno goethiano à ordem, e aos cinquenta lançar-se, como Zola, num debate público. Depois disso pode-se escolher a morte de Nerval, a de Byron ou a de Shelley. Naturalmente, não se trata de realizar cada episódio com toda a sua violência, mas, antes, de indicá-lo, do mesmo modo como um costureiro sério indica a moda sem servilismo. Sei de muitos entre nós, e não dos menores, que tomaram assim a precaução de dar à sua vida uma aparência e um ar ao mesmo tempo típicos e exemplares, a fim de que seu gênio, caso ficasse duvidoso em seus livros, explodisse ao menos em seus hábitos. Graças a esses modelos, a essas receitas, a carreira de escritor nos apareceu desde a infância como um ofício magnífico, mas sem surpresas, no qual se avança em parte graças ao mérito, em parte graças à Antiguidade. Assim somos nós. Aliás, santos, heróis, místicos, aventureiros, descobridores de águas, feiticeiros, anjos, magos, carrascos, vítimas, como queiram. Mas acima de tudo burgueses: não há vergonha em confessá-lo. E diferimos uns dos outros somente pelo modo como cada um assume essa condição comum.

De fato, se se quisesse fazer um quadro da literatura contemporânea, não haveria mal em distinguir três gerações. A primeira é a dos autores que começaram a produzir antes da Guerra de 1914. Terminaram sua carreira nos dias de hoje e os livros que ainda venham a escrever, mesmo que sejam obras-primas, nada poderão acrescentar à sua glória; mas ainda vivem, pensam, julgam, e sua presença determina correntes literárias menores, que é preciso levar em conta. No essencial, parecem-me ter realizado, em suas pessoas e em suas obras, o esboço de uma reconciliação entre a literatura e o público burguês. Cabe observar que a maioria tirava seu sustento de fontes muito diferentes da venda de seus escritos. Gide e Mauriac possuem terras, Proust vivia de rendas, Maurois vem de uma família de industriais; outros chegaram à literatura através das profissões liberais: Duhamel era médico, Romains, professor universitário, Claudel e Giraudoux são diplomatas. É que a literatura, salvo no caso de um êxito suspeito, não dava sustento a ninguém na época em que começaram a escrever: assim como a política na Terceira República, ela só pode ser uma ocupação “marginal”, ainda que acabe se tornando o principal interesse de quem a exerce. Assim, de modo geral, os literatos provêm do mesmo meio que os políticos; Jaurès e Péguy saíram da mesma escola, Blum e Proust escreviam nas mesmas revistas, Barrès administra ao mesmo tempo suas campanhas literárias e suas campanhas eleitorais. Em consequência, o escritor não pode mais considerar-se um puro consumidor; ele dirige a produção ou preside à repartição dos bens, ou ainda é funcionário, tem deveres para com o Estado; em suma, quase toda a sua pessoa está integrada à burguesia; seu comportamento, suas relações profissionais, suas obrigações, suas preocupações são burguesas; ele vende, compra, manda, obedece, entrou no círculo encantado da cortesia e das cerimônias. Certos escritores dessa época têm uma sólida reputação de avareza, desmentida pelos apelos à prodigalidade que lançavam em seus escritos. Não sei se essa reputação é justificada, mas ela prova, ao menos, que eles conheciam o valor do dinheiro: o divórcio que assinalamos entre o autor e seu público está, a essa altura, no próprio coração do escritor. Vinte anos depois do simbolismo, ele ainda não perdeu a consciência da gratuidade absoluta da arte; mas, ao mesmo tempo, engajou-se no ciclo utilitário dos meios-fins e dos fins-meios. Produtor e destruidor ao mesmo tempo. Dividido entre o espírito de seriedade que é bem necessário demonstrar em Cuverville, em Frontenac, em Elbeuf, ou ao representar a França na Casa Branca, e o espírito de contestação e de festa, que ele reencontra assim que se senta diante da página em branco; incapaz de abraçar sem reservas a ideologia burguesa, bem como de condenar sem apelação a classe a que pertence. O que vai socorrê-lo nesse embaraço é que a própria burguesia mudou: não é mais aquela feroz classe ascendente cuja única preocupação é a poupança e o acúmulo de bens. Os filhos e netos dos camponeses que subiram na vida, dos lojistas enriquecidos, já nasceram com fortuna, aprenderam a arte de gastar; a ideologia utilitarista, sem desaparecer em absoluto, é relegada à sombra; cem anos de reinado ininterrupto criaram tradições; a infância burguesa, passada na grande casa de campo, no castelo comprado de um nobre arruinado, ganhou profundidade poética; os men of property, satisfeitos, recorrem com menos frequência ao espírito de análise; por sua vez, esperam que o espírito de síntese fundamente seu direito de governar: um vínculo sintético – e portanto poético – se estabelece entre o proprietário e a coisa possuída. Barrès já demonstrou: o burguês e seus bens são uma coisa só; quando está no campo, em suas terras, algo se incorpora nele da suave ondulação dos vales, do tremular prateado dos álamos, da misteriosa e lenta fecundidade do solo, da agitação rápida e caprichosa dos céus: assimilando o mundo, ele lhe assimila a profundidade; sua alma, daí por diante, passa a ter subsolos, minas, jazidas auríferas, filões, lençóis subterrâneos de petróleo. Assim comprometido, o escritor tem seu caminho traçado: para salvar a si mesmo, salvará a burguesia, em profundidade. É certo que não servirá à ideologia utilitarista; será dela, se necessário, um crítico severo, mas descobrirá nos delicados desvãos da alma burguesa toda a gratuidade, toda a espiritualidade de que necessita para exercer sua arte com a consciência tranquila; a aristocracia simbólica, por ele conquistada no século XIX, ele irá estender a toda a burguesia, em lugar de reservá-la apenas para si e seus confrades. Por volta de 1850, um escritor americano mostra num romance um velho coronel sentado numa barcaça no Mississipi, tentado, por um momento, a interrogar-se sobre as profundezas mais recônditas da alma dos passageiros em seu redor. Mas afasta logo essa preocupação, dizendo-se mais ou menos o seguinte: “Não é bom que o homem penetre tão fundo em si mesmo”. Essa foi a reação das primeiras gerações burguesas. Na França, por volta de 1900, o processo se inverteu: entendeu-se que é possível encontrar a marca de Deus nos corações, desde que se sonde com suficiente profundidade. Estaunié fala das vidas secretas: o carteiro, o mestre ferreiro, o engenheiro, o secretário do tesouro têm suas festas noturnas e solitárias, e em suas profundezas habitam paixões devoradoras, incêndios suntuosos; na esteira desse autor, e de uma centena de outros, aprenderemos a reconhecer na filatelia, na numismática toda a nostalgia do além, toda a insatisfação baudelairiana. Pois, pergunto eu, por que gastar tempo e dinheiro na aquisição de medalhas, se não se renunciou à amizade dos homens, ao amor das mulheres e ao poder? E o que pode haver de mais gratuito que uma coleção de selos? Nem todo mundo pode ser um Da Vinci ou um Michelangelo; mas esses selos inúteis colados na cartolina cor-de-rosa de um álbum são uma homenagem comovente às nove musas, são a própria essência do consumo destruidor. Outros distinguirão no amor burguês um apelo desesperado que se eleva a Deus: O que pode haver de mais desinteressado, de mais pungente que um adultério? E esse gosto de cinzas que se sente na boca depois do coito, não é a própria negatividade, a contestação de todos os prazeres? Outros irão ainda mais longe: não é nas fraquezas do burguês, mas sim nas suas virtudes, que se pode descobrir um grão divino de loucura. Na vida oprimida e sem esperança de uma mãe de família se revela uma obstinação tão absurda e tão altiva que, em comparação, todas as extravagâncias surrealistas parecerão mostras de bom-senso. Um jovem autor que sofria a influência desses mestres sem pertencer à mesma geração, e mais tarde mudou de ideia, se é que posso julgar por sua conduta, me disse um dia: “Que aposta mais insensata é a fidelidade conjugal! Pois não é desafiar o diabo e o próprio Deus? Você conhece alguma blasfêmia mais louca e mais magnífica?” Percebe-se a astúcia: derrotar os grandes destruidores em seu próprio terreno. Você me cita Don Juan, eu respondo com Orgon: há mais generosidade, mais cinismo e mais desespero em sustentar uma família do que em seduzir mil e uma mulheres. Você lembra Rimbaud, eu lhe devolvo Chrysale: há mais orgulho e satanismo em supor que a cadeira que se vê é uma cadeira do que em praticar o desregramento sistemático de todos os sentidos. E, sem dúvida, a cadeira que se oferece à nossa percepção é apenas provável; para afirmar que se trata de uma cadeira, é preciso dar um salto ao infinito e admitir uma infinidade de representações concordantes. Sem dúvida, também o juramento de amor conjugal implica um futuro virgem; o sofisma começa quando se apresentam essas induções necessárias e, por assim dizer, naturais, que o homem faz contra o tempo e para garantir sua tranquilidade, como se fossem os desafios mais audaciosos, as contestações mais desesperadas. Seja como for, é por aí que os escritores de que falo estabeleceram sua reputação. Dirigiram-se a uma nova geração e lhe explicaram que havia estrita equivalência entre a produção e o consumo, entre a construção e a destruição; demonstraram que a ordem era uma festa permanente, e a desordem, a mais tediosa monotonia; descobriram a poesia da vida cotidiana, tornaram atraente a virtude, até mesmo inquietante; pintaram a epopeia burguesa em longos romances cheios de sorrisos misteriosos e perturbadores. É tudo o que lhes pediam seus leitores: desde que se pratique a honestidade por interesse, a virtude por pusilanimidade e a fidelidade por hábito, é agradável ouvir dizer que nossa audácia supera a de um sedutor profissional ou a de um assaltante de estradas. Por volta de 1924, conheci um jovem de boa família, fanático por literatura e especialmente pelos autores contemporâneos. Foi bem desmiolado quando lhe convinha, empanturrou-se da poesia dos bares quando ela estava na moda, exibiu escandalosamente uma amante, até que, após a morte do pai, reassumiu comportadamente a fábrica da família e retomou o caminho do bem. Casou-se depois com uma rica herdeira e não a trai, a não ser em viagem e às pressas; em suma, é o mais fiel dos maridos. Quando estava para se casar, extraiu de suas leituras a fórmula que deveria justificar sua vida. “É preciso”, escreveu-me um dia, “fazer como todo mundo e não ser como ninguém”. Há muita profundidade nessa frase tão simples. Pode-se imaginar que eu a considero como a mais abjeta canalhice e a justificação de toda má-fé. Mas ela resume bem, creio, a moral que nossos autores venderam a seu público. Com ela, justificam em primeiro lugar a si próprios: é preciso fazer como todo mundo, ou seja, vender o tecido de Elbeuf ou o vinho de Bordeaux segundo as regras vigentes, casar-se com uma mulher que traga um bom dote, frequentar a casa dos pais, dos sogros, dos amigos dos sogros; por outro lado, é preciso não ser como ninguém, isto é, salvar a própria alma e a da família por meio de belos escritos, ao mesmo tempo destruidores e reverentes. Designarei o conjunto dessas obras como literatura de álibi. Ela suplantou rapidamente a dos escritores assalariados: desde antes da Primeira Guerra as classes dirigentes tinham mais necessidade de álibis do que de homenagens. O maravilhoso de Alain Fournier era um álibi: toda uma linhagem de literatura mirabolante burguesa se originou dele; em cada caso tratava-se de conduzir, por aproximações, cada leitor até aquele ponto obscuro da alma mais burguesa, onde todos os sonhos se juntam e se fundem num desejo desesperado do impossível, onde todos os eventos da existência mais cotidiana são vividos como símbolos, onde o real é devorado pelo imaginário, onde o homem inteiro é apenas uma divina ausência. Já foi motivo de espanto que Arland tenha escrito Terras estrangeiras e também A ordem, mas não há razão: a insatisfação tão nobre de seus primeiros heróis só tem sentido quando experimentada no seio de uma ordem rigorosa; não se trata, em absoluto, de revoltar-se contra o casamento, as profissões, a disciplina social, mas sim de superar essas coisas sutilmente por uma nostalgia que nada pode saciar, pois no fundo não é desejo de nada. Assim, a ordem existe apenas para ser transcendida, mas é preciso que exista; ei-la justificada e solidamente restabelecida: certamente vale mais contestá-la por uma sonhadora melancolia do que subvertê-la pelas armas. Digo o mesmo a respeito da inquietude de Gide, que mais tarde se transformou em desarvoramento; a respeito do pecado de Mauriac, lugar vazio de Deus: trata-se sempre de colocar a vida cotidiana entre parênteses e vivê-la minuciosamente, mas sem sujar as mãos; trata-se sempre de provar que o homem vale mais do que a vida que leva, que o amor é muito mais que amor, e o burguês muito mais que burguês. Nos grandes autores, sem dúvida, há outra coisa. Em Gide, em Claudel, em Proust, encontra-se uma experiência humana, mil caminhos. Mas minha intenção não foi pintar o quadro de toda uma época: o que tinha em mente era mostrar um clima e isolar um mito[3].

A segunda geração chegou à idade adulta depois de 1918. É claro que esta é uma classificação muito genérica, pois nela convém incluir Cocteau, que estreou antes da guerra, ao passo que Marcel Arland, cujo primeiro livro, que eu saiba, não é anterior ao armistício, tem fortes afinidades com os escritores de que acabamos de falar. O evidente absurdo de uma guerra cujas verdadeiras causas levamos trinta anos para descobrir traz o retorno do espírito de Negatividade. Não me alongarei sobre esse período, que Thibaudet tão acertadamente designou como “de descompressão”. Foi uma queima de fogos; hoje que tudo já terminou, já se escreveu tanto sobre ela que temos a impressão de que sabemos tudo a seu respeito. É preciso notar que o mais magnífico desses rojões, o surrealismo, reata com as tradições destruidoras do escritor-consumidor. Esses jovens burgueses turbulentos querem arruinar a cultura porque nela foram cultivados; seu maior inimigo continua sendo o filisteu de Heine, o Prudhomme de Monnier, o burguês de Flaubert, em suma, o papai. Porém as violências dos anos anteriores os levaram ao radicalismo. Enquanto seus predecessores se limitavam a combater pelo consumo a ideologia utilitária da burguesia, os surrealistas identificam mais profundamente a busca do útil com o projeto humano, isto é, com a vida consciente e voluntária. A consciência é burguesa, o Eu é burguês: a Negatividade deve exercer-se em primeiro lugar sobre essa Natureza que não passa, como diz Pascal, de um primeiro hábito. Trata-se de aniquilar, antes de mais nada, as distinções herdadas entre a vida consciente e a inconsciente, entre o sonho e a vigília. Isso significa dissolver a subjetividade. De fato, existe o subjetivo quando reconhecemos que nossos pensamentos, nossas emoções, nossas vontades vêm de nós, no momento em que aparecem, e quando julgamos que é certo que elas nos pertencem e, ao mesmo tempo, apenas provável que o mundo exterior se regule por elas. O surrealista encheu-se de ódio por essa humilde certeza sobre a qual o estoico fundava sua moral. Ela lhe desagrada, ao mesmo tempo pelos limites que nos coloca e pelas responsabilidades que nos atribui. Todos os meios lhe parecem válidos para escapar à consciência de si mesmo e, em consequência, de sua situação no mundo. Adota a psicanálise porque esta apresenta a consciência como invadida por excrescências parasitárias cuja origem está noutro lugar: repele a “ideia burguesa” de trabalho porque o trabalho implica conjecturas, hipóteses e projetos, portanto um permanente recurso ao subjetivo; a escrita automática é, antes de mais nada, a destruição da subjetividade: quando a praticamos, somos atravessados espasmodicamente por coágulos que nos dilaceram, cuja proveniência ignoramos, que não chegamos a conhecer até que tenham tomado seu lugar no mundo dos objetos, que é preciso apreender, então, com olhos de estranho. Não se trata, pois, como já disse com demasiada frequência, de substituir a consciência pela subjetividade inconsciente, mas sim de mostrar o sujeito como engodo inconsistente em meio ao universo objetivo. Mas a segunda providência do surrealista é destruir também a objetividade. Trata-se de explodir o mundo, mas como não haveria dinamite suficiente, e como, por outro lado, uma destruição real da totalidade dos existentes é impossível, pois simplesmente faria passar essa totalidade de um estado real para outro estado real, é melhor concentrar esforços em desintegrar objetos particulares, isto é, anular, nesses objetos-testemunhas, a própria estrutura da objetividade. É uma operação que, evidentemente, não se pode tentar sobre os existentes reais e já dados, com sua essência indeformável. Assim, serão produzidos objetos imaginários, construídos de tal modo que sua objetividade se suprima a si mesma. O esquema elementar desse processo nos é dado por aqueles falsos torrões de açúcar que Duchamp esculpia em mármore, e que subitamente revelavam ter um peso insuspeitado. O visitante que os sopesava deveria sentir, numa iluminação fulgurante e instantânea, a destruição da essência objetiva do açúcar por si mesma; era preciso causar-lhe essa decepção do ser inteiro, esse mal-estar, essa sensação de desequilíbrio que dão, por exemplo, as brincadeiras “pega-trouxas”, quando a colher se desmancha bruscamente na xícara de chá, quando o torrão de açúcar (simulacro inverso ao construído por Duchamp) volta à superfície e flutua. Graças a essa intuição, espera-se que o mundo inteiro se descobrirá como contradição radical. A pintura e a escultura surrealistas têm por único fim multiplicar essas explosões locais e imaginárias que são como ralos pelos quais o universo inteiro vai se escoar. O método paranoico-crítico de Dalí é apenas um aperfeiçoamento e uma complicação dessa técnica; por fim, esse método também se apresenta como esforço para “contribuir para o descrédito total do mundo da realidade”. A literatura se empenhará em impor o mesmo destino à linguagem, destruindo-a pela imbricação de palavras. Assim, o açúcar remete ao mármore e o mármore ao açúcar, o relógio derretido contesta a si mesmo por sua moleza; o objetivo se destrói e remete de repente ao subjetivo, uma vez que se desqualifica a realidade e tem-se o prazer de “considerar as próprias imagens do mundo exterior como instáveis e transitórias” e “colocá-las a serviço da realidade do nosso espírito”. Mas o subjetivo, por sua vez, também desmorona e deixa aparecer atrás de si uma misteriosa objetividade. Tudo isso sem que uma só destruição real tenha sido sequer iniciada. Bem ao contrário: por meio da anulação simbólica do Eu pelos sonhos e pela escrita automática, da anulação simbólica dos objetos pela produção de objetividades evanescentes, da anulação simbólica da linguagem pela produção de sentidos aberrantes, da destruição da pintura pela pintura e da literatura pela literatura, o surrealismo tenta alcançar esse curioso propósito de realizar o nada pelo excesso de ser. É sempre criando, isto é, acrescentando quadros aos quadros já existentes e livros aos livros já editados, que ele destrói. Daí a ambivalência de suas obras: cada uma pode passar por invenção bárbara e magnífica de uma forma, de um ser desconhecido, de uma frase inaudita e tornar-se, como tal, uma contribuição voluntária à cultura; e como cada uma delas é um projeto de anular todo o real, anulando-se com ele, o Nada cintila em sua superfície, um Nada que é apenas o borboletear sem fim dos contraditórios. E o espírito que os surrealistas querem atingir sobre as ruínas da subjetividade, esse espírito que só se pode vislumbrar sobre a acumulação de objetos autodestrutivos, também ele cintila e borboleteia na anulação recíproca e estática das coisas. Não é nem a Negatividade hegeliana, nem a Negação hipostasiada, nem mesmo o Nada, ainda que se aproxime dele: é melhor chamá-lo de Impossível, ou, se se preferir, de ponto imaginário onde se confundem o sonho e a vigília, o real e o fictício, o objetivo e o subjetivo. Confusão e não síntese, pois a síntese apareceria como existência articulada, dominando e governando suas contradições internas. Mas o surrealismo não deseja a aparição dessa novidade, que também seria necessário contestar. O que ele quer é manter-se na enervante tensão provocada pela procura de uma intuição irrealizável. Rimbaud, ao menos, queria ver um salão num lago. Já o surrealista quer estar permanentemente a ponto de ver o lago e o salão, mas, se porventura os encontra, fica aborrecido ou então sente medo e vai deitar-se, venezianas fechadas. Para concluir, pinta muito e gasta muito papel, mas nunca destrói verdadeiramente coisa alguma. Aliás, Breton o reconheceu em 1925, quando escreveu: “A realidade imediata da revolução surrealista não consiste tanto em mudar o que quer que seja na ordem física e aparente das coisas, como em criar um movimento nos espíritos”. A destruição do universo é objeto de um empreendimento subjetivo muito semelhante àquilo que sempre se chamou de conversão filosófica. Esse mundo, permanentemente anulado sem que se toque num só grão de seus trigais ou de suas areias, numa só pluma de seus pássaros, é simplesmente colocado entre parênteses. Ainda não se percebeu bem que as construções, os quadros, os poemas-objetos do surrealismo são a realização manual das aporias pelas quais os céticos do século III a.C. justificavam sua perpétua epoché. Depois do que, certos de não se comprometerem por uma adesão imprudente, Carnéade e Fílon viviam como todo mundo. O mesmo acontece com os surrealistas: uma vez destruído o mundo, e milagrosamente conservado pela sua destruição, podem entregar-se sem nenhuma vergonha a seu imenso amor pelo mundo. Esse mundo, o mundo de todos os dias, com suas árvores e seus telhados, suas mulheres, suas conchas, suas flores, mas habitado pelo impossível e pelo nada, é o que se designa como o maravilhoso do surrealismo. Não posso impedir-me de pensar nesta outra colocação entre parênteses pela qual os escritores alinhados da geração precedente destruíam a vida burguesa e a conservavam com todos os seus matizes. Esse maravilhoso surrealista não será o mesmo de O grande Meaulnes, só que radicalizado? Sem dúvida a paixão aqui é sincera, bem como o ódio e a repulsa pela classe burguesa. O fato é que a situação não mudou: é preciso salvar-se sem fazer estrago – ou por meio de um estrago simbólico –, limpar-se da mácula original sem renunciar às vantagens de sua posição.

O fundo da questão é que é preciso, mais uma vez, encontrar para si um refúgio seguro. Os surrealistas, mais ambiciosos do que seus pais, contam com a destruição radical e metafísica que empreendem para conferir-lhes uma dignidade mil vezes superior à da aristocracia parasitária. Não se trata mais de evadir-se da classe burguesa: é preciso saltar fora da condição humana. O que esses filhos de boas famílias querem dilapidar não é o patrimônio familiar: é o mundo. Voltaram ao parasitismo como a um mal menor, todos abandonando, de comum acordo, estudos e profissões, mas nunca lhes bastou serem parasitas da burguesia: ambicionaram ser parasitas da espécie humana. Por mais metafísica que tenha sido sua mudança de classe, é claro que foi feita em direção ao alto, e que suas preocupações lhes proibiam rigorosamente de encontrar um público na classe operária. Breton escreveu certa vez: “Transformar o mundo, disse Marx. Mudar a vida, disse Rimbaud. Essas duas palavras de ordem para nós são uma só”. Isso bastaria para denunciar o intelectual burguês. Pois trata-se de saber qual das mudanças precede a outra. Para o militante marxista, não há dúvida de que só a transformação social pode permitir modificações radicais do sentimento e do pensamento. Se Breton acredita poder levar avante suas experiências interiores à margem da atividade revolucionária, e paralelamente a ela, está condenado de antemão; pois isso equivaleria a dizer que a libertação do espírito é concebível nos grilhões, ao menos para certas pessoas e, em consequência, para tornar a revolução menos urgente. É a própria traição que os revolucionários de todos os tempos censuraram em Epicteto e, ainda ontem, Politzer censurou em Bergson. E se alguém afirmar que Breton pretendia, nesse texto, anunciar uma metamorfose progressiva e conexa do estado social e da vida íntima, responderei citando esta outra passagem: “Tudo leva a crer que existe certo ponto do espírito de onde a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo deixam de ser percebidos contraditoriamente... É em vão que se procurará na atividade surrealista outro móvel que não a esperança de determinar esse ponto”. Isso não é proclamar seu divórcio com o público operário, muito mais que com o público burguês? Pois o proletariado engajado na luta tem de distinguir a cada instante, para levar a bom termo seu empreendimento, o passado do futuro, o real do imaginário e a vida da morte. Não foi por acaso que Breton citou esses contrários: todos são categorias da ação; a ação revolucionária, mais que qualquer outra, tem necessidade delas. E o surrealismo, assim como radicalizou a negação do útil para transformá-la em recusa do projeto e da vida consciente, radicaliza a velha reivindicação literária da gratuidade para fazer dela uma recusa da ação pela destruição de suas categorias. Existe um quietismo surrealista. Quietismo e violência permanente: dois aspectos complementares da mesma posição. Como o surrealista se privou dos meios de organizar um empreendimento, sua atividade se reduz a impulsos no imediato. Reencontramos aqui, mais sombria e pesada, a moral gidiana com a instantaneidade do ato gratuito. Isso não nos surpreende: há um quietismo em todo parasitismo e o compasso favorito do consumo é o instante.

Entretanto, o surrealismo se declara revolucionário e estende a mão ao Partido Comunista. É a primeira vez, desde a Restauração, que uma escola literária se vale explicitamente de um movimento revolucionário organizado. As razões são claras: esses escritores, que também são jovens, querem sobretudo aniquilar sua família, o tio general, o primo padre, assim como em 1848 Baudelaire via na revolução de fevereiro a oportunidade de incendiar a casa do General Aupick; se nasceram pobres, também têm alguns complexos a liquidar, a inveja, o medo; além disso, revoltam-se também contra as coerções externas: a guerra que acaba de terminar, com sua censura, o serviço militar, os impostos, o quarto azul-horizonte, a lavagem cerebral; são todos anticlericais, nem mais nem menos que o velho Combes e o partido radical de antes da guerra, e sentem uma generosa repulsa pelo colonialismo e pela Guerra do Marrocos. Essas indignações, esses ódios são susceptíveis de se exprimirem abstratamente, por uma concepção da Negação radical que, a fortiori[**], implicará, sem que seja preciso fazê-lo objeto de uma vontade particular, a negação da classe burguesa. E, sendo a juventude a idade metafísica por excelência, como bem viu Augusto Comte, essa expressão metafísica e abstrata de sua revolta será, evidentemente, a que eles escolherão de preferência. Mas essa revolta é também a que deixa o mundo rigorosamente intacto. É verdade que acrescentam esporadicamente alguns atos de violência, mas essas manifestações dispersas só conseguem, no máximo, provocar escândalo. O que esses jovens podem esperar de melhor é se organizarem em alguma associação punitiva e clandestina, nos moldes da Ku-Klux-Klan. Chegam assim a desejar que outros se encarreguem, à margem de suas experiências espirituais, de realizar destruições concretas pela força. Em suma, gostariam de ser os “intelectuais” de uma sociedade ideal, cuja função temporal seria o exercício permanente da violência[4]. E é assim que, depois de ter elogiado os suicídios de Vaché e de Rigaut como atos exemplares, depois de ter apresentado o massacre gratuito (“descarregar o revólver contra a multidão”) como o ato surrealista mais simples, chamaram em sua ajuda o perigo amarelo. Não enxergam a contradição profunda que há entre essas destruições brutais e parciais e o processo poético de aniquilamento que empreenderam. De fato, toda vez que é parcial, a destruição é um meio para atingir um fim positivo e mais geral. O surrealismo para nesse meio, faz dele um fim absoluto, recusa-se a seguir adiante. A abolição total com que sonha, ao contrário, não faz mal a ninguém, precisamente porque é total. É um absoluto situado fora da história, ficção poética. E que inclui, entre as realidades a abolir, aquele fim que justifica, aos olhos dos asiáticos ou dos revolucionários, os meios violentos aos quais são obrigados a recorrer. O Partido Comunista, por sua vez, acuado pela polícia burguesa, muito inferior em número ao Partido Socialista, sem nenhuma esperança de tomar o poder senão a longuíssimo prazo, muito novo, inseguro quanto às suas táticas, ainda está na fase negativa. Para ele, trata-se de ganhar as massas, boicotar os socialistas, incorporar a si os elementos que puder extrair da coletividade que o rechaça: a sua arma intelectual é a crítica. Não está longe, portanto, de ver no surrealismo um aliado provisório, que irá rejeitar quando não lhe for mais necessário; pois a negação, essência do surrealismo, não passa de uma etapa para o PC. Este não admite, nem por um instante, a escrita automática, os sonhos provocados e o acaso objetivo, senão na medida em que possam contribuir para a desagregação da classe burguesa. Parece, pois, que foi reencontrada aquela comunhão de interesses entre os intelectuais e as classes oprimidas, que foi a sorte dos autores do século XVIII. Mas isso não passa de aparência. A causa profunda do mal-entendido é que o surrealista pouco se preocupa com a ditadura do proletariado e vê na Revolução, como pura violência, o fim absoluto, ao passo que o comunismo se propõe como fim a tomada do poder, e justifica por este fim o sangue que irá derramar. Além disso, a ligação do surrealismo com o proletariado é indireta e abstrata. A força de um escritor reside em sua ação direta sobre o público, na cólera, no entusiasmo, na reflexão que provoca com seus escritos. Diderot, Rousseau, Voltaire estavam em perpétua ligação com a burguesia porque esta os lia. Mas os surrealistas não têm nenhum leitor no proletariado: mal e mal se comunicam do lado de fora com o partido, ou melhor, com os intelectuais do partido. Seu público está em outra parte, na burguesia culta, e isso o PC não ignora, empregando-os simplesmente para levar confusão aos meios dirigentes. Sendo assim, suas declarações revolucionárias se mantêm puramente teóricas, pois não alteram em nada sua atitude, não lhes conquistam um só leitor e não encontram nenhum eco junto aos operários; eles continuam parasitas da classe que insultam, sua revolta permanece à margem da revolução. O próprio Breton acabou por reconhecê-lo, e reassumiu sua independência de “intelectual”. Ele escreve a Naville: “Não há ninguém entre nós que não deseje a passagem do poder das mãos da burguesia para as do proletariado. Enquanto se espera, não é menos necessário, em nossa opinião, que as experiências da vida interior continuem, e isso, bem-entendido, sem controle externo, nem mesmo marxista... Os dois problemas são essencialmente distintos”.

A oposição ficará evidente quando a Rússia soviética e, por conseguinte, o Partido Comunista francês passam à fase da organização construtiva: o surrealismo, negativo por essência, irá afastar-se. Breton se aproximará então dos trotskistas precisamente porque estes, encurralados e minoritários, ainda estão no estágio da negação crítica. Os trotskistas, por sua vez, utilizarão os surrealistas como instrumento de desagregação: há uma carta de Trotski a Breton que não deixa dúvidas a respeito. Se a Quarta Internacional também tivesse conseguido passar à fase construtiva, é claro que essa teria sido a ocasião para uma ruptura.

Assim, a primeira tentativa do escritor burguês para se aproximar do proletariado permanece utópica e abstrata porque ele não procura um público, mas sim um aliado, porque conserva e reforça a divisão entre o temporal e o espiritual, e continua dentro dos limites de uma elite intelectual. O acordo de princípios entre o surrealismo e o PC contra a burguesia não vai além do formalismo; é a ideia formal da negatividade que os une. De fato, a negatividade do Partido Comunista é provisória, é um momento histórico necessário em sua grande tarefa de reorganização social; a negatividade surrealista, digam o que disserem, mantém-se fora da história: ao mesmo tempo no instante e no eterno; ela é o fim absoluto da vida e da arte. Em determinado texto, Breton afirma a identidade, ou ao menos o paralelismo, entre a simbolização recíproca do espírito em luta contra seus demônios e o proletariado em luta contra o capitalismo, o que equivale a afirmar a “missão sagrada” do proletariado. Mas, justamente, essa classe concebida como legião de anjos exterminadores, e que o PC defende como uma muralha contra qualquer aproximação surrealista, não passa para os autores de um mito quase religioso, que desempenha, para lhes tranquilizar a consciência, um papel análogo ao que desempenhava o Mito do Povo, em 1848, para os escritores de boa vontade. A originalidade do movimento surrealista reside em sua tentativa de se apropriar de tudo ao mesmo tempo: a elevação social, o parasitismo, a aristocracia, a metafísica do consumo e a aliança com as forças revolucionárias. A história dessa tentativa mostra que estava condenada ao fracasso. Mas, cinquenta anos antes, ela não seria sequer concebível: naquela época, a única relação possível entre o escritor e a classe operária era escrever para ela e a respeito dela. O que permitiu conceber, mesmo que por um instante, a realização de um pacto provisório entre uma aristocracia intelectual e as classes oprimidas foi o aparecimento de um fator novo: o partido como mediação entre as classes médias e o proletariado.

Entendo que o surrealismo, com seu aspecto ambíguo de grupo literário fechado, de colegiado espiritual, de igreja e de sociedade secreta[5] não passa de um produto do pós-guerra. Seria preciso falar de Morand, de Drieu la Rochelle, de tantos outros. Mas se as obras de Breton, Desnos, Peret, nos parecem as mais representativas, é que todas as outras contêm implicitamente os mesmos traços. Morand é o consumidor típico, o viajante, o passante. Anula as tradições nacionais pondo-as em contato umas com as outras, segundo a velha técnica dos céticos e de Montaigne; atira-as num cesto como caranguejos e, sem comentários, deixa que se destruam entre si; trata-se de atingir certo ponto gama, bem próximo do ponto gama dos surrealistas, a partir do qual as diferenças de costumes, de línguas, de interesses vão abolir-se numa indistinção total. A velocidade desempenha aqui o papel do método paranoico-crítico. A Europa galante é a anulação dos países pela ferrovia; Nada a não ser a terra, a anulação dos continentes pela aviação. Morand leva asiáticos a passear em Londres, americanos na Síria, turcos na Noruega; mostra nossos costumes por esses olhos, como fez Montesquieu pelos olhos dos persas, o que vem a ser o meio mais seguro de tirar-lhes toda a razão de ser. Mas, ao mesmo tempo, ajeita as coisas de modo que esses visitantes já tenham perdido muito de sua pureza primitiva, e sejam completos traidores de seus próprios costumes, sem chegarem a adotar inteiramente os nossos; nesse momento particular de sua transformação, cada um deles é um campo de batalha onde o pitoresco exótico e nosso maquinismo racionalista se destroem mutuamente. Mesmo repletos de brocados, de miçangas, de belos nomes estrangeiros, os livros de Morand são sinos que dobram pelo exotismo; situam-se na origem de toda uma literatura que visa a anular a cor local, seja mostrando que as cidades distantes com que sonhamos na infância são tão desesperadamente familiares e cotidianas, para os olhos e o coração de seus habitantes, como são a Gare Saint-Lazare e a Torre Eiffel para nosso coração e nossos olhos, seja deixando entrever a comédia, a falsidade, a ausência de fé por trás das cerimônias que os viajantes dos séculos passados nos descreviam com todo o respeito, seja nos revelando, sob a trama desgastada do pitoresco oriental ou africano, a universalidade do maquinismo e do racionalismo capitalista. No final resta apenas o mundo, igual e monótono em toda parte. Nunca senti com tanta intensidade o significado profundo desse método como num dia de verão de 1938, entre Mogador e Safi, ao ultrapassar de carro uma muçulmana coberta por um véu, que ia pedalando sua bicicleta. Uma maometana ciclista, eis um objeto autodestrutivo que poderia muito bem ser reivindicado pelos surrealistas ou por Morand. O mecanismo preciso da bicicleta contesta os lânguidos sonhos de harém que atribuímos de passagem a essa criatura coberta por um véu; mas, no mesmo momento, o que resta de trevas voluptuosas e mágicas entre essas sobrancelhas pintadas, atrás dessa testa estreita, contesta, por sua vez, o maquinismo; faz pressentir, por trás da uniformização capitalista, um além acorrentado, vencido e no entanto virulento e feiticeiro. Exotismo fantasma, impossível surrealista, insatisfação burguesa: nos três casos o real desmorona, e por trás dele tenta-se manter a tensão irritante do contraditório. No caso dos escritores-viajantes, o ardil é manifesto: eles suprimem o exotismo porque sempre se é exótico em relação a alguém, e eles não querem sê-lo; destroem as tradições e a história para fugir à sua situação histórica; querem esquecer que a consciência mais lúcida está sempre ancorada em algum lugar, a fim de operar uma libertação fictícia por meio de um internacionalismo abstrato, realizando pelo universalismo uma aristocracia de fachada.

Drieu la Rochelle, como Morand, utiliza às vezes a autodestruição por exotismo: num de seus romances, o Alhambra torna-se um jardim público de província, seco e árido sob um céu monótono. Mas, através da destruição literária do objeto, do amor, através de vinte anos de loucuras e amarguras, o que ele tentou alcançar foi a destruição de si mesmo: foi ele a mala vazia, o fumador de ópio e, por fim, a vertigem da morte o atirou na direção do nacional-socialismo. Gilles, o romance de sua vida, dourado e sórdido, demonstra claramente que ele era um irmão-inimigo dos surrealistas. Seu nazismo, que também não passava de um apetite de conflagração universal, se revela, na prática, tão ineficaz quanto o comunismo de Breton. Ambos são “intelectuais”, ambos se aliam às coisas temporais com inocência e desinteresse. Mas os surrealistas são mais saudáveis: seu mito de destruição dissimula um enorme e magnífico apetite; querem aniquilar tudo, exceto a si mesmos, como prova o seu horror às doenças, aos vícios, às drogas. Drieu, espírito melancólico e mais autêntico, meditou sobre sua morte: é por odiar a si mesmo que odeia seu país e os homens. Todos partiram à procura do absoluto e, como estavam cercados por todos os lados pelo relativo, identificaram o absoluto com o impossível. Todos hesitaram entre dois papéis: arautos de um mundo novo, ou liquidadores do antigo. Mas, como na Europa do pós-guerra era mais fácil discernir os sinais da decadência do que os da renovação, todos escolheram a liquidação. E, para tranquilizar sua consciência, restabeleceram o prestígio do velho mito heraclitiano segundo o qual a vida nasce da morte. Todos foram obsedados por esse ponto imaginário gama, único imóvel num mundo em movimento, em que a destruição, por ser plena e sem esperança, se identifica com a construção absoluta. Todos ficaram fascinados pela violência, viesse de onde viesse; foi pela violência que quiseram libertar o homem de sua condição humana. Eis por que se aproximaram dos partidos extremistas, atribuindo-lhes gratuitamente intenções apocalípticas. Todos foram logrados: a Revolução não se fez, o nazismo foi derrotado. Viveram numa época confortável e pródiga, em que o desespero ainda era um luxo. Condenaram seu país porque este ainda estava em meio à insolência da vitória; denunciaram a guerra porque acreditavam que a paz seria duradoura. Todos foram vítimas do desastre de 1940: é que chegou o momento da ação e nenhum deles estava armado para ela. Uns se mataram, outros partiram para o exílio; os que voltaram continuam exilados entre nós. Foram os anunciadores da catástrofe no tempo das vacas gordas; no tempo das vacas magras, não têm mais nada a dizer[6].

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À margem desses filhos pródigos, alinhados, que encontram mais imprevisto e loucura na casa de seu pai do que nas veredas da montanha e nas trilhas do deserto; à margem dos grandes cantores do desespero, dos filhos pródigos mais jovens para os quais ainda não chegou a hora da volta ao lar, floresce um humanismo discreto. Prévost, Pierre Bost, Chamson, Aveline, Beucler têm aproximadamente a idade de Breton e de Drieu. Tiveram estreias brilhantes: Bost ainda estava na escola secundária quando Copeau encenou sua peça O imbecil; Prévost já era bem conhecido desde a Escola Normal. Mas em sua glória nascente permaneceram modestos; não desejam representar o papel de Ariéis do capitalismo, não pretendem ser malditos nem profetas. Prévost, quando lhe perguntaram por que escrevia, respondeu: “Para ganhar a vida”. Na época, essa frase me chocou: é que na minha cabeça ainda persistiam fragmentos dos grandes mitos literários do século XIX. E, de resto, ele estava enganado: não se escreve para ganhar a vida. Mas aquilo que tomei por cinismo fácil era, na verdade, a vontade de pensar de uma maneira dura, lúcida e, se preciso, desagradável. Em plena reação contra o satanismo e o angelismo, esses autores não queriam ser santos nem bestas-feras: apenas homens. Foram talvez os primeiros, desde o Romantismo, que não se viam como aristocratas do consumo, mas como trabalhadores caseiros, do tipo dos encadernadores e das rendeiras. Não foi com o intuito de permitir-se vender sua mercadoria pela melhor oferta que consideraram a literatura como um ofício, mas, ao contrário, para se recolocarem, sem humildade nem orgulho, dentro de uma sociedade laboriosa. Um ofício se aprende e, além disso, quem o exerce não deve desprezar a clientela: assim, esboçavam também uma reconciliação com o público. Demasiado honestos para se julgarem geniais e exigirem os direitos que isso implica, fiavam-se mais no trabalho do que na inspiração. Faltou-lhes, talvez, aquela confiança absurda em sua boa estrela, aquele orgulho iníquo e cego que caracteriza os grandes homens[7]. Todos possuíam a sólida cultura interessada que a Terceira República concedia a seus futuros funcionários. E quase todos se tornaram funcionários públicos, fiscais do Senado ou da Câmara, professores, curadores de museus. Mas como a maioria deles provinha de meios modestos, não se preocupavam em empregar seu saber na defesa das tradições burguesas. Nunca desfrutaram dessa cultura como propriedade histórica; viram nela apenas um instrumento precioso para se tornarem homens. De resto, tinham em Alain um mentor que detestava a história. Convencidos, como ele, de que o problema moral é o mesmo em qualquer época, viam a sociedade num corte instantâneo. Tão hostis à psicologia quanto às ciências históricas, sensíveis às injustiças sociais, mas muito cartesianos para acreditarem na luta de classes, para eles a única tarefa era exercer seu ofício de homens, contra as paixões e os erros apaixonados, contra os mitos, pela utilização incansável da vontade e da razão. Amaram os humildes, os operários parisienses, artesãos, pequeno-burgueses, empregados, homens da estrada, e a preocupação que tinham de relatar esses destinos individuais os levou, por vezes, a cortejar o populismo. Mas, diferentemente dessa sequela do naturalismo, nunca admitiram que o determinismo social e psicológico formasse a trama das existências humildes; e, ao contrário do realismo socialista, não quiseram ver em seus heróis as vítimas sem esperança da opressão social. Em cada caso, esses moralistas se empenharam em salientar o papel da vontade, da paciência, do esforço, mostrando as falhas como erros e o sucesso como mérito. Raramente se ocuparam dos destinos excepcionais, mas quiseram mostrar que é possível ser homem mesmo na adversidade.

Hoje vários deles estão mortos, outros calaram-se ou produzem a longos intervalos. Grosso modo, pode-se dizer que esses autores, cuja decolagem foi tão brilhante e que, por volta de 1927, conseguiram formar um “Clube dos que têm menos de trinta anos”, ficaram quase todos pelo caminho. É preciso levar em conta, naturalmente, os acidentes individuais, mas o fato é tão surpreendente que pede uma explicação mais geral. De fato, não lhes faltou talento nem fôlego e, do ponto de vista que nos interessa, devem ser considerados precursores: renunciaram à solidão orgulhosa do escritor, amaram seu público, não tentaram justificar os privilégios adquiridos, não meditaram sobre a morte ou sobre o impossível, mas quiseram dar-nos regras de vida. Foram muito lidos, bem mais, seguramente, do que os surrealistas. Contudo, quando se quer lembrar as principais tendências literárias do período entreguerras, é no surrealismo que se pensa. De onde vem o fracasso desses escritores?

Creio que ele se explica, por paradoxal que pareça, pelo público que escolheram. Por volta de 1900, por ocasião de seu triunfo no Caso Dreyfus, uma pequena burguesia laboriosa e liberal tomou consciência de si mesma. É anticlerical e republicana, antirracista, individualista, racionalista e progressista. Orgulhosa de suas instituições, aceita modificá-las, mas não subvertê-las. Não despreza o proletariado, mas se sente demasiado próxima deste para ter consciência de que o oprime. Vive mediocremente, às vezes até em más condições, mas não aspira tanto à fortuna, às grandezas inacessíveis, como a melhorar seu padrão de vida, dentro de limites bem estreitos. Acima de tudo, quer viver. E viver, para ela, significa: escolher seu ofício, exercê-lo com consciência e até paixão, manter no trabalho certa iniciativa, exercer controle eficaz sobre seus representantes políticos, exprimir-se livremente sobre os assuntos de Estado, criar seus filhos com dignidade. Cartesiana por desconfiar das ascensões muito bruscas e por mais um fator: ao contrário dos românticos, que sempre esperavam que a felicidade fosse desabar sobre eles como uma catástrofe, pensa mais em vencer a si mesma do que em alterar os rumos do mundo. Essa classe, acertadamente batizada de “média”, ensina a seus filhos que todo excesso é indesejável e que o melhor é inimigo do bem. É favorável às reivindicações operárias, desde que permaneçam no terreno estritamente profissional. Não tem história nem senso histórico, pois não possui nem passado nem tradições, ao contrário da grande burguesia; nem tampouco a imensa esperança de um futuro, ao contrário da classe operária. Como não crê em Deus, mas precisa de imperativos muito estritos para dar sentido às privações que suporta, uma de suas preocupações intelectuais foi fundar uma moral laica. A universidade, que pertence por inteiro a essa classe média, empenhou-se sem sucesso nesse propósito por vinte anos, através dos escritos de Durkheim, de Brunschvicg, de Alain. Ora, esses professores universitários, direta ou indiretamente, foram os mestres dos escritores que estamos considerando. Esses jovens, saídos da pequena burguesia, preparados por professores pequeno-burgueses, na Sorbonne ou nas grandes escolas, para exercer profissões pequeno-burguesas, voltaram à sua classe de origem quando começaram a escrever. Melhor dizendo, nunca a deixaram. Transportaram para seus romances e suas novelas, melhorada, transformada em casuística, essa moral cujos preceitos todo mundo conhecia, e cujos princípios ninguém encontrou. Insistiram nas belezas e nos riscos, na austera grandeza do ofício; não cantaram o amor louco, mas antes a amizade conjugal e esse empreendimento em comum que é o casamento. Fundaram seu humanismo sobre a profissão, a amizade, a solidariedade social e o esporte. Assim, a pequena burguesia, que já tinha seu partido, o radical-socialismo, sua associação de ajuda mútua, a Liga dos Direitos do Homem, sua sociedade secreta, a franco-maçonaria, seu jornal diário, L’Oeuvre, ganhou também seus escritores, e até sua revista literária semanal, que simbolicamente se chamou Marianne. Chamson, Bost, Prévost e seus amigos escreveram para um público de funcionários, professores universitários, empregados qualificados, médicos etc. Fizeram uma literatura radical-socialista.

Ora, o radicalismo é a grande vítima dessa guerra. Desde 1910, já realizara seu programa; viveu trinta anos com o impulso da velocidade adquirida. Quando encontrou seus escritores, já era um sobrevivente. Hoje desapareceu definitivamente. A política radical, uma vez obtido o remanejamento do pessoal administrativo e a separação entre a Igreja e o Estado, só podia tornar-se oportunismo e, para sobreviver momentaneamente, pressupunha a existência da paz social e da paz internacional. Duas guerras em vinte e cinco anos e a exasperação da luta de classes foram demais: o partido não resistiu. Porém, mais que o partido, o espírito radical é que foi vítima das circunstâncias. Esses escritores, que não fizeram a Primeira Guerra e não viram chegar a Segunda, que não quiseram acreditar na exploração do homem pelo homem, mas apostaram na possibilidade de viver honesta e modestamente na sociedade capitalista, cuja classe de origem, em seguida transformada em seu público, privou do senso da história, sem lhes dar em contrapartida a noção de um absoluto metafísico, não tiveram o senso do trágico na época mais trágica de todas, nem o senso da morte quando a morte ameaçava a Europa inteira, nem o senso do Mal, quando um momento tão breve os separava da mais cínica tentativa de aviltamento. Limitaram-se, por probidade, a relatar-nos vidas medíocres e sem grandeza, enquanto as circunstâncias forjavam destinos excepcionais, tanto no Mal como no Bem; na véspera de uma renovação poética – mais aparente que real, diga-se a bem da verdade –, sua lucidez dissipou neles essa má-fé que é uma das fontes da poesia; sua moral, que conseguia amparar os corações na vida cotidiana, que talvez os tivesse amparado durante a Primeira Guerra Mundial, revelou-se insuficiente para as grandes catástrofes. Nessas épocas o homem se volta para Epicuro ou para o estoicismo, e esses autores não eram nem estoicos nem epicuristas[8], ou então pede socorro às forças irracionais, e eles haviam decidido não lançar o olhar para além de sua razão. Assim, a história roubou-lhes o público, tal como roubou os eleitores ao partido radical. Calaram-se, imagino, de desgosto, incapazes de adaptar sua sabedoria comportada às loucuras da Europa. Como, após vinte anos de profissão, não encontraram nada para nos dizer no momento de nossas piores agruras, seu trabalho foi vão.

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Resta, então, a terceira geração, a nossa, que começou a escrever depois da derrota, ou um pouco antes da guerra. Não quero falar dela antes de mostrar o clima em que se deu sua aparição. Para começar, o clima literário: os alinhados, os extremistas e os radicais povoavam nosso céu. Cada uma dessas estrelas exercia, à sua maneira, influência sobre a terra, e todas essas influências combinadas compunham para nós a ideia mais estranha, mais irracional, mais contraditória de literatura. Essa ideia, que chamarei de objetiva, pois pertence ao espírito objetivo da época, nós a respiramos junto com o próprio ar do nosso tempo. De fato, qualquer que tenha sido o cuidado desses escritores em se distinguirem uns dos outros, suas obras, no espírito dos leitores, onde coexistiam, contaminaram-se reciprocamente. Além disso, se as diferenças são profundas e nítidas, não faltam os traços comuns. Para começar, é surpreendente que nem os radicais nem os extremistas tivessem preocupação com a história, se bem que aqueles se alinhassem com a esquerda progressista, e estes, com a esquerda revolucionária: os primeiros situam-se no nível da repetição kierkegaardiana, e os segundos, no nível do instante, isto é, da síntese aberrante entre a eternidade e o presente infinitesimal. Nessa época em que a opressão histórica nos esmagava, apenas a literatura dos alinhados oferecia algum gosto pela história e algum senso histórico. Mas como se tratava de justificar os privilégios, consideravam no desenvolvimento das sociedades apenas a ação do passado sobre o presente. Hoje sabemos as razões dessa recusa, que são sociais: os surrealistas são “intelectuais”, a pequena burguesia não tem tradições nem futuro; a grande burguesia saiu da fase da conquista e procura preservar-se. Porém essas atitudes diversas se integraram, produzindo um mito objetivo segundo o qual a literatura deveria escolher temas eternos, ou ao menos inatuais. Além disso, nossos predecessores só dispunham de uma única técnica romanesca: a que herdaram do século XIX francês. Ora, como vimos acima, nada pode haver de mais hostil a uma visão histórica da sociedade.

Alinhados e radicais utilizaram a técnica tradicional: estes, porque eram moralistas e intelectualistas, e queriam compreender a partir das causas; aqueles, porque a técnica servia a seus propósitos: por sua negação sistemática da mudança, a técnica tradicional ressaltava melhor a perenidade das virtudes burguesas; por trás dos vãos tumultos abolidos, deixava entrever essa ordem fixa e misteriosa, essa poesia imóvel que desejavam desvendar em suas obras; graças a ela, esses novos eleatas escreviam contra o tempo, contra a mudança, desencorajavam os agitadores e os revolucionários, mostrando-lhes seus empreendimentos já no passado, antes mesmo de serem iniciados. Foi lendo esses livros que apreendemos essa técnica, que foi inicialmente nosso único meio de expressão. Espíritos privilegiados calcularam, no momento em que começávamos a escrever, o “tempo ótimo” ao fim do qual um evento histórico pode tornar-se objeto de um romance. Cinquenta anos é demais, ao que parece: não se entra mais no clima. Dez, não é o bastante: falta o recuo necessário. Assim nos inclinavam suavemente a ver na literatura o reino das considerações intempestivas.

Aliás, esses grupos inimigos articulavam alianças entre si; os radicais por vezes se aproximavam dos alinhados: afinal, todos tinham a ambição comum de se reconciliar com o leitor e de suprir-lhe honestamente as necessidades: sem dúvida, as duas clientelas diferiam sensivelmente, mas passava-se continuamente de uma a outra, de modo que a esquerda do público dos alinhados formava a direita do público radical. Em contrapartida, se os escritores radicais percorreram, por vezes, um trecho do caminho junto com a esquerda política; se, quando o partido radical-socialista aderiu à Frente Popular, decidiram todos juntos colaborar no Vendredi, nunca se aliaram à extrema-esquerda literária, isto é, aos surrealistas. Os extremistas, ao contrário, têm traços comuns com os alinhados, mesmo a contragosto: uns e outros afirmam que a literatura tem por objeto um determinado além inefável, que se pode apenas sugerir, e que ela é, por essência, a realização imaginária do irrealizável. Este é um dado particularmente sensível quando se trata da poesia: enquanto os radicais a expulsam, por assim dizer, da literatura, os alinhados impregnam de poesia seus romances. Este fato já foi observado muitas vezes, pois é um dos mais importantes da história literária contemporânea; mas ainda não se descobriu sua razão: é que os escritores burgueses se empenhavam em demonstrar que não existe vida, por mais burguesa e cotidiana que seja, que não tenha seu além poético, e eles se consideravam os catalisadores da poesia burguesa. Ao mesmo tempo, os extremistas identificavam à poesia, isto é, ao além inconcebível da destruição, todas as formas de atividade artística. Objetivamente essa tendência se traduziu, no momento em que começávamos a escrever, numa confusão de gêneros e no desconhecimento da essência romanesca; e não é raro, ainda hoje, que os críticos recriminem uma obra em prosa pela falta de poesia.

Toda essa literatura é de tese, pois esses autores, ainda que protestem veementemente o contrário, sempre defendem ideologias. Extremistas e alinhados afirmam detestar a metafísica, mas como qualificar essas declarações reiteradas ao fim das quais o homem é grande demais para si mesmo e, por toda uma dimensão de seu ser, escapa às determinações psicológicas e sociais? Quanto aos radicais, mesmo proclamando que a literatura não se faz com bons sentimentos, seu interesse principal é moralizador. Tudo isso se traduz, no espírito objetivo, em oscilações maciças do conceito de literatura: ela é pura gratuidade; ela é ensino; só existe negando a si mesma e renascendo das próprias cinzas; ela é o impossível, o inefável para além da linguagem; é um ofício austero que se dirige a uma clientela determinada, trata de esclarecê-la sobre suas necessidades e se esforça para satisfazê-las; ela é terror; ela é retórica. Nisso intervêm os críticos e tentam, para sua própria comodidade, unificar as concepções opostas: inventam a noção de mensagem, de que falamos acima. Entenda-se, tudo é mensagem: há uma mensagem de Gide, de Chamson, de Breton, que vem a ser, naturalmente, aquilo que eles não quiserem dizer, aquilo que a crítica os faz dizer contra sua vontade. Surge daí uma nova teoria que se agrega às precedentes: nessas obras delicadas, que se destroem a si mesmas, em que a palavra é só um guia hesitante que se detém a meio-caminho e deixa o leitor continuar sozinho, e cuja verdade está muito além da linguagem, num silêncio indiferenciado, é sempre a contribuição involuntária do escritor que tem mais importância. Uma obra só é bela quando, de alguma forma, escapa a seu autor. Se ele retrata a si mesmo sem ter para isso um projeto, se as suas personagens escapam a seu controle e lhe impõem seus caprichos, se as palavras sob sua pena mantêm uma espécie de independência, então o escritor produz sua melhor obra. Boileau ficaria assombrado se lesse esses conceitos, que se encontram com frequência nos artigos de nossos críticos: “o autor sabe bem demais o que quer dizer, é lúcido demais, as palavras lhe vêm com demasiada facilidade, ele faz da pena o que quer, não é dominado pelo seu tema”. Nesse ponto, infelizmente, todos estão de acordo: para os alinhados, a essência da obra é a poesia, portanto, o além, e, por um deslizamento imperceptível, aquilo que escapa ao próprio autor, a parte do diabo; para os surrealistas, a única norma válida de escrita é o automatismo, e até mesmo os alinhados, seguindo Alain, insistem em que uma obra só pode ser considerada concluída depois que se torna representação coletiva, e em que ela comporta então, por tudo o que gerações de leitores nela introduziram, infinitamente mais do que no momento de sua concepção. Essa ideia, aliás justa, põe em evidência o papel do leitor na constituição da obra; mas, na época, contribuiu para aumentar a confusão. Em poucas palavras, o mito objetivo inspirado nessas contradições é que toda obra duradoura tem seu segredo. Isso ainda seria aceitável se se tratasse de um segredo de fabricação: mas não, o segredo começa onde se detêm a técnica e a vontade; ali alguma coisa se reflete do alto na obra de arte e nela se quebra como o sol nas ondas. Em suma, da poesia pura à escrita automática, o clima literário tende ao platonismo. Nessa época mística sem fé, ou melhor, mística de má-fé, uma corrente predominante da literatura leva o escritor a demitir-se em face de sua obra, assim como uma corrente política o leva a demitir-se em face do partido. Diz-se que Fra Angélico pintava de joelhos; se for verdade, muitos escritores se assemelham a ele, mas vão ainda mais longe: acreditam que basta escrever de joelhos para escrever bem.

Quando ainda estávamos nos bancos do liceu ou nos anfiteatros da Sorbonne, a sombra espessa do além se estendia sobre a literatura. Ali conhecemos o gosto amargo e frustrante do impossível, o gosto da pureza, da impossível pureza; sentimo-nos, alternadamente, insatisfeitos ou Ariéis do consumo; acreditamos que se podia salvar a vida pela arte e depois, no trimestre seguinte, que nunca se salvava nada e que a arte era o balanço lúcido e desesperado da nossa perdição; oscilamos entre o terror e a retórica, entre a literatura-martírio e a literatura-ofício: se alguém se pusesse a ler com atenção nossos escritos, encontraria aí, sem dúvida, como cicatrizes, os traços dessas várias tentações, mas precisaria ter tempo para perder: tudo aquilo já está muito distante de nós. Acontece que, como é escrevendo que o autor forja suas ideias sobre a arte de escrever, a coletividade vive das concepções literárias da geração precedente e os críticos, que as compreenderam com vinte anos de atraso, exultam em servir-se delas como pedras de toque para julgar as obras contemporâneas. De resto, a literatura do período entre as duas guerras sobrevive a duras penas: as glosas de Georges Bataille sobre o impossível não valem o menor achado surrealista, sua teoria do dispêndio não passa de eco enfraquecido das grandes festas passadas; o letrismo é um sucedâneo, uma imitação insípida e conscienciosa da exuberância dadaísta. Mas falta entusiasmo; sente-se a aplicação, a pressa de aparecer; nem André Dhôtel, nem Marius Grout se equiparam a Alain Fournier; muitos dos antigos surrealistas entraram no PC como os saint-simonianos que, por volta de 1880, ingressaram nos conselhos de administração da grande indústria; nem Cocteau, nem Mauriac, nem Green encontram quem os desafie; Giraudoux encontrou mais de cem, mas todos medíocres; a maior parte dos radicais se calaram. É que a distância se manifestou, não entre o autor e seu público – o que, afinal, estaria dentro da grande tradição literária do século XIX –, mas entre o mito literário e a realidade histórica.

Essa distância, nós a sentimos bem antes de publicar nossos primeiros livros, já a partir de 1930[9]. Foi nessa época que a maioria dos franceses descobriu, com estupor, sua historicidade. É verdade que tinham aprendido na escola que o homem joga, ganha ou perde, no seio da história universal, mas não tinham aplicado esse princípio a seu próprio caso: pensavam obscuramente que era bom para os mortos serem históricos. O que chama a atenção nas vidas passadas é que elas se desenrolam sempre às vésperas de grandes eventos que ultrapassam as previsões, frustram as expectativas, subvertem os projetos e lançam luz nova sobre os anos decorridos. Trata-se de logro, escamoteação permanente, como se os homens fossem todos como Charles Bovary, que, ao descobrir, depois da morte da mulher, as cartas que ela recebia dos amantes, vê ruir atrás de si, de repente, vinte anos já vividos de felicidade conjugal. No século do avião e da eletricidade, não pensávamos estar sujeitos a essas surpresas, não nos parecia que estivéssemos às vésperas de nada; ao contrário, tínhamos o vago orgulho de nos sentir no dia seguinte à última convulsão histórica. Ainda que às vezes nos inquietássemos com o rearmamento da Alemanha, acreditávamos estar engajados numa longa estrada retilínea, tínhamos a certeza de que nossas vidas seriam urdidas tão somente pelas circunstâncias individuais e balizadas por descobertas científicas e reformas auspiciosas. A partir de 1930, a crise mundial, o surgimento do nazismo, os acontecimentos na China, a guerra civil espanhola nos abriram os olhos; pareceu-nos que o chão ia faltar debaixo de nossos pés e, de súbito, para nós também começou a grande escamoteação histórica: esses primeiros anos da grande Paz mundial de repente tinham de ser considerados como os últimos do período entre as duas guerras; em cada promessa que havíamos saudado era preciso ver uma ameaça; cada dia que tínhamos vivido revelava sua verdadeira face: a ele nos havíamos abandonado sem desconfiança, e eis que ele nos encaminhava em direção a uma nova guerra, com uma rapidez secreta, com um rigor oculto sob um ar despreocupado; nossa vida de indivíduos, que parecera depender de nossos esforços, de nossas virtudes e falhas, de nossa boa ou má fortuna, da boa ou má vontade de um punhado de pessoas, de repente nos pareceu governada, até os mínimos detalhes, por forças obscuras e coletivas, e suas circunstâncias mais íntimas refletiam o estado do mundo inteiro. De repente nos sentimos bruscamente situados: sobrevoar os fatos, como gostavam de fazer nossos predecessores, tornou-se impossível; havia uma aventura coletiva que se desenhava no porvir e era a nossa aventura, a que permitiria mais tarde datar nossa geração, com seus Ariéis e seus Calibãs; algo nos aguardava nas sombras do futuro, algo que nos revelaria a nós mesmos, talvez na iluminação de um derradeiro instante antes de nos aniquilar; o segredo de nossos gestos e de nossas determinações mais íntimas estava adiante de nós, na catástrofe a que nossos nomes iriam se vincular. A historicidade refluiu sobre nós; em tudo o que tocávamos, no ar que respirávamos, na página que líamos, naquela que escrevíamos, no próprio amor, descobríamos algo como um gosto de história, isto é, uma mistura amarga e ambígua de absoluto e transitório. Que necessidade tínhamos de construir pacientemente objetos autodestrutivos, se cada momento de nossas vidas nos era sutilmente escamoteado no instante em que o desfrutávamos, se cada presente que vivíamos com entusiasmo, como um absoluto, era atingido por uma morte secreta, seu sentido nos parecia estar fora dele, para outros olhos que ainda não tinham visto a luz do dia, e de certa forma parecia ser já passado em sua própria presença. De resto, em que nos importava a destruição surrealista que deixa tudo como está, quando uma destruição a ferro e fogo ameaçava tudo, inclusive o surrealismo? Foi Miró, creio, que pintou uma Destruição da pintura. Mas as bombas incendiárias podiam destruir ao mesmo tempo a pintura e sua destruição. Nem tampouco teríamos sonhado em exaltar as refinadas virtudes da burguesia: para fazê-lo, teria sido preciso acreditar que elas eram eternas, mas acaso sabíamos nós se, no dia seguinte, a burguesia francesa ainda existiria? Tampouco cogitávamos em ensinar, como haviam feito os radicais, a melhor maneira de levar, em meio à paz, uma vida de homem de bem, pois nossa maior preocupação era saber se seria possível continuar sendo homem em meio à guerra. A pressão da história nos revelava subitamente a interdependência das nações – um incidente em Xangai era uma cutilada em nosso destino –, mas, ao mesmo tempo, nos recolocava, a despeito de nós mesmos, na coletividade nacional: foi preciso reconhecer que as viagens da geração anterior, seu exotismo suntuoso e todo o cerimonial do turismo de luxo não passavam de aparência: esses viajantes levavam consigo a França por toda parte, viajavam porque a França ganhara a guerra e o câmbio lhes era favorável: acompanhavam o franco; tinham, como ele, mais acesso a Sevilha ou Palermo do que a Zurique ou Amsterdã. Quanto a nós, quando chegamos à idade de dar nossa volta ao mundo, a autonomia já matara os romances do turismo de luxo; e, de resto, nem tínhamos mais vontade de viajar. Eles se entretinham em encontrar por toda parte a marca do capitalismo, por um gosto perverso de uniformizar o mundo, ao passo que nós teríamos encontrado facilmente uma uniformidade bem mais ostensiva: canhões por toda parte. Além disso, viajantes ou não, diante do conflito que ameaçava nosso país, compreendemos que não éramos cidadãos do mundo, pois não havia jeito de nos transformarmos em suíços, suecos ou portugueses. O próprio destino de nossas obras estava ligado ao destino da França em perigo: nossos antecessores escreviam para almas desocupadas, mas, para o público a que nos iríamos dirigir, as férias tinham terminado: era um público formado de homens da nossa espécie que, como nós, aguardavam a guerra e a morte. A esses leitores sem horas de lazer, incessantemente absorvidos por uma só preocupação, um único assunto podia interessar: era sobre a sua guerra, sobre a sua morte que tínhamos de escrever. Brutalmente reintegrados à história, éramos acuados a fazer uma literatura de historicidade,

Mas o que faz a originalidade de nossa posição, creio eu, é que a guerra e a ocupação, precipitando-nos num mundo em ebulição, forçaram-nos também a redescobrir o absoluto no interior da própria relatividade. Para nossos predecessores, a regra do jogo era salvar a todos porque a dor redime, porque ninguém é perverso voluntariamente, porque não se pode sondar o coração do homem, porque a graça divina é distribuída equitativamente; isso significa que a literatura – exceto a extrema-esquerda surrealista que simplesmente badernava o jogo – tendia a estabelecer uma espécie de relativismo moral. Os cristãos não acreditavam mais no inferno; o pecado era o vazio de Deus, o amor carnal era o amor de Deus extraviado. Como a democracia tolerava todas as opiniões, mesmo as que visavam expressamente a destruí-la, o humanismo republicano, que se ensinava nas escolas, fazia da tolerância a primeira de suas virtudes: tolerava-se tudo, até a intolerância; nas ideias mais tolas, nos sentimentos mais vis, era preciso reconhecer verdades escondidas. Para o filósofo do regime, Léon Brunschvicg, que durante toda a vida assimilou, unificou, integrou, e formou três gerações, o mal e o erro não passavam de falsas aparências, frutos da separação, da limitação, da finitude; eles se aniquilavam desde que fossem destruídas as barreiras que compartimentalizavam os sistemas e as coletividades. Os radicais seguiam Augusto Comte ao entenderem o progresso como desenvolvimento da ordem; assim, a ordem já existe em potencial, como o boné do caçador no jogo da figura escondida; falta apenas descobri-la. Assim eles passavam o tempo, era seu exercício espiritual; a partir daí justificavam tudo, a começar por si mesmos. Os marxistas ao menos reconheciam a realidade da opressão e do imperialismo capitalista, da luta de classes e da miséria: mas a dialética materialista, como já demonstrei em outra oportunidade, resulta no desaparecimento conjunto do Bem e do Mal; resta apenas o processo histórico. Além disso, o comunismo estalinista não atribui tanta importância ao indivíduo: o sofrimento e a própria morte podem ser redimidos se contribuírem para apressar a hora da tomada do poder. A noção de Mal, abandonada, caiu nas mãos de alguns maniqueístas – antissemitas, fascistas, anarquistas de direita –, que se serviam dela para justificar seu azedume, sua inveja, sua incompreensão da história. Isso bastava para desacreditá-la. Para o realismo político, assim como para o idealismo filosófico, o Mal não era para ser levado a sério.

Ensinaram-nos a levá-lo a sério: não é nossa culpa nem nosso mérito termos vivido num tempo em que a tortura era um fato cotidiano. Chateaubriant, Oradour, a Rue des Saussaies, Tulle, Dachau, Auschwitz, tudo nos demonstrava que o Mal não é aparência, que o conhecimento pelas causas não o dissipa, que ele não se opõe ao Bem como uma ideia confusa se opõe a uma ideia clara, que ele não é o efeito de paixões que se poderiam curar, de um medo que se poderia superar, de um extravio passageiro que se poderia perdoar, de uma ignorância que se poderia esclarecer; que ele não pode de forma alguma ser mudado, retomado, reduzido, assimilado ao humanismo idealista, como aquela sombra que, segundo Leibniz, é necessária ao brilho do dia. Satã, afirmou um dia Maritain, é puro. Puro, isto é, sem mistura e sem remissão. Aprendemos a conhecer essa horrível, essa irredutível pureza: ela eclode na relação estreita e quase sexual do carrasco com sua vítima. Pois a tortura é em primeiro lugar uma tarefa de aviltamento: quaisquer que sejam os tormentos infligidos, é a vítima que decide, em última instância, qual o momento em que eles se tornam insuportáveis e em que é preciso falar; a suprema ironia dos suplícios é que o paciente, quando acaba por delatar, aplica sua vontade humana em negar que é homem, faz-se cúmplice de seus carrascos e se precipita, por um movimento próprio, na abjeção. O carrasco sabe disso, estreita esse momento de fraqueza, não só porque extrairá daí a informação que deseja, mas porque essa fraqueza lhe provará, uma vez mais, que ele tem razão em empregar a tortura, e que o homem é um animal que se deve levar na chibata; assim ele tenta aniquilar a humanidade em seu próximo. E em si mesmo também, indiretamente: essa criatura gemente, suada e emporcalhada, que implora misericórdia e se abandona com um consentimento desfalecido, com estertores de fêmea amorosa, e confessa tudo e exagera suas traições com fervor arrebatado, porque a consciência que tem de estar agindo mal é como uma pedra amarrada a seu pescoço, que a puxa cada vez mais para baixo, ele sabe que ela é feita à sua imagem e enfurecer-se contra ela é enfurecer-se contra si mesmo; se quiser escapar por sua conta dessa degradação total, tem como único recurso afirmar sua fé cega numa ordem de ferro, que contém como um espartilho nossas fraquezas imundas. Em suma, não tem outro recurso senão colocar o destino do homem nas mãos de potências desumanas. Chega um momento em que torturador e torturado estão de acordo: aquele, porque saciou numa só vítima, simbolicamente, seu ódio pela humanidade inteira; este, porque só consegue suportar sua culpa levando-a ao extremo, e só consegue tolerar o ódio que sente por si mesmo odiando também a todos os outros homens. Mais tarde o carrasco talvez seja enforcado; a vítima, caso escape, talvez se reabilite – mas quem esquecerá essa missa em que duas liberdades comungaram na destruição do humano? Sabemos que ela era celebrada por toda parte em Paris, enquanto comíamos, enquanto dormíamos, enquanto fazíamos amor; ouvimos ruas inteiras gritando e compreendemos que o Mal, fruto de uma vontade livre e soberana, é absoluto como o Bem. Dia virá, talvez, em que uma época feliz, debruçando-se sobre o passado, verá nesses sofrimentos e nessas vergonhas um dos caminhos que conduziram à sua Paz. Mas nós não estávamos do lado da história feita; estávamos, como já disse, situados de tal forma que cada minuto vivido nos aparecia como irredutível. Chegamos então, a despeito de nós mesmos, a esta conclusão, que parecerá chocante às almas delicadas: o Mal não pode ser redimido.

Mas, por outro lado, mesmo surrados, queimados, cegados, arrebentados, a maior parte dos resistentes não falaram; romperam o círculo do Mal e reafirmaram o humano, por si mesmos, por nós, até por seus torturadores. Fizeram-no sem testemunhas, sem socorro, sem esperança, muitas vezes até sem fé. Não se tratava, para eles, de crer no homem, mas de querê-lo. Tudo conspirava para desanimá-los: tantos sinais em seu redor, os rostos debruçados sobre eles, essa dor dentro deles, tudo concorria para fazê-los crer que não eram mais que insetos, que o homem é o sonho impossível de baratas e percevejos, e que ao despertar seriam vermes como todo mundo. Esse homem, era preciso inventá-lo, com sua carne martirizada, seus pensamentos encurralados, que já o traíam, a partir de nada, por nada, na absoluta gratuidade, pois é no interior do humano que se podem distinguir meios e fins, valores, preferências, mas eles ainda estavam na criação do mundo e só precisavam decidir soberanamente se dentro haveria algo mais que o reino animal. Eles se calavam e o homem nascia do seu silêncio. Nós o sabíamos, sabíamos que a cada instante do dia, nos quatro cantos de Paris, o homem era cem vezes destruído e reafirmado. Obcecados por esses suplícios, não passava semana sem que nos perguntássemos: “Se me torturassem, o que eu faria?” E essa questão nos levava necessariamente às fronteiras de nós mesmos e do humano, fazia-nos oscilar entre a no man’s land onde a humanidade se renega, e renega o deserto estéril de onde ela surge e se cria. Os que nos precederam imediatamente no mundo, que nos legaram sua cultura, sua sabedoria, seus costumes e seus provérbios, que construíram as casas onde morávamos e pontilharam os caminhos com estátuas de seus grandes homens, praticavam virtudes modestas e se confinavam nas regiões temperadas; suas culpas não os faziam cair tão baixo que não descobrissem, mais abaixo ainda, culpados maiores, nem seus méritos os levavam tão alto que não percebessem, mais acima, almas ainda mais meritórias; a perder de vista, seu olhar encontrava homens, os próprios ditados de que se serviam e que nos ensinaram – “um tolo sempre encontra um mais tolo que o admire”, “sempre se precisa de alguém menor que a gente” –, sua própria maneira de se consolar na aflição, lembrando, qualquer que fosse a desgraça, que havia desgraças piores, tudo indica que eles consideravam a humanidade como um meio natural e infinito, do qual não se pode jamais sair nem atingir os limites; morriam com a consciência tranquila e sem jamais ter explorado a própria condição. Por isso, seus escritores lhes ofereciam uma literatura de situações medianas. Mas nós não podíamos mais achar natural ser homens quando nossos melhores amigos, se presos, só podiam escolher entre a abjeção e o heroísmo, isto é, entre os dois extremos da condição humana, para além das quais não há nada. Se covardes e traidores, tinham acima de si todos os homens; se heroicos, todos os homens abaixo de si. Neste último caso, que foi o mais frequente, não sentiam mais a humanidade como um meio ilimitado, era neles uma débil chama, que tentavam manter acesa sozinhos, concentrava-se toda no silêncio que opunham a seus carrascos; em volta deles só havia a grande noite polar do inumano e do não saber, que eles nem sequer viam, que adivinhavam no frio glacial que os atravessava. Nossos pais sempre dispuseram de testemunhas e de exemplos. Para esses homens torturados não havia testemunha nem exemplo. Foi Saint-Exupéry quem afirmou, durante uma missão perigosa: sou minha própria testemunha. O mesmo se passava com eles: para um homem começa a angústia, o desamparo e o suor de sangue, quando só tem a si mesmo como testemunha; é então que ele bebe o cálice até as fezes, isto é, experimenta até o fim sua condição humana. É certo que estamos bem longe de ter sofrido, todos nós, essa angústia, mas ela nos perseguiu a todos como uma ameaça e uma promessa; por cinco anos, vivemos fascinados e, como não encarávamos nosso ofício de escritor com leviandade, essa fascinação se reflete em nossos escritos: tencionamos fazer uma literatura de situações extremas. Não pretendo, em absoluto, que nisso sejamos superiores a nossos antecessores. Muito pelo contrário, Bloch-Michel, que pagou pelo direito de falar, dizia em Tempos Modernos que é preciso menos virtude nas grandes circunstâncias do que nas pequenas; não cabe a mim decidir se ele tem razão, nem se é melhor ser jansenista do que jesuíta. Penso, antes, que é preciso um pouco de tudo e que um homem não pode ser uma coisa e outra ao mesmo tempo. Somos, portanto, jansenistas, porque nossa época nos fez assim e, como ela nos levou a atingir nossos limites, direi que somos todos escritores metafísicos. Penso que muitos dentre nós recusariam essa denominação ou não a aceitariam sem reservas, mas isso decorre de um mal-entendido: a metafísica não é uma discussão estéril sobre noções abstratas que escapam à experiência, mas esforço vivo para abranger, a partir de dentro, a condição humana em sua totalidade. Obrigados pelas circunstâncias a descobrir a pressão da história, como fez Torricelli com a pressão atmosférica, lançados pela dureza dos tempos nesse desamparo de onde se pode avistar até os extremos, até o absurdo, até a noite do não saber, nossa condição de homem, temos uma tarefa para a qual talvez não sejamos suficientemente fortes (não é a primeira vez que uma época, por falta de talento, falhou em sua arte e em sua filosofia). Essa tarefa consiste em criar uma literatura capaz de reunir e reconciliar o absoluto metafísico e a relatividade do fato histórico, e que designarei, à falta de outro nome, como literatura das grandes circunstâncias[10]. Não se trata, para nós, nem de nos evadirmos no eterno, nem de abdicar diante daquilo que o inefável Sr. Zaslavski chama, no Pravda, de “processo histórico”. As questões que o nosso tempo nos coloca e que permanecerão como nossas questões são de outra ordem: Como é possível fazer-se homem na história, pela história e para a história? Haverá uma síntese possível entre nossa consciência única, irredutível, e nossa relatividade, ou seja, entre um humanismo dogmático e um perspectivismo? Qual é a relação entre a moral e a política? Como assumir, para além de nossas intenções profundas, as consequências objetivas de nossos atos? A rigor, pode-se enfrentar esses problemas no plano abstrato, pela reflexão filosófica. Mas nós, que pretendemos vivenciá-los, isto é, sustentar nossos pensamentos pelas experiências fictícias e concretas que são os romances, de saída já dispomos da técnica que analisei acima, cujos fins são radicalmente opostos a nossos desígnios. Especialmente elaborada para relatar os eventos de uma vida individual no seio de uma sociedade estabilizada, essa técnica permitia registrar, descrever e explicar as flexões, os vetores, as involuções, a lenta desorganização de um sistema particular em meio a um universo em repouso; ora, a partir de 1940 ficamos no centro de um ciclone; quando tentávamos nos orientar, logo nos víamos às voltas com um problema de uma ordem de complexidade mais elevada, exatamente como a equação de segundo grau é mais complexa do que a de primeiro. Tratava-se de descrever as relações entre diferentes sistemas parciais e o sistema total que os contém, quando tanto aqueles como este se encontram em movimento e os movimentos se condicionam reciprocamente. No mundo estável do romance francês do pré-guerra, o autor, situado num ponto gama que representava o repouso absoluto, dispunha de parâmetros fixos para determinar os movimentos de suas personagens. Mas nós, embarcados num sistema em plena evolução, só podíamos conhecer movimentos relativos; enquanto nossos predecessores acreditavam localizar-se fora da história, alçados num bater de asas a cumes de onde julgavam os eventos em verdade, as circunstâncias nos fizeram mergulhar em nosso tempo: Estando dentro dele, como poderíamos divisar-lhe o conjunto? Uma vez situados, os únicos romances que poderíamos escrever eram romances de situação, sem narradores internos nem testemunhas oniscientes; em suma, se quiséssemos dar conta de nossa época, devíamos fazer passar a técnica romanesca da mecânica newtoniana para a relatividade generalizada, povoar nossos livros de consciências semilúcidas e semiobscuras, dentre as quais talvez considerássemos algumas com mais simpatia do que outras, mas nenhuma teria um ponto de vista privilegiado sobre os acontecimentos, nem sobre si mesma, apresentar criaturas cuja realidade seria o tecido confuso e contraditório das apreciações que cada uma faria a respeito de todas – inclusive de si mesma – e todas a respeito de cada uma. Nenhuma dessas criaturas seria capaz de saber, de dentro, se as mudanças em seu destino resultavam de seus esforços, de seus erros, ou do curso do universo; devíamos, enfim, disseminar dúvidas, expectativas e incompletude, forçando o leitor a fazer suas próprias conjecturas, inspirando-lhe a sensação de que sua visão da intriga e das personagens era apenas uma opinião entre muitas outras, sem nunca conduzi-lo nem deixar que ele adivinhasse nossos sentimentos.

Mas, por outro lado, como acabo de frisar, nossa própria historicidade – já que a vivíamos no dia a dia – nos restituía esse absoluto que de início ela parecia nos ter tirado. Se nossos projetos, nossas paixões, nossos atos eram explicáveis e relativos do ponto de vista da história feita, nesse desamparo eles retomavam a incerteza e os riscos do presente, sua densidade irredutível. Não ignorávamos que uma época viria em que os historiadores poderiam percorrer em largas passadas esse período que vivíamos fervorosamente, minuto a minuto, esclarecendo nosso passado com aquilo que teria sido nosso porvir, decidindo quanto ao valor de nossos empreendimentos por seus resultados, quanto à sinceridade das nossas intenções por seu êxito; mas a irreversibilidade do nosso tempo só pertencia a nós; era preciso salvar-nos ou perder-nos, às apalpadelas, nesse tempo, irreversível; os eventos desabavam sobre nós como salteadores e era preciso realizar nosso ofício de homens em face do incompreensível e do insustentável, apostar, conjecturar sem provas, empreender na incerteza e perseverar sem esperança; nossa época poderá ser explicada, mas isso não impede que, para nós, ela tenha sido inexplicável, isso não tirará de nós seu gosto amargo, esse gosto que ela terá tido só para nós e que desaparecerá conosco. Os romances de nossos antecessores relatavam os eventos no passado e a sucessão cronológica deixava entrever as relações lógicas e universais, as verdades eternas; as menores mudanças já estavam incluídas; o momento vivido nos era entregue já repensado. Dentro de dois séculos, essa técnica talvez convenha a um autor que decida escrever um romance histórico sobre a Guerra de 1940. Mas nós, se viéssemos a refletir sobre nossos escritos futuros, ficávamos persuadidos de que nenhuma arte seria verdadeiramente nossa se não restituísse aos fatos seu frescor brutal, sua ambiguidade, sua imprevisibilidade; ao tempo, seu curso; ao mundo, sua opacidade ameaçadora; ao homem, sua longa paciência. Não desejávamos deleitar nosso público, falando-lhe de sua superioridade sobre o mundo morto; queríamos agarrá-lo pelo pescoço: que cada personagem seja uma armadilha; que nela o leitor caia, e que seja lançado de uma consciência a outra, como de um universo absoluto e irremediável a outro universo igualmente absoluto; que o leitor se sinta incerto até quanto à incerteza dos heróis, inquieto quanto às inquietudes deles, ultrapassado pelo presente das personagens e vergado sob o peso de seu futuro, investido pelas percepções e sentimentos delas como se fossem altas falésias intransponíveis; que o leitor sinta, enfim, que cada variação de humor das personagens, cada movimento de seus espíritos compreende a humanidade inteira e constitui, em seu tempo e lugar, no seio da história e a despeito da permanente escamoteação do presente pelo porvir, uma descida irrecorrível na direção do Mal ou uma escalada na direção do Bem, que nenhum futuro poderá contestar. É isso que explica o sucesso que obtiveram entre nós as obras de Kafka e os romancistas norte-americanos. De Kafka já se disse tudo: que queria descrever a burocracia, a progressão da doença, a condição dos judeus na Europa Oriental, a busca da inacessível transcendência, o mundo da graça quando a graça falta. Tudo isso é verdadeiro, eu diria que quis descrever a condição humana. Mas o que nos tocava especialmente é que, nesse processo perpetuamente em curso, que termina bruscamente e mal, cujos juízes são desconhecidos e inacessíveis, nos vãos esforços dos acusados para saber de que são acusados, nessa defesa pacientemente arquitetada, que acaba por se voltar contra o defensor e figurar entre as provas da acusação, nesse presente absurdo que as personagens vivem aplicadamente e cujas chaves estão ausentes, nisso tudo reconhecíamos a história, e a nós mesmos na história. Estávamos longe de Flaubert e de Mauriac: havia ali, ao menos, um procedimento inédito para apresentar destinos logrados, solapados na base, e minuciosamente, engenhosamente, modestamente vividos, para expressar a verdade irredutível das aparências e fazer pressentir, adiante delas, outra verdade, que sempre nos será recusada. Não se imita Kafka, não se refaz Kafka: era preciso extrair de seus livros um encorajamento precioso e ir procurar outra coisa. Quanto aos norte-americanos, não foi por sua crueza nem por seu pessimismo que nos tocaram: reconhecemos neles homens ultrapassados pelos acontecimentos, perdidos num continente grande demais, assim como nós estávamos perdidos na história, e que tentavam, sem tradições, com os parcos meios disponíveis, expressar seu estupor e seu abandono, em meio a acontecimentos incompreensíveis. O sucesso de Faulkner, de Hemingway, de Dos Passos não foi fruto de esnobismo, pelo menos não de início: foi o reflexo defensivo de uma literatura que, sentindo-se ameaçada porque suas técnicas e seus mitos não mais lhe permitiam fazer frente à situação histórica, recorreu a métodos estrangeiros para poder cumprir sua função em novas conjecturas. Assim, no momento em que enfrentávamos o público, as circunstâncias nos forçavam a romper com nossos predecessores: eles haviam optado pelo idealismo literário e nos apresentavam os acontecimentos através de uma subjetividade privilegiada; para nós, o relativismo histórico, afirmando a equivalência a priori de todas as subjetividades[11], devolvia ao acontecimento vivo todo o seu valor e nos reconduzia, em literatura, pelo subjetivismo absoluto, ao realismo dogmático. Eles julgavam conferir à louca tarefa de narrar uma justificação ao menos aparente, lembrando a todo instante, em seus relatos, explícita ou alusivamente, a existência de um autor; nós desejávamos que nossos livros pairassem sozinhos no ar e que as palavras, em lugar de apontar para trás, para aquele que as traçara, esquecidas, solitárias, despercebidas, fossem como tobogãs a despejar os leitores no meio de um universo sem testemunhas; em suma, que nossos livros existissem da mesma maneira que as coisas, as plantas, os fatos, e não em primeiro lugar como produtos do homem. Queríamos banir de nossas obras a Providência, tal como a havíamos banido do nosso mundo. A beleza, creio, não a definiríamos mais pela forma, nem mesmo pela matéria, mas pela densidade do ser[12].

Já demonstrei como a literatura “retrospectiva” traduz, em seus autores, uma tomada de posição extrínseca ao conjunto da sociedade e como aqueles que optam por narrar do ponto de vista da história já feita procuram negar seu próprio corpo, sua historicidade e a irreversibilidade do tempo. Esse salto no eterno é efeito direto do divórcio que assinalei entre o escritor e seu público. Inversamente, compreende-se sem dificuldade que nossa decisão de reintegrar o absoluto na história se faz acompanhar de um esforço para efetivar a reconciliação entre autor e leitor que os radicais e os alinhados já haviam iniciado. Quando pensa ter janelas para o eterno, o escritor perde contato com seus iguais, sente-se beneficiado por luzes que não pode comunicar à turba ignara que fervilha abaixo dele; mas, se já concluiu que não se escapa da própria classe pelos bons sentimentos, que não existe consciência privilegiada em lugar algum, e que as belas-letras não constituem atestado de nobreza; chegou-se a compreender que o melhor meio de ser atropelado por sua época é voltar-lhe as costas ou pretender elevar-se acima dela, e que não se chega a transcendê-la fugindo dela, mas sim assumindo-a para transformá-la, isto é, ultrapassando-a na direção do porvir mais próximo, então ele escreve por todos e com todos, porque o problema que procura resolver com seus meios próprios é o problema de todos. Aliás, aqueles dos nossos, que colaboraram em panfletos clandestinos, dirigiam-se em seus artigos à comunidade inteira. Não estávamos preparados para isso e não nos mostramos muito hábeis: a literatura de resistência não chegou a produzir grande coisa. Mas essa experiência nos levou a pressentir o que poderia ser uma literatura do universal concreto.

Nesses artigos anônimos, em geral só exercitávamos o espírito da pura negatividade. Em face de uma opressão manifesta e dos mitos que ela forjava dia a dia para se manter, a espiritualidade era uma recusa. Tratava-se, na maior parte do tempo, de criticar uma política, denunciar uma medida arbitrária, alertar contra um homem ou contra uma propaganda e, quando acontecia de glorificarmos um deportado ou um fuzilado, era por ele ter tido a coragem de dizer não. Contra as noções vagas e sintéticas que nos recitavam dia e noite – a Europa, a Raça, o Judeu, a cruzada antibolchevique –, tínhamos de reavivar o velho espírito de análise, único capaz de fazê-las em pedaços. Assim, nossa função parecia um humilde eco daquela que os escritores do século XVIII haviam cumprido tão brilhantemente. Mas, diferentemente de Diderot e Voltaire, só podíamos dirigir-nos aos opressores por ficção literária, ainda que fosse para dar-lhes vergonha de sua opressão, mesmo porque nunca convivíamos com eles. Sendo assim, não tínhamos a ilusão, que aqueles autores alimentaram, de poder escapar, pelo exercício de nosso ofício, à nossa condição de oprimidos; pelo contrário, situados em meio à opressão, representávamos a coletividade oprimida de que fazíamos parte, suas cóleras e suas esperanças. Com um pouco mais de sorte, mais virtude, mais talento, mais coesão, mais tarimba, teríamos escrito o monólogo interior da França ocupada. E, aliás, se tivéssemos conseguido, não teríamos nada de que nos orgulhar exageradamente: a Frente Nacional agrupava seus membros por profissão; aqueles dentre nós que trabalhavam pela Resistência em sua especialidade não podiam ignorar que os médicos, os engenheiros, os ferroviários prestavam uma contribuição bem mais importante.

De qualquer modo, essa atitude, fácil para nós, em virtude da antiga tradição da negatividade literária, corria o risco, após a libertação, de se transformar em negação sistemática e efetuar, mais uma vez, o divórcio entre o escritor e o público. Havíamos glorificado todas as formas de destruição: deserções, recusa à obediência, descarrilamentos provocados, incêndio voluntário das colheitas, atentados, porque estávamos em guerra. Terminada a guerra, perseverar seria unir-se ao grupo surrealista e a todos aqueles que fazem da arte uma forma permanente e radical de consumação. Mas 1945 não se assemelha a 1918. Era belo invocar o dilúvio sobre uma França vitoriosa e saciada, que acreditava dominar a Europa. O dilúvio chegou: O que resta por destruir? A grande consumação metafísica do outro pós-guerra se fez na alegria, na explosão descompressora; hoje a guerra ainda é uma ameaça, assim como a fome e a ditadura: ainda estamos comprimidos. Em 1918 era a festa, podia-se fazer uma fogueira de euforia com vinte séculos de cultura e poupança. Hoje, o fogo se extinguiria por si mesmo, ou se recusaria a pegar; o tempo das festas não está próximo de retornar. Nesta época de vacas magras, a literatura se recusa a ligar seu destino ao do consumo, demasiado precário. Numa rica sociedade de opressão, ainda é possível tomar a arte por um luxo supremo, porque o luxo parece ser a marca da civilização. Mas hoje o luxo perdeu seu caráter sagrado: o mercado negro fez dele um fenômeno de desintegração social, o luxo perdeu esse aspecto de conspicuous consumption que constituía a metade de seu encanto: hoje, para consumir é preciso esconder-se, isolar-se, não se está mais no cume da hierarquia social, mas à margem: uma arte de puro consumo se perderia no ar, não se apoiaria mais nas sólidas volúpias culinárias ou do bem-vestir, mal forneceria a alguns privilegiados uma ou outra evasão solitária, fruições onanísticas, e a oportunidade de sentir saudade da alegria de viver. Quando a Europa inteira se preocupa, antes de mais nada, em reconstruir, quando as nações se privam do necessário para exportar, a literatura que, como a Igreja, se acomoda a qualquer situação e procura salvar-se de qualquer maneira, revela sua outra face: escrever não é viver, nem tampouco afastar-se da vida para contemplar, num mundo em repouso, as essências platônicas e o arquétipo da beleza, nem deixar-se lacerar, como se se tratasse de espadas, por palavras desconhecidas, incompreendidas, vindas de trás de nós: é exercer um ofício. Um ofício que exige aprendizado, trabalho continuado, consciência profissional e senso de responsabilidade. Não fomos nós que descobrimos essa responsabilidade, ao contrário: há cem anos o escritor sonha entregar-se à sua arte numa espécie de inocência, para além do Bem e do Mal e, por assim dizer, antes do pecado. É a sociedade que nos impõe nossos encargos e deveres. É preciso admitir que ela nos considera muito temíveis, pois condenou à morte aqueles dentre nós que colaboraram com o inimigo, mas deixou em liberdade os industriais culpados do mesmo crime. Hoje se diz que era melhor construir a Muralha do Atlântico do que falar dela. Isso não chega propriamente a escandalizar-me. Certamente, é porque somos puros consumidores que a coletividade se mostra tão impiedosa conosco; um autor fuzilado é uma boca a menos a alimentar, o mais humilde produtor faria muito mais falta à nação[13]. E não digo que isso seja justo; ao contrário, é a porta aberta a todos os abusos, à censura, à perseguição. Mas devemos alegrar-nos pelo fato de que nossa profissão comporta alguns perigos: quando escrevíamos na clandestinidade, os riscos para nós eram mínimos, porém consideráveis para o tipógrafo. Muitas vezes me envergonhei disso: a situação ao menos nos ensinou a praticar uma espécie de deflação verbal. Quando cada palavra pode custar uma vida é preciso economizar palavras, não se deve perder tempo fazendo gemer os violinos: vai-se direto ao ponto, sem rodeios. A Guerra de 1914 precipitou a crise da linguagem; eu estaria inclinado a dizer que a de 1940 a revalorizou. Mas é de se desejar que, retomando nossos nomes, assumamos os riscos por nossa própria conta: afinal, um pedreiro que trabalha no telhado sempre correrá riscos muito maiores.

Numa sociedade que insiste na produção e reduz o consumo ao estritamente necessário, a obra literária permanece evidentemente gratuita. Mesmo que o escritor ressalte o trabalho que ela lhe custa, mesmo que observe, com razão, que esse trabalho, considerado em si mesmo, põe em jogo as mesmas faculdades empregadas por um engenheiro ou um médico, continua evidente que o objeto criado não é, de forma alguma, comparável a um bem. Essa gratuidade, longe de nos afligir, é nosso orgulho, e sabemos que ela é a imagem da liberdade. A obra de arte é gratuita porque é fim absoluto e se propõe ao espectador como imperativo categórico. Além disso, ainda que não possa nem queira ser produção por si mesma, deseja representar a livre consciência de uma sociedade de produção, isto é, fazer refletir a produção sobre o produtor, em termos de liberdade, como fez outrora Hesíodo. Não se trata, é claro, de retomar o fio dessa enfadonha literatura do trabalho, da qual Pierre Hamp foi o mais nefasto e mais soporífero representante; mas, como esse tipo de reflexão é ao mesmo tempo apelo e superação, ao mostrar aos homens deste tempo seus trabalhos e seus dias, seria preciso também esclarecer para eles os princípios, os objetivos e a constituição interior de sua atividade produtiva. Se a negatividade é um dos aspectos da liberdade, a construção é o outro. Ora, o paradoxo de nossa época é que jamais a liberdade construtiva esteve tão perto de tomar consciência de si mesma e talvez nunca foi tão profundamente alienada. Nunca o trabalho manifestou com tanta força sua produtividade e nunca seus produtos e sua significação foram tão inteiramente escamoteados aos trabalhadores, jamais o homo faber compreendeu com tanta clareza que ele faz a história e jamais se sentiu tão impotente diante dela. Nosso papel está definido: enquanto negatividade, a literatura contestará a alienação do trabalho; enquanto criação e superação, apresentará o homem como ação criadora e o acompanhará em seus esforços para superar a alienação presente, rumo a uma situação melhor. Se é verdade que ter, fazer e ser são as categorias cardeais da realidade humana, pode-se dizer que a literatura de consumo se limita ao estudo das relações que unem o ser ao ter: a sensação é representada como fruição, o que é filosoficamente falso, e aquele que melhor sabe usufruir é apresentado como aquele que mais existe; de A cultura do eu até A posse do mundo, passando por Os frutos da terra e por O diário de Barnabooth, ser é apropriar-se. Nascida de tais deleites, a obra de arte também pretende ser fruição, ou promessa de fruição; assim, o círculo se fecha. Nós, ao contrário, fomos levados pelas circunstâncias a examinar as relações entre o ser e o fazer, segundo a perspectiva de nossa situação histórica. Somos aquilo que fazemos? O que fazemos a nós mesmos? E ocorre isso na sociedade atual, em que o trabalho é alienado? Que fazer, que finalidade escolher, hoje? E como fazer, por quais meios? Quais são as relações entre o fim e os meios numa sociedade baseada na violência? As obras inspiradas em tais preocupações não podem aspirar primeiramente a agradar: elas irritam e inquietam, colocam-se como tarefas a cumprir, convidam a buscas sem conclusão, mostram experiências cujo resultado é incerto. Fruto de tormentos e perguntas, não podem ser gozo para o leitor, mas sim perguntas e tormentos. Quando nos é dado realizá-las bem, não serão entretenimento, mas obsessão. Não oferecerão o mundo “para ser visto”, mas para ser mudado. Com isso ele não perderá nada, ao contrário, esse velho mundo usado, explorado, desgastado. Desde Schopenhauer, admite-se que os objetos se revelam em sua plena dignidade quando o homem faz silenciar em seu coração a vontade de poder: é ao consumidor ocioso que as coisas entregam seus segredos; só é permitido escrever a respeito delas quando não se tem nada a fazer com elas. Essas fastidiosas descrições do século XIX são uma recusa da utilização: o universo não é para ser tocado, é para ser engolido cru, pelos olhos; o escritor, por oposição à ideologia burguesa, escolhe, para nos falar das coisas, aquele minuto privilegiado em que foram rompidas todas as relações concretas que o uniam a elas, exceto o fio tênue do olhar, o momento em que as coisas se desfazem sob sua vista, feixes desatados de sensações refinadas. É a época das impressões: impressões da Itália, da Espanha, do Oriente. Essas paisagens que ele absorve conscienciosamente, o literato as descreve no instante ambíguo que une o fim da ingestão e o início da digestão, em que o subjetivo vem impregnar o objetivo, antes que seus ácidos tenham começado a corroê-lo, em que os campos e os bosques são campos e bosques ainda, mas já são também um estado de alma. Um mundo frio, envernizado, habita os livros burgueses, um mundo para o veraneio, que nos devolve apenas uma alegria decente ou uma melancolia distinta. Nós o vemos da janela, não estamos dentro dele. Quando o romancista aí instala camponeses, eles destoam da sombra das montanhas, do filete prateado dos riachos; enquanto revolvem a terra com suas enxadas, em pleno trabalho, somos levados a vê-los com seus trajes domingueiros. Esses trabalhadores perdidos nesse universo de sétimo dia lembram o acadêmico de Jean Effel que Pruvost introduziu numa de suas caricaturas e que se desculpava dizendo: “Eu me enganei de desenho”. Ou então é que eles também foram transformados em objetos – em objetos e em estados de alma.

Para nós, o fazer é revelador do ser, cada gesto desenha novas figuras sobre a terra, cada técnica, cada instrumento é um sentido aberto para o mundo; as coisas têm tantas faces quantas são as maneiras de nos servirmos delas. Não estamos mais com aqueles que querem possuir o mundo, mas com os que querem mudá-lo, e é no próprio projeto de mudá-lo que o mundo revela os segredos de seu ser. Do martelo, diz Heidegger, temos o conhecimento mais íntimo quando nos servimos dele para martelar. E do prego, quando o cravamos na parede, e da parede quando nela cravamos o prego. Saint-Exupéry nos abriu o caminho: mostrou que o avião, para o piloto, é um órgão de percepção[14]; uma cadeia de montanhas, a 600 quilômetros por hora, e segundo a nova perspectiva do voo, é um ninho de serpentes: negras, elas se amontoam, projetam contra o céu suas cabeças duras e calcinadas, querem agredir, arremeter; a velocidade, com seu poder adstringente, ajunta e comprime em torno delas as dobras do manto terrestre; Santiago surge nos arredores de Paris; a quatorze mil pés de altura, as atrações obscuras que puxam San Antonio para Nova York cintilam como trilhos. Depois dele, depois de Hemingway, como poderíamos pensar em descrever? É preciso que mergulhemos as coisas na ação: sua densidade de ser será medida pelo leitor pela multiplicidade de relações práticas que elas entretêm com as personagens. Faça a montanha ser escalada pelo contrabandista, pelo fiscal de alfândega, pelo partisan; faça com que o aviador a sobrevoe[15], e a montanha surgirá de repente dessas ações conexas, saltará para fora do livro, como um boneco de mola que pula fora da caixa. Assim, o mundo e os homens se revelam pelos empreendimentos. E todos os empreendimentos de que podemos falar se reduzem a um só: fazer a história. Eis-nos levados pela mão até o momento em que é preciso abandonar a literatura da exis[***] para inaugurar a da praxis.

A praxis como ação na história e sobre a história, isto é, como síntese entre a relatividade histórica e o absoluto moral e metafísico, com esse mundo hostil e amigável, terrível e irrisório que ela nos revela: eis o nosso tema. Não afirmo que tenhamos escolhido esses caminhos austeros, e seguramente há entre nós os que trazem em si algum romance de amor cheio de encanto e desolação que nunca verá a luz do dia. Que fazer? Não se trata de escolher sua época, mas de se escolher nela.

A literatura da produção, que agora se anuncia, não fará esquecer a do consumo, que é a sua antítese; não deve pretender superá-la e talvez nunca chegue a igualar-se a ela; ninguém ousa afirmar que ela nos leva ao limite extremo e a realizar a essência da arte de escrever. É possível até que venha a desaparecer bem cedo: a geração que nos sucede parece hesitante, muitos de seus romances são festas tristes e furtivas, semelhantes àquelas festas-surpresa da ocupação, em que os jovens dançavam entre dois alarmes, bebendo vinho de Hérault, ao som de discos de antes da guerra. Nesse caso, será uma revolução falhada. E mesmo que consiga vingar, essa literatura da praxis passará, como a anterior, da exis; será preciso voltar à da exis e talvez a história das próximas décadas registre a alternância entre as duas. Isso significará que os homens terão definitivamente fracassado em outra revolução, de uma importância infinitamente mais considerável. De fato, é só numa coletividade socialista que a literatura, tendo enfim compreendido sua essência e realizado a síntese entre a praxis e a exis, entre a negatividade e a construção, entre o fazer, o ter e o ser, poderia merecer o nome de literatura total. Enquanto esperamos, cultivemos nossa horta: temos muito que fazer.

Não basta, na verdade, reconhecer a literatura como liberdade, substituir o dispêndio pelo dom, renunciar à velha mentira aristocrática de nossos antecessores e querer lançar, através de todas as nossas obras, um apelo democrático ao conjunto da sociedade: é preciso ainda saber quem nos lê, e se a conjuntura presente não relega ao rol das utopias nosso desejo de escrever para o “universal concreto”. Se nossos anseios pudessem realizar-se, o escritor do século XX ocuparia, entre as classes oprimidas e as opressoras, uma posição análoga àquela que os autores do século XVIII ocuparam entre os burgueses e a aristocracia, ou à posição de Richard Wright entre os negros e os brancos: lido ao mesmo tempo pelo oprimido e pelo opressor, testemunhando pelo oprimido contra o opressor, fornecendo ao opressor sua própria imagem, vista de dentro e de fora, tomando, com e pelo oprimido, consciência da opressão, contribuindo para formar uma ideologia construtiva e revolucionária. Infelizmente são esperanças anacrônicas: o que era possível ao tempo de Proudhon e de Marx já não é mais. Portanto, retomemos a questão inicial e façamos, sem preconceitos, o recenseamento de nosso público. Quanto a isso, a situação do escritor jamais foi tão paradoxal; parece feita dos traços mais contraditórios. No ativo, brilhantes aparências, vastas possibilidades, um padrão de vida invejável; no passivo, somente isto: a literatura está morrendo. Não que lhe faltem talentos nem homens de boa vontade; é que a literatura não tem mais o que fazer na sociedade contemporânea. No momento em que estamos descobrindo a importância da praxis, no momento em que vislumbramos o que poderia ser uma literatura total, nosso público se desmancha e desaparece; não sabemos mais, literalmente, para quem escrever.

À primeira vista, decerto, parece que os escritores do passado, se pudessem ver-nos, deveriam invejar nossa sorte[16]. Dizia Malraux: “Nós nos aproveitamos dos sofrimentos de Baudelaire”. Não creio que isso seja inteiramente verdadeiro, mas é verdade que Baudelaire morreu sem público, e nós, sem termos demonstrado nossa capacidade, sem nem saber se o faremos um dia, temos leitores no mundo inteiro. Seríamos tentados a enrubescer, mas afinal a culpa não é nossa: tudo é questão de circunstância. As autonomias de antes da guerra e em seguida a própria guerra privaram os públicos nacionais de seu contingente anual de obras estrangeiras; hoje nos apressamos, tiramos o atraso; quanto a esse único ponto, há uma descompressão. Os Estados tomam parte nisso: já mostrei em outra ocasião que, há algum tempo, os países vencidos ou arruinados começaram a considerar a literatura como artigo de exportação. Esse mercado literário se ampliou e se regularizou depois que as coletividades passaram a ocupar-se dele; encontram-se aí os procedimentos comuns: o dumping (por exemplo, as edições norte-americanas overseas), o protecionismo (no Canadá, em certos países da Europa Central), acordos internacionais; os países se inundam reciprocamente com Digests, isto é, como o nome diz, literatura já digerida, quimo literário. Em suma, as belas-letras, assim como o cinema, estão a caminho de se tornarem uma arte industrializada. Sem dúvida, nós nos beneficiamos com isso: as peças de Cocteau, de Salacrou, de Anouilh são encenadas em toda parte; eu poderia citar muitas obras que foram traduzidas para seis ou sete idiomas menos de três meses depois da sua publicação. No entanto, tudo isso é só brilho de superfície: talvez sejamos lidos em Nova York e em Tel Aviv, mas a escassez de papel limitou nossas tiragens em Paris: assim, o público na verdade se espalhou, mais do que cresceu; talvez dez mil pessoas nos leiam em quatro ou cinco países estrangeiros e mais dez mil em nosso país: vinte mil leitores era um sucesso modesto antes da guerra. Essa reputação mundial é muito menos sólida do que a reputação nacional de nossos predecessores. Estou sabendo: o papel está de volta, mas ao mesmo tempo o movimento editorial europeu entra em crise: o volume de vendas se mantém constante.

Fôssemos célebres fora da França e não haveria nenhum motivo de regozijo, seria uma glória ineficaz. Muito mais do que por mares e montanhas, as nações hoje em dia estão separadas por diferenças de potencial econômico e militar. Uma ideia pode descer de um país elevado a um país de potencial baixo – por exemplo, dos Estados Unidos para a França –, mas não pode subir. É verdade que nos Estados Unidos há tantos periódicos, tantos contatos internacionais, que os americanos acabam por ouvir falar das teorias literárias ou sociais professadas na Europa; entretanto, essas doutrinas se esgotam em sua ascensão: virulentas num país de potencial fraco, esmorecem quando atingem o cume: sabe-se que nos Estados Unidos os intelectuais reúnem as ideias europeias num buquê, aspiram seu perfume por um momento e logo o rejeitam, pois os buquês fenecem mais depressa lá do que em outros climas. Quanto à Rússia, ela colhe daqui e dali, toma aquilo que pode converter facilmente em sua própria substância. A Europa está vencida, arruinada, seu destino lhe escapa, e é por isso que suas ideias não podem mais ser exportadas; o único circuito concreto para o intercâmbio de ideias passa hoje pela Inglaterra, pela França, pelos países nórdicos e pela Itália.

É verdade que somos muito mais conhecidos do que nossos livros são lidos. Atingimos as pessoas, mesmo sem querer, através de novos meios com novos ângulos de incidência. Sem dúvida, o livro ainda é a infantaria pesada que limpa e ocupa o terreno. Mas a literatura dispõe de aviões, de bombas V1 e V2, que vão longe, inquietam e afligem, sem levar a uma decisão. A imprensa primeiro. Um autor escrevia para dez mil leitores; se lhe oferecem uma coluna num semanário, ele terá trezentos mil, mesmo que seus artigos não valham nada. Em seguida, a rádio: Entre quatro paredes[****], uma de minhas peças, proibida na Inglaterra pela censura teatral, foi ao ar em quatro transmissões pela BBC. Encenada em Londres, não conseguiria, mesmo na hipótese improvável de sucesso, vinte ou trinta mil espectadores. O programa teatral da BBC deu-me automaticamente meio milhão. Por fim o cinema: quatro milhões de pessoas frequentam as salas francesas. Se nos lembrarmos de que, no início do século XX, Paul Souday recriminava Gide por publicar suas obras em tiragens reduzidas, o sucesso de A sinfonia pastoral permitirá avaliar o caminho percorrido.

Acontece que dos trezentos mil leitores do articulista, no máximo alguns milhares terão a curiosidade de comprar seus livros, onde ele pôs o melhor do seu talento; os outros memorizarão seu nome de tanto vê-lo na segunda página do jornal, como o do depurativo que veem todos os dias na página doze. Os ingleses que teriam ido ver Entre quatro paredes no teatro o teriam feito com conhecimento de causa, fiando-se na imprensa e na crítica falada, com intenção de julgar. Mas os ouvintes da BBC, no momento em que giraram o botão do rádio, ignoravam a peça e até mesmo a minha existência: só queriam ouvir, por força do hábito, o programa dramático das quintas-feiras; uma vez terminado, esqueceram-no, como aos precedentes. Nas salas de cinema, o público é atraído pelo nome das estrelas, em seguida pelo do diretor, e em último lugar pelo do escritor. Em certas cabeças, o nome de André Gide há pouco entrou à força: mas está curiosamente associado, tenho certeza, ao belo rosto de Michèle Morgan. É possível que o filme tenha estimulado a venda de alguns milhares de exemplares do livro, mas, aos olhos de seus novos leitores, este não passa de um comentário mais ou menos fiel à película. À medida que atinge um público mais amplo, o autor o toca menos profundamente, reconhece-se menos na influência que exerce, seus pensamentos lhe escapam, são distorcidos e vulgarizados, passam a ser recebidos com mais indiferença e ceticismo por almas entediadas, oprimidas, que, como ninguém lhes fala em sua “língua natal”, ainda consideram a literatura como divertimento. Restam apenas fórmulas ligadas a nomes. E, uma vez que nossa reputação alcança mais longe do que nossos livros, isto é, do que nossos méritos, sejam grandes ou pequenos, não se deve ver nas boas graças passageiras com que nos brindam o sinal de um primeiro despertar do universal concreto, mas simplesmente o indício de inflação literária.

Isso não seria motivo de preocupação: bastaria manter-nos vigilantes; depende de nós, afinal, que a literatura não se industrialize. Mas o pior é que temos leitores, mas não temos público[17]. Em 1780 a classe opressora era a única a possuir uma ideologia e organizações políticas; a burguesia não tinha nem partido nem consciência de si mesma, o escritor trabalhava diretamente para ela, criticando os velhos mitos da monarquia e da religião, apresentando-lhe algumas noções elementares de conteúdo principalmente negativo, como as de liberdade, igualdade política e habeas corpus. Em 1850, em face de uma burguesia consciente e munida de uma ideologia sistemática, o proletariado continuava informe e obscuro para si mesmo, atravessado por cóleras vãs e desesperadas; a Primeira Internacional só o tocou superficialmente; tudo estava por fazer, o escritor teria podido dirigir-se diretamente aos operários. Já vimos que ele perdeu essa oportunidade. De qualquer modo, serviu aos interesses da classe oprimida, sem querer e até mesmo sem saber, exercendo sua negatividade sobre os valores burgueses. Assim, nos dois casos, as circunstâncias lhe permitiram testemunhar pelo oprimido diante do opressor, ajudando o primeiro a tomar consciência de si mesmo; a essência da literatura estava em sintonia com as exigências da situação histórica. Mas hoje tudo está revirado: a classe opressora perdeu sua ideologia, sua autoconsciência vacila, seus limites já não são claramente definíveis, ela se abre, chama o escritor em seu socorro. A classe oprimida, enfiada num partido, abotoada numa ideologia rigorosa, torna-se uma sociedade fechada; não é mais possível comunicar-se com ela sem intermediários.

A sorte da burguesia estava ligada à supremacia europeia e ao colonialismo. Ela perde suas colônias no momento em que a Europa perde o governo de seu destino; não se trata mais de fazer guerras no estilo dos reizinhos de outrora, por causa do petróleo da Romênia ou da ferrovia de Bagdá: o próximo conflito necessitará de um equipamento industrial que nem o Velho Mundo inteiro é capaz de fornecer; duas potências mundiais, que não são burguesas nem europeias, disputam a posse do universo; o triunfo de uma seria o advento do estatismo e da burocracia internacional; da outra, o advento do capitalismo abstrato. Todos funcionários do Estado? De uma empresa? Quando muito, a burguesia pode manter a ilusão de escolher o molho com que será comida. Hoje ela sabe que representou um momento da história da Europa, um estágio do desenvolvimento das técnicas e das ferramentas, e que nunca atingiu a escala mundial. De resto, o sentimento que nutria a respeito de sua essência e de sua missão se obscureceu: as crises econômicas a sacudiram, minaram, erodiram, provocando fendas, deslizamentos, desmoronamentos internos; em certos países, ela se mostra como a fachada de um imóvel cujo interior foi devastado por uma bomba; em outros, ela desabou em grandes blocos dentro do proletariado; já não se pode defini-la nem pela posse dos bens, que lhe escapam cada dia mais, nem pelo poder político, que ela divide, em quase toda parte, com homens novos, saídos diretamente do proletariado; é a burguesia, agora, que tomou o aspecto amorfo e gelatinoso que caracteriza as classes oprimidas antes que elas tomem consciência de seu estado. Na França, descobriu-se que ela está atrasada cinquenta anos em termos de equipamento e organização da grande indústria: daí nossa crise de natalidade, indício inegável de regressão. Além disso, o mercado negro e a ocupação fizeram passar 40% de suas riquezas às mãos de uma nova burguesia, que não tem nem os hábitos, nem os princípios, nem os objetivos da antiga. Arruinada, mas ainda opressora, a burguesia europeia governa, de dia para dia, com recursos do varejo miúdo: na Itália, mantém os trabalhadores em xeque porque se apoia na coalizão entre a Igreja e a miséria; em outros países, torna-se indispensável porque fornece os quadros técnicos e o pessoal administrativo; em outros, ainda, emprega a tática de dividir para governar e, além disso, o que é mais importante, a era das revoluções nacionais terminou: os partidos revolucionários não querem remexer nessa carcaça carcomida, fazem até o que podem para evitar que ela desmorone de vez: o primeiro estalido atrairia a intervenção estrangeira e talvez o conflito mundial, para o qual a Rússia ainda não está preparada. Alvo de todas as solicitudes, dopada pelos Estados Unidos, pela Igreja e até mesmo pela URSS, à mercê das flutuações do jogo diplomático, a burguesia não pode nem conservar nem perder seu poder sem o concurso de forças estrangeiras: é o “doente” da Europa contemporânea e sua agonia pode prolongar-se por muito tempo.

Em consequência, sua ideologia desaba: ela justificava a propriedade pelo trabalho e também por aquela lenta osmose que transfere para a alma do possuidor as virtudes da coisa possuída; a seus olhos, a posse de bens era um mérito e a mais refinada cultura do eu. Ora, a propriedade se tornou simbólica e coletiva, não se possuem mais as coisas, mas sim os seus signos, ou os signos de seus signos; o argumento do “trabalho-mérito” e o da “fruição-cultura” se deterioraram. Por ódio aos trustes e à consciência pesada que vem da propriedade abstrata, muitos se voltaram para o fascismo. Invocado por eles, o fascismo chegou e substituiu os trustes pelo dirigismo; depois desapareceu, mas o dirigismo continuou: os burgueses não ganharam nada com isso. Se ainda mantêm a condição de possuidores, isso se dá de modo ávido, mas sem alegria; pouco falta para que, por enfado, considerem a riqueza um estado de fato injustificável: eles perderam a fé. Não conservam tampouco muita confiança nesse regime democrático que já foi seu orgulho e que ruiu ao primeiro golpe; mas, como o nacional-socialismo também ruiu, no momento em que iam aderir a ele, os burgueses não creem mais nem na República nem na ditadura. Nem no progresso: este era bom no momento em que aquela classe ascendia; agora que está em declínio, não têm mais o que fazer com ele; e seria um grande desgosto saber que outros homens e outras classes irão apoderar-se dele. Tal como ocorria antes, seu trabalho não lhes proporciona um contato direto com a matéria, porém duas guerras os levaram a descobrir o cansaço, o sangue e as lágrimas, a violência, o mal. As bombas não destruíram apenas suas fábricas: racharam também seu idealismo. O utilitarismo era a filosofia da poupança; perde todo o sentido quando a poupança se vê comprometida pela inflação e pelas ameaças de bancarrota. “O mundo”, é o que mais ou menos diz Heidegger, “desvenda-se no horizonte dos utensílios avariados”. Quando nos servimos de um instrumento, é para produzir determinada modificação, que também é um meio de obter outra, mais importante, e assim sucessivamente. Assim estamos engrenados num encadeamento de meios e fins, cujos termos nos escapam, e demasiado absorvidos em nossa ação de detalhe para questionar seus fins últimos. Quando o instrumento se quebra, a ação é suspensa e a cadeia inteira nos salta aos olhos. O mesmo se dá com o burguês: seus instrumentos estão avariados, ele vê a cadeia e conhece a gratuidade dos seus fins; enquanto acreditava neles sem vê-los, enquanto trabalhava, de cabeça baixa, nos elos mais próximos, os fins o justificavam; agora que os fins lhe saltam aos olhos, descobre que ele próprio é injustificável; o mundo inteiro se desvenda, assim como seu desamparo no mundo: nasce a angústia[18]. E a vergonha também; mesmo para os que julgam a burguesia em nome dos princípios que ela própria sustenta, é inegável que ela traiu três vezes: em Munique, em maio de 1940, e no governo de Vichy. É certo que se recuperou: muitos defensores de Vichy da primeira hora se tornaram resistentes já em 1942; compreenderam que deviam lutar contra o ocupante em nome do nacionalismo burguês, contra o nazismo em nome da democracia burguesa. Também é verdade que o Partido Comunista hesitou por mais de um ano, e que a Igreja hesitou até a libertação: mas ambos possuem força suficiente, unidade e disciplina para exigir de seus adeptos que esqueçam, a pedidos, os erros do passado. A burguesia não esqueceu nada: carrega ainda a mágoa que lhe causou um de seus filhos, de quem ela mais se orgulhava; condenando Pétain à prisão perpétua, parece-lhe que ela se encarcerou a si mesma; poderia adotar a resposta de Paul Chack, oficial católico e burguês que, por ter seguido cegamente as ordens de um marechal francês, católico e burguês, foi entregue a um tribunal burguês, sob o governo de um general católico e burguês, e que, estupefato com esse embuste tão hábil, resmungava sem cessar durante o processo: “Não compreendo”. Dilacerada, sem futuro, sem garantias, sem justificação, a burguesia, objetivamente transformada em doente, entrou subjetivamente na fase da consciência infeliz. Muitos de seus membros se extraviaram, oscilam entre a cólera e o medo, essas duas fugas; os melhores ainda tentam defender, se não os seus bens, que em geral viraram fumaça, ao menos as verdadeiras conquistas burguesas: a universalidade das leis, a liberdade de expressão, o habeas corpus. Esses constituem o nosso público. Nosso único público. Lendo os velhos livros, compreenderam que a literatura se alinhava, por essência, com as liberdades democráticas. Agora se voltam para ela, suplicam-lhe que lhes dê razões de viver e de ter esperança, uma nova ideologia; jamais, talvez, desde o século XVIII, se esperou tanto do escritor.

Não temos nada a lhes dizer. A despeito deles mesmos, pertencem a uma classe opressora. Vítimas, sem dúvida, e inocentes, e no entanto ainda tiranos e culpados. Tudo o que podemos fazer é refletir em nossos espelhos sua consciência infeliz, isto é, levar um pouco avante a decomposição de seus princípios; temos essa tarefa ingrata de lhes recriminar os erros quando eles se tornaram maldições. Nós próprios, também burgueses, conhecemos a angústia burguesa, também tivemos a alma despedaçada, mas, uma vez que é próprio da consciência infeliz querer livrar-se do estado de infelicidade, não podemos permanecer tranquilamente no seio de nossa classe e, como não nos é mais possível sair dela por um passe de mágica, assumindo as aparências de uma aristocracia parasitária, é preciso que sejamos seus coveiros, mesmo correndo o risco de nos enterrar com ela.

Voltamo-nos para a classe operária, que poderia hoje, como sucedeu com a burguesia de 1780, constituir para o escritor um público revolucionário. Público virtual, ainda, mas singularmente presente. O operário de 1947 tem uma cultura social e profissional, lê publicações técnicas, sindicais e políticas, tomou consciência de si mesmo, de sua posição no mundo e tem muito a nos ensinar; viveu todas as aventuras do nosso tempo, em Moscou, Budapeste, Munique, Madri, Stalingrado, na resistência clandestina; no momento em que descobrimos, na arte de escrever, a liberdade, com seus dois aspectos, a negatividade e a superação criadora, o operário procura libertar-se e ao mesmo tempo libertar todos os homens, para sempre, da opressão. Sendo oprimido, a literatura como negatividade poderia refletir-lhe o objeto de suas cóleras; produtor e revolucionário, ele é o tema por excelência de uma literatura da praxis. Temos em comum com ele o dever de contestar e de construir; ele reivindica o direito de fazer a história, no momento em que descobrimos nossa própria historicidade. Ainda não estamos familiarizados com sua linguagem, nem ele com a nossa, mas já conhecemos o meio de atingi-lo: é preciso – tratarei disso mais adiante – conquistar os mass media, e isso não é tão difícil. Sabemos também que na Rússia o operário discute com o próprio escritor e que lá surgiu uma nova relação entre público e autor, que não é nem a espera passiva e fêmea, nem a crítica especializada do “intelectual”. Não creio na “Missão” do proletariado, nem que ele se beneficie de uma graça de estado: ele é feito de homens, justos e injustos, que podem se extraviar e são muitas vezes mistificados. Mas não se deve hesitar em dizer que a sorte da literatura está ligada à da classe operária.

Infelizmente, em nosso país, uma cortina de ferro nos separa desses homens a quem devemos falar: eles não entenderão uma palavra do que lhes dissermos. A maioria do proletariado, tolhida num partido único, cercada por uma propaganda que o isola, forma uma sociedade fechada, sem portas nem janelas. Com uma só via de acesso, assaz estreita, o PC. É de se desejar que o escritor se engaje no partido? Se o fizer por convicção de cidadão e por desgosto com a literatura, está muito bem, ele escolheu. Mas é possível tornar-se comunista continuando a ser escritor?

O PC alinha sua política com a da Rússia soviética porque é somente nesse país que se encontra o esboço de uma organização socialista. Mas, se é verdade que a Rússia começou a Revolução Social, também é verdade que não a terminou. O atraso de sua indústria, a falta de quadros habilitados e a incultura das massas a impedem de realizar sozinha o socialismo, e até mesmo de impô-lo a outros países pelo contágio do exemplo; se o movimento revolucionário que partia de Moscou tivesse podido estender-se a outras nações, não teria cessado de evoluir na própria Rússia, à medida que ganhasse terreno; contido entre as fronteiras soviéticas, o socialismo sedimentou-se num nacionalismo defensivo e conservador, porque era preciso salvar a qualquer preço os resultados obtidos. No momento em que se tornava a Meca das classes operárias, a Rússia constatava que lhe era tão impossível assumir sua missão histórica como renegá-la; o país precisou voltar-se para si próprio, dedicar-se a formar seus quadros, recuperar o atraso de seus equipamentos, perpetuar-se mediante um regime autoritário, sob a forma de uma Revolução em pane. Como os partidos europeus empenhados no socialismo e que preparavam o advento do proletariado não eram em país algum fortes o bastante para passar à ofensiva, a Rússia foi obrigada a utilizar-se deles como bastiões avançados de sua defesa. Mas como estes só podiam servi-la, junto às massas, fazendo uma política revolucionária, e como ela nunca perdeu a esperança de assumir a liderança do proletariado europeu, caso algum dia as circunstâncias se mostrassem mais favoráveis, deixou a cada um sua bandeira vermelha e sua fé. Com isso, as forças da Revolução mundial foram desviadas para que se mantivesse uma revolução em hibernação. Quanto ao PC, é preciso ainda reconhecer que, enquanto acreditou de boa-fé na possibilidade, mesmo remota, de uma tomada do poder pela insurreição, e enquanto se tratou, para ele, de enfraquecer a burguesia e solapar a S.F.I.O.[*****], o partido exerceu sobre as instituições e os regimes capitalistas uma crítica negativa que mantinha as aparências de liberdade. Antes de 1939, tudo lhe servia: panfletos, sátiras, romances sobre o submundo, violências surrealistas, testemunhos arrasadores sobre nossos métodos coloniais. Depois de 1944, tudo se agravou: o declínio da Europa simplificou a situação. Duas potências permanecem de pé, a URSS e os Estados Unidos; cada uma amedronta a outra. Do medo nasce a cólera, como se sabe, e da cólera, os golpes. Ora, a URSS é a mais fraca: mal saíra de uma guerra que temia há vinte anos e precisava ainda contemporizar, retomar a corrida armamentista, reforçar a ditadura em seu interior, e no exterior conseguir aliados, vassalos, posições.

A tática revolucionária se transforma em diplomacia: é preciso manter a Europa como aliada. Portanto, apaziguar a burguesia, adormecê-la com fábulas, impedir a todo custo que o pavor a lance para o lado dos anglo-saxões. Foi-se o tempo em que L’Humanité podia dizer: “Todo burguês que encontra um operário deve ter medo”. Nunca os comunistas foram tão poderosos na Europa e, no entanto, nunca foram menores as chances de uma revolução: se em algum lugar o partido planejasse tomar o poder por um golpe de força, a tentativa seria sufocada no nascedouro: os anglo-saxões dispõem de mil recursos para aniquilá-la, sem nem precisar recorrer às armas, e os soviéticos não a veriam com bons olhos. Se por acaso a insurreição fosse bem-sucedida, ficaria vegetando no mesmo lugar, sem se difundir. E se por milagre se tornasse, enfim, contagiosa, correria o risco de transformar-se no estopim da terceira guerra mundial. Não é mais, pois, o advento do proletariado que os comunistas preparam no seu país de origem, mas a guerra, somente a guerra. Vitoriosa, a URSS estende seu regime à Europa, as nações caem como frutos maduros; vencida, caem com ela os partidos comunistas. Tranquilizar a burguesia sem perder a confiança das massas, permitir-lhe governar, mas conservando as aparências da ofensiva, ocupar postos de comando sem se deixar comprometer: eis a política do PC. Fomos testemunhas e vítimas, entre 1939 e 1940, da putrefação de uma guerra; assistimos agora à putrefação de uma situação revolucionária.

Caso se pergunte hoje se o escritor deve, para atingir as massas, oferecer seus serviços ao Partido Comunista, respondo que não; a política do comunismo estalinista é incompatível com o exercício honesto do ofício literário: um partido que planeja a revolução não deveria ter nada a perder; ora, para o PC, há alguma coisa a perder e alguma coisa a poupar: como seu objetivo imediato não é mais estabelecer pela força a ditadura do proletariado, mas salvaguardar a Rússia em perigo, o partido apresenta hoje um aspecto ambíguo: progressista e revolucionário na doutrina e nos fins professados, tornou-se conservador nos meios; antes mesmo de tomar o poder, adota a postura de espírito, os raciocínios e artifícios daqueles que, já estando há muito tempo no poder, sentem que este lhes escapa e querem conservá-lo. Há algo em comum, e não é o talento, entre Joseph de Maistre e Garaudy. E, de modo geral, basta folhear um escrito comunista para pinçar, ao acaso, dezenas de procedimentos conservadores: persuade-se pela repetição, pela intimidação, pelas ameaças veladas, pela força desdenhosa da afirmação, por alusões enigmáticas a demonstrações que não são feitas, mostrando uma convicção tão sólida, tão soberba, que de saída já se coloca acima de qualquer debate, fascina e acaba por se tornar contagiosa. Nunca se responde ao adversário; a tática é desacreditá-lo: ele é da polícia, é do Intelligence Service, é um fascista. Quanto às provas, nunca são dadas, pois são terríveis e envolvem muita gente. Se você insiste em conhecê-las, eles lhe pedem que pare e acredite na acusação sob palavra: “Não nos force a dizer, isso iria complicar sua vida”. Em suma, o intelectual comunista retoma a atitude do estado-maior que condenou Dreyfus com base em provas secretas. É evidente que isso representa também uma volta ao maniqueísmo dos reacionários, só que dividindo o mundo segundo outros princípios. Um trotskista para um estalinista, assim como um judeu para Maurras, é a encarnação do mal, tudo o que vem dele é necessariamente mau. Em contrapartida, a posse de certos títulos funciona como graça de estado. Compare esta frase de Joseph de Maistre: “A mulher casada é necessariamente casta” com esta outra de um correspondente de L’Action: “O comunista é o herói permanente do nosso tempo”. Que há heróis no Partido Comunista, sou o primeiro a reconhecer. Mas então a mulher casada jamais demonstra fraqueza? “Nunca, pois ela se casou diante de Deus.” E basta entrar no partido para se tornar herói? “Sim, porque o PC é o partido dos heróis.” E se por acaso se mencionar o nome de um comunista que alguma vez falhou? “É porque não era um verdadeiro comunista.”

No século XIX era preciso dar muitas garantias morais e levar uma vida exemplar para se purificar, aos olhos dos burgueses, do pecado de escrever, pois a literatura, por essência, é heresia. A situação não mudou, exceto pelo fato de que agora são os comunistas, isto é, os representantes qualificados do proletariado, que por princípio consideram o escritor como suspeito. Mesmo que irrepreensível em seu comportamento, o intelectual comunista carrega consigo uma tara original: entrou livremente no partido. Sua leitura refletida de O capital, o exame crítico da situação histórica, o senso agudo de justiça, a generosidade, o gosto pela solidariedade – foram estes os fatores que o levaram a tomar a decisão: tudo isso demonstra uma independência que não cheira bem. Entrou no partido por livre escolha, logo, também pode optar por sair[19]. Entrou por ter criticado a política de sua classe de origem; logo, também poderá criticar a dos representantes de sua classe de adoção. Assim, na própria ação pela qual inaugura uma vida nova, há uma maldição que pesará sobre ele durante toda a vida. Desde o instante da ordenação, começa para ele um longo processo semelhante àquele descrito por Kafka, em que os juízes são desconhecidos e os dossiês secretos, em que as únicas sentenças definitivas são as condenações. Não que seus acusadores invisíveis se incumbam, como é hábito na justiça, de apresentar as provas de seu crime: a ele, sim, cabe provar sua inocência. Como tudo o que escreve pode ser usado contra ele, e sabe disso, cada obra sua apresenta a característica ambígua de ser, ao mesmo tempo, um apelo público em nome do PC e um velado discurso de defesa em causa própria. Visto de fora, tudo aquilo que aos leitores aparenta ser uma cadeia de afirmações peremptórias, de dentro do partido, aos olhos dos juízes parece uma humilde e canhestra tentativa de autojustificação. Quando se mostra para nós mais brilhante e mais eficaz, é então que se revela mais culpado. Por vezes nos parece – e também ele talvez assim acredite – que subiu na hierarquia do partido e que se tornou seu porta-voz, mas trata-se de uma prova, ou de um logro: os degraus foram falseados; quando se crê por cima, percebe que continua no chão. Leia cem vezes seus escritos; você nunca conseguirá definir sua verdadeira importância: quando Nizan, encarregado de política internacional no Ce Soir, se esforçava, de boa-fé, para provar que nossa única chance de salvação consistia num pacto franco-russo, seus juízes secretos, que lhe permitiam afirmar isso, já tinham conhecimento das negociações entre Ribbentrop e Molotov. E se pensa que conseguirá safar-se por meio de uma obediência de cadáver, está enganado. Exige-se dele que demonstre espírito, mordacidade, lucidez, criatividade. Mas, ao mesmo tempo em que são exigidas dele, essas virtudes são condenadas, pois representam propensão ao crime. Como, então, preservar o espaço do espírito crítico? Assim, o erro está alojado nele como o bicho na fruta. Não pode agradar nem a seus leitores, nem a seus juízes, nem a si mesmo. Aos olhos de todos, e mesmo a seus próprios olhos, não passa de uma subjetividade culpada, que deforma a ciência ao refleti-la em suas águas turvas. Essa deformação pode ser útil: como os leitores não distinguem o que vem do autor daquilo que lhe foi ditado pelo “processo histórico”, sempre será possível contrapor-lhe um desmentido. Entende-se que ele se compromete inteiramente com seu trabalho e, como sua missão é exprimir dia a dia a política do PC, seus artigos permanecem muito tempo depois de essa política haver mudado. É a estes que os adversários do estalinismo se referem quando querem mostrar as contradições ou a versatilidade dessa política; com isso, o escritor não é apenas culpado presumível, mas aquele sobre quem recaem todas as falhas passadas, pois seu nome fica ligado aos erros do partido e ele é o bode expiatório de todos os expurgos políticos.

Não é impossível, porém, que ele resista muito tempo, caso aprenda a reprimir suas qualidades, e a puxar as rédeas quando elas ameaçam levá-lo longe demais. Não deve, porém, usar de cinismo, vício tão grave quanto a boa vontade. É preciso que saiba ignorar; que veja o que não deve ver e esqueça o que viu, de modo a nunca escrever a respeito; e que ao mesmo tempo se lembre do que viu, o bastante para poder, no futuro, evitar encará-lo de frente; que leve sua crítica longe o bastante para determinar o ponto em que convém deter-se, isto é, que ultrapasse esse ponto para poder, no futuro, fugir à tentação de ultrapassá-lo, mas que saiba romper os laços de solidariedade com essa crítica prospectiva, colocá-la entre parênteses e considerar nulos seus resultados: em suma, que considere sempre que o espírito é finito, limitado por todos os lados por fronteiras mágicas, por nevoeiros, como os primitivos que só sabem contar até vinte e são misteriosamente privados do poder de ir mais além: essa bruma artificial, que ele deve estar sempre pronto a interpor entre si mesmo e as evidências escabrosas, nós a chamaremos simplesmente de má-fé. Mas isso ainda não basta: é preciso que ele evite falar muito sobre os dogmas; não é bom mostrá-los em plena luz do dia: as obras de Marx, como a Bíblia dos católicos, são perigosas para quem as aborde sem um bom diretor de consciência: em cada célula do partido há um deles, e, se surgem dúvidas, escrúpulos, só a ele se deve confessá-los. Também não convém colocar muitos comunistas nos romances ou no palco: quando têm defeitos, correm o risco de desagradar; se são demasiado perfeitos, entediam. O político estalinista não deseja, de maneira alguma, encontrar sua própria imagem na literatura, pois sabe que um retrato já é uma contestação. Para escapar desse dilema, o escritor vai retratando o “herói permanente” num perfil incompleto, fazendo com que apareça no final da história para tirar a conclusão, ou insinuando sua presença por toda parte, mas sem mostrá-la, como fez Daudet com A arlesiana. Evitar também, na medida do possível, lembrar a Revolução: isso caiu de moda. Tanto quanto a burguesia, o proletariado europeu não governa seu próprio destino: a história se escreve em outra parte. É preciso desacostumá-lo aos poucos de seus velhos sonhos e ir substituindo, bem devagar, a perspectiva da insurreição pela da guerra. Se um escritor se conforma a todas essas prescrições, nem por isso será amado. É uma boca inútil; não trabalha com as mãos. Ele sabe disso, e sofre de complexo de inferioridade, quase tem vergonha de seu ofício e faz questão de se inclinar diante dos operários, assim como Jules Lemaître se inclinava diante dos generais, por volta de 1900.

Enquanto isso, a doutrina marxista, intacta, seca no pé: por falta de controvérsias interiores, ela se degradou em determinismo estúpido. Marx, Engels, Lenin disseram mil vezes que a explicação pelas causas devia ceder o passo ao processo dialético, mas a dialética não se deixa confinar em fórmulas de catecismo. Difunde-se por toda parte um cientificismo primário, explica-se a história por uma justaposição de séries causais e lineares. O último dos grandes espíritos do comunismo francês, Politzer, foi obrigado a ensinar, um pouco antes da guerra, que “o pensamento é uma secreção do cérebro”, assim como os hormônios são secreções das glândulas endócrinas; hoje em dia, quando procura interpretar a história ou as condutas humanas, o intelectual comunista toma de empréstimo à ideologia burguesa a psicologia determinista fundada na lei do interesse e no mecanicismo.

Mas há pior: o conservadorismo do PC é acompanhado hoje de um oportunismo que o contradiz. Não se trata apenas de salvaguardar a URSS, é preciso poupar a burguesia. Deve-se, pois, falar sua linguagem: família, pátria, religião, moralidade; e como nem por isso se renunciou ao propósito de enfraquecê-la, vai-se tentar batê-la em seu próprio terreno, insistindo em seus próprios princípios. Essa tática traz como resultado superpor dois conservadorismos contraditórios: a escolástica materialista e o moralismo cristão. A bem dizer, não é tão difícil, desde que se abandone toda lógica, passar de um a outro, pois ambos pressupõem a mesma atitude sentimental: trata-se de se agarrar a posições ameaçadas, recusar a discussão, dissimular o medo por trás da cólera. Mas, justamente, o intelectual deve, por definição, também usar a lógica. Pede-se então que disfarce suas contradições por meio de truques de prestidigitação; é preciso que se esforce por conciliar o inconciliável, que reúna à força ideias que se repelem, que disfarce os remendos com camadas reluzentes de belo estilo; isso sem falar da tarefa que lhe cabe há pouco: roubar a história da França à burguesia, anexar o grande Ferré, o pequeno Bara, São Vicente de Paulo, Descartes. Pobres intelectuais comunistas: fugiram da ideologia de sua classe de origem para reencontrá-la em sua classe de opção. Desta vez, acabou a brincadeira; trabalho, família, pátria: eles têm de cantar. Imagino que muitas vezes tenham vontade de morder, mas estão acorrentados: só lhes permitem uivar contra fantasmas ou contra alguns escritores que permaneceram livres e não representam nada.

Agora me apontarão autores ilustres. Decerto, reconheço que muitos tiveram talento. Será mera casualidade não o terem mais? Demonstrei acima que a obra de arte como fim absoluto se opõe, por essência, ao utilitarismo burguês. Será que ela poderia acomodar-se ao utilitarismo comunista? Num partido autenticamente revolucionário, a arte encontraria o clima propício à sua eclosão, porque a libertação do homem e o advento da sociedade sem classes são, como ela, fins absolutos, exigências incondicionadas, que ela pode refletir em sua exigência, mas o PC entrou hoje na ronda infernal dos meios; é preciso tomar e manter posições-chave, isto é, meios de adquirir outros meios. Quando os fins se distanciam, quando os meios se multiplicam a perder de vista, como insetos, a obra de arte também se torna meio, integra a cadeia, seus fins e princípios se tornam exteriores a ela; passa a ser comandada de fora, não exige mais nada, prende o homem pelo estômago ou pelo sexo; o escritor conserva a aparência do talento, ou seja, a arte de encontrar palavras que brilhem, mas lá dentro alguma coisa morreu, a literatura se transformou em propaganda[20]. No entanto, é alguém como o Sr. Garaudy, comunista e propagandista, que me acusa de ser um coveiro. Eu poderia devolver-lhe o insulto, mas prefiro assumir minha culpa: se tivesse poder para isso, enterraria a literatura com minhas próprias mãos, para que ela não servisse aos fins para os quais ele a utiliza. Ora, os coveiros são pessoas honestas, certamente sindicalizados, talvez comunistas. Prefiro ser coveiro a ser lacaio.

Enquanto ainda formos livres, não iremos juntar-nos aos cães de guarda do PC; não depende de nós termos talento, mas, como escolhemos o ofício de escrever, cada um de nós é responsável pela literatura e depende de nós que ela caia ou não na alienação. Afirma-se às vezes que nossos livros refletem as hesitações da pequena burguesia, que não se decide pelo proletariado nem pelo capitalismo. Isso é falso; nossa opção está feita. A isso respondem que nossa escolha é ineficaz e abstrata, que é um jogo de intelectuais, caso não seja seguida por nossa adesão a um partido revolucionário: não o nego, mas não é nossa culpa se o PC não é mais um partido revolucionário. É verdade que hoje, na França, não se pode mais atingir as classes trabalhadoras senão por meio dele; mas é só por desatenção que se identificaria sua causa à delas. Ainda que, como cidadãos e em circunstâncias rigorosamente determinadas, possamos apoiar sua política com nossos votos, isso não quer dizer que nossa pena lhe deva ser subserviente. Se, de fato, os dois termos da alternativa são a burguesia e o PC, então a escolha é impossível. Pois não temos o direito de escrever apenas para a classe opressora, nem de nos solidarizar com um partido que nos pede que trabalhemos com a consciência pesada e na má-fé. Na medida em que o Partido Comunista canaliza, quase contra sua vontade, as aspirações de toda uma classe oprimida que o leva inevitavelmente a pleitear, por pavor de ser “ultrapassado pela esquerda”, medidas como a paz com o Vietnã ou o aumento de salários, que toda a sua política tende a evitar, estamos com esse partido, contra a burguesia; na medida em que alguns meios burgueses de boa vontade reconhecem que a espiritualidade deve ser, simultaneamente, livre negatividade e livre construção, estamos com esses burgueses, contra o PC; na medida em que uma ideologia esclerosada, oportunista, conservadora e determinista entra em contradição com a própria essência da literatura, estamos ao mesmo tempo contra o PC e contra a burguesia. Isso significa claramente que escrevemos contra todos, que temos leitores, mas não público. Burgueses em ruptura com sua classe, mas ainda conservando hábitos burgueses, separados do proletariado pelo biombo comunista, libertos da ilusão aristocrática, ficamos no ar; nossa boa vontade não serve a ninguém, nem sequer a nós mesmos; entramos na época do público inencontrável. Pior ainda, escrevemos na contracorrente. Os autores do século XVIII contribuíram para fazer a história porque a perspectiva histórica do momento era a revolução, e um escritor pode e deve alinhar-se com a revolução se ficar provado que não há outro meio de fazer cessar uma opressão. Mas o escritor de hoje não pode, em caso algum, aprovar uma guerra, porque a estrutura social da guerra é a ditadura, porque os resultados da guerra são sempre incertos e, de todo modo, seus custos são infinitamente superiores a seus benefícios; enfim, porque nela se aliena a literatura, fazendo-a contribuir para a lavagem cerebral. Como nossa perspectiva histórica é a guerra, como temos de escolher entre o bloco anglo-saxônico e o bloco soviético, mas nos recusamos a preparar a guerra, seja com um ou com outro, caímos fora da história e falamos no deserto. Não nos resta sequer a ilusão de ganhar nosso processo por apelação: não haverá apelação e sabemos que o destino póstumo de nossas obras não dependerá nem de nosso talento nem de nossos esforços, mas dos resultados desse conflito futuro: na hipótese de uma vitória soviética, seremos ignorados até sermos mortos uma segunda vez; na hipótese de uma vitória norte-americana, colocarão os melhores dentre nós em redomas na história literária, e nunca mais os tirarão de lá.

Uma visão lúcida da situação mais sombria já é, em si, um ato de otimismo. Ela implica que essa situação seja pensável, isto é, não estamos perdidos nela como numa floresta escura; ao contrário, podemos sair dali, ao menos pelo espírito, mantê-la sob nosso olhar e, portanto, superá-la e tomar nossas decisões em face dela, mesmo que sejam decisões desesperadas. No momento em que todas as igrejas nos expulsam e nos excomungam, em que a arte de escrever, encurralada entre as propagandas, parece ter perdido sua eficácia própria, nosso engajamento deve começar. Não se trata de aumentar as exigências com relação à literatura, mas simplesmente de atender a todas elas, ainda que sem esperança.

1º) De início, é preciso recensear nossos leitores virtuais, isto é, as categorias sociais que não nos leem, mas podem vir a fazê-lo. Não creio que tenhamos boa penetração junto aos professores primários, e é uma pena, pois já aconteceu de eles servirem de intermediários entre a literatura e as massas[21]. Hoje em dia, muitos deles já escolheram: fornecem a seus alunos a ideologia cristã ou a ideologia estalinista, segundo o partido que tomaram. Mas há outros que hesitam: é a esses que cabe atingir. Sobre a pequena burguesia, desconfiada e sempre mistificada, sempre pronta, por estar perdida, a seguir os agitadores fascistas, já se escreveu muito. Mas não creio que se tenha escrito o suficiente para ela[22], exceto panfletos de propaganda política. Porém ela é acessível através de alguns de seus integrantes. Mais distantes, difíceis de distinguir, mais difíceis ainda de atingir, há enfim aquelas facções populares que não aderiram ao comunismo ou se afastam dele, e correm o risco de cair na indiferença resignada ou no descontentamento informe. Fora disso, nada: os camponeses praticamente não leem – um pouco mais, porém, do que em 1914 –, e a classe operária está aferrolhada. São esses os dados do problema: nada animadores, mas é preciso adaptar-se a eles.

2º) Como acrescentar ao nosso público de fato alguns desses leitores em potencial? O livro é inerte; age sobre quem o abre, mas não se abre por si. Não seria o caso de “vulgarizar”: seria uma atitude simplória e, para salvar a literatura do risco da propaganda ideológica, a lançaríamos diretamente em seus braços. É preciso, portanto, recorrer a novos meios, e eles já existem; os americanos já os enfeitaram com o nome de mass media; são os verdadeiros recursos de que dispomos para conquistar o público virtual: jornal, rádio, cinema. Naturalmente, é preciso calar nossos escrúpulos: com certeza o livro é a forma mais nobre, a mais antiga; não há dúvida de que sempre será preciso voltar a ele, mas existe uma arte literária do rádio e do filme, do editorial e da reportagem. Não há absolutamente necessidade de vulgarizar: o cinema, por essência, fala às multidões; fala-lhes sobre as multidões e seu destino; o rádio surpreende as pessoas à mesa ou na cama, no momento em que oferecem um mínimo de defesa, no abandono quase orgânico da solidão; hoje ele se aproveita disso para enganá-las, mas seria também o melhor momento de apelar para sua boa-fé: elas ainda não desempenham ou já não estão mais desempenhando seus papéis. Já temos um espaço garantido; falta aprender a falar por imagens, a transpor as ideias de nossos livros para essas novas linguagens. Não se trata, em absoluto, de autorizar a adaptação de nossas obras para a tela ou para as emissões de rádio; é preciso escrever diretamente para o cinema, para o rádio. As dificuldades mencionadas provêm do fato de que o cinema e o rádio são máquinas: como põem em jogo capitais vultosos, é inevitável que estejam hoje nas mãos do Estado ou de sociedades anônimas e conservadoras. É só por um mal-entendido que se apela ao escritor: ele acredita que lhe pedem seu trabalho, que não lhes serve para nada, quando, na realidade, só querem é sua assinatura, que rende. E, como ele tem tão pouco senso prático que, e em geral, não se pode convencê-lo a vender uma coisa sem a outra, procura-se ao menos conseguir que ele agrade, que garanta o devido retorno aos acionistas, ou que persuada e sirva à política do Estado. Nos dois casos, demonstram-lhe, por estatísticas, que as más produções têm mais sucesso que as boas e, depois de o informarem sobre o mau gosto do público, pedem-lhe que se submeta. Quando a obra está concluída, para se ter plena certeza de que está no nível mais baixo possível, entregam-na a medíocres que cortam o que for além disso. Mas é precisamente sobre esse ponto que nossa luta deve incidir. Não convém rebaixar-se para agradar, mas, ao contrário, revelar ao público suas exigências próprias e elevá-lo, pouco a pouco, até que ele venha a sentir necessidade de ler. É preciso ceder na aparência e tornar-nos indispensáveis; consolidar nossas posições, se for o caso, por meio de sucessos fáceis; em seguida, aproveitar a desordem dos serviços governamentais e a incompetência de certos produtores para voltar essas armas contra eles. O escritor se lançará então no desconhecido: falará, no escuro, a pessoas que desconhece, a quem nunca ninguém falou, a não ser para mentir-lhes; emprestará sua voz às cóleras e inquietações dessa gente; através dele, homens que nunca se viram refletidos em espelho algum, e que aprenderam a sorrir e a chorar como cegos, sem se ver, encontrar-se-ão de súbito em face da própria imagem. Quem ousaria supor que a literatura perderá com isso? Creio, ao contrário, que só tem a ganhar: os números inteiros e fracionários, que outrora constituíam toda a aritmética, só representam hoje um pequeno setor da ciência dos números. O mesmo ocorre com o livro: a “literatura total”, caso um dia venha à luz, terá sua álgebra, seus números irracionais e imaginários. Que não se diga que essas indústrias não têm nada a ver com a arte: afinal, a imprensa também é uma indústria, que os escritores antigos conquistaram para nós; não creio que cheguemos a utilizar inteiramente os mass media, mas seria belo começar já sua conquista, em benefício de nossos sucessores. Em todo caso, é certo que se não nos servirmos deles, deveremos resignar-nos a escrever apenas para burgueses.

3º) Burgueses de boa vontade, intelectuais, professores, trabalhadores não comunistas: admitindo-se que possamos atingir simultaneamente esses elementos díspares, como fazer deles um público, isto é, uma unidade orgânica de leitores, de ouvintes e de espectadores?

Lembremo-nos de que o homem que lê se despoja, de certa forma, de sua personalidade empírica, escapa a seus ressentimentos, seus medos, seus desejos, para elevar-se ao mais alto de sua liberdade; essa liberdade toma a obra literária como fim absoluto e, através dela, toda a humanidade: a obra constitui-se em exigência incondicionada em relação a si mesma, ao autor e aos leitores possíveis: pode, portanto, identificar-se com a boa vontade kantiana que, em qualquer circunstância, trata o homem como fim e não como meio. Com isso o leitor, por suas próprias exigências, tem acesso a esse concerto de boas vontades que Kant chamou de Cidade dos Fins, que em cada canto da terra, a cada momento, milhares de leitores que ignoram uns aos outros ajudam a manter. Mas, para que se torne uma sociedade concreta, é preciso que esse concerto ideal preencha dois requisitos: primeiro, que os leitores substituam o conhecimento de princípio que têm uns dos outros, enquanto exemplos singulares da humanidade, por uma intuição, ou ao menos um pressentimento, de sua presença carnal neste mundo; segundo, que essas boas vontades abstratas, em lugar de continuarem solitárias e lançarem no vazio apelos sobre a condição humana em geral, que não comovem ninguém, estabeleçam entre si relações reais, por ocasião de acontecimentos verdadeiros; em outras palavras, que essas boas vontades intemporais se historializem, conservando sua pureza, e transformem suas exigências formais em reivindicações materiais e datadas. Sem isso, a Cidade dos Fins só dura, para cada um de nós, o tempo da leitura; passando da vida imaginária para a vida real, esquecemos essa comunidade abstrata, implícita, que não se apoia em lugar algum. Daí provém o que designarei como as duas mistificações essenciais da leitura.

Quando um jovem comunista, lendo Aurélia, ou um estudante cristão, lendo O refém, vivem um momento de alegria estética, seu sentimento envolve uma exigência universal, e a Cidade dos Fins os rodeia com suas muralhas-fantasma; mas, ao mesmo tempo, essas obras são amparadas por uma coletividade concreta – aqui, o Partido Comunista; lá, a comunidade dos fiéis – que as sanciona e manifesta sua presença nas entrelinhas; um padre falou delas no sermão, L’Humanité as recomendou; o estudante nunca se sente só quando lê, o livro se reveste de um caráter sagrado, é um acessório do culto; a leitura torna-se um rito ou, precisamente, uma comunhão; em contrapartida, quando um Nathanaël abre Os frutos da terra e lança, empolgado, o mesmo apelo impotente à boa vontade dos homens, a Cidade dos Fins, magicamente evocada, não se recusa a aparecer. Entretanto, seu entusiasmo permanece essencialmente solitário: a leitura, aqui, é separadora; ela o atira contra sua família, contra a sociedade que o cerca; corta-o do passado e do futuro, para reduzi-lo à sua presença nua no momento presente; ensina-lhe a descer fundo em si mesmo, para reconhecer e enumerar seus desejos mais íntimos. Ainda que haja, em qualquer lugar do mundo, outro Nathanaël, mergulhado no mesmo instante na mesma leitura e arrebatado pelos mesmos transportes, nosso Nathanaël não se preocupa com isso: a mensagem se dirige só a ele e decifrá-la é um ato de vida interior, uma tentativa de solidão; no fim das contas, ele é convidado a rejeitar o livro, a romper o pacto de exigências mútuas que o unia ao autor, pois nada encontrou senão a si mesmo. A si mesmo como entidade separada. Diríamos, para falar como Durkheim, que a solidariedade dos leitores de Claudel é orgânica e a dos leitores de Gide é mecânica.

Nos dois casos, a literatura corre os mais graves perigos. Quando o livro é sagrado, não extrai sua virtude religiosa de suas intenções ou de sua beleza, mas recebe-as de fora, como uma chancela; e como o momento essencial da leitura é, neste caso, a comunhão, isto é, a integração simbólica com a comunidade, a obra escrita resvala para o inessencial, ou seja, torna-se na verdade um acessório da cerimônia. É o que demonstra claramente o exemplo de Nizan: quando comunista, os comunistas o liam com fervor; quando apóstata, morto, nenhum estalinista teria a ideia de retomar seus livros, pois estes só mostram, a seus olhos prevenidos, a própria imagem da traição. Mas como o leitor de O cavalo de Troia e de A conspiração lançava, em 1939, um apelo incondicionado e intemporal à adesão de todos os homens livres; como, por outro lado, o caráter sagrado dessas obras era, ao contrário, condicional e temporário e implicava a possibilidade de que fossem rejeitadas como hóstias profanadas, em caso de excomunhão do autor, ou de que fossem simplesmente esquecidas, caso o PC mudasse sua política, essas duas implicações contraditórias destroem até o sentido da leitura[23]. E não há nada de surpreendente nisso, pois já vimos o autor comunista arruinar, por sua vez, o próprio sentido da escrita: fecha-se o círculo. Será preciso, então, acomodar-se à possibilidade de ser lido em segredo, quase às escondidas, aceitar que a obra de arte amadureça como um belo vício dourado, nas profundezas das almas solitárias? Creio discernir aqui também uma contradição: na obra de arte descobrimos a presença da humanidade inteira; a leitura é comércio do leitor com o autor, com os outros leitores: Como poderia, pois, induzir à segregação?

Não queremos que nosso público, por mais numeroso que possa ser, se reduza à justaposição de leitores individuais, nem que sua unidade lhe seja conferida pela ação transcendente de um partido ou de uma igreja. A leitura não deve ser comunhão mística, tampouco masturbação, mas companheirismo. Contudo, reconhecemos que recorrer de maneira puramente formal às boas vontades abstratas deixa cada um em seu isolamento original. Mas é daí que é preciso partir: se se perde o fio condutor, é fácil extraviar-se no emaranhado da propaganda ideológica ou nas voluptuosidades egoístas de um estilo tido como “o preferido”. Cabe-nos, pois, converter a Cidade dos Fins em sociedade concreta e aberta – e fazê-lo pelo próprio conteúdo de nossas obras.

Se a Cidade dos Fins for só pálida abstração, é que não é realizável sem uma modificação objetiva da situação histórica. Kant o viu com muita clareza, creio, mas ora contava com uma transformação puramente subjetiva do sujeito moral, ora se desesperava de um dia encontrar boa vontade neste mundo. De fato, a contemplação da beleza bem pode suscitar em nós a intenção puramente formal de tratar os homens como fins, mas essa intenção se mostraria inútil na prática, pois as estruturas fundamentais da nossa sociedade ainda são opressivas. Tal é o paradoxo atual da moral: se eu me dedico a tratar como fins absolutos algumas pessoas escolhidas, minha mulher, meus filhos, meus amigos, os necessitados que encontre em meu caminho; se me obstino em cumprir todos os meus deveres em relação a eles, consumirei nisso minha vida inteira, permitirei que passem em silêncio as injustiças do meu tempo, luta de classes, colonialismo, antissemitismo etc., e finalmente serei levado a tirar proveito da opressão para fazer o bem. E como a opressão se encontrará também nas relações de pessoa a pessoa e, mais sutilmente, em minhas próprias intenções, o bem que eu tente praticar estará viciado na base, tornar-se-á um mal radical. Mas, reciprocamente, se me lançar à empresa revolucionária, correrei o risco de não ter mais tempo para as relações pessoais ou, pior ainda, de ser levado pela lógica da ação a tratar a maior parte dos homens e meus próprios camaradas como meios. Mas se partirmos da exigência moral que envolve, sem saber, o sentimento estético, teremos um bom começo: é preciso historializar a boa vontade do leitor, ou seja, provocar, se possível, pela organização formal de nossa obra, sua intenção de tratar o homem, em qualquer caso, como fim absoluto, e dirigir, pelo tema de nosso escrito, essa intenção a seus vizinhos, isto é, aos oprimidos deste mundo. Mas não teremos feito nada se não lhe mostrarmos também, e na própria trama de nosso escrito, que, precisamente, é impossível tratar os homens concretos como fins na sociedade contemporânea. Assim o levaremos pela mão até fazê-lo perceber que o que ele de fato quer é abolir a exploração do homem pelo homem, e que a Cidade dos Fins, que ele baseou por completo na intuição estética, não passa de um ideal de que só nos aproximaremos ao cabo de uma longa evolução histórica. Em outros termos, devemos transformar sua boa vontade formal numa vontade concreta e material de mudar este mundo, através de determinados meios, a fim de contribuir para o advento futuro da sociedade concreta dos fins. Pois na época presente uma boa vontade não é possível, ou melhor, ela é apenas, e não pode deixar de ser, o desejo de tornar possível a boa vontade. Daí uma tensão particular que deve manifestar-se em nossas obras, e que lembra de longe aquela que mencionei a propósito de Richard Wright. Pois toda uma parte do público que pretendemos ganhar ainda esgota sua boa vontade nas relações de pessoa a pessoa; e toda uma outra parte, que pertence às massas oprimidas, assumiu a tarefa de obter, por todos os meios, uma melhora material de suas condições. É preciso, portanto, ensinar simultaneamente a uns que o reino dos fins não pode realizar-se sem a Revolução, e aos outros que a Revolução só é concebível se preparar o reino dos fins. É essa permanente tensão, se formos capazes de nos manter nela, que realizará a unidade de nosso público. Em suma, em nossos escritos devemos militar em favor da liberdade da pessoa e da revolução socialista. Afirmou-se muitas vezes que as duas não são conciliáveis: é nossa tarefa mostrar infatigavelmente que uma implica a outra.

Nascemos da burguesia e essa classe nos ensinou o valor de suas conquistas: liberdades políticas, habeas corpus etc.; continuamos burgueses por nossa cultura, nosso modo de vida e nosso público atual. Mas, ao mesmo tempo, a situação histórica nos incita a nos unirmos ao proletariado para construir uma sociedade sem classes. Não há dúvida de que, no momento, o proletariado pouco se preocupa com a liberdade de pensamento: tem outros problemas a resolver. A burguesia, por outro lado, finge nem sequer compreender o que significa a expressão “liberdades materiais”. Assim, cada classe pode conservar sua paz de consciência, pelo menos a esse respeito, pois ignora um dos termos da antinomia. Nós, porém, por não termos atualmente nada em que meditar, estamos numa situação de mediadores, divididos entre duas classes que nos puxam com violência, cada uma para seu lado; estamos condenados a suportar essa dupla exigência como uma paixão. É nosso problema pessoal, tanto quanto o drama da nossa época. Naturalmente, dirão que essa antinomia que nos dilacera vem tão somente do fato de que ainda restam em nós vestígios de uma ideologia burguesa de que não soubemos nos desfazer; por outro lado, dirão também que alimentamos o esnobismo revolucionário e queremos que a literatura sirva a fins a que ela não se destina. Isso não seria nada, mas, em alguns de nós, que têm a consciência infeliz, aquelas vozes encontram ecos variados. Por isso convém compenetrar-nos desta verdade: talvez seja tentador abandonar as liberdades formais para renegar mais completamente nossas origens burguesas, mas isso bastaria para desacreditar fundamentalmente o projeto de escrever; talvez fosse mais simples nos desinteressarmos das reivindicações materiais e fazer “literatura pura”, com a consciência serena, mas assim renunciaríamos à possibilidade de escolher nossos leitores fora da classe opressora. Portanto, é também por nós mesmos e em nós mesmos que é preciso superar a oposição. Convençamo-nos primeiro de que ela é superável: a própria literatura nos fornece a prova, pois é obra de uma liberdade total dirigindo-se a liberdades plenas, e assim manifesta à sua maneira, como livre produto de uma atividade criadora, a totalidade da condição humana. E se, por outro lado, conceber uma solução de conjunto excede as forças da maior parte de nós, é nosso dever superar a oposição em mil sínteses de detalhe. A cada dia é preciso tomar partido, em nossa vida de escritor, em nossos artigos, em nossos livros. Que isso se faça sempre conservando como princípio diretor os direitos da liberdade total, como síntese efetiva das liberdades formais e materiais. Que essa liberdade se manifeste em nossos romances, nossos ensaios, nossas peças de teatro. E como nossas personagens ainda não podem usufruí-la, pois são homens do nosso tempo, saibamos ao menos mostrar o que lhes custa sua falta. Não basta mais denunciar, com belo estilo, os abusos e as injustiças, nem descrever com brilhantismo e negatividade a psicologia da classe burguesa, nem mesmo colocar nossa pena a serviço dos partidos sociais: para salvar a literatura é preciso tomar posição na nossa literatura, pois a literatura é por essência tomada de posição. Devemos rechaçar em todos os domínios as soluções que não se inspirem rigorosamente em princípios socialistas, mas ao mesmo tempo nos afastar de todas as doutrinas e movimentos que considerem o socialismo como um fim absoluto. A nossos olhos o socialismo não deve representar o fim último, mas o fim do começo ou, se se preferir, o último meio antes do fim, que é colocar a pessoa humana na posse de sua liberdade. Assim, nossas obras devem apresentar-se ao público sob um duplo aspecto de negatividade e de construção.

Primeiro, a negatividade. É bem conhecida a grande tradição de literatura crítica que remonta ao fim do século XVII: trata-se de separar, pela análise, em cada noção, o que lhe é próprio e o que a tradição ou as mistificações do opressor agregaram a ela. Escritores como Voltaire ou os enciclopedistas consideravam o exercício dessa crítica como uma de suas tarefas essenciais. Como a linguagem é o material e o utensílio do escritor, é normal que caiba aos autores limpar seu instrumento. Essa função negativa da literatura foi abandonada, a bem dizer, no século XVIII, provavelmente porque a classe no poder se servia de conceitos fixados em seu favor pelos grandes escritores do passado e porque havia então certo equilíbrio inicial entre suas instituições, seus propósitos, o gênero de opressão que ela exercia e o sentido que atribuía às palavras que utilizava. Por exemplo, é claro que a palavra “liberdade” nunca designou, no século XIX, mais do que a liberdade política, reservando-se as palavras “desordem” ou “licença” para todas as outras formas de liberdade. Do mesmo modo, a palavra “revolução” se referia necessariamente a uma grande Revolução histórica, a de 1789. E, como a burguesia negligenciava, por uma convenção geral, o aspecto econômico dessa Revolução, mal fazendo menção, em sua história, a Gracchus Babeuf, do ponto de vista de Robespierre e de Marat, atribuindo valor oficial a Desmoulins e aos girondinos, resultou daí designar-se por “revolução” uma insurreição política vitoriosa, podendo-se aplicar a mesma denominação aos eventos de 1830 e 1848, que no fundo só produziram uma simples mudança da cúpula dirigente. Essa estreiteza de vocabulário excluía, evidentemente, certos aspectos da realidade histórica, psicológica ou filosófica; mas como esses aspectos não eram manifestos por si mesmos, pois correspondiam a certas inquietações latentes na consciência das massas ou do indivíduo, mais do que a fatores efetivos da vida social ou pessoal, impressiona mais a seca transparência dos vocábulos, a clareza imutável das significações, do que sua insuficiência. No século XVIII, produzir um dicionário filosófico era minar na surdina a classe no poder. No século XIX, Littré e Larousse são burgueses positivistas e conservadores: seus dicionários visam apenas a recensear e fixar. A crise da linguagem, que marca a literatura entre as duas guerras, vem de que os aspectos negligenciados da realidade histórica e psicológica, depois de amadurecerem em silêncio, passam bruscamente ao primeiro plano. No entanto, nós só dispomos, para nomeá-los, do mesmo aparato verbal. Isso talvez não fosse tão grave, pois na maioria dos casos trata-se apenas de aprofundar conceitos e modificar definições: se se conseguir, por exemplo, rejuvenescer o sentido da palavra “revolução”, fazendo constar que se deve designar por esse vocábulo um fenômeno histórico que implica, ao mesmo tempo, a mudança do regime de propriedade, a mudança dos quadros políticos e o recurso à insurreição, ter-se-á realizado, sem grandes esforços, o rejuvenescimento de um setor da língua francesa, e a palavra, impregnada de vida nova, terá novo deslanche. Cabe apenas assinalar que o trabalho de base a se exercer sobre a linguagem é de natureza sintética, e não analítica como no século de Voltaire: é preciso alargar, aprofundar, abrir as portas e deixar entrar, controlando, na passagem, o rebanho das ideias novas. Para ser exato, trata-se de praticar o antiacademicismo. Infelizmente, o que complica ao extremo nossa tarefa é que vivemos num século de propaganda. Em 1941, os dois campos adversários só disputavam a Deus, o que não era tão grave. Hoje há cinco ou seis campos inimigos que querem apossar-se das noções-chave, pois são as que exercem mais influência sobre as massas. Ainda nos lembramos de como os alemães, conservando o aspecto exterior, os títulos, a ordenação dos artigos e até os caracteres tipográficos dos jornais franceses de antes da guerra, os empregavam para difundir ideias inteiramente opostas àquelas que estávamos habituados a encontrar neles; esperavam que não notássemos a diferença nas pílulas, já que o dourado era igual. O mesmo ocorre com as palavras: cada partido as empurra adiante, como cavalos de Troia, e nós as deixamos entrar porque se faz com que elas rebrilhem a nossos olhos com o sentido que tinham no século XIX. Uma vez na praça, elas se abrem, e significações estranhas, inauditas, se propagam em nós como exércitos, e a fortaleza é tomada antes que nos ponhamos em guarda. A partir daí, tanto a conversa como a disputa se tornam impossíveis; Brice Parain notou bem: se você utiliza a palavra liberdade diante de mim, diz ele aproximadamente, eu me inflamo, eu aprovo ou reprovo; mas não entendo por liberdade a mesma coisa que você, e assim discorremos no vazio. É verdade, mas é um mal moderno. No século XIX, o dicionário de Littré nos teria feito concordar; antes da Segunda Guerra, podíamos recorrer ao vocabulário de Lalande. Hoje não há mais árbitro. De resto, somos todos cúmplices, pois essas noções escorregadias servem à nossa má-fé. E não é só isso: os linguistas já observaram que nos períodos turbulentos as palavras conservam os traços das grandes migrações humanas: um exército bárbaro atravessa a Gália, os soldados se divertem com a língua local, ei-la adulterada por muito tempo. Nossa língua ainda carrega as marcas da invasão nazista. A palavra “judeu” designava outrora certo tipo de homem; talvez o antissemitismo francês lhe tenha atribuído um ligeiro sentido pejorativo, mas que era fácil expurgar; hoje, receia-se usar a palavra, ela soa como ameaça, insulto ou provocação. A palavra “Europa” referia-se à unidade geográfica, econômica e histórica do Velho Continente. Hoje ela traz um mofo de germanismo e de servidão. E não foi só o inocente e abstrato vocábulo “colaboração” que ganhou má fama. De outro lado, como a Rússia soviética está em pane, também entraram em pane as palavras que os comunistas empregavam antes da guerra. Elas param a meio-caminho de seu sentido, assim como os intelectuais estalinistas param a meio-caminho do pensamento, quando não se perdem em atalhos laterais. A esse respeito, os avatares da palavra “revolução” são bem significativos. Em certo artigo, citei esta frase de um jornalista colaboracionista: “Manter, esta é a divisa da Revolução Nacional”. Acrescento hoje esta outra, que vem de um intelectual comunista: “Produzir, eis a verdadeira Revolução”. As coisas foram tão longe que há pouco se lia na França, em cartazes eleitorais: “Votar no Partido Comunista é votar pela defesa da propriedade”[24]. Inversamente, quem não é socialista hoje em dia? Lembro-me de uma reunião de escritores – todos de esquerda – que se recusaram a utilizar num manifesto a palavra socialismo, “porque estava muito desacreditada”. E a realidade linguística é hoje tão complicada que já nem sei se esses autores recusaram a palavra pela razão alegada ou porque, mesmo muito gasta, ela lhes dava medo. Sabe-se, aliás, que o termo comunista designa nos Estados Unidos o cidadão americano que não vota nos republicanos; já fascista, na Europa, é qualquer cidadão europeu que não vota nos comunistas. Para confundir ainda mais o jogo, é preciso acrescentar que os conservadores franceses declaram que o regime soviético – que no entanto não se inspira nem numa teoria racial, nem numa teoria do antissemitismo, nem numa teoria da guerra – é um nacional-socialismo; ao passo que a esquerda declara que os Estados Unidos, que são uma democracia capitalista, com uma ditadura difusa da opinião pública, pendem para o fascismo.

A função do escritor é chamar o gato de gato. Se as palavras estão doentes, cabe a nós curá-las. Em vez disso, muitos vivem dessa doença. A literatura moderna, em muitos casos, é um câncer das palavras. Admito que se escreva “cavalo de manteiga”, mas, de certo modo, isso é a mesma coisa que falar dos Estados Unidos fascistas, ou do nacional-socialismo estalinista. Particularmente, nada é mais nefasto que o exercício literário que se chama, creio, prosa poética, que consiste em usar palavras pelos obscuros acordes harmônicos que fazem ressoar, em torno delas, sentidos vagos, em contraposição ao significado claro.

Eu sei: o propósito de muitos autores foi destruir as palavras, como o dos surrealistas foi destruir ao mesmo tempo o sujeito e o objeto: foi o ponto extremo da literatura de consumo. Mas hoje, como já demonstrei, é preciso construir. Se não deplorarmos, como Brice Parain, a inadequação da linguagem à realidade, nos tornaremos cúmplices do inimigo, isto é, da propaganda. Nosso primeiro dever de escritor é, pois, restabelecer a linguagem em sua dignidade. Afinal, é com palavras que pensamos. Teríamos de ser muito pretensiosos para acreditar que contemos dentro de nós belezas inefáveis que a palavra não é digna de exprimir. Além disso, desconfio dos incomunicáveis: são a fonte de toda violência. Quando as certezas de que usufruímos nos parecem impossíveis de compartilhar, então só resta bater, queimar ou enforcar. Não, não valemos mais do que nossa vida e é por nossa vida que é preciso julgar-nos; nosso pensamento não vale mais do que nossa linguagem e deve-se julgá-lo pela forma com que a utiliza. Se queremos restituir às palavras suas respectivas virtudes, é preciso uma dupla operação: de um lado, uma limpeza analítica que as desembarace dos sentidos adventícios; de outro, um alargamento sintético que as adapte à situação histórica. Se um autor quisesse dedicar-se inteiramente a essa tarefa, toda a sua vida seria pouco. Se nos empenharmos nisso todos juntos, havemos de levá-la a bom termo sem tanto sacrifício. Não é só isso: vivemos na época das mistificações. Algumas, fundamentais, que têm a ver com a estrutura da sociedade; outras, secundárias. De qualquer modo, a ordem social repousa hoje sobre a mistificação das consciências, assim como a desordem. O nazismo era uma mistificação; o gaullismo, outra; o catolicismo, uma terceira; é fora de dúvida, hoje, que o comunismo francês é uma quarta. Poderíamos, evidentemente, não levar isso em conta e seguir fazendo nosso trabalho honestamente, sem agressividade. Mas, como o escritor se dirige à liberdade de seu leitor e como cada consciência mistificada, enquanto cúmplice da mistificação que a aprisiona, tende a perseverar nesse estado, só poderemos salvaguardar a literatura se assumirmos a tarefa de desmistificar nosso público. Pela mesma razão, o dever do escritor é tomar partido contra todas as injustiças, de onde quer que venham. E, como nossos escritos não teriam sentido se não tivéssemos por meta o advento longínquo da liberdade pelo socialismo, importa ressaltar, em cada caso, que houve uma violação das liberdades formais e pessoais, ou uma opressão material, ou as duas coisas. Desse ponto de vista, precisamos denunciar tanto a política da Inglaterra na Palestina e a dos Estados Unidos na Grécia, como as deportações soviéticas. E se nos disserem que nos fazemos de importantes e que é pueril nos julgarmos capazes de mudar o curso do mundo, responderemos que não temos nenhuma ilusão, mas convém que algumas coisas sejam ditas, ainda que apenas para salvar nossa honra diante de nossos filhos; além disso, não temos a louca ambição de influenciar o Departamento de Estado norte-americano, mas sim esta outra – um pouco menos louca – de agir sobre a opinião de nossos concidadãos. Não devemos, porém, disparar ao acaso e sem discernimento nossa artilharia de escritório. Em cada caso, temos a considerar o fim pretendido. Antigos comunistas queriam nos mostrar que a Rússia soviética era o inimigo número um, porque perverteu a própria ideia de socialismo e transformou a ditadura do proletariado em ditadura da burocracia; assim, gostariam que consagrássemos todo o nosso esforço a estigmatizar seus excessos e violências; ao mesmo tempo, diziam-nos que as injustiças capitalistas são demasiado evidentes e não há perigo de alguém se enganar a respeito: portanto, perderíamos nosso tempo tratando de revelá-las. Sei muito bem a que interesses servem esses conselhos. Quaisquer que sejam as violências consideradas, ainda é possível, antes de firmar um julgamento sobre elas, considerar a situação do país que as comete e as perspectivas em que foram cometidas. Haveria que provar de início, por exemplo, que as manobras atuais do governo soviético não foram ditadas, em última análise, por seu desejo de proteger a Revolução em pane, “segurando” as coisas até o momento em que seja possível retomar a marcha adiante. Enquanto isso, o antissemitismo e a negrofobia dos norte-americanos, nosso colonialismo, a atitude das grandes potências em face de Franco, conduzem a injustiças menos espetaculares, porém visam também a perpetuar o atual regime de exploração do homem pelo homem. Toda gente sabe disso, dirão. Talvez seja verdade, mas, se ninguém o diz, de que nos serve sabê--lo? É nossa tarefa de escritores representar o mundo e testemunhar sobre ele. De resto, ainda que se provasse que os soviéticos e o Partido Comunista visam fins autenticamente revolucionários, isso não nos dispensaria de julgar os meios. Se tomamos a liberdade como princípio e fim de toda atividade humana, então é falso que se devam julgar os meios pelo fim e o fim pelos meios. Mas o fim é a unidade sintética dos meios empregados. Existem, pois, meios que implicam o risco de destruir o fim que se propõem realizar, rompendo, por sua simples presença, a unidade sintética onde querem ingressar. Tentou-se determinar, por fórmulas quase matemáticas, em que condições um meio pode ser considerado legítimo: entram nessas fórmulas a probabilidade do fim, sua proximidade e os benefícios que traz em relação ao custo do meio empregado. Parece um reencontro com Bentham e a aritmética dos prazeres. Não digo que uma fórmula desse tipo não possa ser aplicada em alguns casos, como por exemplo na hipótese, em si mesma quantitativa, de que é necessário sacrificar certo número de vidas humanas para salvar outras. Mas na maioria dos casos o problema é bem diferente: o meio utilizado introduz no fim uma alteração qualitativa que, em consequência, não é mensurável. Imaginemos que um partido revolucionário minta sistematicamente a seus militantes para protegê-los contra as incertezas, as crises de consciência, a propaganda adversa. O fim pretendido é a abolição de um regime de opressão; mas a mentira em si já é opressão. Será possível perpetuar a opressão sob pretexto de acabar com ela? Será preciso subjugar o homem para melhor libertá-lo? Dirão que o meio é transitório. Não quando contribui para manter uma humanidade mentida e mentirosa, pois então os homens que tomarão o poder não serão mais aqueles que mereciam tomá-lo; e as razões que havia para abolir a opressão acabam minadas pela maneira escolhida de consegui-lo. Assim, a política do Partido Comunista, que consiste em mentir para suas próprias tropas, em caluniar, em esconder suas derrotas e falhas, compromete o fim que ele procura atingir. Por outro lado, é fácil responder que não se pode, numa guerra – e todo partido revolucionário está em guerra –, dizer toda a verdade aos soldados. Existe aqui, portanto, uma questão de dosagem; nenhuma fórmula pronta dispensará o exame de cada caso particular. Esse exame, a nós cabe fazê-lo. Deixado por sua conta, o político adota sempre o meio mais cômodo, ou seja, ladeira abaixo. As massas, enganadas pela propaganda, o seguem. Quem, pois, pode representar junto ao governo, aos partidos, aos cidadãos, o valor dos meios empregados, senão o escritor? Isto não significa que devamos nos opor sistematicamente ao uso da violência. Reconheço que a violência, sob qualquer forma que se manifeste, é um fracasso. Mas um fracasso inevitável, pois vivemos num universo de violência; e se é verdade que o uso da violência contra a violência implica o risco de perpetuá-la, é verdade também que é o único meio de detê-la. Certo jornal, onde se escrevia, com muita altivez que era preciso recusar toda cumplicidade, direta ou indireta, com a violência, viesse de onde viesse, teve de anunciar, no dia seguinte, os primeiros combates da Guerra da Indochina. Pergunto hoje a esse jornal: Como fazer para recusar qualquer participação indireta nas violências? Se não disser nada, você se colocará necessariamente a favor da continuação da guerra: sempre se é responsável por aquilo que não se tenta impedir. Mas se conseguir que ela cesse de imediato, e a qualquer preço, você estará na origem de vários massacres e cometerá uma violência contra todos os franceses que têm interesses na região. Não estou falando, entenda-se bem, de compromissos, pois é exatamente de um compromisso que nasce a guerra. Violência por violência, é preciso escolher. Segundo outros princípios. O político se perguntará se o transporte de tropas é possível, se a continuação da guerra afastará dele a opinião pública, quais serão as repercussões internacionais. Cabe ao escritor julgar os meios, não do ponto de vista de uma moral abstrata, mas segundo a perspectiva de um fim preciso, que é a realização de uma democracia socialista. Assim, não é somente em teoria mas em cada caso concreto que devemos meditar sobre o problema moderno do fim e dos meios.

Como se vê, há muito por fazer. Mas se dedicássemos toda a nossa vida à crítica, quem poderia recriminar-nos? A tarefa da crítica tornou-se total, ela engaja o homem por inteiro. No século XVIII o instrumento estava forjado; a simples utilização da razão analítica bastava para limpar os conceitos; hoje, quando é preciso ao mesmo tempo limpar e completar, levar a cabo noções que se tornaram falsas, porque se detiveram no caminho, a crítica é também sintética; põe em jogo todas as faculdades de invenção; em vez de se limitar a usar uma razão já constituída por dois séculos de matemática, é ela, ao contrário, que formará a razão moderna, de modo que tem por fundamento, enfim, a liberdade criadora. Por certo, a crítica por si mesma não traz nenhuma solução positiva. Mas hoje em dia, quem traz? Vejo por toda parte fórmulas envelhecidas, remendos grosseiros, acordos feitos sem boa-fé, mitos caducos, repintados às pressas. Se nada mais tivéssemos feito além de furar, uma a uma, todas essas bexigas cheias de vento, já seríamos dignos de nossos leitores.

Todavia, a crítica era, por volta de 1750, uma preparação direta para a mudança de regime, pois contribuía para enfraquecer a classe opressora, desmantelando sua ideologia. Hoje não se dá o mesmo, pois os conceitos a criticar pertencem a todas as ideologias e a todos os campos. Com isso, não é mais apenas a negatividade que pode servir à história, ainda que ela acabe sendo uma positividade. O escritor isolado pode limitar-se à sua tarefa crítica, mas nossa literatura, em seu conjunto, deve ser sobretudo construção. Isso não significa que devamos assumir, em conjunto ou isoladamente, a tarefa de encontrar uma nova ideologia. A cada época, como já demonstrei, é a literatura inteira que é a ideologia, porque constitui a totalidade sintética e muitas vezes contraditória[25] de tudo o que a época foi capaz, para esclarecer-se, levando em conta a situação histórica e os talentos. Mas, como já reconhecemos que devemos fazer uma literatura da praxis, convém levar até o fim nosso propósito. Não é mais o momento de descrever nem de narrar; não podemos, tampouco, nos limitar a explicar. A descrição, mesmo que psicológica, é puro gozo contemplativo; a explicação é aceitação: desculpa tudo; ambas supõem que os dados já estão lançados. Mas, se a própria percepção já é ação; se, para nós, mostrar o mundo é sempre desvendá-lo segundo as perspectivas de uma mudança possível, então, nesta época de fatalismo, devemos revelar ao leitor, em cada caso concreto, seu poder de fazer e desfazer; em suma, de agir. Revolucionária, na medida em que é perfeitamente insuportável, a situação atual permanece estagnada porque os homens se privaram do seu próprio destino; a Europa abdica diante do conflito futuro e procura menos preveni-lo do que alinhar-se, por antecipação, do lado dos vencedores; a Rússia soviética julga estar só e acuada como um javali em meio a uma matilha encarniçada; a América, que não teme as outras nações, se descontrola diante do próprio peso: quanto mais rica, mais pesada, sobrecarregada de gordura e orgulho, deixa-se rolar, de olhos fechados, rumo à guerra. Quanto a nós, só escrevemos para alguns homens em nosso país e para um punhado de outros na Europa; mas é preciso que os busquemos, onde quer que estejam, isto é, perdidos em seu tempo como agulhas num palheiro, e lhes lembremos seus poderes. Cheguemos a eles em seu trabalho, em sua família, em sua classe, em seu país e avaliemos com eles sua servidão, mas não para enterrá-los ainda mais: mostremos a eles que no gesto mais mecânico do trabalhador já se encontra toda a negação da opressão; não consideremos jamais sua situação como um dado de fato, mas como um problema; mostremos que ela tira suas formas e seus limites de um horizonte infinito de possibilidades, ou seja, que sua situação se configura unicamente pela maneira como eles decidiram superá-la; ensinemos a eles que são ao mesmo tempo vítimas e responsáveis por tudo, conjuntamente oprimidos, opressores e cúmplices de seus próprios opressores, e que não se pode jamais separar o que um homem suporta do que ele aceita e do que deseja; mostremos que o mundo em que vivem só se define por referência ao futuro que projetam diante de si e, já que a literatura lhes revela sua liberdade, tiremos proveito disso lembrando-lhes que esse futuro, onde eles se colocam para julgar o presente, não é outro senão aquele em que o homem se une a si mesmo e se atinge, enfim, como totalidade, para o advento da Cidade dos Fins; pois só o pressentimento da Justiça é que permite a alguém indignar-se contra uma injustiça específica, isto é, precisamente, constituí-la em injustiça; enfim, convidemo-los a se situarem no ponto de vista da Cidade dos Fins para compreender sua época; não os deixemos ignorar o que essa época apresenta de favorável à realização de seu objetivo. Outrora, havia o teatro de “caracteres”: fazia-se aparecer em cena personagens mais ou menos complexas, mas inteiras, e a situação tinha como único papel fazer que esses caracteres interagissem, revelando como cada um era modificado pela ação dos outros. Já mostrei, em outra parte, como importantes mudanças ocorreram nesse domínio ultimamente: vários autores retornaram ao teatro de situação. Não há mais caracteres: os heróis são liberdades aprisionadas em armadilhas, como todos nós. Quais são as saídas? Cada personagem será tão somente a escolha de uma saída e não valerá mais que a saída escolhida. É de se desejar que toda a literatura se torne moral e problemática, como esse novo teatro. Moral – não moralizadora: que ela mostre simplesmente que o homem é também valor e que as questões que ele se coloca são sempre morais. Sobretudo que mostre nele o inventor. Em certo sentido, cada situação é uma ratoeira, há muros por todos os lados: na verdade me expressei mal, não há saídas a escolher. Uma saída é algo que se inventa. E cada um, inventando sua própria saída, inventa-se a si mesmo. O homem é para ser inventado a cada dia.

Em particular, tudo estará perdido se quisermos escolher entre as potências que preparam a guerra. Escolher a URSS é renunciar às liberdades formais, sem ter sequer a esperança de adquirir as materiais: o atraso de sua indústria a impediria, em caso de vitória, de organizar a Europa; daí o prolongamento indefinido da ditadura e da miséria. Mas, após a vitória da América, quando o PC seria aniquilado, a classe operária desencorajada, desorientada e, para arriscar um neologismo, atomizada; quando o capitalismo se faria ainda mais impiedoso, pois seria o senhor do mundo, será que um movimento revolucionário partindo do zero teria alguma chance? Responderão que é preciso contar com as incógnitas. Porém o que quero é justamente contar com aquilo que conheço. Mas quem nos obriga a escolher? Será que escolhendo entre dois conjuntos dados, simplesmente porque são dados, e colocando-se do lado do mais forte é que se faz a história? Se fosse assim, em 1941 todos os franceses deveriam ter ficado do lado dos alemães, como propunham os colaboracionistas. Ora, é evidente, ao contrário, que a ação histórica nunca se reduziu a uma escolha entre dados brutos, mas sempre se caracterizou pela invenção de soluções novas a partir de uma situação definida. O respeito aos “conjuntos” é puro e simples empirismo, há muito tempo o homem superou o empirismo na ciência, na moral e na vida individual: em Florença, os construtores de fontes “escolhiam entre vários conjuntos”; Torricelli inventou o peso do ar. Digo “inventou” e não “descobriu” porque, quando um objeto está absolutamente escondido, é preciso inventá-lo por inteiro para poder descobri-lo. Por que, por qual complexo de inferioridade, nossos realistas recusam, quando se trata do fato histórico, a faculdade de criação que em outras áreas eles proclamam aos quatro ventos? O agente histórico é quase sempre o homem que, colocado em face de um dilema, faz aparecer de súbito um terceiro termo, até então invisível. Entre a URSS e o bloco anglo-saxônico é verdade que é preciso escolher. Já a Europa socialista não tem como ser “escolhida”, pois ela não existe: está por fazer. Mas não começando pela Inglaterra de Churchill, nem mesmo pela de Bevin: começando pelo continente, pela união de todos os países que têm os mesmos problemas. Dirão que já é tarde demais, mas como saber? Será que já se chegou pelo menos a tentar? Nossas relações com nossos vizinhos imediatos passam sempre por Moscou, Londres ou Nova York: ainda se ignora que há caminhos diretos? De qualquer modo, e enquanto as circunstâncias não mudarem, as chances da literatura estão ligadas ao advento de uma Europa socialista, isto é, a um grupo de Estados de estrutura democrática e coletivista, onde cada um, esperando coisa melhor, despojar-se-ia de parte de sua soberania em proveito do conjunto. Somente nessa hipótese restará alguma esperança de evitar a guerra; somente nessa hipótese a circulação das ideias permanecerá livre no continente e a literatura reencontrará um objeto e um público.

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Eis aí muitas tarefas ao mesmo tempo – e bem dessemelhantes, dirão. É verdade. Mas Bergson já demonstrou que o olho – órgão de extrema complexidade, se encarado como justaposição de funções – adquire certa simplicidade quando inserido no movimento criador da evolução. O mesmo acontece com o escritor: se fizermos um inventário dos temas que Kafka desenvolve, das questões que levanta em seus livros, e se considerarmos, em seguida, reportando-nos ao início de sua carreira, que para ele eram temas a tratar, questões a levantar, ficaremos assombrados. Mas não é por aí que se deve encarar o problema: a obra de Kafka é uma reação livre e unitária ao mundo judaico-cristão da Europa Central; seus romances são a superação sintética de sua situação de homem, de judeu, de tcheco, de noivo recalcitrante, de tuberculoso etc., como eram também seu aperto de mão, seu sorriso e esse olhar que Max Brod admirava tanto. Sob a análise do crítico, esses romances se desmancham em problemas, mas o crítico está errado: é preciso lê-los no movimento. Não pretendi dar lições de casa aos escritores da minha geração: Com que direito o faria, e quem me pediu isso? Tampouco sinto atração pelos manifestos de escola. Tentei apenas descrever uma situação, com suas perspectivas, ameaças, diretrizes; uma literatura da Práxis começa a nascer na época do público inencontrável: eis o dado; para cada um, sua saída. Sua saída quer dizer: seu estilo, sua técnica, seus temas. Se o escritor estiver convencido, como eu estou, da urgência desses problemas, não há dúvida de que proporá soluções na unidade criadora de sua obra, ou seja, na indistinção de um movimento de livre criação[26].

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Nada nos garante que a literatura seja imortal; hoje, sua chance, sua única chance, é a chance da Europa, do socialismo, da democracia, da paz. É preciso tentá-la; se nós, os escritores, a perdermos, tanto pior para nós. Mas tanto pior também para a sociedade. Através da literatura, conforme mostrei, a coletividade passa à reflexão e à mediação, adquire uma consciência infeliz, uma imagem não equilibrada de si mesma, que ela busca incessantemente modificar e aperfeiçoar. Mas, afinal, a arte de escrever não é protegida pelos decretos imutáveis da Providência; ela é o que os homens dela fazem, eles a escolhem, ao se escolherem. Se a literatura se transformasse em pura propaganda ou em puro divertimento, a sociedade recairia no lamaçal do imediato, isto é, na vida sem memória dos himenópteros e dos gasterópodes. Certamente, nada disso é importante: o mundo pode muito bem passar sem a literatura. Mas pode passar ainda melhor sem o homem.

[1]. A literatura norte-americana ainda se encontra no estágio do regionalismo.

[2]. De passagem por Nova York, em 1945, solicitei a um agente literário que adquirisse os direitos de tradução de Miss corações solitários, obra de Nathanaël West. Ele não conhecia o escritor e fechou um acordo de princípio com a autora de um certo Lonelyheart, uma velha senhora que ficou muito surpresa com a possibilidade de ser traduzida para o francês. Percebendo o engano, ele retomou a busca e por fim descobriu o editor de West, que lhe confessou não saber onde se encontrava o escritor. Por insistência minha, fizeram uma pesquisa, cada um por seu lado, e por fim descobriram que West morrera alguns anos antes num acidente automobilístico. Parece que havia ainda uma conta aberta em seu nome num banco em Nova York, para onde o editor enviava um cheque de tempos em tempos.

[*]. United Nations Relief and Rehabilitation Administration [N.T.].

[3]. As almas burguesas, em Jouhandeau, possuem a mesma qualidade do maravilhoso; mas muitas vezes esse maravilhoso muda de signo: torna-se negativo e satânico. Como bem se imagina, as missas negras da burguesia são ainda mais fascinantes do que suas pompas consentidas.

[**]. Lat.: por uma razão mais forte [N.T.].

[4]. Fazer-se o “intelectual” burocrata da violência implica a adoção deliberada da violência como método de pensamento, ou seja, o recurso sistemático à intimidação, ao princípio da autoridade, a recusa arrogante a demonstrar, a discutir. É isso que dá aos textos dogmáticos dos surrealistas uma semelhança puramente formal, mas perturbadora, com os escritos políticos de Charles Maurras.

[5]. Outra semelhança com a Ação Francesa, da qual Maurras declarou que não se tratava de um partido, mas de uma conspiração. E as expedições punitivas dos surrealistas não se assemelham às travessuras dos ativistas que vendiam jornais monarquistas?

[6]. Essas observações sem paixão provocaram rebates apaixonados. No entanto, longe de me convencer, defesas e ataques confirmaram minha convicção de que o surrealismo havia perdido – talvez provisoriamente – sua atualidade. Realmente, constato que a maioria dos seus defensores são ecléticos. Faz-se dele um fenômeno cultural de “alta importância”, uma atitude “exemplar”, e tenta-se integrá-lo, na surdina, ao humanismo burguês. Se ainda estivesse vivo, será que aceitaria temperar, com a pimenta freudiana, o racionalismo um pouco insípido do Sr. Alquié? No fundo, o surrealismo é vítima desse idealismo contra o qual tanto lutou; a Gazette des Lettres, Fontaine, Carrefour são grandes bolsas estomacais ansiosas por digeri-lo. Imagine que algum Desnos tivesse lido, em 1930, estas linhas do Sr. Claude Mauriac, jovem enzima da Quarta República: “O homem combate o homem sem saber que é contra certa concepção de homem, estreita e falsa, que a frente comum de todos os espíritos deveria lutar primeiro. Mas isso o surrealismo sabe e o alardeia há vinte anos. Empreendimento de saber, proclama que tudo está para ser reinventado, no que diz respeito aos modos tradicionais de pensar e de sentir”. Com certeza ele teria protestado: o surrealismo não era “empreendimento de saber”; ele se valia especialmente da célebre frase de Marx: “Não queremos compreender o mundo, queremos mudá-lo”. O surrealismo nunca desejou essa “frente comum de todos os espíritos”, que lembra agradavelmente a União Popular Francesa. Contra esse otimismo bastante tolo, o surrealismo sempre afirmou a conexão rigorosa entre a censura interior e a opressão; se devesse existir uma frente comum de todos os espíritos (mas como essa expressão, espíritos, no plural, é pouco surrealista!), ela viria depois da Revolução. Durante seu apogeu, o surrealismo nunca teria tolerado que alguém se debruçasse sobre ele dessa forma, a fim de compreendê-lo. Tal como o Partido Comunista, o movimento considerava que tudo o que não estivesse total e exclusivamente do seu lado, estava contra ele. Será que hoje ele se dá conta das manobras que o atingem? Para esclarecê-lo, revelarei que Bataille, antes de informar de público a Merleau-Ponty que retiraria seu artigo, o avisara de sua intenção numa conversa particular. Esse defensor do surrealismo declara então: “Faço grandes críticas a Breton, mas é preciso nos unirmos contra o comunismo”. Isso basta. Creio dar mais mostra de estima pelo surrealismo referindo-me ao período de sua atuação mais vigorosa e discutindo seus propósitos do que tentando sorrateiramente assimilá-lo. É verdade que não ficará muito agradecido, pois, como acontece com todos os partidos totalitários, o surrealismo afirma a continuidade de seus pontos de vista para mascarar a permanente mudança que eles sofrem e por isso não gosta que ninguém se refira a suas declarações anteriores. Muitos textos que encontro hoje no catálogo da exposição surrealista O surrealismo em 1947, e que são aprovados pelos chefes do movimento, estão mais próximos do ecletismo manso de Claude Mauriac do que das ásperas revoltas do primeiro surrealismo. Eis aqui, por exemplo, algumas linhas do Sr. Pastoureau: “A experiência política do surrealismo, que o fez evoluir em torno do Partido Comunista por cerca de dez anos, é claramente conclusiva. Tentar prosseguir por aí seria fechar-se no dilema do comprometimento e da ineficácia. É contraditório, em relação aos motivos que outrora impeliram o surrealismo a empreender uma ação política e que são tanto reivindicações imediatas no domínio do espírito, mais especialmente da moral, quanto a procura desse fim longínquo que é a libertação total do homem, seguir o Partido Comunista no caminho da colaboração de classes em que este se engajou. Contudo, está patente que a política sobre a qual se possa assentar a esperança de ver realizadas as aspirações do proletariado não é a da oposição dita da esquerda ao Partido Comunista, nem a dos grupelhos anarquistas... O surrealismo, cujo papel assumido é reivindicar inumeráveis reformas no domínio do espírito e, em particular, reformas éticas, não pode mais participar de uma ação política necessariamente imoral para ser eficaz, assim como não pode, sob pena de renunciar à libertação do homem como fim a ser atingido, participar de uma ação política necessariamente ineficaz porque respeitadora de princípios que se recusa a transgredir. O surrealismo, pois, fecha-se sobre si mesmo. Seus esforços tenderão a conseguir os mesmos objetivos e a precipitar a libertação do homem, mas por outros meios”.

(Encontram-se textos análogos e mesmo frases idênticas em “Ruptura inaugural”, declaração divulgada na França pelo grupo em 21/06/1947, cf. p. 8-11.)

Note-se, de passagem, a palavra “reforma” e o inusitado recurso à moral. Leremos algum dia um periódico intitulado “O Surrealismo a serviço da Reforma”? Mas esse texto consagra sobretudo a ruptura do surrealismo com o marxismo: entende-se, agora, que é possível agir sobre as superestruturas sem que a infraestrutura econômica seja modificada. Um surrealismo ético e reformista, que quer limitar sua ação e mudar as ideologias: eis algo que cheira perigosamente a idealismo. Resta saber quais são esses “outros meios” de que nos falam. O surrealismo vai nos oferecer novos critérios de valor? Vai produzir uma nova ideologia? Não: o surrealismo vai se empenhar, “buscando seus objetivos de sempre, na redução da civilização cristã e na preparação das condições para o advento da Weltanschauung ulterior”. Trata-se, mais uma vez, como se vê, de negação. A civilização ocidental, segundo o depoimento do próprio Pastoureau, está moribunda; ameaça-a uma guerra imensa, que se encarregará de enterrá-la; nosso tempo clama por uma ideologia nova que permita ao homem viver: mas o surrealismo continuará a insurgir-se contra o “estágio cristão-tomista” da civilização. E como pode se dar essa insurreição? Pelo pirulito enfeitado, tão rapidamente chupado, da exposição de 1947? Voltemos então ao verdadeiro surrealismo, aquele de O despertar do dia, de Nadja, de Vasos comunicantes.

Alquié e Max Pol-Fouchet insistem sobretudo no fato de que aquilo foi uma tentativa de libertação. Trata-se, segundo eles, de afirmar os direitos da totalidade humana, sem nada excluir, seja o inconsciente, o sonho, a sexualidade, o imaginário. Estou de pleno acordo com eles: foi justamente isso que o surrealismo quis; e por certo aí está a grandeza de seu empreendimento. É preciso observar ainda que a ideia “totalitária” é um traço de época; é essa ideia que anima a tentativa nazista, a tentativa marxista, e hoje a tentativa “existencialista”. Com certeza é preciso retornar a Hegel como fonte comum de todos esses esforços. Mas distingo uma contradição grave na origem do surrealismo: para empregar a linguagem hegeliana, direi que esse movimento assimilou o conceito de totalidade (como transparece claramente na frase famosa de Breton: liberdade, cor do homem), porém realizou algo totalmente diferente em suas manifestações concretas. A totalidade do homem, com efeito, é necessariamente uma síntese, isto é, uma unidade orgânica e esquemática de todas as suas estruturas secundárias. Uma libertação que se propõe a ser total deve partir do conhecimento total de si mesmo pelo homem (não trato de demonstrar aqui que isso seja possível: é sabido que estou profundamente convencido disso). Isso não significa que devamos conhecer – nem que possamos conhecer – a priori todo o conteúdo antropológico da realidade humana, mas sim que podemos atingir a nós mesmos, em primeiro lugar na unidade, ao mesmo tempo profunda e manifesta, de nossas condutas, afeições e sonhos. O surrealismo, fruto de uma época determinada, se complica, de saída, com remanescências antissintéticas: de início, a negatividade analítica que exerce sobre a realidade cotidiana. A respeito do ceticismo, diz Hegel: “O pensamento se torna pensamento perfeito anulando o ser do mundo na múltipla variedade de suas determinações, e a negatividade da consciência de si, livre, no seio dessa configuração multiforme da vida, se torna negatividade real... O ceticismo corresponde à realização dessa consciência, à atitude negativa em relação ao ser-outro; corresponde portanto ao desejo e ao trabalho” (Fenomenologia do espírito, conforme tradução de Hyppolite, p. 172). Da mesma forma, o que me parece essencial na atividade surrealista é a descida do espírito negativo para dentro do trabalho: a negatividade cética se faz concreta; os torrões de açúcar de Duchamp, assim como a mesa-lobo, são trabalhos, ou seja, precisamente a destruição concreta e feita com esforço daquilo que o ceticismo destrói apenas verbalmente. Diria o mesmo do desejo, uma das estruturas essenciais do amor surrealista e que é, como se sabe, desejo de consumo, de destruição. Vê-se por aí o caminho percorrido, que justamente se assemelha aos avatares hegelianos da consciência: a analítica burguesa é destruição idealista do mundo, por digestão; a atitude dos escritores alinhados merece a caracterização que Hegel faz do estoicismo: “é somente conceito de negatividade; eleva-se acima desta vida, como a consciência do senhor”. O surrealismo, ao contrário, “penetra nesta vida como a consciência do escravo”. Aí reside certamente seu valor e é por aí, sem dúvida nenhuma, que o surrealismo pretende unir-se à consciência do trabalhador, que experimenta sua liberdade no trabalho. Porém o trabalhador destrói para construir: sobre a destruição da árvore, ele constrói a viga e a estaca; apreende, pois, as duas faces da liberdade, que é negatividade construtora. O surrealismo, buscando seu método na análise burguesa, inverte o processo: em vez de destruir para construir, é para destruir que ele constrói. A construção, no surrealismo, é sempre alienada, funda-se num processo cujo fim é a anulação. No entanto, como a construção é real e a destruição é simbólica, o objeto surrealista pode também ser concebido diretamente como seu próprio fim. Segundo o ângulo de observação, é “açúcar de mármore” ou contestação do açúcar. O objeto surrealista é necessariamente cambiante, pois figura a ordem humana subvertida e, como tal, contém em si sua própria contradição. É isso que permite a seu construtor afirmar que destrói o real e, ao mesmo tempo, cria poeticamente uma suprarrealidade para além da realidade. De fato, o suprarreal, assim construído, torna-se um objeto do mundo entre outros, ou não passa de indicação estática da destruição possível do mundo. A mesa-lobo da última exposição é tanto um esforço sincrético para transmitir à nossa carne um sentido obscuro da lenhosidade, como uma contestação recíproca do inerte pelo vivo e do vivo pelo inerte. O esforço dos surrealistas é no sentido de apresentar essas duas faces de suas produções na unidade do mesmo movimento. Mas falta a síntese: é que nossos autores não a desejam; convém a seus propósitos apresentar os dois momentos como fundidos numa unidade essencial e, ao mesmo tempo, sendo cada um o essencial, o que não nos tira da contradição. É sem dúvida o resultado buscado e obtido: o objeto criado e destruído desencadeia uma tensão no espírito do espectador e é quanto a essa tensão que se pode falar, propriamente, de instante surrealista: a coisa dada é destruída por contestação interna, mas a própria contestação e a destruição são contestadas, por sua vez, pelo caráter positivo e pelo estar-aí concreto da criação. Mas essa irritante mobilidade do impossível não é nada, no fundo, senão a distância, impossível de vencer, entre os dois termos de uma contradição. Trata-se aqui de provocar tecnicamente a insatisfação baudelairiana. Não temos nenhuma revelação, nenhuma intuição de objeto novo, nenhuma apreensão de matéria ou conteúdo, mas apenas a consciência puramente formal do espírito como superação, apelo e vazio. Aplicarei ainda ao surrealismo a fórmula hegeliana para o ceticismo: “No (surrealismo), a consciência faz, na verdade, a experiência de si mesma como consciência que se contradiz no interior de si mesma”. Irá ela ao menos retornar sobre si mesma, executar uma conversão filosófica? O objeto surrealista terá a eficiência concreta da hipótese do gênio maligno? Mas aqui intervém um segundo preconceito do surrealismo: já demonstrei que este recusa a subjetividade, assim como o livre-arbítrio. Seu amor profundo pela materialidade (objeto e suporte insondável de suas destruições) o leva a professar o materialismo. Assim, ele volta a cobrir de imediato a consciência que descobriu por um instante; substantifica a contradição; não se trata mais de tensão de subjetividade, mas de uma estrutura objetiva do universo. Basta ler Vasos comunicantes: o título, assim como o texto, mostra a lamentável ausência de qualquer mediação; sonho e vigília são vasos comunicantes, o que significa que há uma mescla, fluxo e refluxo, mas não uma unidade sintética. Sei bem o que me dirão: é que essa unidade sintética está por fazer e é justamente a meta que o surrealismo se propõe. “O surrealismo”, diz ainda Arpad Mezei, “parte das realidades distintas do consciente e do inconsciente e vai em busca da síntese desses componentes”. Compreendo; mas com o quê se propõe o surrealismo realizar essa síntese? Qual é o instrumento da mediação? Ver um carrossel de fadas girando sobre uma abóbora (caso isso seja possível, do que duvido) é misturar o sonho à realidade, não é unificá-los numa forma nova que reteria em si, transformados e superados, os elementos do sonho e os do real. De fato, estamos sempre no plano da contestação: a abóbora real, apoiada no mundo real inteiro, contesta essas fadas esmaecidas que rodopiam sobre sua casca; e as fadas, inversamente, contestam a cucurbitácea... Resta a consciência, único testemunho dessa destruição recíproca, único recurso; mas não querem saber dela. Se pintamos ou esculpimos nossos sonhos, é o sono que é devorado pela vigília: o objeto escandaloso retomado pela luz elétrica, apresentado numa sala fechada, no meio de outros objetos, a dois metros e dez de uma parede, a três metros e quinze de outra, torna-se coisa do mundo (coloco-me aqui na hipótese surrealista que reconhece à imagem a mesma natureza da percepção; é claro que nem haveria como discutir se se pensasse, como eu penso, que essas naturezas são radicalmente distintas), enquanto criação positiva, e só escapa do mundo enquanto negatividade pura. Assim, o homem surrealista é um acréscimo, uma mescla, mas nunca uma síntese. Não é por acaso que nossos autores devem tanto à psicanálise: esta lhes oferecia precisamente, sob o nome “complexos”, o modelo dessas interpretações contraditórias, múltiplas e sem coesão real, que eles utilizam por toda parte. É verdade que os “complexos” existem. Mas o que ainda não foi bastante notado é que só podem existir sobre o fundamento de uma realidade sintética previamente dada. Assim, o homem total, para o surrealismo, não passa da soma exaustiva de todas as suas manifestações. Na falta da ideia sintética, organizaram roletas de contrários; esse borboletear entre ser e não ser teria podido revelar a subjetividade, assim como as contradições do sensível remetem Platão às formas inteligíveis; mas sua recusa do subjetivo transformou o homem em simples casa mal-assombrada; nesse átrio vago, que é para eles a consciência, aparecem e desaparecem objetos autodestrutivos, rigorosamente semelhantes a coisas. Entram pelos olhos ou pela porta de trás. Retumbantes vozes sem corpo ressoam como a que anunciou a morte de Pã. Mais ainda que o materialismo, essa coleção heteróclita lembra o neorrealismo norte-americano. Depois disso, para substituir as unificações sintéticas operadas pela consciência, conceber-se-á uma espécie de unidade mágica, por participação, que se manifesta caprichosamente e será designada como acaso objetivo. Mas não passa da imagem invertida da atividade humana. Uma coleção não é libertada; é recenseada. E o surrealismo vem a ser exatamente isto: um recenseamento. Mas não uma libertação, pois não há ninguém a libertar; trata-se apenas de lutar contra o descrédito em que caíram certos lotes da coleção humana. O surrealismo é obcecado pelo já feito, pelo sólido, tem horror das gêneses e dos nascimentos; a criação, para ele, nunca é uma emanação, uma passagem da potência ao ato, uma gestação; é o surgimento a partir do nada, a aparição brusca de um objeto plenamente constituído que enriquece a coleção. No fundo, uma descoberta. Como poderia ele, portanto, “livrar o homem de seus monstros”? Matou os monstros, talvez, mas matou o homem também... Resta o desejo, dirão. Os surrealistas quiseram libertar o desejo humano, proclamando que o homem é desejo. Mas isso não é inteiramente verdadeiro; de início, eles lançaram uma interdição sobre toda uma categoria de desejos (homossexualidade, vícios etc.) sem nunca justificar essa interdição. Em seguida decidiram, de acordo com seu ódio pelo subjetivo, apreender o desejo apenas por seus produtos, como faz também a psicanálise. Assim, o desejo ainda é coisa, coleção. Mas, em vez de remontar das coisas (atos falhos, imagens do simbolismo onírico etc.) à sua fonte subjetiva (que é o desejo propriamente dito), os surrealistas se fixaram na coisa. No fundo, o desejo é pobre e não lhes interessa por si mesmo; além disso, ele representa a explicação racional das contradições oferecidas pelos complexos e seus produtos. Encontram-se bem poucas coisas, e muito vagas, sobre o inconsciente e a libido em Breton. O que o apaixona não é o desejo vivo, mas o desejo cristalizado, aquilo que se poderia chamar, usando uma expressão de Jaspers, a cifra do desejo no mundo. O que também me chamou a atenção nos surrealistas ou ex-surrealistas com quem convivi não foi a magnificência dos desejos ou da liberdade. Eles levaram uma vida modesta e plena de interdições, suas violências esporádicas faziam pensar mais nos espasmos de um possesso do que numa ação concertada; no mais, estavam solidamente arpoados por poderosos complexos. Para libertar o desejo, sempre me pareceu que os grandes doges da Renascença, ou mesmo os românticos, fizeram muito mais. Ao menos, dirão, os surrealistas são grandes poetas. Bem lembrado: eis aí um terreno de concórdia. Alguns ingênuos declararam que eu era “antipoético” ou “contra a poesia. Tão absurdo quanto dizer que sou contra o ar ou contra a água. Ao contrário, reconheço abertamente que o surrealismo é o único movimento poético da primeira metade do século XX; reconheço até que ele contribuiu, de certo modo, para a libertação do homem; mas o que o surrealismo libera não é o desejo, nem a totalidade humana: é a imaginação pura. Ora, justamente, o imaginário puro e a praxis dificilmente são compatíveis. Deparo, a esse propósito, com o tocante depoimento de um surrealista de 1947, cujo nome parece predispor à mais completa sinceridade:

“Devo reconhecer (e, sem dúvida, entre os que não se satisfazem com pouco não estou sozinho) que existe uma distância entre meu sentimento da revolta, a realidade da minha vida, e os lugares, enfim, do combate de poesia que eu talvez trave, que as obras dos que são meus amigos me ajudam a travar. Apesar deles, apesar de mim, mal sei viver. Será que o recurso ao imaginário, que é crítica à situação social, que é protesto e precipitação da história, implica o risco de destruir as pontes que nos unem, ao mesmo tempo, à realidade e aos outros homens? Sei que não pode existir liberdade para o homem só” (BONNEFOY, Y. “Dar a viver”. O surrealismo em 1947, p. 68).

Mas, entre as duas guerras, o surrealismo falava num tom bem diferente. E foi a um problema muito diverso que me ative mais acima: quando os surrealistas assinavam manifestos políticos, levavam a julgamento os integrantes que não eram fiéis à linha do movimento, definiam um método de ação social, entravam no PC e depois saíam com estardalhaço, aproximavam-se de Trotski, preocupavam-se em definir sua posição frente à Rússia soviética, custa-me crer que acreditassem estar agindo enquanto poetas. A isso me responderão que o homem é um só e não pode ser dividido em político e poeta. Continuo de acordo, e até acrescento que estou mais à vontade para reconhecê-lo do que os autores que fazem da poesia um produto do automatismo e da política um esforço consciente e refletido. Mas enfim é um truísmo, verdadeiro e falso ao mesmo tempo, como todos os truísmos. Pois se o homem é o mesmo, se, de certo modo, encontra-se sua marca em todo lugar, isso não significa absolutamente que suas atividades sejam idênticas; e se, em cada caso, colocam em jogo todo o espírito, não se deve concluir que o colocam em jogo da mesma maneira. Nem que o êxito de uma seja a justificação do malogro da outra. Alguém acredita, aliás, que seria um elogio aos surrealistas dizer que eles fazem política como poetas? Contudo é lícito para um escritor que quer sublinhar a unidade entre sua vida e sua obra, mostrar por meio da teoria a comunidade de propósitos entre sua poesia e sua praxis. Mas essa teoria, precisamente, não pode ser senão prosa. Existe uma prosa surrealista, e foi só ela que estudei nas páginas que foram incriminadas. Acontece que o surrealismo é inapreensível; ele é Proteu. Apresenta-se como inteiramente engajado ora na realidade, ora na luta, ora na vida; e se lhe pedimos contas, ele se põe a vociferar que é poesia pura, que nós a assassinamos e que não entendemos nada de poesia. É o que bem mostra este caso que todos conhecem, mas que é repleto de significação: Aragon tinha escrito um poema que parecia, com justa razão, uma provocação ao assassinato; falou-se em levá-lo à barra de acusação; então todo o grupo surrealista afirmou, solenemente, a irresponsabilidade do poeta: não se pode equiparar os produtos do automatismo a propósitos deliberados. No entanto, para quem tinha alguma familiaridade com a escrita automática, era visível que o poema de Aragon era de uma espécie muito diferente. Eis um homem vibrando de indignação que exige, em termos violentos e claros, a morte do opressor; o opressor se emociona e de repente não vê diante de si nada mais que um poeta, que desperta, esfrega os olhos e se espanta de que o recriminem por causa de sonhos. É o que acaba de se repetir: tentei um exame crítico do fato global “surrealismo” como engajamento no mundo, enquanto os surrealistas tentavam explicitar pela prosa as significações. Respondem-me que ofendo os poetas e que desconheço sua “contribuição” à vida interior. Mas, afinal, eles zombavam da vida interior, queriam fazê-la explodir, queriam romper os diques entre subjetivo e objetivo, e fazer a Revolução ao lado do proletariado.

Concluamos: o surrealismo entra em período de recesso, rompe com o marxismo e o PC. Pretende derrubar, pedra por pedra, o edifício cristão-tomista. Muito bem. Mas eu pergunto: Que público ele espera atingir? Dito de outro modo: em quais almas ele espera arruinar a civilização ocidental? O surrealismo afirmou e repetiu que não podia atingir diretamente os operários, pois estes não eram ainda acessíveis à sua ação. Os fatos lhe dão razão: Quantos operários entraram na Exposição de 1947? Por outro lado, quantos burgueses? Assim, seu propósito só pode ser negativo: destruir no espírito dos burgueses, que formam o seu público, os derradeiros mitos cristãos que nele ainda se encontram. É o que eu queria demonstrar.

[7]. Que os caracteriza, sobretudo, nos últimos cem anos, por força do mal--entendido que os separa do público e os obriga a decidir, por si próprios, quanto às marcas de seu talento.

[8]. Prévost afirmou mais de uma vez sua simpatia pelo epicurismo. Mas tratava-se do epicurismo revisto e corrigido por Alain.

[9]. Se não falei antes nem de Malraux nem de Saint-Exupéry é porque pertencem à nossa geração. Começaram a escrever antes de nós e têm, sem dúvida, um pouco mais idade do que nós. Mas, enquanto a nós foi necessário, para nos descobrirmos, a urgência e a realidade física de um conflito, o primeiro teve o imenso mérito de reconhecer, desde sua primeira obra, que estávamos em guerra e era preciso fazer uma literatura de guerra, num momento em que os surrealistas e mesmo Drieu la Rochelle se consagravam a uma literatura de paz. Quanto a Saint-Exupéry, em contraposição ao subjetivismo e ao quietismo de nossos predecessores, soube esboçar os grandes traços de uma literatura do trabalho e do utensílio. Mostrarei mais adiante que ele é precursor de uma literatura de construção, que tende a substituir a literatura de consumo. Guerra e construção, heroísmo e trabalho, fazer, ter e ser, condição humana – veremos, no fim deste capítulo, que esses são os principais temas literários e filosóficos de hoje. Por isso, quando digo “nós”, creio estar falando também deles.

[10]. Que fazem Camus, Malraux, Koestler, Rousset etc. senão uma literatura de situações extremas? Suas criaturas ou estão no topo do poder ou nos cárceres, prestes a morrer, ou a ser torturadas ou a matar; guerras, golpes de Estado, ação revolucionária, bombardeios e massacres, eis o seu cotidiano. A cada página, a cada linha, é sempre o homem total que é questionado.

[11]. Entenda-se, certas consciências são mais ricas do que outras, mais intuitivas ou mais bem-aparelhadas para a análise ou a síntese; algumas são até mesmo proféticas, e, outras, mais bem situadas para prever, pois têm em mãos determinadas cartas ou porque descobrem horizontes mais largos. Mas essas diferenças se dão a posteriori e a apreciação do presente, como a do futuro próximo, segue sendo conjectural.

Para nós também o acontecimento só aparece através das subjetividades. Mas sua transcendência vem do fato de que ele extravasa a todas, porque se estende através delas e revela a cada uma um aspecto diferente de si mesmo e dela mesma. Assim, nosso problema técnico é encontrar uma orquestração das consciências que nos permita transmitir a pluridimensionalidade do acontecimento. Além disso, renunciando à ficção do narrador onisciente, assumimos a obrigação de suprimir os intermediários entre o leitor e as subjetividades-pontos de vista de nossas personagens; trata-se de fazer o leitor entrar nas consciências como num moinho; é preciso mesmo que ele coincida, sucessivamente, com cada uma delas. Assim aprendemos com Joyce a buscar uma segunda espécie de realismo: o realismo bruto da subjetividade sem mediação nem distância. O que nos leva a professar um terceiro realismo: o da temporalidade. Com efeito, se mergulharmos o leitor, sem mediação, numa consciência, se lhe recusarmos todos os meios de sobrevoá-la, então será preciso impor-lhe, sem atalhos, o tempo dessa consciência. Se amontoo seis meses numa página, o leitor salta para fora do livro. Esse último aspecto do realismo suscita dificuldades que nenhum de nós resolveu e que talvez sejam parcialmente insolúveis, pois não é possível nem desejável limitar todos os romances ao relato de um único dia. E, mesmo que nos resignássemos a isso, permaneceria o fato de que dedicar um livro a vinte e quatro horas e não a uma, a uma hora e não a um minuto, implica a intervenção do autor e uma escolha transcendente. Será necessário então disfarçar essa opção por procedimentos puramente estéticos, construir figuras em trompe l’oeil (ilusão de óptica) e, como sempre em arte, mentir para dizer a verdade.

[12]. Desse ponto de vista, a objetividade absoluta, isto é, o relato em terceira pessoa, que apresenta as personagens unicamente por suas condutas e suas palavras, sem explicações nem incursões em sua vida interior, respeitando a ordem cronológica estrita, é rigorosamente equivalente à absoluta subjetividade. Logicamente, poder-se-ia afirmar que há aí ao menos uma consciência-testemunha: a do leitor. Mas, na verdade, o leitor esquece de se ver enquanto vê, e a história conserva para ele a inocência de uma floresta virgem onde as árvores crescem longe de todos os olhares.

[13]. Várias vezes me perguntei se os alemães, que dispunham de mil meios para conhecer os nomes dos intelectuais ligados à Resistência, não estavam nos poupando. Também, para eles, éramos puros consumidores. Aqui o processo se inverte: a difusão de nossos jornais era muito restrita; teria sido mais nefasto para a pretensa política da colaboração prender Eluard ou Mauriac do que deixá-los cochichar em liberdade. A Gestapo sem dúvida preferiu concentrar seus esforços nas forças clandestinas e na resistência organizada, cujos atentados reais a incomodavam bem mais do que nossa abstrata negatividade. É certo que eles prenderam e fuzilaram Jacques Decour. Mas nessa época Decour ainda não era muito conhecido.

[14]. Cf. sobretudo Terra dos homens.

[15]. Como Hemingway, p. ex., em Por quem os sinos dobram.

[***]. Cf. “Prefácio”, p. 11, nota de rodapé [N.T.].

[16]. De resto, é preciso não exagerar. De modo geral, a situação do escritor melhorou, graças sobretudo a meios extraliterários (rádio, cinema, jornalismo), de que ele outrora não dispunha. Quem não pode ou não quer recorrer a esses meios deve exercer um segundo ofício, ou viver em dificuldades: “É extremamente raro que eu tenha café para beber ou cigarros suficientes”, escreve Julien Blanc. “Amanhã não terei manteiga no meu pão e o fósforo de que necessito custa um preço absurdo nas farmácias... Desde 1943 fui operado cinco vezes, casos graves. Por estes dias farei uma sexta operação, também muito grave.
Como escritor, não tenho seguro social. Tenho mulher e um filho... O Estado não se lembra de mim a não ser para exigir impostos excessivos sobre meus insignificantes direitos autorais... Será necessário que eu solicite uma redução nas despesas de hospitalização... E a Sociedade dos homens de letras, e o Pecúlio das letras? A primeira apoiará meus esforços; a segunda, tendo-me presenteado, no último mês, com quatro mil francos... Bem, melhor esquecer” (“Lamentações de um escritor”. Combat, 27/04/1947).

[****]. O título original é Huis clos (“A portas fechadas” ou “Em segredo”), mas, encenada com sucesso pelo TBC (Teatro Brasileiro de Comédia), a peça de Sartre passou a ser conhecida, entre nós, pelo novo título que recebeu: Entre quatro paredes [N.T.].

[17]. Deixando de lado, evidentemente, os “escritores” católicos. Quanto aos assim chamados escritores comunistas, falarei deles mais adiante.

[18]. Não tenho dificuldade em admitir a descrição marxista da angústia “existencialista” como fenômeno de época e de classe. O existencialismo, em sua forma contemporânea, surge da decomposição da burguesia e sua origem é burguesa. Mas o fato de que essa decomposição possa desvendar certos aspectos da condição humana e tornar possíveis certas intuições metafísicas não significa que essas intuições e esse desvendamento sejam ilusões da consciência burguesa ou representações míticas da situação.

[*****]. Section Française de l’Internationale Ouvrière [Seção Francesa da Internacional Operária] [N.T.].

[19]. Quanto ao operário, foi sob pressão das circunstâncias que aderiu ao PC. Ele é menos suspeito porque suas possibilidades de escolha são mais reduzidas.

[20]. Na literatura comunista, na França, encontro apenas um único escritor autêntico. Não é por acaso que ele escreve sobre as mimosas e os seixos.

[21]. Eles de fato fizeram com que Victor Hugo fosse lido; mais recentemente, divulgaram as obras de Giono em certas zonas rurais.

[22]. Excetuo a tentativa abortada de Prévost e seus contemporâneos, de que já falei.

[23]. Essa contradição se encontra em toda parte, especialmente na amizade comunista. Nizan tinha muitos amigos. Onde estão eles? Os que ele estimou mais calorosamente pertencem ao PC: são os que hoje o atacam. Os únicos que continuam fiéis a ele não são do partido. É que a comunidade estalinista, com seu poder de excomunhão, permanece presente no amor e na amizade, que são relações de pessoa a pessoa.

[24]. E a ideia de liberdade? As críticas espantosas que se fazem ao existencialismo provam que as pessoas não entendem mais nada a esse respeito. Será culpa delas? Aí está o P.R.L. antidemocrático, antissocialista, recrutando antigos fascistas, antigos colaboracionistas, antigos membros do P.S.F. No entanto, ele se denomina Partido Republicano da Liberdade. Se se colocar contra ele, você fatalmente estará contra a liberdade. Mas os comunistas também reivindicam a liberdade, só que se trata da liberdade hegeliana, que é assumir a necessidade. E também os surrealistas, que são deterministas. Um rapazola ingênuo me disse um dia: “Depois de As moscas, onde o senhor falou irrepreensivelmente sobre a liberdade de Orestes, o senhor traiu a si mesmo e nos traiu, escrevendo O ser e o nada, deixando de fundar um humanismo determinista e materialista”. Compreendo o que ele quis dizer: é que o materialismo liberta o homem de seus mitos. Liberta, sem dúvida, mas para submetê-lo ainda mais. No entanto, desde 1760, colonos americanos defendiam a escravidão em nome da liberdade: se o colono, cidadão e pioneiro, quiser comprar um negro, não é livre para fazê-lo? E tendo-o comprado, não é livre para servir-se dele? O argumento se conservou. Em 1947, o proprietário de uma piscina se recusa a admitir que um capitão judeu, herói de guerra, a frequente. O capitão escreve aos jornais, queixando-se. Os jornais publicam seu protesto e concluem: “Admirável país a América. O proprietário da piscina era livre para recusar acesso a um judeu. Mas o judeu, cidadão dos Estados Unidos, era livre para protestar na imprensa, e a imprensa, livre, como se sabe, menciona o caso sem tomar partido, nem a favor nem contra. Em conclusão, todo mundo é livre”. O único desgosto é que a palavra liberdade, que recobre essas acepções tão diferentes – e cem outras – seja empregada sem que as pessoas vejam a necessidade de especificar o sentido que lhe atribuem em cada caso.

[25]. Porque ela pertence, como o Espírito, àquele tipo que já designei como “totalidade destotalizada”.

[26]. A peste, de Camus, que acaba de ser publicado, parece-me um bom exemplo desse movimento unificador que funde na unidade orgânica de um só mito uma pluralidade de temas críticos e construtivos.