Estes dois são loucos, mas eu gosto do cão, é grande e bonito e faz-me companhia no banco de trás do carro. Às vezes, lambuza-me os ouvidos, surpreende-me quando estou deitada, meio adormecida, porque a viagem é longa, muitas horas, e há momentos em que o sono me quer levar com tanta força que tenho de mastigar a minha própria saliva para não ceder, para permanecer desperta. Um deles fala, o outro não. O cão nem ladra, mas solta uns ruídos pachorrentos sempre que se resigna à modorra e deita o lombo no banco. E também anda por aqui um ratinho, o velho silencioso tem um hamster no bolso do casaco que, de vez em quando, espreita cá para fora, espetando as orelhinhas que parecem de borracha, frágeis e quase translúcidas, dá vontade de o abanar, segurá-lo pelas orelhas e abaná-lo muito depressa até que aqueles olhinhos de azeitona espevitem, para ver se perde o medo.

Não sei porque decidi vir nesta viagem. Houve alguma coisa no pedido do professor que me enterneceu. Ele disse que eram só uns dias, que gosta da minha companhia, que ficaria muito grato se eu os acompanhasse, e eu, que não tenho muito para fazer na vida excepto sonhar e cantar em voz alta no chuveiro, sei quando uma pessoa precisa mesmo de mim. Temos estado juntos algumas vezes. Vamos ao café ou damos passeios no jardim. Há uma semana, fomos até à Vila B. e sentámo-nos no pátio interior, que estava regado de sol. Há uma fonte mesmo no meio da pracinha, e o professor disse que as escadas exteriores dos prédios e as varandas em ferro lhe faziam lembrar a ossatura de um animal pré-histórico, e eu ri-me, porque não havia nada mais diferente da ossatura de um animal do que aquilo. Mas ele é assim, e isso deixa-me feliz, que as pessoas possam ser exactamente aquilo que são, com todas as suas pequenas esquisitices, defeitos e melancolias. Também vamos ao cinema. Quero dizer, fomos uma vez. Vimos um filme asiático cujo título não recordo. Era a história de um velho professor que se interessava por uma prostituta. O homem era viúvo e ela era muito nova, talvez mais nova que eu. Depois o namorado dela aparecia, pensava que o velho era o avô e pedia-lhe, ao avô falso, permissão para se casar com ela, e a história continuava assim, mas eu, a partir de certa altura, deixei de prestar atenção, porque o professor, que se sentara muito direito na cadeira, muito rígido, parecia que o cinema era uma coisa muito séria, começou a respirar de maneira diferente, soltando longos suspiros, e suspeitei de um ataque de ansiedade, reparei que estava um bocadinho suado, a testa reluzia, as mãos tremiam-lhe ligeiramente, e não parava de suspirar, de maneira que lhe dei a mão durante um bocadinho, a palma dele estava gelada, mas acho que consegui confortá-lo. No dia seguinte, ligou-me e perguntou se eu queria ir com ele numa expedição. Chamou-lhe assim mesmo, expedição. Eu — que ando a candidatar-me para ser guia das Auroras Boreais em Tromso neste Outono e, portanto, pareceu-me bem fazer uma viagem antecipada a um lugar remoto ou, pelo menos, sair da cidade, não sou uma rapariga de cidade, gosto é do campo — respondi logo que sim, e ele até estranhou. Mas não queres saber aonde vamos?, perguntou, e eu respondi, Eu confio, Em quem, em mim?, Não, já lhe disse, confio em Deus.

A demência não deve ser fácil. Ele explicou-me que o tio também é doente, uma outra estirpe da mesma aflição, e que perdeu a capacidade de falar, mas que ouve e compreende tudo e que ele aprendeu a ler os sinais no rosto do senhor Elias e a interpretá-los. Um tique da boca significa que quer fumar, um franzir da testa que está com fome, passar a mão pela barba denota ansiedade, etc. Primeiro o professor Fluss veio buscar-me a casa e a seguir fomos buscar o tio dele ao hospital, eu vivo relativamente perto da faculdade e, assim, atravessámos a pé a grande avenida e ele pediu-me que aguardasse à entrada. Uma placa anunciava a ala psiquiátrica. Estavam dois homens cá fora, vestidos com batas azuis, um deles era careca e o outro parecia um índio americano de cabelo às postas, vieram cercar-me e mexer-me no cabelo, fizeram sons estranhos aos meus ouvidos, mmmmmmm e blaaaaaaaaaa, não foi desagradável mas, ao fim de três ou quatro minutos, com um deles a largar um fio de baba permanente que quase lhe chegava ao peito, fartei-me e afastei-me da entrada. Os homens dispersaram. Sentei-me à sombra de uma árvore, a gostar da sensação da relva nas minhas nádegas, do cheiro das madressilvas. Era um carvalho dos grandes, o tronco era enorme e eu teria dormido ali um bocadinho se tivesse havido tempo. Mas cedo o professor desceu com o velho pelo braço. O senhor Elias é alto, magríssimo, de barbas enormes e olhos apagados. Parece que alguém dentro dele desligou a luz. Caminha a passo e parece não gostar de ser observado, porque, quando tal acontece, baixa ligeiramente a cabeça e põe os olhos no chão, parece que resmunga alguma coisa, mas os sons que emite são rudes, quase inaudíveis. Apareceu vestido da maneira mais bizarra. Uma bata azul como a dos outros, chinelos, uma camisa axadrezada de flanela e o ratinho no bolso do casaco, que usava por cima da camisa. Traziam uma mochila com coisas lá dentro. Mais tarde descobri o que continha. Caixas de medicamentos, um rádio de cassetes muito antigo e um manuscrito que, de tão velho, ameaçava desfazer-se em pó. Foi engraçado vê-los a saírem do hospital, a descerem as escadas com urgência. Pela maneira como andavam, quase a correr, dir-se-ia que aqueles dois estavam em fuga.

Metemo-nos no carro. É um velho Fiat 127 de duas portas, da cor das azeitonas verdes, com os estofos em cabedal meio esburacados, porque o cão gosta de cravar as unhas neles e morder a parte superior do assento traseiro. De vez em quando, paramos em qualquer lado para comer ou ir à casa de banho ou de maneira que Elias consiga esticar as pernas. O velho, embora decrépito, é muito alto e precisa de espaço. O Fiat é claustrofóbico e, enfiada no assento traseiro, na companhia de Lars, sinto-me, por vezes, aprisionada nesta carcaça, à mercê da teimosia do professor, e confesso que me deixo levar um bocadinho pela ansiedade. É nesses momentos que penso nas Auroras Boreais, onde estarei no Outono. Também lhes chamam as Luzes do Norte. São colisões entre as partículas do Sol que entram na atmosfera da Terra e têm muitas cores, embora o verde-pálido e o rosa sejam as cores predominantes, com matizes de amarelo, vermelho, azul e violeta.

Numa pausa numa estação de serviço, perguntei ao professor Fluss para onde íamos, qual era o nosso destino. Ele bebia cerveja e não levantava os olhos, fixava o tampo da mesa. Depois, tirou um papel do bolso e mostrou-me uma carta escrita à mão, era um conjunto de letras e números rabiscados no centro da folha que, para mim, não significavam nada. 47.2767° N, 61.6973° W. A latitude e a longitude de um lugar. Entretive-me com um chá de hortelã, estávamos num restaurante de beira de estrada, através das janelas embaciadas via-se um pequeno parque de estacionamento e, além deste, a estrada onde os carros voavam a caminho de outros destinos, outras vidas, todas estas consciências a rasparem a superfície da realidade. Também nós haveremos, um dia, de encontrar alguma coisa que nos traga verdadeira felicidade, da duradoura, o género de satisfação que os pássaros encontram quando fazem ninho, ou as toupeiras escondidas nas suas tocas do subsolo, o tipo de felicidade que encontramos quando estamos precisamente onde devíamos estar, que não é contaminada pela nossa incansável cabeça de contradições. Estou a perder-me. Ah, na estação de serviço. A certa altura, Elias levantou-se da mesa e, cambaleante, porém determinado, avançou em direcção ao quiosque onde se vendem revistas e jornais, tabaco, pastilhas elásticas. Ficou a olhar para o homem que estava atrás do balcão e começou a apontar para a prateleira atrás dele. Grunhia, sons estranhos, parecidos com o blaaaaaaaaaa dos malucos à entrada do hospital. O homenzinho do quiosque ficou muito confuso. O professor, que parecia cansado de tudo aquilo, acabou por se levantar e pediu-me, Fica aqui, toma conta das nossas coisas, eu já volto. Foi ter com o tio ao quiosque e, depois de uma conversa, que acabou por ser um monólogo em voz baixa, comprou-lhe um maço de cigarros e um isqueiro, Elias pegou nos dois objectos e enfiou-os no bolso do casaco. A seguir, a passo instável, dirigiu-se para o exterior do restaurante. Pagámos a conta e encontrámo-lo na rua a fumar um cigarro, que devia estar a saber-lhe pela vida. Tudo no rosto do velho se tranquilizara, a ansiedade desaparecera, os tiques faciais suavizaram-se, havia a imensa expressão de um prazer suave e prolongado. Quando apagou o cigarro no chão, fez o gesto de tirar outro do maço, mas o professor impediu-o e confiscou-lhe os cigarros. Regressámos ao carro, onde Lars, de focinho encostado à janela, a língua enorme e púrpura pendendo da boca salivante, nos aguardava. Caminhei atrás deles, um dos homens a amparar o outro, pobrezinhos, tinham-se um ao outro e era tudo o que tinham, não deve ser fácil esta coisa da demência.

Continuámos estrada fora, os animais tranquilizados pelo final da tarde, a altura em que o Sol cai sobre as planícies e a serenidade desce sobre o mundo, sobre nós. Que bonito, pensei, eram os primeiros dias de Junho, o meu mês preferido. Já não resta muita Primavera no planeta, parece que as condições climatéricas ditam que as meias estações, aquelas que se aninham entre as grandes, acotovelando-se para encontrar espaço, serão cada vez mais raras, mas talvez este seja um ano especial, porque, na estrada, à velocidade que o carro permite, somos os mais lentos na faixa da direita, os campos exultam de frescura, as flores já não são promessas nos caules, enchem a paisagem de cores. Deitei-me para o lado esquerdo, a minha anca empurrou o cão. Adormeci por um bocadinho. Quando acordei, era noite e fazia mais frio. Aconcheguei-me a Lars. Elefante andava por ali, aninhara-se no ombro de Elias e espreitava-nos, com o seu jeito inquieto de cheirar tudo em seu redor. O professor fechara as janelas e falava com o tio, pareciam estar a divertir-se, o velho escutava com um meio sorriso no rosto e o outro contava-lhe histórias. Reparou, pelo espelho retrovisor, que eu despertara e subiu o tom de voz. Em tempos muito antigos, disse ele, num lugar longínquo, existiu um viúvo que amava muito o seu filho pequeno. Um dia, o homem ausentou-se em trabalho e os bandidos apareceram, queimaram a vila toda e levaram a criança. O homem regressou de viagem e entrou em pânico ao encontrar o corpo carbonizado de uma criança, do tamanho do seu filho, pôs-se de joelhos, no chão, a chorar, chorou durante dias e, depois, organizou uma cerimónia de cremação e guardou as cinzas do miúdo numa bolsa, que carregava sempre consigo. Quando o verdadeiro filho escapou dos bandidos e regressou à vila, foi a casa do pai e bateu à porta. O homem, ainda de luto, perguntou, Quem é, e o filho disse, Sou eu, papá, abre a porta, mas o pai, convencido de que o filho estava morto, pensou que um rapazola qualquer estava a fazer pouco dele e gritou, Vai-te embora, e continuou a chorar. A criança insistiu durante muito tempo, mas o pai recusou-a, e, finalmente, o menino foi-se embora. Nunca mais se viram.

O professor fez uma pausa. O carro avançava perto do traço branco que delimita a estrada, iluminado pelos faróis. Tudo dentro do veículo tremia ligeiramente, mas não o suficiente para se tornar desconfortável, e eu perguntei, então, qual era o sentido daquela história, e ele respondeu que o Buda, ao contá-la, comentou que, a certa altura das nossas vidas, aceitamos uma coisa como verdadeira e apegamo-nos tanto a ela que, mesmo quando a verdade, em pessoa, nos vem bater à porta, recusamo-nos a abri-la e a deixá-la entrar. Ah, disse eu, já percebi, e Elias, embora permanecesse mudo, pareceu também compreender e depois levantou lentamente o braço e alcançou o maço de cigarros, que estava em cima do tablier do Fiat, e o professor deu-lhe uma palmada no braço. Não!, ralhou, em voz severa, e o tio recolheu-se na cadeira como uma flor assustada, os cigarros caíram-lhe da mão e espalharam-se pelo chão do carro. Era difícil vê-los assim, confesso que tinha pena do velho. Via-se-lhe no olhar, por vezes, uma mistura de susto e de resignação. Talvez desejasse falar, defender-se, fazer valer as coisas que sentia dentro de si. Via-se-lhe o desespero, mas também o respeito, e isso era algo em que eu reparava muitas vezes nas pessoas mais idosas. Que, a partir de certa idade, regressam a um estado infantil de impotência e obedecem aos mais novos, já não mandam nem na mente nem no corpo, fazem xixi involuntariamente, choram sem razão, as lágrimas caem-lhes dos olhos sem sequer estarem tristes, e resignam-se, rendem-se à decadência instalada. Embora eu seja uma miúda alegre, sei, também, que a vida é isso, é o tempo sem piedade de nós, que mói, e nós a lutarmos por conservar a dignidade, o que sobra da nossa respeitável humanidade, e depois acabou, restamos somente na memória daqueles que amámos e que nos amaram.

Começou a chover, o caminho era longo. Havia pardais que, por vezes, se erguiam das árvores e atravessavam a estrada em bandos, produziam o efeito bonito de vírgulas desfilando numa página ainda por escrever. As nuvens acinzentaram o céu, faltavam muitos quilómetros, horas e horas, era possível que dormíssemos algures, num daqueles motéis à beira da estrada com piscinas de plástico e colchas demasiado engomadas e abajures de papelão a enfeitar tristemente os quartos sorumbáticos desses lugares. Talvez para nos entreter, porque a chuva obrigava o Fiat a perder ainda mais velocidade, o professor contou outra história, desta feita a de um velho lavrador que cultivara os campos durante muitos anos até que, um dia, o seu cavalo, que puxava a charrua, fugiu. Ao ouvirem as notícias, contou, os vizinhos apareceram. Que más notícias, comentaram, ao que o lavrador respondeu, Talvez sim, talvez não, e na manhã seguinte o cavalo regressou, trazendo consigo outros cavalos selvagens. Os vizinhos disseram, Que maravilha!, e o lavrador respondeu, Talvez sim, talvez não. No dia a seguir, o filho montou um dos cavalos selvagens, caiu e partiu a perna. Uma vez mais, os vizinhos vieram oferecer compaixão, tinha sido um infortúnio, e o lavrador tornou a dizer, Talvez sim, talvez não. No outro dia, os oficiais do Exército apareceram na vila para recrutar jovens. Ao verem que o filho do lavrador tinha a perna partida, deixaram-no ficar, e os vizinhos, mais uma vez, vieram congratular o lavrador pelas coisas terem corrido tão bem, ao que o homem respondeu, Talvez sim, talvez não. A história terminou assim.

Elias, que estivera de semblante carregado, começou a rir. A boca desdentada movia-se em círculos, emitia uns sons estranhos parecidos com os de um rádio mal sintonizado, perdido entre estações. Mas via-se nos seus olhos que estava contente. Porque aquilo parecia entreter o tio, o professor contou ainda outra história. Esta última foi curtinha e rezou assim: Um homem, montado num cavalo, vem a galopar velozmente pela estrada, parece ter algum lugar importante aonde ir, enquanto outro homem, parado na berma da mesma estrada, ao vê-los passar, grita, Onde é que vais?, e o homem montado no cavalo volta-se para trás e responde, Não sei, pergunta ao cavalo! Desta feita, Elias agitou os ombros e as mãos, e o som que largou foi mais parecido com o dos corvos ao entardecer, pousados sobre os fios eléctricos. Lars despertou com o cacarejar de Elias. Levantou o focinho, muito alerta, e, depois, porque continuávamos a noventa quilómetros por hora na faixa da direita e o chuvisco batia, monótono, no vidro dianteiro, tornou a baixá-lo e a enfiar a cabeçorra no meio das patas com um suspiro. Cedo adormeceu. Mas eu fiquei intrigada. Cheguei-me à frente, a cabeça no espaço entre os bancos deles, e perguntei ao professor qual era o sentido daquela fábula, a última que nos contara, a do cavalo em desfilada. Ele respondeu que o cavalo era samskara, a volição motivada pela nossa ignorância. O cavalo é a força que nos impele a agir, explicou, e, portanto, o homem que o monta responde que não sabe para onde vai, uma vez que a consciência, que tudo abarca, é testemunha abismada deste processo infindável de pôr fim à insatisfação. Mas essa não tem fim, disse eu. Pois não, concordou o professor, porque não estamos apegados àquilo que obtemos, estamos apegados ao fim da dor de não ter, à cessação de um obstinado querer, e esse querer, ao mesmo tempo que nos corrói, mantém-nos vivos desta maneira em que nos encontramos vivos, na permanente ansiedade de vir a ser qualquer coisa que ainda não somos. Recostei-me no assento, afaguei o pescoço de Lars, que ganiu baixinho, ele só tinha fome ou sede, e comentei, Que canseira, que enorme canseira.

À medida que nos movemos para norte, na direcção da península, as temperaturas desceram, como se regredíssemos, cronologicamente, pelo ano, em direcção ao Inverno. Dormimos num motel à beira da estrada. Não tinha abajures de papelão nem uma piscina de plástico, mas a senhora da recepção era bruta e mal-educada e, quando viu Elias, que, trôpego do cansaço das horas no carro, se arrastava, ainda vestido como saíra do hospital, perguntou imediatamente se ele era perigoso, se devia ficar preocupada. Ali não admitiam gente estranha, avisou, gente suspeita ou de maus hábitos, e o professor garantiu-lhe que ele não era estranho, suspeito ou de hábitos perniciosos, não passava de um velho que tivera uma trombose venosa profunda e agora andava assim, com a consistência dos trapos. Reparei que enfiou uma nota na mão da velha, subornou-a para que deixasse de nos arranjar problemas. Eu dormi num quarto, sozinha, e eles noutro quarto. Na manhã seguinte, muito cedo, tornámos a partir, depois de um pequeno-almoço em silêncio. O céu estava nublado, carregadíssimo, ameaçando outra bátega, e estávamos cansados, tristonhos. A meio da tarde, o carro atravessava quilómetros de aborrecimento. A paisagem era sempre idêntica, campos, postes de electricidade, uma casota aqui e ali, mais próxima da estrada, corvos a esvoaçar em bandos. A certa altura, eu e Elefante detectámos o cheiro do mar próximo, o hamster empoleirou-se e pôs-se a farejar a atmosfera, deu-me para sorrir, foi nessa altura que o velho começou a ter um tique na face esquerda que, depois, se prolongou para o resto do corpo, o pé esquerdo também se movia, junto ao tapete do carro, e o professor olhou para ele com um olhar indignado e algo enojado, as duas mãos firmes no volante, e advertiu-o, Não te atrevas, velho, e o velho não respondeu, continuou a tremer, depois pareceu experimentar uma enorme libertação, e o professor demonstrou o seu desagrado, Que nojo, olha o porco em que te tornaste, mas era como se o outro, de tão aliviado que estava, nem chegasse a ouvir aquelas palavras. Fiquei a pensar naquilo, se, na velhice masculina, o sexo também se tornava um acto involuntário, aquelas descargas de prazer, acontecendo com frequência, deviam ser uma chatice, uma preocupação, porque podiam suceder a qualquer instante e em qualquer lugar. Mas a verdade era que um louco como aquele, depois de uma trombose, não devia justificações a ninguém. Há muito que ultrapassara a vergonha.

Ao final da tarde, chegámos ao lugar onde deixaríamos o carro. Era uma pequena cidadezinha, e estacionámos o veículo junto de uma igreja de telhado em cunha, um presbítero anglicano. Fomos a pé, devagarinho, até ao embarcadouro. O molhe delimitava uma marina triste, varrida pelo vento, atrás da qual a cidade se erguia com as suas casas rasteiras e sombrias. Fiquei com Elias junto ao cais, amparando-o, ajudei-o a apertar o casaco de malha por cima da camisa e da bata. Lars agachou-se entre nós a contemplar a paisagem. À distância, via-se o contorno de umas quantas ilhas. As águas estavam agitadas e o horizonte nublado, a visibilidade era pouca, os salpicos de água salgada batiam-nos no rosto. Não era desagradável. Ali, de pé, a olhar para as águas, Elias pareceu sossegar, e a inquietação deixou de dar sinais. O cão, com a língua de fora, arfava, contente com a aventura. O professor foi comprar bilhetes para o ferry. Quando voltou, afagou Lars e disse-lhe, Tu não pagas, companheiro, que sorte, uma viagem de borla. Quebrando a neblina, surgiu o barco. Não era muito grande, mas tinha uma chaminé poderosa, e o som que fazia era parecido com o das baleias. O cão pôs-se em sentido, a embarcação aproximou-se do molhe, colhendo, à proa, a espuma marítima, e finalmente atracou. O barqueiro saltou para o cais, era um homem de meia-idade, de barba cerrada, com um gorro verde que lhe escondia os olhos. O ferry vinha quase vazio. Saíram uns quantos passageiros carrancudos, gente que devia habitar na cidadezinha atrás de nós, e uns quantos turistas, mais sorridentes, de mochilas aos ombros. Entrámos e sentámo-nos no convés inferior, protegido da chuva e do vento, e ficámos a olhar pelas escotilhas para o mar agitado enquanto o barco arrancava em direcção à latitude e longitude rabiscadas naquela página. Ou assim presumi. O professor disse-me que, embora eu confiasse no Universo e naquela expedição, era importante que soubesse que aquela empreitada poderia não ser nada, uma nuvem de fumo que atravessa um quarto vazio para logo o abandonar. Vamos para a ilha onde o meu tio viveu durante uns anos, revelou, Porquê?, perguntei, Também não sei, respondeu ele, foi essa a orientação que recebi, De quem?, Da minha irmã morta, respondeu, e aquelas palavras foram ditas de maneira tão contundente que pareceram quase cómicas. Permanecemos em silêncio durante o resto do percurso, o ferry agitando-se de um lado para o outro ao sabor da maré, estibordo a bombordo, uma pessoa mais sensível sentir-se-ia mareada naquelas condições, mas eu mantive o olhar na linha do horizonte e não enjoei. As nossas mochilas, debaixo do banco, eram arrastadas para o meio do convés sempre que navegávamos uma onda mais acentuada. Lars gania. O ratinho Elefante deve ter saltado do bolso de Elias porque começou a correr pelo chão, desatou a fugir na direcção da porta, os ratos são os primeiros a abandonar os navios, e isto alarmou o velho, que tentou levantar-se muito depressa para apanhar o hamster e acabou por cair de joelhos, o corpo já não respondendo como devia, e o professor foi buscá-lo, Levanta-te, oh, por amor de Deus, levanta-te, rogou, desesperado. Só havia outras duas pessoas naquele convés, um homem vestido de padre e uma menina loura muito novinha, dez ou onze anos, de sardas no rosto, e ambos observaram aquele triste espectáculo, o velho a arrastar-se pelo chão em busca do hamster que se escondera. Apressei-me a ir fechar a porta que dava para as escadas para que o animal não se atirasse à água. Elias lançava uns guinchos estranhíssimos, estridentes, enquanto o professor o tentava acalmar, sentando-o no banco. Foi então que a menina se aproximou de nós e, de mãos unidas e abertas em concha, mostrou-nos Elefante aninhado. Este ratinho é vosso?, perguntou, era uma menina tão bonita, o padre sorria, e o hamster tremia de frio e de medo. O tio Elias amainou como uma vela na bonança. Ergueu as duas mãos em chaga, imitando a menina, e deixou que o ratinho passasse das dela para as suas. Afagou-o, deu-lhe um beijinho, tinha a barba tão grande que nem se lhe viam os lábios, e tornou a guardá-lo, aconchegado, no bolso onde o calor acabaria por pacificar a criatura.

Como nenhum de nós sabe qual é o objectivo desta viagem, ou talvez só o professor saiba e julgue, secretamente, que encontrará Cecilia, assim se chamava a sua irmã morta, decidi que também eu me abandonaria ao presente, sem necessidade de encontrar justificações para cada um dos nossos passos. Estou consciente de que partilho os meus dias com dois lunáticos, maníacos, excêntricos, mas essa é precisamente a parte de que mais gosto, estar à mercê de pessoas para quem a vida não é um monótono corredor, um espartilho, mas o insuportável labirinto de Creta, onde são diariamente perseguidos pelo Minotauro. É como se corrêssemos de olhos vendados.

Chegámos à ilha a meio da tarde. É um lugar inóspito, quase sem vegetação, uma parcela de terra recortada num mar cruel, abespinhado. As ondas explodem contra as escarpas, as nuvens escuras pairam baixas sobre a única povoação que aqui existe. Há uma sensação enorme de claustrofobia, embora estejamos no meio do oceano e com o céu todo à nossa disposição. No embarcadouro, encontrámos um senhor que conduzia um táxi. Disse-nos que era o único carro daquela ilha, quase não existiam veículos excepto umas quantas motorizadas que os turistas alugavam para explorarem a ilha e dois tractores que eram utilizados para a agricultura. O professor deu indicações ao condutor e pusemo-nos a caminho da povoação por uma acidentada estrada de terra. Chegámos em dez minutos. Ao sairmos do táxi, debrucei-me sobre o banco traseiro para resgatar a minha mochila e reparei que o condutor olhava para o meu rabo. Sorri-lhe. O homem desviou o olhar e recebeu o dinheiro que o professor lhe deu. Estávamos à porta de uma casinha azul-celeste algo isolada do resto das casas da povoação, no lado mais distante do vale. Entrámos, a porta dava para uma espécie de recepção, uma secretária, um computador, uma cadeira vazia. O professor chamou por alguém, ninguém aparecia, até que, por fim, surgiu um homem baixinho e sorridente, de aspecto sonolento e unhas encardidas. Chamava-se Heinrich. Recebeu-nos com amabilidade até que, ao pôr os óculos que lhe pendiam do peito por um fio, reparou em Elias, que parecia tentar esconder-se atrás do sobrinho. A expressão no rosto de Heinrich mudou imediatamente, e gritou, Não quero este homem aqui, como é que ele se atreve a voltar? E então o professor intercedeu, explicou-lhe que o tio tivera uma trombose, contou a história do internamento, da mudez, até falou da poliomielite que Elias tivera em criança e garantiu a Heinrich que não haveria problemas, que se responsabilizava pelo tio, e o alemão resistiu um pouco, pareceu ficar confuso, mas Matias garantiu-lhe que ficariam apenas um par de dias, uma semana, no máximo, e Heinrich acabou por ceder. Fez enormes advertências ao comportamento de Elias, acusou-o de ter aterrorizado as pessoas daquela povoação. Fomos para o centro da vila, o professor ia à frente com Heinrich, e eu deixei-me ficar para trás a acompanhar Elias, que recolhera o pescoço, pousando os olhos no chão, na terra e na relva, nos pedregulhos que íamos encontrando pelo caminho. A ilha era ventosa e o sabor salgado do mar chegava-nos à boca. À nossa direita, para lá da escarpa, havia um mar revolto e um horizonte em contínuo, uma linha que rasava as águas sempre a direito. Mais ao fundo, uma praia pedregosa, a silhueta de um farol. Elias ia chutando pedrinhas, atrasando-nos, e ganhámos distância do professor e de Heinrich. Percebi que o velho me observava com intenções de velho, daquela maneira lúbrica e um bocadinho perversa com que os geriátricos se lambuzam de juventude, mas não me importei. Sei que tenho curvas, as suficientes para deixar perturbado um homem sedento. Mas sei também que o meu sorriso, a melhor coisa que me calhou em sorte, serve para amenizar o efeito dessa perturbação. A minha mãe costumava dizer que eu tinha uma boca deliciosa, graças aos meus lábios carnudos, e que os meus dentes, um bocadinho tortos, a tornavam ainda mais bonita. Uso-a com abundância. Perguntei a Elias se acaso aquele lugar lhe trazia recordações, uma pergunta retórica, claro, e pus-me a inventar que género de vida teria ele tido naquele lugar. Imaginei que podia ter sido um dos homens que trabalhava nos barcos ou um dos empregados do La Calme Avant la Tempête, a taberna por onde passámos no caminho. Ou talvez pudesse ter sido um acólito do padre da ilha, o senhor que víramos no barco, um pastor protestante acompanhado da menina sardenta. Elias limitou-se a observar-me com os seus olhos raiados de sangue e uma expressão atónita. Tropeçava nas pedras do caminho, o vento remexia-lhe o cabelo e a enorme barba, os chinelos, que antes eram azuis, estavam agora negros de sujidade, devia ser desconfortável andar assim calçado naquele chão. Havia alguma coisa na passada dele, um estranho gingar, que me fez pensar num corredor de fundo, exausto, à beira de desfalecer, no deserto dos quilómetros mais solitários. A certa altura, Elias travou a marcha e pôs-se a fazer esgares. Contorcia a boca toda e depois parecia que soprava. Como isto não produziu nenhum resultado, porque eu não o compreendia, largou a mochila e começou a andar de um lado para o outro, muito depressa, os chinelos rasgando a terra. Tive de chamar o professor, que deu meia-volta e veio socorrer o tio na sua maluquice. O sobrinho agarrou-o pelos ombros, o velho era mais alto do que todos nós e por vezes parecia que ia cair, que perderia o centro de gravidade e desabaria. Matias disse-lhe que não podia fumar mais, que só lhe dava um cigarro por dia e que hoje já tinha fumado o seu. Lars entusiasmou-se com o monólogo e começou a ladrar, atraindo a atenção de uma senhora que, no exterior de uma casa de pedra, pendurava a roupa de cama. A senhora mandou calar o cão, e este, surpreendentemente, cessou os seus latidos.

Ficámos alojados numa casinha pequena, de dois andares, com uma cozinha rústica e umas escadas íngremes que partiam de uma sala onde cabia somente um sofá esburacado e uma lareira. No piso superior havia duas camas, onde ficaram Elias e o professor, e eu voluntariei-me para dormir no piso térreo. Cozinhar dá-me prazer, e pus-me a imaginar o que comeríamos ao jantar. Fui à mercearia, que não ficava longe, e com o dinheiro que o professor me deu comprei courgettes, cogumelos e especiarias e fiz um caril delicioso, que comemos no sofá da sala, os três sentados lado a lado, quase sem espaço para nos movermos. Lá fora, a noite chegava. Havia alguma coisa tão triste naqueles gestos, no levar o garfo à boca, nos corações a bater em ternário, na candura dos rostos daqueles homens, absortos na refeição. Pus-me a imaginar há quanto tempo é que uma mulher não cozinhava para eles e calculei uma eternidade sem fim. Fiquei contente por poder apaziguá-los dessa forma. No final, o tio arrotou, todo babado do caril, e limpou a boca à bata do hospital. Recolhi os pratos e fui ao exterior da casa. A ilha parecia navegar tranquilamente pelo oceano, uma barcaça de rocha e sedimento levada pelas vagas, e apertei o casaco ao corpo enquanto descia pelo ordenamento da vila na direcção da praia, com Lars no meu encalço. Longínqua, a luz enevoada do farol, uma cabeça de fósforo amarela rasgando o negrume. Caminhei durante muito tempo. A noite abatera-se sobre o mundo e por ali não havia mais do que vento e escuridão. Devagarinho, aproximei-me da falésia e olhei lá para baixo, imaginando o rasgão que as águas faziam na pedra, e pensei que, se calhar, não era preciso mais nada nesta vida, que aquilo chegava, o escuro, o mar, a vertigem. Regressei à casa sem esforço, os cães encontram sempre o caminho, e quando entrei, pacificada pelo passeio nocturno, encontrei Elias sentado no sofá da sala a ouvir música no seu pequeno leitor de cassetes. A fita estava riscada e só às vezes se escutavam as vozes dos cantores, o resto era ruído. Ele balouçava para trás e para a frente. A caminhada deixara-me com fome e fui comer o que restara do jantar, ofereci-lhe um pouco mas o velho recusou. Então reparei que Elefante estava dentro do meu prato a provar as courgettes e dei-lhe um piparote. O hamster saltou dali e foi ter com o dono, subiu pelo braço de Elias e aninhou-se no seu ombro. O velho cheirava mal. Pensei que, nos próximos dias, talvez pudéssemos dar-lhe um banho. Deu-me o sono e fui dormir. No piso de cima havia duas camas, uma estava ocupada pelo professor, eu deitei-me na outra e adormeci. Despertei a meio da noite com frio, de maneira que fui até à cama dele, ergui devagarinho o lençol e enfiei-me no espaço que restava, abraçando-me ao seu corpo morno. Fiquei mais quente, tornei a adormecer. Quando acordei, estava sozinha na cama. Ouvi-os lá em baixo a discutir. Desci, estremunhada, e encontrei o leitor de cassetes espatifado no chão, desfeito, peças por todo o lado, a fita a ser mastigada por Lars. Elefante escondera-se atrás de uma caneca. O professor estava de pé e ralhava com Elias, que continuava sentado no sofá. Rapidamente, o professor deu pela minha presença, a casa era demasiado pequena para uma pessoa passar despercebida, e calou-se. Proibiu o tio de sair de casa. Lars ficou a fazer companhia ao velho enquanto fomos dar uma volta. O professor pediu-me, então, que o tratasse por Matias, e eu respondi, Não sei se consigo, Vais ter de conseguir, insistiu, nesta ilha não há lugar para títulos ou formalidades, somos apenas isto que somos, uns desamparados a tentar sobreviver, e podemos precisar uns dos outros de repente, os nomes próprios são a maneira mais veloz de nos socorrermos. Gostei da explicação dele, prometi tentar. O que fizera, afinal, o tio Elias? Fugira a meio da noite, explicou-me. O professor despertara com o rugido dos ventos, que faziam tremer a casa, descera à sala e não encontrara o tio. A porta estava aberta, agitava-se nas dobradiças. Quando está escuro, esta ilha é assustadora, confessou, parece que estamos num mundo tenebroso, saído das páginas de um livro. Eu sorri, porque gosto de livros. Sim, concordei, há alguma coisa neste lugar que amedronta, acho que é a rudeza do corte, o mar que não dá tréguas, sentimo-nos fustigados.

Caminhámos durante muito tempo. A silhueta do farol foi desaparecendo conforme nos embrenhámos nas planícies. Atravessámos paisagens vulcânicas e campos de flores. Descemos vales pintalgados de margaridas. Ouvimos dois cavalos, um branco, outro negro, a relinchar, atrás de uma cerca meio desfeita, e durante as horas em que caminhámos não encontrámos ninguém, nenhum rosto humano além dos nossos. Era como se fôssemos Adão e Eva. Que paraíso, disse ele quando chegámos ao outro extremo da ilha. Havia um cabo que começava onde findava um bosque, a terra estreitava-se mar adentro numa escarpa. Ali ao lado, a poucos metros de nós, uma cabana dissimulada pela vegetação, de madeira comida pelo tempo. Era um lugar abandonado e decidimos deixá-lo em paz. O Paraíso segundo Matias Fluss, disse eu, em voz alta. Pela primeira vez, tratei-o pelo nome. O professor sorriu enquanto nos sentávamos na terra húmida, junto da água, e então contou-me que foi encontrar o tio Elias no caminho acidentado que conduzia ao farol, deu com ele a arrastar-se como um morto-vivo pela terra pedregosa, os chinelos desfeitos, Temos de lhe comprar umas botas, sugeri, e o tio, enlouquecido sob a lua cheia, agarrando-se a uma árvore para que o professor não o pudesse levar dali, berrou, uivou, deu guinchos de histeria, foi uma luta até o velho ceder e aceitar voltar para casa. Para onde é que ele ia?, perguntei. Parecia-me que queria chegar ao farol, respondeu ele. Talvez devesse deixá-lo ir, sugeri. Não, disse, já fez disparates suficientes nesta ilha. Ficámos muito tempo em silêncio, observando os pássaros que desciam das montanhas e se acercavam da água, à caça dos peixes. A tarde avançou, ainda um tanto morna, até os ventos começarem a levantar e o céu ficar cinzento, obscurecendo as águas. Talvez devêssemos regressar, sugeri, e ele concordou. Perguntou-me se eu estava desconfortável enfiada numa casa tão pequena com dois homens, e eu respondi que não, que estava feliz e que ele não se esquecesse do cão, que não fala, é certo, mas é tão criatura quanto nós.

Com o passar dos dias, vim a perceber o que significa a demência. Pode chegar a despertar ternura naqueles que lhe estão próximos. Contudo, para o resto da Humanidade, um demente não passa de uma pessoa descuidada ou até rude. Há coisas simples que podem ser corrigidas com um pouco de carinho. Matias confunde o nome das frutas e, por vezes, não sabe o que tem na mão. Sentámo-nos numa rocha à beira da água e eu passei-lhe uma toranja, e ele ficou a olhar para a esfera que tinha na mão com a impotência dos tolos. Percebi, na hesitação dos seus gestos, que estava a tentar lembrar-se do nome daquela fruta e sussurrei-lhe, Maçã, e ele ficou envergonhado, porque sabia perfeitamente que não era uma maçã mas a palavra correcta persistia em fugir-lhe. A partir daqui, começo a escrever tudo. Quando compro toranjas, deixo um papel com a palavra «toranja» junto das frutas. «Café» onde está o café, «mel» na tampa do jarro do mel, escrito a caneta de tinta preta. Tenho vontade de decorar a casa com palavras. «Duche», «escadas», «luz», «gaveta», mas depois ocorre-me que, se fixo estas, também deveria relembrar-lhe as outras, as impermanentes, «suspiro», «alegria», «lágrima», e então não faria mais nada senão notificá-lo do presente.

No terceiro dia, o professor ofereceu-se para fazer o jantar. Cozinhou uma coisa horrível e queimada que eu comecei a detestar ainda antes de a provar, no duche, quando o cheiro do fundo do tacho a arder chegou à casa de banho. Quando saí, de cabelo molhado, dei com eles a comer como se eu não existisse. Só quando me viu é que Matias se lembrou de mim. Apressou-se a servir-me um prato, mas tenho a certeza de que, se eu não tivesse voltado à sala, teriam terminado a refeição no doce vazio do esquecimento. Também sucederam alguns episódios embaraçosos. Na segunda-feira fomos à mercearia comprar provisões. O merceeiro ficou de nos entregar os produtos em casa da parte da tarde e, quando apareceu, vinha com o dobro das coisas que eu me lembrava de termos comprado, porque o professor se esqueceu de que já tínhamos ido às compras e foi fazê-las outra vez nessa mesma manhã. Tanto melhor, ficámos com os armários cheios. Quando disse que existe uma qualidade ternurenta na demência, o que eu quero dizer é que seria impossível, sem uma generosa dose de compaixão, viver com uma pessoa afligida por esta doença. Na terceira ou quarta noite, quando nos fomos deitar, esperei que o professor se metesse na cama primeiro para eu me meter de seguida e, quando o fiz, Matias recuou para a parede, assustado, fitando-me com aqueles olhos de miúdo surpreendido, O que é que estás a fazer?, perguntou, e eu respondi, Aquilo que temos feito todas as noites. Ah, disse ele, e eu deduzi, pela sua expressão atónita, que não se recordava de alguma vez eu me ter aconchegado a ele naquele colchão estreito e malcheiroso, mas acabou por ceder, e dormi novamente abraçada ao seu corpo, eu começava a gostar de dormir agarrada àquele homem da idade do meu pai, um pobre desmemoriado que parecia ter-se perdido num lugar qualquer muito distante, o último lugar onde fora capaz de amar.

Na manhã seguinte, depois do pequeno-almoço, foi procurar dentro da mochila e ofereceu-me um colar feito de corda com a caveira de um animalzinho. Pus aquilo ao pescoço e tive vontade de chorar. Era tão feio, e o gesto tão bonito, por isso agradeci e ofereci o colar a Elias, que, no seu fúnebre mutismo, aceitou candidamente. Havia algum pedaço de osso partido que chocalhava dentro da caveira, era melhor que fosse o velho a andar com aquilo, ao menos saberíamos sempre, como acontece com as vacas com chocalhos, por onde é que ele andava.

Lars começa a ficar impaciente com o tempo morto. De madrugada põe-se junto da porta a ganir e a ladrar, apesar das ameaças que o professor lhe faz de o pôr a dormir ao relento se continuar a lamentar-se. Houve um chinelo que voou vindo da sala, foi Elias que, ainda meio adormecido, o atirou ao cão. O chinelo bateu na porta de entrada e depois Lars começou a mordiscá-lo. Eu entendo o animal. Estamos nesta casa há uma semana e parecemos acomodados à situação, nenhum de nós tem vontade de partir e, ao mesmo tempo, nenhum de nós se sente suficientemente corajoso para denunciar o fracasso da nossa aventura. Assim, resolvi começar a passear Lars depois do jantar. A ilha é um lugar maravilhoso para o cão, povoado de bichos estranhíssimos, e, apesar do frio, ele fica todo contente, é só alegria enquanto fareja o caminho inteiro, o focinho colado ao chão, cheirando tudo quanto é vida. Na segunda noite em que o passeei, a tempestade no mar havia cessado. Ao descer a encosta na direcção da praia, onde dormiam os esquifes, reparei que o céu estava manchado, leitoso, viam-se as galáxias, e pensei que no Outono estaria no Norte deste planeta, junto das Auroras Boreais. Que lugar tão extraordinário é o mundo.

Depois, a aventura recomeçou. Ou o fim da aventura, que vai dar ao mesmo. A bonança foi sol de pouca dura e, dois dias depois daquele céu que vi da praia, sonhando com as auroras, uma intempérie desfaleceu sobre a ilha. Choveu e trovejou o dia inteiro e quase não saímos de casa. Os animais ficaram assustados, inquietos. Elefante refugiou-se no bolso de Elias, Lars andava às voltas na cozinha. O professor ficou deitado na cama a tarde inteira, voltado para a parede, fitando a pequena janela com a cortinazinha que tristemente a decorava. Já caía a noite quando me sentei ao seu lado e lhe dei a mão, os dedos dele permitiram os meus, entrelaçaram-se, e ficámos ali um bocadinho em silêncio. Depois deitei-me e adormecemos. Quase não nos tocámos. Percebi que, nessa noite, ele sentia aversão à Humanidade. Em vez disso, conversámos durante uma hora. Ele explicou-me a diferença entre a parte de nós que experimenta a vida e a parte que recorda. Disse-me que, na infância, houvera um rapaz chamado Lucas que era homossexual mas fingia ser um Don Juan, que houvera um miúdo espertalhão chamado Erland que desconfiava de que o homem tivesse chegado à Lua, que até houvera um colega cujo nome ele esquecera, só lhe sabia a alcunha, Coxo, e que houvera uma rapariga, chamada Nadia, por quem ele se tinha apaixonado brevemente, e que aquelas memórias, embora pertencessem à parte de nós que recorda, que devia ser secundária, uma vez que a vida acontecia agora, e não ontem ou há quarenta anos, eram as coisas mais próximas que ele possuía de um coração, porque todas estavam ligadas ao tempo em que Cecilia ainda era viva. A tua irmã morta que te escreve cartas, disse eu, Sim, essa, Grande puta, devia deixar as pessoas em paz. Consegui sacar-lhe um riso breve. Depois peguei no livro que estava a ler, O Fio da Navalha, e li-lhe algumas passagens em voz alta, até que ele adormeceu. Ressonava baixinho, o ruído embalou-me, as palavras do livro esboroaram-se, fechei os olhos e também adormeci.

A meio da noite acordámos, beijámo-nos, começámos a fazer amor. Foi um momento bonito porque o gesto não nasceu da volição, quando demos por nós já estava a acontecer, e eu pensei, enquanto ele se vinha dentro de mim, que, um dia, as coisas deixarão de acontecer e, quando dermos por isso, já não acontecem.

E depois, quase de madrugada, ouvimos a porta bater. Matias saltou da cama, nunca o tinha visto mover-se com tanta rapidez, desceu as escadas a praguejar, fui atrás dele e encontrei-o no exterior da casa, já não chovia mas a tempestade continuava, o vento rugia, voraz, a porta escancarada, Elias desaparecera, o cão também. Raios partam, disse o professor, e pôs-se a caminhar pela vila a despeito da escuridão e do frio, eu fui atrás dele, andámos durante uns vinte minutos, deixando para trás as casas e o caminho que costumávamos fazer até à pequena praia, e metemos pelo descampado. Eu caminhava seguindo-lhe os passos, abraçada ao tronco, cheia de frio, não o conseguia ver, somente a suspeita de uma sombra. Quando chegámos a parte nenhuma, nem sequer havia caminho, era só terra e pedregulhos, Lars apareceu, ofegante, língua de fora. Matias agachou-se e o cão veio lamber-lhe o rosto, Onde é que tu vais, parceiro?, perguntou-lhe, e o cão deu meia-volta e desatou a correr. Seguimo-lo pelo percurso acidentado que conduzia ao farol. A visibilidade era quase nula, limitei-me a seguir o barulho das patas, dos sapatos, tudo aquilo era esquisito, mas, com aqueles dois, eu já me habituara a coisas esquisitas, parece que os malucos só se interessam por empreitadas grandiosas, a horas estranhíssimas, e, portanto, a única coisa a fazer era seguir em frente e ver a que lugar aquela perseguição nos conduziria. Só lamentei não ter levado um casaco. Quando nos aproximámos do farol, que ficava no cimo de um outeiro, ouvimos um restolhar proveniente dos arbustos que acompanhavam o declive. O professor encontrou o tio caído em cima de um arbusto. Não se conseguia levantar e fora por isso que o cão partira em busca de ajuda. Como é que tu caíste aí?, perguntou Matias, és pior que uma criança, e assim que o velho se pôs direito voltou-nos costas e continuou a tentar subir o outeiro. O professor levou as mãos à cabeça, Não aguento mais. Seguimos o velho maluco até que Elias se prostrou à porta do farol, uma porta maciça de madeira esverdeada, e começou a grunhir para o alto como um porco, gritos agudos, agonizantes, parecia uma criatura pré-histórica a pôr um ovo, era um desespero, via-se que queria falar mas não lhe saía nada, só ruído sem sentido. Após esta barulheira, o velho desistiu e ajoelhou-se no chão, exausto. Quando o silêncio se instalou, a porta do farol abriu-se e apareceu um homem. Não era baixo nem alto, tinha olhos claros, o princípio de luz que parecia nascer do fundo do mar bastava para lhe vermos a face descolorida, carregada de olheiras, estava vestido com uma camisola grossa, de gola alta, por cima da qual usava um fato-macaco, franzia os olhos para se aperceber das nossas feições naquela obscuridade. Elias, que estava sentado no chão, levantou muito devagarinho o braço direito, de dedo indicador apontado, mas o gesto ficou a meia haste, porque o homem finalmente sorriu e disse, olhando para o professor, como se mais nenhum de nós existisse, Bem-vindo, estava à tua espera. Lars regressou da volta que dera em torno do farol, farejando, à procura de bichos, e veio para junto de nós. Começou a ladrar no momento em que o dia acabava de brotar no horizonte.

Fui levar Elias a casa. O velho estava destroçado de cansaço e toda a ansiedade desaparecera. Devia querer dormir após aquela noite em claro. Dei-lhe o braço e caminhámos devagar, era tão bonito atravessar aquele lugar de desterro, onde os dias se sucediam uns aos outros sem nenhuma necessidade de explicação, sem qualquer tentativa vã de resgatarmos as horas. As melhores horas do mundo são aquelas com que não lutamos, que sabemos definitivamente perdidas. Ele encostou-se a mim, os braços ergueram-se, parecia que me queria abraçar, e eu abracei-o com força, apesar do mau cheiro e da barba que me arranhava o pescoço, eu disse-lhe ao ouvido, És um bom velho, e posso quase jurar que, nas palavras babadas que proferiu, escutei um Obrigado, mas também pode ter sido um palavrão. Entrámos em casa e ajudei-o a subir as escadas. Deitei-o na cama feita, aquela que nem eu nem o professor ocupávamos. O ratinho Elefante veio espreitar do bolso do casaco, farejou o ar, nada daquilo lhe interessava, e regressou à sua morna toca. Elias adormeceu ainda antes de eu tornar a sair. Foi só o tempo de vestir um casaco e já o ouvia ressonar. A passos rápidos, fiz o caminho de regresso ao farol. A manhã abria sobre a ilha. Ao chegar, bati à porta e esperei. Demoraram muito tempo a abrir. Finalmente, o mesmo homem que eu vira naquela madrugada, o mesmo sorriso tranquilo, as mesmas olheiras, convidou-me a entrar. O cão estava deitado na terra, pachorrento, e eu pedi-lhe que ficasse ali fora, à nossa espera. O animal olhou-me, a língua pendurada. Subimos umas escadas de caracol em ferro, o farol tinha vários andares, um deles era uma arrecadação, outro, a casa das máquinas, no último ficavam os aposentos do faroleiro. Entrámos num quarto longitudinal e abafado, com uma janela fechada que dava para o mar, um sofá grená a um canto, uma lareira, uma cama de solteiro, um candeeiro a petróleo e um relógio de parede octogonal. No meio da sala havia uma grande almofada no chão. O professor estava sentado no sofá, pensativo. Fui sentar-me a um canto da sala, no chão. Por um momento, achei que não devia estar ali, que havia demasiada intimidade no ar, uma tensão desconfortável, tão aguçada e mortífera como o gume de uma navalha. O faroleiro sentou-se na almofada, de pernas cruzadas, houve um momento de profundo silêncio, e assim entendi que aquele ia ser um dia difícil.

Além de faroleiro, o homem, que se chamava Xavier, tinha sido professor de Matias numa cidade de província, há muito, muito tempo. Descobri isto mais tarde, porque a conversa, que retomaram depois da minha entrada, rezou mais ou menos assim: Então foste tu quem me chamou aqui, Chamei, confirmou o faroleiro, Escreveste aquelas cartas, Escrevi, sim, tornou a confirmar, És um mentiroso, então, um impostor, Depende, argumentou, da razão pela qual se enceta a farsa. Qual é a tua razão?, questionou Matias, Eu amei muito a tua irmã, Eu também, Perdoa-me ter-te escondido isto quando eras um miúdo, Também nunca te perguntei, O teu tio quis matar-me, Desconfio que sim, Estava convencido de que eu era responsável pelo que aconteceu à Cecilia, acusou-me de ser o criminoso na sombra, Ou a sombra criminosa, rematou o professor. O faroleiro sorriu, cheio de compaixão, e contou, como quem procura consolar um cordeiro levado ao sacrifício, que, nessa noite do Verão de 1983, a rapariga saltou da ponte com a intenção de morrer, mas as águas, que levaram na corrente fria aquele corpo nu e bonito, devolveram-na à margem com os pulmões cheios de água, deve ter passado muito tempo a cuspir, a regurgitar a morte, mas ainda estava viva. Eu vi-a saltar da ponte, disse Xavier, antes disso persegui-a no asfalto, corri atrás dela pela estrada, tínhamos discutido, ela fugiu, embriagada, de minha casa, e fez-se às ruas que levavam à saída da cidade, corria descalça, Conheço bem esse caminho, costumávamos fazê-lo de bicicleta, disse o professor, Ah, que dias tão bons, esses da juventude, respondeu Xavier, e pareceu sorrir, só que o sorriso era outra coisa, talvez a terna expressão de um lamento. Porque é que ela fugia?, perguntou Matias, Porque não aguentava mais, respondeu o faroleiro, a vida é demasiado intensa para algumas pessoas, as pessoas que são demasiado intensas para a vida e incapazes de se defenderem dos sentimentos, dizia o Buda que estes sentimentos são vedana, dependem dos seis sentidos, Por agora, deixemo-nos de budismos, disse Matias, Está bem, naquele tempo interessavas-te por estas coisas, Passaram muitos anos, Eu sei, Diz-me porque é que ela corria, Porque eu lhe contei que me ia embora, que ia deixar aquela província, e ela perguntou se eu a levaria comigo, e eu respondi-lhe que não podia levá-la, que ela teria de ficar, Ela queria ir contigo, Sim, Mas tu eras um homem e ela uma miúda, Não tenho resposta à altura dessa afirmação, nada do que eu te possa dizer agora mitigará essa injustiça. Fez-se silêncio, e depois o faroleiro continuou, Um dia, a Cecilia cortou um dos pulsos à minha frente, tive de lutar com ela para que não cortasse o outro, tive de usar toda a minha força para que parasse de se mutilar, Não entendo, porquê?, Há quem lhe chame depressão, ou outras palavras mais difíceis, coisas de médico, bipolaridade, esquizofrenia, psicose, E que tal demência?, Porquê demência?, Corre na família, Eu prefiro, apesar de tudo, chamar-lhe deslumbre, Deslumbre?, Sim, no sentido de excesso, uma fantasia tão avassaladora que viver se transforma numa patologia. A minha irmã não tinha nenhuma dessas ideias, disse o professor, Não precisamos de ter nenhuma destas ideias para que a dor de estarmos vivos seja insuportável. Eu vi a Cecilia saltar, prosseguiu o faroleiro, lembro-me tão bem desse momento, sabia que aquele era o lugar aonde ela ia quando a Lua estava cheia, tomámos muitas vezes banho no lago, mas nessa noite, quando cheguei à floresta e vi a ponte à distância, ela sentada na beira, os pés em carne viva, soube que não havia nada que eu pudesse fazer, o corpo dela tombou das alturas e mergulhou nas águas, foi engolido pelo rio, e eu julguei, ou tive a certeza, de que ninguém sobreviveria àquela queda, eram muitos metros de altura, havia rochas, e chorei a noite toda sentado na margem, disso não tenho dúvidas, chorei a noite toda pela tua irmã, porque a amava.

Foi a primeira vez que vi o professor à beira das lágrimas ou perto da cólera, não sei qual destas emoções mais o dominava, e assustei-me, pois os ventos uivavam em torno do farol e havia um medo no ar, uma densidade opaca, que era mais própria de um sortilégio. Sucede sempre assim quando a vida está a ser cortada com uma faca, exposta. Eu sentia-me agraciada com a dádiva das confissões, como um padre à escuta, atrás da treliça. O professor perguntou, E ela amava-te?, e o outro respondeu, Não, ela não amava coisa alguma, aos dezassete anos o amor é uma ideia que se inflama, uma ferida infectada, o único verdadeiro amor que Cecilia tinha eras tu, falava de ti a toda a hora, o meu Matias, o meu irmãozinho querido, o meu Flussi, chamava-te um enorme parvalhão, dizia que eras burro com o amor, mas que talvez fosses o único na família que viesse a ter um futuro. O professor não disse nada, e o silêncio momentâneo foi uma bênção. Que agradável, pensei, consigo ouvir, daqui, o enrolar de uma onda. O que eu fiz da vida pouco importa, continuou o professor, Desculpa, disse Xavier, gostava que soubesses que respeito muito a tua dor, Se a respeitas, então despacha-te, Não consigo contar-te esta história depressa, levamos quase quarenta anos de atraso, Está bem, serei paciente, diz-me, então, que sentimentos eram esses de que Cecilia não era capaz de se defender, Ora, no fundo, é apenas um, aquele que nos torna indefesos, o medo, Medo de quê?, Medo, repetiu o faroleiro, não é suficiente?, O medo não precisa de rosto, é medo de ser, ansiedade de existir, uma espécie de vírgula interior que vamos colocando no meio de todas as coisas, Ela era demasiado nova para tanto medo, A tua irmã carregava o peso de muitas vidas, Não podes saber isso, contestou Matias, Deixa-me contar-te uma história, não demorarei muito, afiançou Xavier, Está bem.

«Era uma vez um padre de uma antiga religião que sacrificava animais. Um dia, decidiu que sacrificaria uma cabra. Julgava, na sua ignorância, que era uma oferenda ao seu Deus. Os servos levaram o animal ao rio, lavaram-no, decoraram-no com coroas de flores. A cabra compreendeu então que aquele seria o dia da sua morte e teve o vislumbre dos seus nascimentos, mortes passadas e renascimentos. As consequências das acções nocivas praticadas nessas outras vidas chegariam ao fim nessa última morte, e a cabra riu-se, compreendendo ainda que o padre, ao sacrificá-la, sofreria a mesma sina que ela sofrera, devido à sua ignorância. E a cabra também chorou por causa disto. Os servos, espantados, levaram-na ao padre, contando-lhe o que sucedera, que o animal rira e chorara durante a ablução. O padre exigiu-lhe respostas. A cabra contou-lhe então que, há muito tempo, também ela fora um padre que, tal como ele, se educara nos ritos religiosos e também julgara que sacrificar uma cabra era uma oferenda necessária a Deus. Mas o resultado foi que, nas quatrocentas e noventa e nove vidas que se seguiram, acabou degolado, e esta seria a vida número quinhentos, a última, o fim do ciclo kármico, o fim de dukkha

Porque é que me contas esta história?, perguntou o professor, Porque imagino que ainda gostes de fábulas, respondeu Xavier, a mim fazem-me sentido, eu que fui um professor de História que nunca acreditou na História, Sim, eu lembro-me, dizias que a História era a necessidade da certeza dentro da dúvida, Quem sabe onde morreu Napoleão ou de que doença padeceu Mozart? Então, imaginemos, continuou Xavier, e façamos da imaginação essa certeza. A tua irmã não morreu no rio, prosseguiu ele, despertou de madrugada, à primeira luz da aurora, como se renascesse, mas morta para o mundo, Que liberdade, Sim, que liberdade, como a cabra que morreu pela derradeira vez às mãos do padre, finalmente exonerada do karma das vidas passadas, imagina só o que é despertar e o mundo poder ser aquilo que quisermos, tão parecido com morrer, no final, a morte é isso, é o render da guarda, o fim de todas as condições. O que é que ela fez?, Lá chegaremos, respondeu o faroleiro, naquela altura desapareceu, fez-se ao mundo, reinventou-se, durante anos fiquei na ignorância. A Polícia também te chamou depois da morte dela?, Sim, fizeram-me perguntas, eu tinha sido professor da tua irmã durante alguns anos, e havia a suspeita de que alguém a matara e a enterrara no bosque, era o que se dizia que tinha acontecido, não fui capaz de confessar que eu e ela tínhamos sido amantes, isso teria sido o fim, e eu, nessa altura, não estava preparado para o fim. Portanto, guardei comigo estes segredos durante décadas, e agora, que tu aqui estás, sentado à minha frente, com os mesmos olhos melancólicos que já tinhas em miúdo, sinto que chegou a hora de reparar os meus erros.

No ano seguinte à tua irmã ter desaparecido, deixei de ensinar na escola, continuou Xavier. Não era capaz de enfrentar os corredores, as salas, os alunos. Fingi-me doente durante muito tempo e saía pouco de casa. Mas vi-te muitas vezes, sabes? Onde?, perguntou o professor, Às vezes, eu ia até perto da escola, ao fim da tarde, e ficava dentro do carro a observar o portão, Como um pedófilo, comentou Matias, Sim, mais ou menos isso, excepto que nunca fui pedófilo, o único miúdo que eu queria ver eras tu, Porquê?, Porque sempre gostei de ti e preocupava-me contigo, e o miúdo que vi, nesse ano, deixou-me apreensivo, Explica-te, Vi-te a desistir, cada vez mais sozinho, já não andavas de bicicleta com os outros, já não ficavas a conversar junto ao portão da escola, o sorriso ausentara-se do teu rosto, era uma tristeza, a única coisa que fazias era andar à deriva pelas ruas. A certa altura, desapareceste durante semanas, e eu fui à tua procura. Desconfiei que estivesses com o teu tio, meti-me no carro e fui à cabana, Não me lembro disso, Claro que não te lembras, eras um adolescente mergulhado no luto, nessa tarde dormias a sono solto, mas o Elias, que estava à porta da cabana, embriagado, acusou-me, quando lhe perguntei por ti, de ser eu o culpado pelo que sucedera à Cecilia e jurou que um dia viria matar-me, não por ela, porque não se vingam os mortos, mas pelos vivos, matar-me-ia por ti, e sugeriu que eu me fosse embora enquanto ainda podia. E eu fui. Deixei a cidade, abandonei a província, nunca mais entrei numa sala de aulas, durante muitos anos errei pelo mundo até descobrir que o meu verdadeiro destino era a solidão, e vim para este farol, onde aprendi a ser quem sou, um homem derrotado que convive com essa derrota sem querer que ela seja outra coisa qualquer. E pensas nela?, perguntou Matias, Sim, às vezes, mas também penso em ti, preocupei-me contigo estes anos todos, Deixa lá isso, o bom samaritano não é um papel que te assente bem, A tua irmã contou-me um pouco da tua vida, disse-me que eras um professor respeitado, ensinavas Religião, Filosofia e outros temas complexos na universidade, e eu senti-me orgulhoso por teres sido meu aluno, A minha irmã o quê?

Finalmente, chegamos onde importa chegar, disse o faroleiro. Ajeitou-se na almofada e, lentamente, cerrou os olhos, respirando fundo. O cor-de-rosa que tingira o horizonte transformara-se num vermelho-crepúsculo. Olhei pela janela do farol e vi o fogo incandescente mergulhar nas águas e tive vontade de chorar por causa de tanta beleza. Porém, a narrativa prendeu-me e esqueci-me das lágrimas.

Abandonei a província, fui viver para o campo, tornei-me tutor de crianças num lugar inóspito. Só havia cabras, pastos e gente simples, as mulheres cheiravam a chouriço e os miúdos a leite, vestiam-se com samarras grossíssimas porque fazia muito frio no Inverno, a ruralidade mais rude. Durante esses anos de desterro, só pensava na Cecilia e em ti, não vou mentir, pensava sobretudo nela. Até que, sete ou oito anos depois do desaparecimento, eu não aguentava mais o campo, o cheiro das cabras, adormecer com palha no cabelo, e sabes o que fiz?, Não, conta-me o que fizeste, Fiz as malas e fui para o Norte, o mais a norte que uma pessoa pode ir, e fui ver os territórios gelados do planeta, onde só há glaciares e esquimós e focas a escorregarem nos bancos de gelo, e depois rumei ao Sul, o mais a sul que uma pessoa pode ir, e fui aos reinos africanos, onde os homens trespassam a pele com cornos de marfim e as mulheres prolongam os lábios com placas feitas de osso de baleia, e então, quando tudo isto se tornou banal, porque qualquer coisa se torna banal quando vista demasiadas vezes, rumei ao Oriente, aos lugares onde o sagrado se encontra com a pobreza mais deprimente e as pessoas caminham descalças e esfarrapadas, os olhos vazios da fome, tão magras que mais parecem ramos de árvore, os ocidentais procuram a iluminação nestes lugares, como se, por estarem rodeados de gente que não tem onde cair morta, as nossas mentes, cheias de si mesmas, finalmente se rendessem, é uma ilusão, até o Gotama experimentou a via ascética e foi zeloso, dormia em raízes de árvores, junto dos cadáveres ou em camas de espinhos, comia um bago de arroz por dia, ficou tão emaciado que, torcendo-os, poderiam partir-lhe os braços e as pernas, durante seis anos praticou a mortificação do corpo sem nunca atingir o despertar do espírito. Já te pedi que encurtasses caminho, interrompeu o professor, que se impacientava, mas o faroleiro era impassível, nada no seu rosto denunciava ansiedade, nenhuma urgência, somente o desejo de contar aquela história, e então prosseguiu, Experimentei todas as práticas, o rigor, a submissão, o castigo do corpo, a implacável obsessão por um líder, durante dois anos e três meses fiz parte do séquito de Ajahn Dujjana, que se dizia descendente dos Sumérios, e percorremos a Índia a pé, de sul para norte, sempre descalços, atravessando cidades caóticas, desertos escaldantes, montanhas intermináveis, rios de águas fétidas, até as solas dos nossos pés serem feridas abertas e, depois, se tornarem rijas como a pele de um elefante, e quando chegámos ao nosso destino, a cidade de Varanasi ou Benares ou Kashi, o nosso líder lançou-se ao Ganges, infestado de cadáveres e da cinza dos mortos, e morreu de uma infecção pulmonar passados trinta dias. Que desperdício, disse Matias.

E eu concordei, sentada no meu canto, o dia ensombrecera ainda mais e a chuva inventava um ritmo descompassado no vidro.

Sim, um desperdício, como todas as vidas, concordou Xavier, conto-te tudo isto porque, ao fim desses anos todos de busca, de sacrifício, de inquietação, de cansaço, o vislumbre mais próximo da iluminação que tive foi aquele em que compreendi que, em tudo o que fazemos, em todas as coisas que obtemos e até naquelas que largamos, mesmo nas coisas que nos trazem alegria, está a semente da nossa insatisfação eterna, mesmo no prazer mais desapegado, aquele que se obtém no cimo das montanhas onde passei seis anos, em meditação profunda, com dois monges tibetanos, Tenzin e Samdup, os meus mestres, até nessa satisfação, que provém da liberdade, da renúncia quase completa, até aí, assim que a mente se distrai por um segundo, um milésimo de segundo, surge o infatigável espinho de dukkha no caule da flor que julgávamos ter nascido saudável.

As palavras, porque eram bonitas, ressoaram pelo farol inteiro, abarcaram a povoação, a ilha, toda a extensão do mar.

E fizeste isso tudo porquê?, perguntou o professor, que se inclinara para a frente no sofá, repousando os cotovelos nos joelhos, Fiz tudo isso porque, quando a tua irmã desapareceu, a minha vida perdeu o sentido, foi como se Deus decidisse apagar as luzes da minha casa e me dissesse, Agora, encontra o caminho às escuras. Eu era um homem tranquilo, ou assim o julgava, tinha os meus livros, os meus alunos, o meu Buda, mas todas estas coisas não passavam de ideias, é tão diferente quando a vida, subitamente, quer que abramos os olhos, e não há nada a fazer, quando muito iremos para o madeiro aos gritos, a espernear, mas o caminho da nossa crucificação está traçado, Mas tu eras um homem e ela uma adolescente, E agora sou um velho e ela uma mulher feita que, atrevo-me a dizer, terá já perdido o fulgor de outrora, e no entanto continuo a amá-la.

Foi nesta altura que pensei que Matias se levantaria e, como num gesto de justiça, esmurraria o faroleiro. Em vez disso, houve um silêncio abismado. O professor perguntou, a voz frouxa, Então sempre está viva?, Quem?, A Cecilia, Não, a Cecilia morreu, Acabaste de dizer que é uma mulher feita, É mais complicado do que isso, Explica-me, insistiu, irritado, e não te demores mais, Vieste de tão longe, disse o outro, num tom apaziguador, esperaste tantos anos, com certeza aguentas mais um bocadinho, as respostas estão ao virar da esquina, O farol é circular, observou Matias. Durante todos os anos em que estive longe, continuou Xavier, encontrei Cecilia muitas vezes. Via-a em toda a parte aonde ia, esquiva, uma sombra, desaparecendo numa esquina de Bengala, mergulhando nas águas mornas de uma praia em Santa Maria, comprando bijutaria em Calcutá, sim, uma vez até imaginei, a bordo do HMS Diana, durante os meses que passei a trabalhar no petroleiro, que ela embarcaria no próximo porto, em Juneau, eu percorri tantos países e fiz tantas coisas que, às vezes, a vida que tivemos, quando tu eras um miúdo, me parece um diminuto prefácio, Pois eu não viajei, disse Matias, e, ao contrário de ti, que conservas intacta a memória, tudo o que recordo é esse prefácio, o resto é um diário de páginas rasgadas, Bonita imagem, Obrigado, mas não serve para nada. Enfim, viajei pelo mundo à procura da tua irmã e o que encontrei foi a sua misteriosa e irresolúvel ausência. No caminho, descobri o infinito que somos por dentro, e também a incompletude, a profunda insatisfação, a farpa de existir. Um dia, quando dei por mim num mosteiro em Saragoça, a chorar no colo paciente e terno de um franciscano, decidi então que voltaria para casa, com a minha meia-idade, uma sacola e uma melancolia sem tréguas. E regressei à nossa cidade, àquela província de que toda a gente parecia querer fugir. Tudo mudara. A escola era agora uma fábrica. A casa onde eu vivera, um restaurante de fast food. Já não havia miúdos de bicicleta pelas ruas, mas uma triste abundância de carros e de gente velha, como se o tempo tivesse parado e naquele lugar não mais tivessem nascido pessoas, Curioso sítio esse, Curiosos somos nós, que fomos embora, o mais natural nas pessoas é morrerem no lugar onde nascem, Nunca mais voltei, Calculava que não, O que é que encontraste por lá?, Encontrei a tua irmã, Estás a mentir-me, disse o professor, e disse-o com consternação, quase com mágoa. Eu levantei-me, porque não conseguia continuar sentada, e fui para junto da janela. Respirei o ar fresco da maré, a enjoativa maresia, havia sempre sal no ar daquela ilha. Então o faroleiro sorriu e garantiu que não mentia, que não mentia, que ela vivia na mesma casa onde tinha crescido, era como se, na verdade, nunca dali tivesse saído.

A tarde prosseguiu ventosa, carregada de um imenso temporal, e eu ofereci-me, porque lhes adivinhei o cansaço, para cozinhar uma sopa. Xavier recebeu a oferta com entusiasmo. Fui para a cozinha enquanto eles falavam e encontrei cenouras, abóbora, caldo de galinha, massa, azeite, coentros, e pus-me a fazer uma das minhas sopas, com que certamente conquisto o coração de qualquer homem, enquanto escutava, pela porta aberta, a conversa que continuava, como se não fosse terminar nunca. Xavier contava nessa altura que, ao voltar para casa, se propôs visitar os lugares do passado. Chegou a ir à cabana de Elias, encontrando-a vazia e quase arruinada. As portas pendiam dos ferrolhos enferrujados, havia um pássaro negro morto no alpendre, restava o olho de pérola, parte da cabeça, fragmentos de asas, mas o resto era cadáver. Os ramos de um carvalho tinham invadido a parede lateral da casota. Não se atreveu a entrar. Foi nessa tarde que Xavier, ao volante da furgoneta, que ao abandonar Saragoça comprara em segunda mão, estacionou defronte da casa dos Fluss. Notou que a casa estava na mesma e que havia luz na cozinha. Eu deixei a sopa ao lume, o aroma começava a invadir o farol, e regressei à sala, tornei a sentar-me no meu canto. Reparei na película de dor, de incredulidade, nos olhos do professor, enquanto Xavier prosseguia a narrativa. Saí do carro e fui bater à porta, disse, e quem a abriu foi uma rapariga jovem, devia ter quinze ou dezasseis anos, cabelo curto, ar circunspecto e desconfiado, de calções de ganga e T-shirt, chinelos nos pés, tinha pernas longas e pálidas e perguntou-me quem eu era, o tom de voz, o ligeiro arquear da sobrancelha, a mão despreocupada na anca, soube então que estava a ver um fantasma, houve ali um momento de assustadora claridade ou de retorno a um eu há muito esquecido, e então tentei explicar quem era, mas a rapariga não quis saber, voltou o rosto de lado, até de perfil eram idênticas, e gritou lá para dentro, Mãããeeeeeee, e desapareceu no interior da casa, eis que surgiu à porta uma mulher, nem nova nem velha, talvez quarenta anos, quem sabe nem tanto, cabelo comprido e ondulado, que o tempo aclarara, sorridente, vestida de maneira simples, talvez calçasse ténis, era gordinha, Gordinha?, Sim, gordinha. Demorei algum tempo a reconhecê-la, embora, no fundo, soubesse quem era, só que uma parte de mim desejava negar esse conhecimento, pois era impossível que ali estivesse passados tantos anos, vestida como uma dona de casa desmazelada, e então ela sorriu e disse, Olá, Xavier, e eu comecei a chorar, não foi um choro audível, apenas lágrimas a descerem-me pelo rosto, e ela abraçou-me, senti-lhe as ancas roliças contra a minha cintura, ela passou os dedos pelo pouco cabelo que eu ainda tinha e disse, Oh, pronto, pronto… Entra, faço-te um chá, e eu entrei, e ela apresentou-me à rapariga dos chinelos, que estava sentada no sofá com um telefone entre os dedos, a olhar para a televisão. Chama-se Cecilia, disse-me a mulher, e eu gesticulei um cumprimento no momento em que no patamar das escadas apareceu um miúdo de nove ou dez anos, ruivo, de cabelo encaracolado, tão magrinho como tu eras naquele tempo, trazia na mão uma nave espacial e fingia que ela atravessava a Galáxia, quando me viu deteve-se, praticamente escondeu o brinquedo, como se tivesse vergonha da sua imaginação, olhou para mim, franziu o sobrolho, Meu Deus, pensei, já estive tantas vezes contigo e nem me conheces, Este chama-se Matias, disse a mulher, e fomos para a cozinha. Sentei-me à mesa e a senhora gordinha, tranquila, começou a preparar o chá. Não estou a perceber, quem era essa senhora gordinha?, perguntou o professor, Ora, era a tua irmã, só que agora chama-se Alma, Esse era o nome da minha mãe, A tua irmã como tu a conheceste deixou de existir, disse Xavier, morreu naquela noite, naquele rio, e o que existe agora é uma senhora chamada Alma, que tem dois filhos, Como é que isso é possível?, Eu explico, mas, olha, este cheiro a sopa deu-me fome.

Fui à cozinha, servi três tigelas de barro com sopa fumegante, num instante desci as escadas para ir ao piso térreo dar comida e água a Lars, que se deitara, paciente, junto da porta do farol, observando a noite. Ao sair para o exterior, chegaram-me os aromas de um Verão mortiço e imaginei o Sol do outro lado do mundo, uma brasa sob as águas. Afaguei o bicho e regressei aos aposentos do faroleiro. Eles comiam a sopa em silêncio. Eu sentei-me no meu canto e comi também, o relógio de parede deu as horas, já passava das dez, a noite ia ser longa.

O que acontece a quem está vivo é demasiado complexo para ser abarcado por uma só consciência, disse Xavier assim que se recompôs do lastro de modorra deixado pela sopa quente nos estômagos vazios. Arrotou e ajeitou-se na almofada. Conseguia estar horas e horas de pernas cruzadas, e admirei-o muitíssimo, mesmo sem entender como é que aquele homem algum dia vivera em sociedade, só conseguia imaginá-lo como asceta, vivendo numa gruta no meio de um deserto ventoso, só pele e osso, ou nem pele nem osso, que é o que acontece quando já não somos nada, quando desaparecemos daqui. O faroleiro continuou, Por isso precisamos de outras consciências que nos iluminem as zonas de sombra, que transportem a candeia ao canto do quarto escuro onde receamos aventurar-nos, Que tem isso a ver com o que falávamos?, Foi para te explicar que, quando conversei com a tua irmã, havia uma elipse existencial entre a pessoa que ela fora e o que ela agora era, e essa elipse, ou esse buraco negro, só fazia sentido se eu me abstraísse de mim, da minha impaciência, eu ainda agonizava dos anos difíceis da busca espiritual, do cansaço, da desilusão de ainda ser o mesmo de sempre, atrelado à minha dor, e pude finalmente entender, naquele momento em que a Cecilia, ou a Alma, como agora se chama, se sentou à mesa da cozinha, segurando uma chávena de chá entre as mãos, que toda a minha procura fora em vão, que eu era risível, compreendi quão inútil se revelara a cobiça obstinada com que me lançara nos abismos da alma, se tudo o que ela fizera, esta outra Alma, fora dispor-se a morrer. Uma morte genuína, como a da oração de São Francisco de Assis, «Senhor, faz de mim um instrumento da tua paz, é esquecendo que se encontra, é morrendo que se acorda para a vida eterna», e a Alma, parecendo perceber o que eu via, alcançou a minha mão, afagou-a e disse, Que engraçado, tanta gente que quer viver, e eu só queria morrer, sabes, quando acordei na margem do rio, já não era a mesma, pus-me a caminhar pelo bosque com uma tranquilidade desconhecida, uma quietude interior sem memória, acordei feliz e percebi então que a vida tinha começado outra vez e que eu era livre de ser o que quisesse, porque já não estava aprisionada aos dezassete anos de sofrimento. A tua irmã vagueou pelos bosques durante dias, era Verão, podia viver-se ao relento, até que, depois de andar quilómetros, encontrou, num vale de pinheiros mansos, um mosteiro das carmelitas descalças, bateu à porta, uma das monjas veio abrir e encontrou uma rapariga bonita, também ela descalça, só com um vestido azul de florzinhas brancas meio esfarrapado, e convidou-a a entrar, os devotos religiosos não fazem perguntas, aceitam os desígnios de Deus, e cada dia é de pronunciado silêncio e oração ininterrupta, foi o que Cecilia fez durante vários anos, silêncio e oração, a liturgia das horas, aprendendo a usufruir do seu estado recém-descoberto de iluminação.

O teu sobrinho Matias, o Segundo, apareceu na cozinha, contou o faroleiro, perguntou à mãe se podia ir brincar para a rua, tornou a desaparecer com a nave das galáxias, lembro-me bem do som da porta da rua a bater, dos passos do miúdo, E se continuasses, por favor?

Um dia, depois de anos de devoção, ela decidiu ir embora, contou Xavier, e, porque era uma pessoa nova, escolheu um novo nome. Abandonou o mosteiro com vinte e um anos, um saco às costas com uns poucos pertences, umas sandálias que as monjas lhe compraram como presente de despedida, e foi viver para uma cidade de província não muito diferente da nossa, ou em tudo idêntica, com uma escola, um hospital, um jardim onde os namorados passeavam. Um dia, conheceu um homem. Apaixonou-se e teve uma filha, depois um filho, chamou-lhes Cecilia e Matias, tal como vocês, mas o amor não durou, desgasta-se, é amor humano, imperfeito, tão belo que seja assim, e foi então que a Alma, a Segunda, agora, que era uma mulher, agora, que o passado estava enterrado nas camadas mais recônditas do subsolo, decidiu que levaria os seus filhos para a casa onde crescera, na cidade onde nascera. Quando lá chegou, descobriu que a mãe tinha morrido, que o irmão já lá não vivia e que restava muito pouco da sua infância e adolescência. Sobrava a casa, que estava para alugar. A Alma foi à imobiliária anunciada num pequeno cartaz à porta da habitação e, depois de falar com um vendedor, descobriu que a casa tinha sido entregue à imobiliária num leilão, uma vez que o herdeiro, que serias tu, nunca reclamou a pertença do imóvel, e talvez, nesse momento, ela tenha pensado que, na verdade, a vida não recomeçara, nada tornara a nascer, o que acontecia agora era a repetição do que já tinha acontecido, e o que tinha acontecido a repetição do que acontecera antes disso, e assim por diante, até que, um dia, com os mesmos nomes, os mesmos rostos, os mesmos afazeres e sofrimentos, a Humanidade chegará a um abrupto final, não haverá mais passado, não haverá mais futuro, vocês serão os últimos, os únicos, o fim da espécie, Que ideia absurda, disse o professor, E, no entanto, foi assim que a vida humana começou, rematou o outro. E depois, o que aconteceu?, Nada, respondeu Xavier. A Alma mudou-se para a casa com os filhos, que frequentaram a mesma escola que tu. A filha mais velha deve, hoje, ser da idade desta tua amiga. Chamo-me Deanie, disse eu, e sorri. A tua sopa estava magnífica, disse Xavier. Obrigada, agradeci, e olhei pela janela e reparei que a tempestade cessara, as águas repousavam em paz.

Não durámos muito mais. Havia cansaço, uma tristeza morna que se expandira, abarcando a sala, o farol, o que restava da noite. Matias, recostado no sofá, tinha os olhos ligeiramente húmidos, podia ser do cansaço ou da tristeza, não sei dizer. Era estranho ter passado ali o dia todo, desde a alvorada, e foi só quando medi a lentidão das palavras do faroleiro que compreendi o porquê da nossa demora, o homem falava com a velocidade dos moluscos. Restava pouco a dizer e, nessa altura, adormeci por uns minutos, de cabeça encostada à parede. Quando despertei, a janela abrira-se com a força do vento. Levantei-me para a fechar, estava frio dentro do quarto, mas os dois homens pareceram nem reparar.

Xavier contava ao professor uma história que Alma, a Segunda, também lhe revelara à mesa da cozinha. Um dia, fui dar um passeio, dissera-lhe ela, e encontrei o meu irmão. Eu?, perguntou Matias, e o outro respondeu, Sim, tu. Era, então, uma quarentona, cujos filhos frequentavam a mesma escola que vocês, e os rostos do seu passado na cidade natal, comidos pela idade, olhavam-na sem saberem quem olhavam, porque a Cecilia que sobrara dentro de si era pouco mais do que uma fagulha inquieta. Talvez tenha sido essa fagulha que a levou até ti, não me soube explicar, disse apenas que uma manhã sentiu que precisava de ver o mar e, com os miúdos já crescidos a tomarem conta um do outro, meteu-se cedinho num autocarro e só parou na vila de C. Deambulava lentamente pelo centro da vila, era Inverno, mas fazia sol, o lugar estava quase deserto, quando um carro que transitava muito lentamente parou ao seu lado. O condutor perguntou-lhe se ela era dali, estava perdido. A Alma respondeu que não, que estava de passagem, o homem olhou-a e sorriu, tinha o cabelo grisalho, uma expressão perplexa, algo confusa, a luz incidia-lhe no rosto, e então ela percebeu, de repente, que estava a falar com o irmão, contigo, com a última coisa que ainda a ligava ao passado, e que te encontrara fruto da mais impossível coincidência, uma possibilidade num bilião, e que as coincidências não existiam, nenhum encontro era casual, toda a casualidade era premeditada. Não me lembro de nada disso, afirmou Matias, e eu, que entretanto afugentara a sonolência, comecei a ver-lhe a crispação no rosto, era como se quisesse chorar mas não conseguisse. O faroleiro continuou, Ela perguntou-te se podia entrar no carro e tu disseste que sim, com imensa naturalidade, foram dar uma volta lenta pela costa, e ela disse-te que se chamava Alma, ao que tu respondeste que era o nome da tua mãe, cedo compreendeu que tu não te lembrarias de nada, que estavas tão ausente do passado como de ti próprio, era como se conduzisses aquele veículo num estado de perfeito alheamento, e ela soube, ali sentada, no lugar do passageiro, um quarto de século depois de te ter visto pela última vez, que sentia saudades tuas, que se lembrava de um miúdo cheio de vontade e de ternura, que muitas vezes se pusera a imaginar com quem te parecerias, um Matias adulto, um homem feito, que teria a sua família e os seus afazeres, e que encontrara, em vez disso, um homem profundamente perdido, que não se lembrava de onde vinha nem para onde ia, tristemente solitário no seu desamparo. Correram umas lágrimas pelo rosto do professor. Ele não aguentava mais, eu quis levantar-me e dizer a Xavier que já chegava, que aquela tortura era infindável e cruel, mas ele ergueu uma mão para me sossegar, para tranquilizar o meu ânimo, já faltava pouco, muito pouco, assegurou. Então ela contou-me que passaram a tarde mais bonita de todas, estacionaram o carro junto de uma praia que distava trinta ou quarenta metros das casas mais próximas, uma pequena arriba delimitada por uma cerca, areia branca e cinzenta, chorões da praia, e deram um longo passeio enquanto a tarde esmorecia. Falaram das coisas mais triviais. Do mar, das gaivotas, dos veraneantes que durante a época balnear enchiam a praia de lixo, da fome que sentiam quando cheirava a maresia e da maneira como, no Inverno, a areia acolhia a sola dos pés com a suavidade de um lençol gelado. Sentaram-se perto da arriba, em silêncio, durante uma hora, ou mais, olhando para a aparente quietude das águas, adivinhando os titânicos movimentos ocultos das marés, e, depois, quando o dia findava, tu pareceste lembrar-te de alguma coisa, era uma coisa urgente, que inspirava cuidado, ficaste de olhos alarmados quando te puseste de pé e disseste, Tenho de ir, tenho de ir, havia alguém à tua espera, alguém que tinhas esquecido. Era a minha mulher, disse o professor, erguendo o rosto, tinha deixado a minha mulher numa praia remota, no fundo de uma falésia, perdi-me ao regressar, não encontrava o caminho, Lembras-te disso?, notou o faroleiro, Lembro-me de voltar a essa praia, da fúria no rosto dela, E recordas-te do resto da tarde, da tua irmã?

Não me lembro de nada, disse ele. De absolutamente nada.

Partimos em silêncio. Descemos à luz do candeeiro a petróleo, os passos ecoando no oco vão de escada. Fomos para casa, atravessando a ilha tranquila, Lars abanando a cauda no nosso encalço. Deixei-o dormir sozinho nessa noite, o dia fora longo e duro, cheio de histórias bonitas e difíceis, e os dois homens da casa repousaram no andar superior enquanto eu me anichei no sofá, o cão a lamber-me o rosto salgado. Sou uma miúda sensível e toda aquela melancolia atacou-me, confesso que chorei um bocadinho antes de adormecer. Tive um sonho longo e confuso. Sonhei com uma rapariga de cabelo castanho, quase louro, enterrada no chão árido de um templo, só com a cabeça de fora, enterrada até ao pescoço, um sufoco de pânico, e um homem, Ajahn Dujjana, que desenhava círculos em redor da cabeça dela com um enorme galho. Despertei suada, ainda não era manhã, e pus-me a cozinhar. Fiz uma omeleta com a comida que sobrara dos últimos dias, pus-lhe cogumelos e salsa, guardei-a dentro de uma panela coberta com uma tampa para que eles comessem ao acordar. Fui dar um passeio e pensei muito na verdade e na liberdade e nas palavras todas às quais vamos tentando dar sentido enquanto estamos vivos e em como todas essas palavras são interdependentes, todos os sentidos. Talvez, para o professor, saber a verdade fosse uma maneira de largar a prisão em que se fechara durante tanto tempo. O erro é acharmos que essa prisão desaparece logo. Ela rui, é certo, mas pouco a pouco, pode demorar anos, pode levar para sempre. E, ao mesmo tempo, a verdade deixava-o em terra-de-ninguém, pois desenhava no chão poeirento um sulco de água doce que alastrava desde hoje até ao passado remoto. Lembrei-me das últimas palavras do faroleiro. Ele contou que, ao abandonar para sempre aquela cidadezinha de província, depois de visitar a Alma, parou numa bomba de gasolina para atestar a furgoneta e, ao balcão da bomba, com um chapeuzinho azul, estava um homem quase careca, barrigudo, que tinha sido aluno dele. Chamava-se Lucas e não o reconheceu, porque Xavier também mudara. Esse homem, na adolescência, fora um rebelde, criatura insubmissa, e agora trabalhava na bomba mais triste da avenida mais triste da província mais triste do mundo.

Caminhei até à praia, vi as gaivotas saltarem empoleiradas nas suas perninhas ridículas, o mar entrava lentamente pela areia dentro. Nada nos aprisiona, concluí. Somos nós que construímos a cela, que nos enclausuramos, e isso dói. Mas é preciso que doa, que doa muito, até que a dor de abrir uma brecha nesse muro seja menor que a dor de permanecer preso lá dentro. Na maior parte das vidas, tal nunca sucede.

Dois dias mais tarde, perguntei-lhe o que pensava fazer. Se regressaria à cidade da sua infância à procura de Cecilia, ou de Alma, e ele respondeu, enquanto afagava as orelhas de Lars, que passara a manhã inteira a saltar de poça em poça, que, em vez disso, escreveria um livro. Ou talvez escrevesse mais de um. Olhou-me com ternura e revelou que o primeiro se chamaria O Luto de Elias Gro. Seria um livro sobre o seu tio, a história de um homem que vai para uma ilha esquecer uma grande dor e encontra Deus. Porquê Deus?, perguntei, Porque tu me disseste que Deus é quem toma as grandes decisões, nós só temos de estar preparados, Sim, respondi, sem Ele, a vida fica toda nas nossas mãos, por inteiro, e as nossas mãos são pequenas para tanta coisa, para tanta dor e tanta vontade, vamos precisar de ajuda, E como é o segundo livro?, Esse ainda não sei, gostava de escrever sobre o homem e a mulher que atravessam a minha rua todas as tardes, mas não sei nada sobre eles, Podes imaginar, é isso que os escritores fazem, Sim, podemos pôr tudo dentro das páginas de um livro, todas as coisas que não existem, concordou ele, desde que sejam verdadeiras. Olha, repara, acrescentou, há um mocho pousado naquele ramo. Lars correu para lhe ir ladrar. O mocho abriu as asas e voou para outra árvore. Continuámos a caminhar e cruzámo-nos, na estrada poeirenta, com o padre e a menina loura, que vinham de mãos dadas. Ela sorriu-me e eu devolvi-lhe o sorriso. Elias ficara para trás, o velho conhecia a ilha de ginjeira e perdia-se nos vales, nas escarpas, nos recantos mais sórdidos. Algum tempo depois, chegámos ao fim da terra, ao topo de uma elevação que descia, em penhasco, na direcção do mar. Ao longe vimos uma baleia, o dorso glorioso sulcando a água tão fria, e aproveitámos, naquele fim de tarde sem chuva, o abrigo e a sombra de um carvalho, e depois eu reparei na flor solitária à beira da escarpa, era uma florzinha amarela, tímida e frouxa, sobravam poucas pétalas, não sobreviveria muito mais tempo, e ofereci-lhe o calor das minhas mãos, e disse, Sim, estou aqui, sim, enquanto o cão e o professor adormeciam junto do tronco da árvore, um homem nasce, faz um caminho enorme e depois, ao chegar ao fim, há o quê?, o mar, o sono e as horas que cessam, uma a uma, iguais aos dias, contados desde o princípio do tempo.

Quando o Inverno vier estarei longe, junto das auroras boreais ou, como também lhes chamam, as luzes do Norte. É bom ter esperança, saber que a vida trará coisas novas, inauditas. Por enquanto, ainda estou aqui, nesta ilha infértil, algo rasa, onde os habitantes vivem cada dia numa inglória quietude. Nada nascerá neste solo, este é o lugar onde as pessoas vêm para morrer.

Tenho sonhado com Cecilia todas as noites. Prefiro chamar-lhe assim, o seu nome original, o primeiro que teve. Vejo-a tão claramente nos meus sonhos, deitada num sofá, de cuecas, a fumar um cigarro, o olhar condescendente abarcando um cenário que não pode ser verdadeiro, mas que é mais do que imaginação. Consigo cheirar o cabedal gasto do sofá, a Primavera que entra pela janela, saboreio o doce de um pêssego que ela ainda morde, a adolescente perfeita, figura irredimível da juventude do professor, para sempre jovem, eternamente viva, porque morta. Acordada, imagino também o futuro do meu querido Matias. Fantasio o momento em que ele baterá à porta da casa onde cresceu e o reencontro com os olhos compassivos da sua irmã, a ligeira hesitação no patamar das escadas, depois um abraço desajeitado devido aos anos de atraso, e não sou capaz de chegar mais longe do que isto, consigo ver a porta a fechar-se mesmo no momento em que Matias, o Segundo, oferece um aperto de mão reticente a Matias, o Primeiro, e depois mais nada, o silêncio do pátio, talvez alguma neve a cair sobre o meu olhar de curiosa desconhecida perante o nobre espectáculo da humanidade resgatada.

Uma noite, depois do jantar, apeteceu-me chorar. Saí de casa e pus-me a caminhar pela vila, cruzei-me com o taberneiro, disse-lhe Olá, e fui sentar-me numa rocha e deixei que as lágrimas caíssem à vontade. Há quanto tempo estávamos naquela ilha? Tantos dias. Semanas. Talvez quase um mês. O alemão apareceu, negociámos, decidimos ficar um pouco mais do que o previsto. E os dias tornaram-se mornos, mais amenos, e penosos nos seus prolongados vazios. Durante as horas de luz, Matias vai ao farol. Nunca mais fui com ele nem me interessa saber o que fazem por lá, mas suspeito que ele e o faroleiro digam pouco um ao outro, que careçam de palavras, que se sentem em silêncio e contemplem o vazio, a impermanência e a finitude. Eu passo o dia com Elias e, de tanto estar com o velho, começo a afeiçoar-me a ele. Talvez, no fundo, eu tenha coração de velha. É nisto que penso enquanto ajusto as nádegas às saliências desta magnífica rocha que encima um penedo do qual consigo vislumbrar uma larga extensão de horizonte, o farol e, mais além, a solidão do mar. Passámos a semana toda, eu e Elias, a apanhar conchinhas na areia, depois interessámo-nos pelos moluscos, nos últimos dois dias enchemos um balde de lapas e de conquilhas e depois eu cozinhei-as ao vapor e fizemos uma refeição maravilhosa, só faltou o vinho branco, mas na ilha ninguém bebe vinho, por isso eu bebi água e os homens beberam whisky. No final da refeição, o professor permitiu que Elias fumasse um cigarro. O velho quase deu pulos de contente, não sei como é que ele encontra a boca por baixo de tanta barba, mas foi vê-lo a sugar o fumo com a voracidade de um homem faminto. Quase no final, deixou cair a beata no colo, ia pegando fogo à roupa. Ia dus, exaltou-se o professor, numa língua que eu desconhecia. Klapfa, exclamou, klapfa, enquanto apagava o cigarro no cinzeiro. Está na altura de voltar para casa, é o que penso enquanto me separo da rocha. Chorei o suficiente, o meu rosto é de novo uma toalha de tranquilidade e posso finalmente dormir.

Nas duas noites antes de partir, dormi com os dois homens. Não me envergonho de o ter feito. Afinal, sou uma mulher e sei do que preciso, aquilo que me dá prazer, as coisas para as quais estou disponível. Não foi um pedido do professor, ele nunca mo pediria, mas talvez o tenha sugerido ou, quem sabe, eu tenha sentido que Elias, por demais envelhecido e insano, acolheria de bom grado um corpo feminino ao seu lado. A verdade é que, olhando para ele, imaginando-o sem barba e aquele cabelo de maluco, com outras roupas, trinta anos mais jovem, adivinhei um homem bonito. Matias veio ter comigo a meio da tarde. Eu estava à porta de casa a pendurar a roupa acabada de lavar, incluindo a camisa de flanela aos quadrados. Ele vinha do farol, sentou-se no diminuto muro que circundava o nosso jardinzinho fronteiro de ervas daninhas e confessou que o afligia não saber dar algum consolo ao tio, permanentemente preso naquela espécie de loucura. Foi essa a palavra que usou, consolo, e eu, que era fustigada pelo vento e pelo lençol azul-claro que ribombava contra o meu corpo, decidi imediatamente que procuraria cumprir essa difícil tarefa. Nessa mesma noite, o velho deitou-se numa das camas do andar superior e eu fui ter com ele, deitei-me ao seu lado, ele despertou, teve medo de mim, encolheu-se num dos lados da cama, voltado para a parede, dobrou as pernas e anichou-se como uma criança com medo, levei muito tempo a afagá-lo, a passar-lhe a mão pelo tronco, tinha a pele seca e murcha, os ombros eram como os ombros dos velhos, descaídos, informes, e todo ele cheirava mal, a velhice, a algo pútrido. Pensei, enquanto o acariciava, no professor deitado no sofá do andar de baixo, de olhos abertos, contemplando o futuro, os segundos seguintes, os minutos, as horas, e também o esquecimento que este traria, enquanto alcancei, com a mão, o pénis meio erecto de Elias, ele produziu um som, qualquer coisa parecida com um lamento, a resistência era enorme, tentei mover-me para ficar em cima dele e sentar-me no seu membro, mas desisti, o velho estava apavorado, e isso deixou-me triste, mas relembrei a tarefa e massajei-lhe o pénis devagarinho até sentir um tremor no lado esquerdo do seu corpo e a minha mão a ficar molhada e quente, nisto o ratinho Elefante apareceu de lado nenhum e trepou pelo meu braço, embrenhou-se por momentos no meu cabelo e, depois, como se tivesse encontrado alguma coisa perdida, tornou a deslizar com a sua destreza de roedor para dentro dos lençóis e da escuridão dos ossos, da idade, do sémen moribundo. Elias adormeceu logo, consolado. Ouvi-o ressonar e levantei-me, fui para a outra cama, naqueles dias na ilha já tinha dormido em todos os lugares, era como se, naquela casa, não houvesse serventia de coisa nenhuma, tudo servisse para tudo, não dormíamos em camas, dormíamos nos sentimentos, e os sonos pareciam intermináveis e dotados de uma merecida crueldade. Na noite que se seguiu, dormi com o professor mas passei as últimas horas acordada, na praia, observando a lentidão exasperante das marés, acometida de uma enorme ansiedade que me roía os tornozelos e os pulsos, os minutos não passavam e eu precisava de sair dali, o primeiro ferry chegaria quando a aurora lentamente transitasse para a manhã.

As águas chapinham na amurada do barco, tenho o rosto aberto ao vento, o cabelo dança atrás de mim como uma toalha cansada. O professor, Elias e o cão vieram ao pontão despedir-se. Já estavam acordados quando eu entrei em casa, sorrateira, para ir buscar a minha mochila. Não lhes disse que ia partir, mas, nesta estranha comunhão, ao fim de algum tempo, não são necessárias palavras. Sabemo-nos tão bem, adivinhamos os passos uns dos outros, são os mesmos que os nossos, em momentos diferentes. Caminhámos em silêncio até ao lugar de embarque, não vimos ninguém, sobre a madeira do cais havia apenas um homem em pé, que aguardava também a chegada do barco. Abraçámo-nos, exaustos, o sono é um martírio quando o negamos, e depois eu entrei no ferry, aliviada e contente, o único final feliz para esta história era este, eu seguir o meu caminho deixando para trás aquelas criaturas que parecem pertencer a uma fábula, duas figuras traçadas a giz na ardósia da minha memória, que o tempo e a necessidade transformará em pó. Precisamos, como disse um poeta, de ter paciência com tudo o que está por resolver nos nossos corações, de tentar amar as perguntas como se fossem livros escritos numa língua desconhecida, abraçar a inquietação como o território onde a nossa vida se desmultiplicará para, um dia, se unir em torno de uma resposta, à semelhança de uma família novamente reunida. Levo com a água no rosto, o sal morde-me a pele. O mar está agitado, o ferry desbrava as águas com a fragilidade de uma barcaça perante o rugir deste enorme oceano, só há cinco ou seis pessoas a bordo, mais o tripulante, um homem robusto de pele descarnada e olhos azuis que, lá em cima, nos manobra. O convés cheira a algas e a suor e dou por mim a pensar que, um dia, talvez Cecilia faça também esta viagem à ilha desconhecida e, como o seu irmão, se disponha a libertar-se de todas as coisas que cruelmente nos prendem à vida. Afinal, foi por ela que aqui viemos, uma só pessoa pode mudar o rumo de muitos caminhos. Busco refúgio no convés interior e, deixando o rosto encostar-se à janela, vou fechando os olhos e permitindo que o sono vença sobre o doce fragor da maresia, e penso, antes do grande silêncio, que talvez o propósito da vida seja este, largarmos a vida, renunciarmos ao propósito, deixarmos que o esquecimento vença, que a memória esqueça, para que, quando o final, inelutavelmente, chegar, tudo mergulhe numa abençoada vertigem e um sorriso trocista assome aos nossos lábios e possamos saber, finalmente, que se esgotaram as existências, que tudo é sagrado, o que foi feito foi feito, nada a pôr, nada a tirar, e será então que poderemos, finalmente, acolher a imundície humana e a insuportável beleza deste mundo como acolhemos o cálice de uma flor que sabemos morta de antemão, mas que sangra, porque está viva, porque está morta, porque está viva.