O jacobinismo é uma categoria histórico-interpretativa de primeira importância para o G. dos Q, nos quais mantém uma marca positiva, ao passo que o jovem G., ao contrário, foi um crítico severo do fenômeno jacobino, identificando nele um modo absolutamente burguês de fazer política. Em um escrito de 28 de julho de 1917, “I massimalisti russi” [Os maximalistas russos], G. afirmava peremptoriamente: “na Rússia não existem jacobinos” (CF, 266 [EP, 1, 104]). Após essa inicial aversão, G. mudará de ideia. O ponto de virada virá com a leitura do ensaio “Le Bolchévisme et le Jacobinisme”, do historiador francês Albert Mathiez, que G. faz traduzir e publicar em fascículos em L’Ordine Nuovo em 1921. Parece ser esse o momento em que amadurece um aprofundamento histórico do fenômeno jacobino e ao mesmo tempo uma sua releitura ideologicamente mais favorável. O ensaio de Mathiez é inteiramente baseado na analogia entre a república jacobina e a revolução bolchevique. É evidente que G. sofre a sugestão da interpretação do historiador francês, na qual jacobinismo e bolchevismo constituem um único “mito”. Assim, nos Q o jacobinismo – transformado por G. em uma categoria histórico-interpretativa fundamental – apresenta uma consistência que ultrapassa a de um fenômeno histórico concreto, embora ele alerte para ter cuidado com uma leitura des-historicizada, que separa o fenômeno do tempo e do lugar, reduzindo-o a “fórmulas”: obter-se-ia desse modo apenas “um espectro”, “vãs e inertes palavras” (Q 1, 48, 61).
G. observa que o termo “jacobino” acabou por assumir dois significados: o de um partido específico da Revolução Francesa, com um determinado programa e que exerceu sua ação de partido e de governo com um método “caracterizado por uma extrema energia”; outro, sucessivo, que chamou de “jacobino” o homem político enérgico e resoluto, porque fanaticamente convencido das virtudes taumatúrgicas de suas ideias, quaisquer que elas fossem (Q 19, 24, 2.017 [CC, 5, 62]). Tentando estabelecer a natureza e o papel do Partido de Ação no Risorgimento italiano, em uma contínua comparação com a ação – vitoriosa e hegemônica – do partido moderado de inspiração cavouriana, G. observa que o Partido de Ação carecia da capacidade de exercer uma “atração espontânea” – para tal fim deveria ter “imprimido ao movimento do Risorgimento um caráter mais acentuadamente popular e democrático” (ibidem, 2.013 [CC, 5, 65]). G. afirma que ao Partido de Ação “faltou precisamente um programa concreto de governo”; além disso, confundia a unidade cultural existente na península “com a unidade política e territorial das grandes massas populares, que eram alheias àquela tradição” (ibidem, 2.014 [CC, 5, 66]). São bem conhecidos os severos juízos de G. sobre o partido mazziniano e sobre as fortíssimas carências de sua ação política. G. pensa que se pode fazer uma comparação entre os jacobinos e o Partido de Ação. Os jacobinos “lutaram tenazmente para assegurar uma ligação entre cidade e campo e saíram-se vitoriosamente”. Na literatura política francesa a necessidade de vincular a cidade (Paris) ao campo sempre foi vivamente sentida; na história da península, o Partido de Ação tinha uma tradição com a qual se vincular, já que “a história das comunas é rica de experiência a propósito”. Justamente “o mais clássico mestre de arte política dos grupos dirigentes italianos”, Maquiavel, “também havia formulado o problema, naturalmente nos termos e com as preocupações de seu tempo” (ibidem, 2.014-5 [CC, 5, 67]).
Ao interrogar-se sobre o porquê das fracassadas tentativas de suscitar na Itália uma “vontade coletiva nacional-popular”, G. identifica a razão disso na afirmação de uma forma de sociedade “econômico-corporativa”, isto é, “a pior das formas de sociedade feudal, a forma menos progressista e mais estacionária: nunca se formou, e não poderia formar-se, uma força jacobina eficiente”, exatamente a força que nas outras nações “criou e organizou a vontade coletiva nacional-popular e fundou os Estados modernos”. Toda formação de vontade coletiva nacional-popular segundo G. é impossível se falta a irrupção das grandes massas de camponeses cultivadores simultaneamente na vida política: isso entendia Maquiavel por meio da reforma da milícia, isso foi o que os jacobinos fizeram na Revolução Francesa, nisso deve ser identificado um “jacobinismo precoce” de Maquiavel, “o germe (mais ou menos fecundo) de sua concepção da revolução nacional” (Q 13, 1, 1.559-60 [CC, 3, 17-8]). Jacobinismo e maquiavelismo estão unidos pela capacidade de colocar de modo radical o problema da revolução camponesa e pelo fato de ambos serem expressão de uma vontade coletiva que objetivava fundar um novo tipo de Estado. Essa consideração positiva do jacobinismo induz G. a deslizar sobre o problema do uso do terror, ou até mesmo a legitimá-lo: “O Terceiro Estado cairia nestas ‘armadilhas’ sucessivas sem a ação enérgica dos jacobinos, que se opõem a qualquer ‘parada’ intermediária do processo revolucionário e mandam à guilhotina não só os elementos da velha sociedade, que resiste até morrer, mas também os revolucionários de ontem, hoje tornados reacionários” (Q 19, 24, 2.028 [CC, 5, 79-80]).
Prosseguindo em sua análise sobre a atuação do Partido de Ação, à luz do jacobinismo (ou melhor, da ausência de jacobinismo), G. observa que “os jacobinos conquistaram, com uma luta sem tréguas, sua função de partido dirigente”; na realidade eles se “impuseram” à burguesia francesa, conduzindo-a para uma posição muito mais avançada dos que os núcleos burgueses originariamente mais fortes gostariam “espontaneamente” de ocupar. Esse traço, característico do jacobinismo (e antes também de Cromwell e das “cabeças redondas”), consiste em forçar a situação criando “irremediáveis fatos consumados, empurrando para frente os burgueses a pontapé no traseiro desferidos por um grupo de homens extremamente enérgicos e resolutos”. G. nega também que os jacobinos tenham sido “abstratos”: eles foram, ao invés, “realistas como Maquiavel”, convencidos da “absoluta verdade” das fórmulas sobre igualdade, fraternidade, liberdade, assim como de tais verdades estavam convencidas “as massas populares que os jacobinos mobilizavam e levavam à luta”; sua linguagem, ideologia, métodos de ação “refletiam perfeitamente as exigências da época” (ibidem, 2.027-8 [CC, 5, 79-80]). Em seguida, G. institui uma clara relação entre o jacobinismo francês e a cultura fisiocrática: um seria “inexplicável” sem o outro, “com sua demonstração da importância econômica do cultivador direto”, mesmo que não pareça correto afirmar que os fisiocratas “tenham representado meros interesses agrícolas”, já que eles representam “uma sociedade futura bem mais complexa do que aquela contra a qual combatem e até do que aquela que resulta imediatamente de suas afirmações” (Q 13, 13, 1.575-6 [CC, 3, 33]). Além disso, para quem, do ponto de vista de um historicismo moderado considera “irracional” o jacobinismo (considerado como “anti-história”), G. opõe a consideração pela qual “nem Napoleão nem a restauração destruíram os ‘fatos consumados’ dos jacobinos” (Q 10 II, 41.XIV, 1.326 [CC, 1, 361]).
De qualquer modo, é necessário que se tenha uma visão adequada dos jacobinos e de sua política, compreendendo a importância absoluta de sua política agrária, sem a qual “Paris teria tido a Vendeia em suas portas” (Q 19, 24, 2.029 [CC, 5, 81]): os girondinos tentaram, sem conseguir, “se apoiar no federalismo para esmagar a Paris jacobina”, ao passo que para os jacobinos valia a fórmula da “república, uma e indivisível” e a “política de centralização burocrático-militar” às quais eles “não podiam renunciar sem se suicidar”. A questão agrária prevaleceu sobre as aspirações à autonomia local: a França rural “aceitou a hegemonia de Paris”, isto é, compreendeu que para destruir o antigo regime “devia se aliar aos elementos mais avançados do Terceiro Estado e não aos moderados girondinos” (idem). Se é verdade que os jacobinos “forçaram a mão”, isso ocorreu sempre “no sentido do desenvolvimento histórico real”; eles cumpriram uma obra fundamental, à qual somente sua adesão de classe colocou um limite insuperável: tornando a burguesia classe nacional dirigente, hegemônica, eles “criaram a compacta nação moderna francesa” (idem).
Encerrando a comparação entre os jacobinos e o partido mazziniano G. afirma: “No Partido de Ação não se encontra nada que se assemelhe com esta orientação jacobina, com esta inflexível vontade de se tornar partido dirigente”. A severidade do juízo é atenuada pela observação de que, “por certo, é preciso considerar as diferenças” tratando-se na Itália de lutar contra a “ordem internacional vigente e contra uma potência estrangeira”, a Áustria, que ocupava uma parte da península, controlando o restante. Mas G. põe mais lenha na fogueira em suas críticas ao Partido de Ação, observando que “os jacobinos souberam tirar elementos da ameaça externa para uma maior energia, internamente: eles compreenderam bem que, para vencer o inimigo externo, deviam esmagar internamente seus aliados e não hesitaram em realizar os massacres de setembro”. Na Itália, o vínculo que existia entre a Áustria e uma parte da burguesia e da nobreza italianas não foi denunciado pelo Partido de Ação, ou ao menos não foi denunciado com a devida energia (ibidem, 2.030 [CC, 5, 82]). Atenuando apenas a dureza de suas considerações, G. afirma que se na Itália não se formou um partido jacobino, as razões devem ser “buscadas no campo econômico, isto é, na relativa fraqueza da burguesia italiana e no clima histórico diferente da Europa após 1815” (ibidem, 2.032 [CC, 5, 83]).
Além disso, no que diz respeito à presença de “jacobinos”, ou apoiadores do jacobinismo na Itália, G. observa que “geralmente são bastante maltratados” nos livros e nos artigos de divulgação e deles sabe-se “bastante pouco” (Q 2, 106, 253 [CC, 5, 197]). Trata-se, de qualquer modo, de uma pequena tropa: Pisacane, que foi um dos poucos que sentiu a ausência, no Risorgimento, de um “fermento ‘jacobino’”, não foi jacobino “assim como era necessário à Itália” (Q 15, 76, 1.834 [CC, 5, 336]); Crispi, como vimos, foi “jacobino” somente no sentido de ser homem político resoluto: era um “temperamento jacobino”, mas não tinha um programa que pudesse ser comparado com os dos jacobinos e nem “a feroz intransigência”. A debilidade de Crispi, observa ainda G., foi de se ter vinculado estreitamente ao grupo setentrional “sofrendo a chantagem” e de ter sistematicamente sacrificado o Meridione, “isto é, os camponeses”, de não ter ousado, como os jacobinos, pospor aos interesses corporativos do grupo dirigente os da “classe futura”; ele é, assim, um “termidoriano preventivo” (Q 6, 89, 765-6 [CC, 5, 252]); sua “obsessão” jacobina mais nobre foi a unidade político-territorial do país” (Q 19, 24, 2.017 [CC, 5, 62]). O único que não somente não sentiu a ausência de um jacobinismo italiano, mas se manifestou como “um autêntico jacobino, pelo menos teoricamente e na situação italiana dada”, foi Gioberti, que, como observa G. após 1848, no Rinnovamento, mostra compreender as duras necessidades históricas que impulsionaram os jacobinos franceses a estender sua “selvagem energia”; além disso, no autor do Primato poder-se-ia encontrar, ainda que “vagamente”, “o conceito de ‘popular-nacional’ jacobino”, isto é, da aliança entre burgueses-intelectuais e povo (Q 17, 9, 1.914-5 [CC, 5, 342]).
Refletindo sobre o fenômeno jacobino, G. ocupa-se também das causas de seu declínio: considera que os jacobinos, com sua oposição a reconhecer aos operários o direito de coalizão, romperam o “bloco urbano” de Paris; assim, suas “forças de assalto”, que se agrupavam na cidade, “se dispersaram, desiludidas, e o Termidor prevaleceu” (Q 19, 24, 2.030 [CC, 5, 81]). A centralidade da noção de jacobinismo torna-se evidente também pela afirmação de que “o moderno Príncipe deve ter uma parte dedicada ao jacobinismo”: e essa retomada do jacobinismo deve ocorrer “no significado integral que esta noção teve historicamente e que deve ter conceitualmente” (Q 13, 1, 1.559 [CC, 3, 17]). Assim, G. estigmatiza tanto o “medo do jacobinismo” (ibidem, 1.560 [CC, 3, 18]) típico, por exemplo, de Croce, como a “aversão” presente em Sorel, que assume as formas de uma “repugnância ética”; uma atitude que segundo G. deriva de Proudhon, que em um escrito seu havia definido os jacobinos como “os jesuítas da revolução” (Q 5, 80, 611 [CC, 3, 210]). Esse “anti-jacobinismo” de Sorel é definido por G. como “sectário, mesquinho, anti-histórico” (Q 11, 66, 1.498 [CC, 1, 210]).
Ao analisar as causas da derrota jacobina, G. observa que a incursão no terreno das crenças religiosas contribuiu para rachar a unidade da frente filojacobina nos campos; análoga fraqueza introduzirão no Partido de Ação as “veleidades mazzinianas” de reforma religiosa. O exemplo da Revolução Francesa demostrava que os jacobinos, que haviam conseguido esmagar todos os partidos de direita no terreno da questão agrária, “foram prejudicados pelas tentativas de Robespierre de instaurar uma reforma religiosa, que, no entanto, tinha um significado e uma concretude imediata” (Q 19, 26, 2.046 [CC, 5, 98]). A instituição do culto do Ser Supremo foi uma tentativa “de unificar ditatorialmente os elementos constitutivos do Estado em sentido orgânico”, numa “desesperada tentativa” de manter sob controle toda a vida popular e nacional, mas aparece também como a primeira raiz do moderno Estado laico, independente da Igreja, que encontra em si mesmo “todos os elementos de sua personalidade histórica” (Q 6, 87, 763 [CC, 3, 244]).
Assim como com outros conceitos gramscianos, o jacobinismo também se revela metáfora, imagem (não do homem político firme, mas da vontade coletiva popular-nacional): liga-se à ideia do “príncipe”, já que G. afirma que os jacobinos foram “encarnação categórica” do príncipe maquiavélico (Q 13, 1, 1.559 [CC, 3, 13]), que por sua vez “representa plástica e ‘antropomorficamente’ o símbolo da ‘vontade coletiva’” (ibidem, 1.555 [CC, 3, 13]). Deve, portanto, ser evidenciada essa valência teórico-política que o conceito de jacobinismo assume na elaboração de G. Finalmente, o autor dos Q ressalta, do jacobinismo, tanto o “limite” de classe como alguns aspectos degenerativos, que preludiam ao “bizantinismo francês”, que consistiria em uma particular característica da tradição cultural francesa, que, após a revolução, rapidamente degenerou em “uma nova Bizâncio cultural”, revelando a intenção de dar “forma perfeita e estável às inovações que atua”. Os elementos de tal degeneração, por outro lado, estavam já presentes e ativos “durante o desenvolvimento do grande drama revolucionário”, nos próprios jacobinos “que o encarnaram com maior energia e plenitude” (Q 10 II, 19, 1.256-7 [CC, 1, 327]).
Bibliografia: Coutinho, 2006; Gervasoni, 1998; Mastellone, 1997; Medici, 2004; Salvadori, Transfaglia, 1984.
Rita Medici
Ver: Action Française; cidade-campo; Crispi; Gioberti; Maquiavel; moderno Príncipe; nacional-popular; Partido de Ação; Revolução Francesa; revolução passiva; Risorgimento; Sorel; vontade coletiva.
Segundo as fontes de G., são de origem chinesa tanto alguns aspectos da cultura japonesa, incluindo a filosofia, quanto a religião budista, que conservava a “língua chinesa para a liturgia” (comparável com o uso do latim e do grego no cristianismo); todavia, tais formas culturais adaptaram-se às condições nacionais (Q 5, 50, 581 [CC, 2, 117]). De outro lado, a religião indígena, o xintoísmo, dividido entre o xintó de Estado e o das seitas, era de um tipo (nacional – como o culto ao imperador – e politeísta, como o hinduísmo indiano) há muito desaparecido em Ocidente. Uma eventual reforma religiosa teria desembocado na formação de uma consciência laica, com consequências até mesmo políticas (a democracia, o parlamentarismo), uma etapa das quais era a transformação, já em curso, do culto religioso do Mikado em “solenidade civil” (Q 5, 138, 669 [CC, 4, 207]); o êxito almejado era uma reforma intelectual e moral semelhante à realizada pela filosofia clássica alemã (Q 8, 87, 992 [CC, 2, 164]; cf. também Q 5, 138, 669 [CC, 4, 207]). A emergência do Japão como nação moderna estava marcada pela sua crescente atividade diplomática, por meio de acordos entre grandes potências mundiais que reconheciam o fato de o Japão ocupar posições estratégicas em algumas ilhas do Pacífico, ou dominantes em determinados países, incluídos Coreia e China (Q 2, 16, 170-2 [CC, 3, 129]). Contemporaneamente, progredia sua industrialização, que, em função da acumulação autóctone sem grande necessidade de capitais estrangeiros, conduziu a uma enorme expansão no fim do século XIX (Q 19, 7, 1.994 [CC, 5, 44]). O que tornou o Japão, com os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, superior à China “econômica e culturalmente, sobre toda a área social” (Q 5, 23, 558 [CC, 2, 103]). A “civilização industrial” japonesa desenvolveu-se dentro de “um invólucro feudal-burocrático”, com intelectuais semelhantes aos tipos alemães ou ingleses (Q 12, 1, 1.529 [CC, 2, 15]). No fundo desses acontecimentos a hipótese gramsciana é de que o eixo econômico do mundo poderia se deslocar do Atlântico para o Pacífico (Q 2, 78, 242 [CC, 3, 172]).
Muito conhecida e tocante, finalmente, a carta à esposa Giulia, na qual G. recorda a obsessão de um jovem operário pelo “que fará o Japão” como metáfora de sua condição de preso para o qual o mundo dos afetos familiares mais queridos está se tornando algo desconhecido e incognoscível (LC, 221-3, 19 novembro de 1928 [Cartas, I, 300]).
Derek Boothman
Ver: cárcere ou prisão; China; Estados Unidos; Inglaterra.
G. chega ao fenômeno jazzístico para fazer “passar o tempo” à cunhada Tania (numa carta que lhe escreve em 27 de fevereiro de 1928) contando de uma discussão carcerária com um fulano “evangelista, metodista, ou presbiteriano” preocupado (aliás, “indignado”) com o perigo “de um enxerto da idolatria asiática no tronco do cristianismo europeu”. A reflexão gramsciana usa nessa ocasião a técnica do “sarcasmo apaixonado” para opor a esse inconsistente perigo o mais tangível e concreto derivante do “verdadeiro fanatismo” nascido na Europa pelas “jazz-bands”. O que lhe aparece prenhe de consequências ideológicas é o impacto que um fenômeno musical nascente – fundado “sobre repetir continuamente os gestos físicos” e “sobre o ritmo sincopado” – pode ter sobre “milhões e milhões de pessoas, especialmente jovens” (ibidem, 162 [Cartas, I, 238-9]). A jazz-band, escrevia G. em uma precedente carta a Berti (8 de agosto de 1927), representaria portanto “a primeira molécula de uma nova civilização eurafricana” (LC, 104 [Cartas, I, 177]).
É verossímil o fato de que G. participe de um atraso comum a muitos intelectuais coevos para uma nova forma de arte, percebida quase exclusivamente na sua ascendência africana, mas deve ser destacada, de igual maneira, a inteligência com que ele analisa o envolvimento de massas cada vez mais jovens pela “linguagem mais universal hoje existente” (LC, 162, a Tania, 27 de fevereiro de 1928 [Cartas, I, 239]). Nesse caso, o risco é evidentemente de uma simplificação das referências culturais que a música “assimila” “a todo o mundo psíquico”: trata-se claramente de um apêndice da complexa teoria da personalidade que G. desenvolve no cárcere, uma consideração que o leva a observar o fato de que até um “evangelista, metodista ou presbiteriano” pode inconscientemente se tornar incapaz de renunciar “ao café com acompanhamento de jazz” (ibidem, 161-2 [Cartas, I, 239]).
Alessandro Errico
Ver: ideologia; linguagem; música; personalidade; sarcasmo apaixonado.
As numerosas recorrências nos Q do lema “jesuíta” e dos seus derivados (cerca de 300), o inteiro Q 20 (1934-1935), dedicado a Ação católica-católicos integrais-jesuítas-modernistas e a frequência das notas espalhadas, ao longo da inteira obra carcerária, intituladas “Católicos integrais-jesuítas-modernistas” deixam entender a importância que G. atribui às questões que aqui analisamos. Sem dúvida as referências aos jesuítas nos Q e as conotações irônicas e sarcásticas com as quais o próprio G. acena revelam a escassa simpatia que o autor nutre pela Companhia de Jesus. As caraterísticas mais frequentes atribuídas ao jesuíta são – privilegiando aqui os Textos A – o ser “enfadonho” (Q 1, 44, 53), promotor de “hipocrisia social” (Q 1, 90, 247 [CC, 2, 61]), “semifeudal” (Q 3, 5, 290 [CC, 4, 291]), “caviloso” (Q 5, 101, 630 [CC, 6, 176]), de “forma mesquinha e intolerante” (Q 3, 57, 337), apologético (Q 3, 63, 345), autoritário (Q 3, 153, 405), expressão de “velharias de vário gênero e retórica” (Q 4, 5, 426), portador de uma “escola mecânica” (Q 4, 50, 487), melífluo (Q 17, 16, 1.920 [CC, 6, 266]). Os jesuítas adquiriram “enorme poder” (Q 5, 1, 539), disfarçando-se dos que “combatiam Maquiavel mesmo aplicando seus princípios” (Q 4, 3, 422). Eles são a expressão de um cristianismo da Contrarreforma e “a Contrarreforma esterilizou este pulular de forças populares: a Companhia de Jesus é a última grande ordem religiosa, de origem reacionária e autoritária, com caráter repressivo e ‘diplomático’, que assinalou, com seu nascimento, endurecimento do organismo católico [...]” (Q 11, 12, 1.384 [CC, 1, 102]).
Deve ser levado em consideração que o substantivo “jesuitismo”, o adjetivo “jesuítico” e o advérbio “jesuiticamente”, muito frequentes nos Q, são sempre usados para designar algo desprezível e melífluo (cf. Q 23, 36, 2.232 [CC, 6, 106]). Daqui as expressões “jesuitismo literário” (por exemplo, Q 2, 91, 249 [CC, 3, 172]; Q 3, 13, 299; Q 3, 38, 315): “jesuítico” indica essencialmente “um conformismo artificial, fictício” (Q 14, 61, 1.719 [CC, 6, 248]), que esteriliza o espírito popular por meio do “paternalismo” para os simples (Q 11, 12, 1.381 [CC, 1, 93] e Q 23, 51, 2.245-6 [CC, 6, 119]), emprega astúcia, diplomacia, demagogia (Q 8, 104, 1.002 [CC, 6, 216]). Mas significa também moral “mercantil” (Q 16, 10, 1.864 [CC, 4, 41]), “baixeza moral” (Q 5, 66, 602 [CC, 6, 171]), hipocrisia (Q 9, 11, 1.103), e por isso, “em nossos países [...] o cristianismo [...] tornou-se jesuitismo, isto é, uma grande hipocrisia social” (Q 2, 90, 247 [CC, 2, 67]). Muitas dessas características manifestaram-se durante o Risorgimento italiano, quando os jesuítas tomaram posições a favor da Áustria (Q 7, 98, 925 [CC, 4, 223]), antipatrióticas (Q 19, 50, 2.070 [CC, 5, 119]), “tendências reacionárias na interpretação do Risorgimento” (Q 9, 113, 1.180).
Tendo a tarefa de guardiões da ortodoxia (Q 14, 26, 1.684 [CC, 2, 182]), os jesuítas seguem e impõem uma disciplina militar e uma obediência perinde ac cadaver (Q 8, 45, 968 [CC, 3, 273]). Na luta pela hegemonia eles se colocam prevalentemente no campo intelectual, ideológico e cultural, buscando “eliminar os contrastes [...] entre religião e ciência” (Q 7, 1, 853) e “absorver o positivismo” (Q 7, 47, 894) sem cair no modernismo. De fato, ao traduzir “para o homem moderno na terminologia da filosofia moderna” os dogmas da Igreja (Q 10 II, 28, 1.266 [CC, 1, 335]), procuraram a forma mais eficaz para combater a filosofia moderna e o modernismo. Dessa maneira, buscam a “conquista do mercado cultural por parte do catolicismo; e sua atividade tem como objetivo assegurar ao Vaticano aquele poder indireto sobre a sociedade e sobre o Estado, que é o objetivo estratégico essencial dos jesuítas” (Q 9, 31, 1.115 [CC, 4, 230]), que assim se tornam defensores dos “direitos da Igreja e do poder católico contra o poder laico [...] contra o liberalismo que queria a separação da Igreja do Estado” (Q 2, 13, 165 [CC, 5, 172]). E mesmo que se apresentem como os que assumem uma posição equilibrada na luta contra os extremismos dos católicos integralistas e modernistas, para além das aparências, G. nota que “modernismo, jesuitismo e integralismo, todos eles têm significados mais amplos do que os estreitamente religiosos: são ‘partidos’ no ‘império absoluto internacional’ que é a Igreja Romana. E não podem deixar de pôr sob forma religiosa problemas que muitas vezes são puramente mundanos, de ‘domínio’” (Q 14, 52, 1.712 [CC, 4, 233]). Explica-se então porque os jesuítas se dedicam à expansão da Igreja em regiões estratégicas como a China, o Japão, os Estados Unidos e a América do Sul. Representam, com isso, a expressão mais clara do projeto de neocristianismo promovido pela Igreja no mundo inteiro em resposta às propostas revolucionárias introduzidas pela Reforma: “O jesuitismo, com seu culto do papa e a organização de um império espiritual absoluto, é a fase mais recente do cristianismo católico” (Q 23, 37, 2.233 [CC, 6, 108]).
Com suas contradições, na América do Sul também “o jesuitismo [...] serve como meio de governo para manter no poder as pequenas oligarquias tradicionais, que, por isso, travam apenas uma luta branda e débil” (Q 1, 107, 98 [CC, 4, 178]), ao passo que procurou tornar a missão no Paraguai um símbolo da utopia cristã. Na realidade, a experiência do “Estado jesuíta do Paraguai” é ligada “ao velho protecionismo [...]. Poder-se-ia aplicar a eles o juízo de Croce sobre o Estado do Paraguai: ou seja, que se trata de um modo para uma sábia exploração capitalista nas novas condições que tornam impossível (pelo menos em todos os seus desdobramentos e extensão) a política econômica liberal” (Q 7, 91, 920 [CC, 4, 307]).
Giovanni Semeraro
Ver: Estado; Igreja católica; liberais/liberalismo; modernismo; religião.
Antes de se tornar dirigente em tempo integral do Partido Comunista, G. foi jornalista militante, trabalhando para a imprensa socialista, escrevendo para o Grido del Popolo e L’Avanti, fundando em 1919 L’Ordine Nuovo (e depois, em 1923-1924, L’Unità). Antes e depois de sua atividade jornalística G. foi um formidável leitor de jornais e revistas (La Voce, de Papini e Prezzolini, L’Unità, de Salvemini, Critica, de Croce), desde os anos dos estudos na Sardenha, onde tinha dado os primeiros passos no mundo do jornalismo como jovem correspondente da Unione Sarda. Seu interesse pelos jornais e pelo jornalismo nunca diminuiu, como mostra a dura polêmica, pouco antes da prisão, com os jornalistas de L’Unità, acusados também de escasso profissionalismo (L, 448-9 e 476-7). Em uma carta do cárcere à cunhada Tania, G. recorda: “Em dez anos de jornalismo escrevi linhas suficientes para encher quinze ou vinte volumes de quatrocentas páginas”, acrescentando – com muita severidade – que “eram escritas no dia a dia e, a meu ver, deviam morrer no fim do dia” (LC, 457, a Tatiana, 7 de setembro de 1931 [Cartas, II, 83]).
Nos Q o interesse pelo jornalismo está amplamente presente. Desde a primeira lista de temas sobre os quais concentra o estudo e a reflexão, que abre o Q 1, lê-se no ponto 14 “Tipos de revistas: teórica, crítico-histórica, de cultura geral (divulgação)” (Q 1, p. 5 [CC, 1, 79]), que se torna nos “Agrupamentos de matéria” no início do Q 8, no ponto 10, “Apontamentos sobre o jornalismo” (Q 8, p. 936 [CC, 1, 80]). O Q 24 (um “caderno especial” de 1934) intitula-se Jornalismo. É composto por nove Textos C, cujos respectivos Textos A encontram-se disseminados nos Q 1, Q 3, Q 8; nem todas as notas sobre “tipos de revistas” porém, são retomadas.
O jornalismo é visto nos Q, implícita e explicitamente, sob diversas perspectivas, frequentemente entrelaçadas: como modalidade específica de atividade intelectual; como atividade que se remete a um importante aparelho hegemônico, decisivo para a criação do senso comum; como momento da ação do partido revolucionário, que almeja criar novo senso comum (e uma nova hegemonia), permitindo o crescimento intelectual e cultural das camadas subalternas em luta para deixarem de ser subalternas, no modelo – diversas vezes recordado – de atuação dos iluministas, que de fato prepararam, com seus escritos, a Revolução Francesa. O jornalismo em que G. pensa é, portanto, formativo, além de informativo, intrinsecamente político-educativo, mesmo quando parece não se ocupar de argumentos considerados políticos. Ele o define como “integral”, porque “não somente pretende satisfazer todas as necessidades (de uma certa categoria) de seu público, mas pretende também criar e desenvolver estas necessidades e, consequentemente, em certo sentido, gerar seu público e ampliar progressivamente sua área” (Q 24, 1, 2.259 [CC, 2, 197]). G. considera assim, em primeiro lugar, a atividade jornalística como jornalismo militante, direcionado a esse bem definido processo de crescimento político, voltado a “um agrupamento cultural (em sentido lato) mais ou menos homogêneo, de um certo tipo, de um certo nível e, particularmente, com uma certa orientação geral”, sobre o qual “se pretenda apoiar para construir um edifício cultural completo, autárquico, começando precisamente pela... língua, isto é, pelo meio de expressão e de contato recíproco” (idem). É importante notar que esse processo não é concebido por G. como puro doutrinamento, pois ele especifica que no curso de sua atuação “as premissas necessariamente se modificam, já que, se é verdade que uma certa finalidade pressupõe certas premissas, é também verdade que, durante a elaboração real da atividade determinada, as premissas são necessariamente modificadas e transformadas, e a consciência da finalidade – ampliando-se e concretizando-se – reage sobre as premissas ‘adequando-as’ cada vez mais” (idem). Em outros termos, é um processo dialético, no qual se acompanha o crescimento dos “simples”, sem manipulá-los para torná-los puros executores passivos. É por isso que o “jornal de Estado” conjeturado por Napoleão II (Q 6, 65, 734, Texto B [CC, 2, 229]) não lhe parece isento de perigos, ainda que G. esteja disposto a admitir que em uma sociedade em que “o Estado é concebido como ultrapassável pela ‘sociedade regulada’”, ou seja, em uma sociedade socialista que efetivamente luta para por fim à distinção entre dirigentes e dirigidos, o instrumento-jornal pode ter a mesma utilidade que tem a escola.
Compreende-se que – com tal colocação formativa – G. privilegie as revistas em seu discurso sobre o jornalismo integral: “Tipos de revistas” ou “Revistas típicas” é uma rubrica dos Q, um título que G. coloca no início de diversas notas, nas quais estuda a diversa tipologia dos periódicos, conjeturando pelo menos três tipos diversos, voltado a três públicos diversos, desde o mais popular até o intelectual e politicamente mais sofisticado (Q 24, 3, 2.263 [CC, 2, 200-1]). Um “organismo unitário de cultura”, como deveria ser também o próprio partido revolucionário, deveria originar a inteira gama da tipologia identificada, acompanhando-a com “coletâneas de livros”, almanaques, anuários e outros, o todo voltado – no caso do partido revolucionário – ao crescimento intelectual, cultural e político do público ao qual se dirige, objetivando “elaborar, fazer pensar concretamente, transformar, homogeneizar, de acordo com um processo de desenvolvimento orgânico que conduza do simples senso comum ao pensamento coerente e sistemático” (idem). Em todo caso, G. estuda com atenção como agem os órgãos de imprensa de ampla difusão: tendo como fim “modificar a opinião média de uma determinada sociedade, criticando, sugerindo, ironizando, corrigindo, renovando e, em última instância, introduzindo ‘novos lugares comuns’” (Q 24, 4, 2.270 [CC, 2, 208]), eles “devem colocar-se no próprio campo do ‘senso comum’, distanciando-se dele o suficiente para permitir o sorriso de burla, mas não de desprezo ou de altiva superioridade” (ibidem, 2.271 [CC, 2, 209]).
Cada revista deveria, de qualquer maneira, ter “uma orientação intelectual muito unitária e não antológica, isto é, ter uma redação homogênea e disciplinada; portanto, poucos colaboradores ‘principais’ devem escrever o corpo essencial de cada número” (Q 24, 3, 2.263 [CC, 2, 201]). Uma atividade centralizada, então, própria de uma “revista de área”, ou até mesmo – poderíamos dizer – de uma “revista-partido”, que recorde as experiências da Critica crociana, à qual, por outro, lado se faz explícita referência, e também de L’Ordine Nuovo semanal. Para tais revistas, G. indica uma série de rubricas possíveis: “um dicionário enciclopédico político-científico-filosófico” (ibidem, 2.264 [CC, 2, 202]), uma “rubrica de biografias” (ibidem, 2.265 [CC, 2, 203]), uma de “autobiografias político-intelectuais” e, continuando, rubricas de “compilação sistemática de jornais e revistas” (ibidem, 2.266 [CC, 2, 204]), resenhas de livros, bibliografias críticas inerentes à “concepção do mundo” na qual a revista se baseia (ibidem, 2.267 [CC, 2, 205]), sem esquecer-se de dedicar uma atenção específica ao território, à situação regional (ibidem, 2.266 [CC, 2, 208]).
G. entra nos pormenores técnico-profissionais. Por exemplo, com ampla antecipação, propugna a necessidade de “escolas de jornalismo” (Q 24, 9, 2.274 [CC, 2, 211]), detém-se sobre a importância da crônica local como análise sócio-política de alto nível de um determinado território (Q 6, 106, 778-9, Texto B [CC, 2, 235]), analisa criticamente o modo de colocar os títulos (Q 8, 143, 1.029-30, Texto B [CC, 2, 244]), e a crônica judiciária (Q 8, 147, 1.031, Texto B [CC, 2, 244]), convida a não subestimar a importância da “roupa exterior” de diários e periódicos (Q 14, 73, 1.740-2 [CC, 2, 249]), detém-se sobre as resenhas (Q 8, 60, 976, Texto B [CC, 2, 242]), sobre as correspondências estrangeiras (Q 7, 101, 927-8, Texto B [CC, 2, 240]), sobre as resenhas de imprensa (Q 8, 110, 1.005 [CC, 2, 243]), sobre o jornalismo científico (Q 4, 77, 516 [CC, 2, 226]). Não se esquece de analisar a relação com os leitores também do ponto de vista econômico, da difusão e das vendas: “Os leitores devem ser considerados de dois pontos de vista principais: 1) como elementos ideológicos, ‘transformáveis’ filosoficamente, capazes, dúcteis, maleáveis à transformação; 2) como elementos ‘econômicos’, capazes de adquirir as publicações e de fazê-las adquirir por outros. Os dois elementos, na realidade, nem sempre são separáveis, na medida em que o elemento ideológico é um estímulo ao ato econômico da aquisição e da divulgação. Todavia, quando se constrói um plano editorial, é preciso manter a distinção entre os dois aspectos, a fim de que os cálculos sejam realistas e não de acordo com os próprios desejos” (Q 14, 62, 1.721-2 [CC, 2, 246-7]). Finalmente, G. propõe “uma série de ensaios sobre o jornalismo das mais importantes capitais dos Estados do mundo” (Q 16, 4, 1.846-7 [CC, 4, 23]), ulterior prova de como o jornalismo lhe aparece um momento fundamental na obra seja de conhecimento, seja de transformação do mundo moderno.
Guido Liguori
Ver: aparelho hegemônico; concepção do mundo; esporte; hegemonia; ideologia; Iluminismo; intelectuais; Ordine Nuovo (L’); senso comum; sociedade regulada.
São numerosas as menções à questão judaica nos escritos de G., tanto nos Q como nas cartas à cunhada Tatiana, ainda que não se trate nunca de análises sistemáticas. As motivações que originam essas reflexões são multíplices, às vezes são extraídas da imprensa diária, às vezes de acontecimentos internacionais, mas a matéria de reflexão do pensador sardo é a história da Itália, numa época que precede a virada antissemita do fascismo (G. falece um ano antes da promulgação das leis raciais de 1938). Ele refere-se à Itália mesmo quando escreve à esposa ou à cunhada, russas de origem judaica, que sem dúvida tinham uma diferente percepção do problema. As estadias do dirigente comunista italiano em Viena e Moscou puseram-no certamente diante do antissemitismo da Europa central e oriental, mas não até o ponto de mudar seu modo de se aproximar do problema. Em uma carta de 1931 G. realça as figuras antinômicas que tradicionalmente designavam o judeu na Sardenha, o judeu assassino de Cristo e o “piedoso Nicodemos” que conforta Maria por baixo da cruz, mas, “diversamente dos cossacos” – escreve G. – “os sardos [...] não distinguem os judeus dos outros homens” (LC, 480, a Tania, 12 de outubro de 1931 [Cartas, 2, 105]). Reinterpretando a história italiana, mais do que reformulando os escritos canônicos do marxismo clássico sobre a questão judaica (desde o célebre ensaio juvenil de Marx até os textos sucessivos de Kautsky e dos social-democratas russos), G. forjou uma visão do passado e do futuro dos judeus. Já em 1917, em um polêmico artigo de L’Avanti contra um dos porta-vozes da Liga antialemã, o advogado de Turim Cesare Foà, G. recusava com força o nacionalismo e a visão racial da história, esclarecendo a posição socialista em matéria de antissemitismo: “Estamos longe de ser antissemitas. Karl Marx era semita; muitos dos nossos camaradas, e entre eles alguns dos mais ativos e inteligentes, são semitas. Mas o socialismo superou a questão das raças e do sangue” (“Stenterello risponde”, 14 de março de 1917, em CF, 89). Nos Q a ausência de referência ao antissemitismo católico aparece como um tipo de corolário implícito nas amplas reflexões do filósofo sobre a matriz cosmopolita da tradição católica italiana. Algumas tangíveis manifestações de preconceito antissemita de tipo religioso são simplesmente reconduzidas por G., em perfeita sintonia com a literatura socialista da época, às suas raízes socioeconômicas: a hostilidade para uma camada comercial que, em algumas regiões, é a única a praticar a usura. Nas regiões de Casale, Lomellina e Alessandria o antissemitismo era difuso porque “os judeus negociam terras e sempre aparecem quando em uma família sucede alguma ‘desgraça’ e é preciso vender ou quase dar a propriedade”, mas esse tipo de preconceito existiria também em Nápoles – acrescentava G. – se as casas de penhores fossem geridas por judeus e não pelos fiéis de São Genaro. Na Geórgia a mesma fúria popular dirigia-se contra os armênios, uma minoria que nessa parte do Império czarista desenvolvia a mesma função dos judeus no Piemonte ou na Europa central. Por isso, a seu ver, os armênios eram “os ‘judeus’ da Geórgia” (LC, 551, a Tania, 21 de março de 1932 [Cartas, II, 175]).
Em sintonia com a visão marxista clássica da história, G. vê na assimilação o inevitável destino dos judeus. O antissemitismo constitui, a seu ver, um preconceito antigo que disfarça um arcaísmo social sem futuro no mundo moderno. Nos Q o problema da assimilação é analisado pelo comentário a um ensaio do jovem Arnaldo Momigliano, que na realidade é uma resenha de Ebrei a Venezia, do historiador americano Cecil Roth, cuja tradução apareceu em Roma em 1933. Momigliano notava que o processo de assimilação dos judeus italianos era em absoluto contemporâneo ao das diferentes populações regionais do país, desde os piemonteses até os sicilianos. Ele compreendia, portanto, a assimilação judaica, mais do que como produto da integração dos judeus a uma comunidade nacional preexistente, como parte da formação de uma consciência nacional italiana. Esse fato, somado ao atraso da unificação nacional, diferenciava o judaísmo italiano daquele da maior parte dos países europeus, nos quais os judeus haviam sido recebidos, por meio das leis de emancipação, no seio de nações já formadas. G. aceitava plenamente essa análise – coincidente, aliás, com sua visão do cosmopolitismo como elemento caracterizante do inteiro processo de unificação nacional italiana –, percebendo nela a explicação fundamental da ausência de um forte antissemitismo na península (pelo menos em comparação com outros grandes países da Europa continental). Acrescentava o fato de que na Itália a consciência nacional nasceu de uma superação das formas específicas com as quais o feudalismo se havia manifestado: “O particularismo municipal e o cosmopolitismo católico”. A afirmação de um espírito laico e a luta contra o catolicismo contribuíram para a nacionalização dos judeus, e isso significava inevitavelmente um processo de “perda de seu caráter judaico” (Q 15, 41, 1.801 [CC, 5, 324]).
No início da década de 1930 esse processo já estava concluído. Em uma carta a Tatiana de 1931 G. escrevia, com efeito, que “na Itália há tempos não existe antissemitismo” (LC, 472, 28 de setembro de 1931 [Cartas, II, 97]). Tratava-se, a seu ver, de uma simples constatação, fácil de ser comprovada. De um lado, a queda das cercas dos guetos tinha posto fim à endogamia judaica, e os casamentos com os cristãos eram numerosos não somente entre as camadas populares, como também entre os intelectuais e os membros da aristocracia. Do outro lado, os judeus italianos haviam alcançado posições de altíssimo nível no seio do aparelho estatal, a ponto de que já ninguém se surpreendia com a designação de um general ou de um ministro (e até mesmo de um chefe de governo) de ascendência israelítica. “Em que um judeu italiano (excetuada uma pequena minoria de rabinos e tradicionalistas empedernidos) se diferencia de um outro italiano da mesma classe?” perguntava-se G. de forma retórica, fornecendo uma resposta irrepreensível no plano sociológico e cultural: “Se diferencia muito mais de um judeu polonês ou de um judeu galiciano da mesma classe” (idem). Se ainda existiam alguns traços distintivos do hebraísmo, estes não deviam ser reconduzidos a uma suposta essência “racial”, mas a um longo passado de opressão e segregação, perdurado até o século XIX, quando a Revolução Francesa e depois dela os levantes de 1848 haviam generalizado as leis emancipatórias. Uma vez escapado ao preconceito do ambiente circunstante, o judeu havia rapidamente abandonado o judaísmo, passando “ao deísmo puro e simples ou ao ateísmo” (LC, 476, a Tania, 5 de outubro de 1931 [Cartas, II, 101]). Dito de outra maneira, a chegada da modernidade coincidia com a emancipação e a assimilação; os judeus não eram portadores de uma cultura própria, capaz de adaptar-se às condições da sociedade moderna, menos ainda de plasmá-la ou enriquecê-la, mas podiam sobreviver somente como reflexo do arcaísmo antissemita. Essa visão do judeu definido exclusivamente por meio do olhar hostil do antissemita desenha a tese central de um famoso ensaio de Sartre de 1946. Essencialmente, não obstante a originalidade de sua abordagem, G. compartilhava a tendência do marxismo de seu tempo de enxergar no antissemitismo apenas um resíduo obscurantista e não, ao contrário, uma face da modernidade, como o nazismo e – a partir de 1938 – o fascismo revelariam ao mundo.
Enzo Traverso
Ver: cosmopolitismo; dois mundos; fascismo; racismo.