A reflexão sobre a nação – sobre sua estrutura e sua função – se entrelaça, em G., desde os escritos turineses, por um lado, com a análise do posicionamento de forças da burguesia na Itália e comparativamente em outros países, e, por outro lado, com a lógica de potência internacional própria dos Estados, com os relativos reflexos internos e externos (imperialismo e guerra). Porém, a nação não é nunca entendida por G. como um organismo apenas político (e ainda menos “espiritual”, segundo a acepção liberal). Ao contrário, na base dessa análise existe a exploração do entrelaçamento contraditório, mas funcional, entre a forma moderna de organismo político, o Estado-nação, um organismo estável e exclusivo, e a perspectiva móvel e inclusiva – no limite, “mundial” – do mercado capitalista. Essas análises, às vezes políticas e econômicas, se dirigem, por sua vez, a um foco unitário, que é a estratégia da revolução italiana, a avaliação do modo com que a ação política organizada da classe operária pode intervir na história da Itália como fator decisivo do conjunto de suas contradições e da concentração delas no arranjo autoritário do fascismo.
Esse esquema vale para todos os escritos de G. até os Q, sendo que, ao longo do tempo, variam o aprofundamento analítico e os elementos do problema, que, porém, permanece o mesmo. Assim, em agosto de 1919, G. escreve que a “coletividade” é representada pela “nação para os proprietários” e pela “classe para os proletários” (“Operai e contadini” [Operários e camponeses], em ON, 156 [EP, 264]), indicando nessa alternativa a respectiva funcionalidade política de tais formas, com base na colocação social das diversas forças. Nas Teses de Lyon (janeiro de 1926), lê-se: “Já que não controla [...] toda a economia, a classe industrial também não consegue organizar por si só toda a sociedade e o Estado. A construção de um Estado nacional só lhe foi possível porque ela se valeu de fatores de política internacional (o assim chamado Risorgimento). Para o fortalecimento deste Estado e para a sua defesa, é necessário o compromisso com as classes sobre as quais a indústria exerce uma hegemonia limitada, em particular os latifundiários e a pequena burguesia. Disso resultam uma heterogeneidade e uma debilidade de toda a estrutura social, bem como do Estado que a expressa” (CPC, 491 [EP, 2, 323-4]). Uma análise do Risorgimento como reflexo “diplomático” de uma dinâmica internacional avança aqui na conexão da fragilidade da organização nacional do Estado italiano ao caráter parcial e de compromisso da hegemonia industrial-burguesa, com uma clara referência à relação – não resolvida – Norte-Sul e cidade-campo. No citado texto de 1919, G. contrapõe a nação à classe; nos Q, à luz dos desenvolvimentos da teoria da hegemonia, ele distingue, com a mesma função, a “nação” do “povo-nação” (“Nação-povo e nação-retórica poderiam ser consideradas as duas tendências”: Q 3, 82, 362 [CC, 6, 162]). Assume-se, assim, de maneira consciente, o caráter constitutivamente ambivalente da nação, que é trazido para o seio da perspectiva comunista e apropriado por ela. Aliás, também o povo-nação representa um projeto político, uma projeção ideológica, e não uma entidade sociologicamente constatável (como é a classe). Diferentemente da classe, o povo-nação, tido como base para a política do proletariado, não tem uma identidade precisa: designa a construção de uma hegemonia e, portanto, deixa em aberto a questão relativa ao seu grau de “totalitariedade”.
Na análise histórica dos Q, os dois extremos – nação e povo-nação – são associados ao Risorgimento italiano e à Revolução Francesa, mais em geral à história da Itália e da França, caracterizadas respectivamente pela “função internacional ou cosmopolita” dos “intelectuais que é causa e efeito do estado de desagregação em que permanece a península desde a queda do Império Romano até 1870” e pelo “desenvolvimento harmônico de todas as energias nacionais e especialmente das categorias intelectuais” (Q 4, 49, 479); de modo que, “quando, em 1789, um novo agrupamento social aflora politicamente na história, este é completamente aparelhado para todas as suas funções sociais e por isso luta para o domínio total da nação, sem estabelecer compromissos essenciais com as velhas classes, ao contrário, subordinando-as” (idem). Não casualmente, G. prossegue analisando o caso da Rússia-URSS: “Na Rússia [...] no período histórico mais moderno, [...] uma elite das mais ativas, empreendedoras e disciplinadas, emigra para o exterior, assimila a cultura dos países mais avançados do Ocidente, sem perder as características mais essenciais da própria nacionalidade, isto é, sem romper os laços sentimentais e históricos do próprio povo, e, feito assim o seu aprendizado intelectual, retorna ao país, obrigando o povo a um despertar forçado” (idem). Assim, o bolchevismo é visto como a bem-sucedida formação de um movimento de “povo-nação”, analogamente à obra da burguesia na história francesa.
A nação sempre desenvolve uma função hegemônica: por um lado (no interior), nas relações entre as classes sociais, por outro (no exterior), nas relações entre os Estados. Nas Teses de Lyon, as razões da fragilidade do capitalismo italiano são identificadas no fato que “as suas possibilidades de desenvolvimento são limitadas pela situação geográfica e pela falta de matérias-primas” (CPC, 491 [EP, 2, 322]). A fragilidade do compromisso burguês é uma consequência desses dados estruturais. Já nos Q, o modo específico com que se integram e se organizam as duas faces da nação (nacional e internacional) é determinado fundamentalmente pelo interior, isto é, pelo grau de universalização dos interesses da classe dominante e, portanto, de real integração da população na nação. Refletindo sobre a noção pascoliana, e depois nacionalista, da Itália “nação proletária”, G. observa que “a pobreza de um país é relativa e é a ‘indústria’ do homem – classe dirigente – que consegue dar a uma nação uma posição no mundo e na divisão internacional do trabalho; a emigração é uma consequência da incapacidade da classe dirigente para dar trabalho à população, e não da pobreza nacional” (Q 2, 51, 205 [CC, 5, 179]). Num texto posterior, lê-se: “Toda a atividade econômica de um país só pode ser julgada em relação ao mercado internacional, ‘existe’ e deve ser avaliada quando inserida numa unidade internacional. [...]. Todo o conjunto econômico nacional projeta-se no excedente que é exportado em troca de uma correspondente importação, e se, no conjunto econômico nacional, uma determinada mercadoria ou serviço custa muito, é produzida de modo antieconômico, essa perda se reflete no excedente exportado, transforma-se [...] numa perda nítida do país em relação ao exterior, na avaliação de sua estatura relativa e absoluta no mundo econômico internacional” (Q 9, 32, 1.115 [CC, 3, 291]). E conclui-se que, nesse caso, “as classes que no interior se aproveitam desses sacrifícios não constituem a ‘nação’, mas representam uma exploração exercida por ‘estrangeiros’ sobre as forças realmente nacionais, etc” (ibidem, 1.115-6 [CC, 3, 292]). E de maneira mais geral: “As relações internacionais precedem ou seguem as relações sociais fundamentais? Seguem, sem dúvida alguma. Toda inovação orgânica na estrutura modifica organicamente as relações absolutas e relativas no campo internacional por meio de suas expressões técnico-militares. Também a posição geográfica de um Estado nacional não precede, mas segue as inovações estruturais, ainda que reagindo a elas em certa medida” (Q 8, 37, 964).
A relação entre momento internacional e nacional é decisiva para compreender o tipo de hegemonia em curso nos diversos contextos, seja no terreno da divisão internacional do trabalho, seja no terreno das relações de forças políticas e militares. No Q 4, 38, G. esboça um esquema de relações de forças que devem ser vistas ao mesmo tempo como nacionais e como internacionais: “Deve-se considerar que a essas relações internas de um Estado-nação se entrelaçam as relações internacionais, criando, por sua vez, combinações originais e historicamente concretas” (ibidem, 458). O caráter original das combinações localiza-se no fato de que nem sempre o que se apresenta como “nacional” é efetivamente nacional. Como vimos no Q 9, 32 [CC, 3, 291], a brutal exploração interna funciona como agente de potências estrangeiras; e, por outro lado, também “a projeção no campo internacional da questão” da pobreza nacional pode ser “um meio para criar um álibi diante das grandes massas do país” e não enfrentar a questão “nacional” real, que consiste na “mudança” das “relações internas” dominadas pelo parasitismo de estratos sociais inteiros (Q 9, 105, 1.168-9). Nesses casos, temos uma fragilidade internacional, que é utilizada como elemento de hegemonia interna por uma burguesia pouco previdente e ambiciosa: “Quanto mais a vida econômica imediata de uma nação é subordinada às relações internacionais, mais um determinado partido representa essa situação e a explora para impedir o predomínio dos partidos adversários” (Q 8, 37, 964; v. também Q 9, 90, 1.161: “A personalidade nacional [...] é uma abstração fora do nexo internacional [...]. A personalidade nacional expressa um ‘diferente’ do complexo internacional, portanto, é ligada às relações internacionais”).
Nessa dinâmica, a formação de camadas intelectuais é decisiva. Aqui G. também tem em mente a oposição Itália-França: “O protagonista da história francesa tornou-se [...] o povo-nação; portanto, um tipo de nacionalismo político e cultural que foge aos limites dos partidos propriamente nacionalistas e que impregna toda a cultura, portanto, uma dependência e uma ligação estreita entre povo-nação e intelectuais” (Q 3, 82, 361 [CC, 6, 161]; v. também Q 5, 126, 655 [CC, 2, 134]). Essa “maciça constituição intelectual explica a função intelectual da França na segunda metade do século XVIII e em todo o século XIX, função internacional e cosmopolita de irradiação e de expansão de caráter imperialista orgânico” (Q 4, 49, 479). Com efeito, “a força expansiva, a influência histórica de uma nação não pode ser medida pela intervenção individual de pessoas singulares, mas pelo fato de que essas pessoas singulares expressam consciente e organicamente um bloco social nacional” (Q 3, 118, 386 [CC, 2, 93]; v. também Q 3, 116, 383 [CC, 2, 90]). “Se não for assim, deve-se falar apenas de fenômenos de uma certa importância cultural pertencentes a fenômenos históricos mais complexos, como o que ocorre na Itália, durante muitos séculos: o de ser ela a origem ‘territorial’ de elementos dirigentes cosmopolitas e de continuar parcialmente a sê-lo pelo fato de que a alta hierarquia católica é em grande parte italiana. Historicamente, esta função internacional foi a causa da debilidade nacional e estatal” (Q 3, 118, 386 [CC, 2, 93]). A essa debilidade, a cultura italiana só soube responder cultivando “o preconceito que a Itália sempre foi uma nação” (Q 3, 82, 362 [CC, 6, 161]), “mas [...] sufocada por forças estrangeiras” (Q 6, 78, 745 [CC, 5, 246]). Essa abordagem anti-histórica é, no melhor dos casos, expressão de “ideologias” que “tiveram um papel notável como terreno de organização política e cultural” (idem), mas que, justamente porque não captam os termos reais do problema, são destinadas a se converter num nacionalismo feito apenas de livros (Q 6, 61, 729 [CC, 5, 244]) e palavras: uma unidade nacional que consiste “na unidade da língua”, mas não na unidade “moral” (Q 3, 63, 344), na continuidade da camada intelectual, mas não na do povo-nação. Até uma obra de “inspiração ‘política’”, como Sepolcri [Túmulos], “vê nos monumentos um motivo de exaltação das glórias nacionais”, logo, identifica a nação não com “o povo”, mas com “o conjunto das coisas materiais que recordam o passado” (Q 5, 32, 569 [CC, 6, 166]).
O Risorgimento se desenvolve com base nessa condição de prostração devida ao domínio das relações internacionais e pode ser compreendido apenas analisando dinamicamente o nexo entre “elementos [...] negativos (passivos) e positivos (ativos), nacionais e internacionais” (Q 6, 78, 745 [CC, 5, 247]). Convém perceber toda a diferença, nesse terreno, entre a França e a Itália: “Há muitos séculos a França era uma nação hegemônica: sua autonomia internacional era muito ampla. Quanto à Itália, nada parecido: ela não tinha nenhuma autonomia internacional” (Q 6, 89, 765 [CC, 5, 253]). Disso decorre a necessidade “de que a diplomacia fosse concretamente superior à política criativa, fosse a ‘única política criativa’. O problema não era suscitar uma nação que tivesse primazia na Europa e no mundo, ou um Estado unitário que arrancasse à França a iniciativa civilizatória, mas montar as peças de um Estado unitário, fosse como fosse. Os grandes programas de Gioberti e Mazzini deviam ceder ao realismo político e ao empirismo de Cavour. Essa ausência de ‘autonomia internacional’ é a razão que explica grande parte da história italiana, e não só das classes burguesas. Assim também se explica a razão de muitas vitórias diplomáticas italianas, apesar da relativa fraqueza político-militar: não é a diplomacia italiana que vence como tal, mas se trata da habilidade para saber tirar partido do equilíbrio das forças internacionais: é uma habilidade subalterna, embora proveitosa” (ibidem, 765-6 [CC, 5, 253-4]; v. também Q 9, 99, 1.161). Seria possível inverter essa lógica diplomática subalterna apenas constituindo sobre diferentes bases a hegemonia nacional. Acerca desse ponto, G. é claro desde o início dos Q: dada a diferente posição social das forças urbanas do Norte e do Sul, uma sólida unidade nacional poderia ter sido criada apenas graças a uma “associação entre forças urbanas do Norte e do Sul” (Q 1, 43, 39) que ajudasse as últimas a se emancipar das influências rurais. Ao contrário, procedeu-se pelo alto, de forma “diplomática”, e prevaleceu o partido dos moderados; “que esse partido representasse a nação, mesmo apenas no sentido da mais vasta extensão da comunidade de interesses da burguesia com outras classes, aí já é uma outra questão” (Q 1, 44, 54).
Diante disso, o movimento comunista deve ser capaz de resolver os problemas nacionais e internacionais da Itália, representando a mais ampla comunidade de interesses na população, e deve ser capaz de emancipar a Itália da condição de crônica fragilidade internacional, fundando de modo sólido a hegemonia interna. Já em 1919, G. escreve: “Hoje a classe ‘nacional’ é o proletariado, é a multidão de operários e camponeses dos trabalhadores italianos que não podem permitir a desagregação da nação, porque a unidade do Estado é a forma do organismo de produção e de troca construído pelo trabalho italiano” (“La settimana politica” [A semana política], 4 de outubro de 1919, em ON, 233). E nos Q, voltando ao tema (e enriquecendo-o): “A expansão moderna é de origem capitalista-financeira. O elemento ‘homem’, no presente italiano, ou é homem-capital ou é homem-trabalho. A expansão italiana é do homem-trabalho, não do homem-capital [...]. O cosmopolitismo italiano não pode se tornar internacionalismo. Não o cidadão do mundo, enquanto civis romanus ou católico, mas enquanto trabalhador e produtor de civilização. Por isso se pode afirmar que a tradição italiana se perpetua dialeticamente no povo trabalhador e em seus intelectuais, não no cidadão tradicional e no intelectual tradicional. O povo italiano é aquele que ‘nacionalmente’ é mais interessado no internacionalismo [...]. Colaborar para reconstruir o mundo economicamente de modo unitário faz parte da tradição da história italiana e do povo italiano, não para dominá-lo e se apropriar dos frutos do trabalho alheio, mas para existir ou se desenvolver [...]. A missão de civilização do povo italiano encontra-se na retomada do cosmopolitismo romano e medieval, mas em sua forma mais moderna e avançada. Que seja nação proletária; proletária como nação porque foi exército de reserva de capitalismos estrangeiros [...]. Exatamente por isso deve se vincular à frente moderna de luta para reorganizar o mundo, também não italiano, que contribuiu para criar com o seu trabalho” (Q 9, 127, 1.190-1).
Essa conversão neocosmopolita da “nação proletária” apoia-se, cabe dizer, na premissa de que a expansão, hoje, é econômica, não mais cultural. Na hegemonia cultural havia se apoiado o primado francês de dois séculos, mas tal hegemonia é impossível em um “mundo [...] unificado na sua estrutura econômico-social” (Q 9, 132, 1.192). Essa já real unidade econômica é a premissa de um neocosmopolitismo de iniciativa italiana que, forte na tradição da “nação proletária”, converta a unidade econômica numa nova forma política supranacional.
Bibliografia: Cavalluzzi, 1999; Ciliberto, 1999; Durante, 2004; Izzo, 2009; Suppa, 2008; Vacca, 1991.
Fabio Frosini
Ver: cosmopolitismo; França; frente única; internacional/internacionalismo; nacional-popular; nacionalismo; Norte-Sul; povo-nação; questão nacional; relações de força; Risorgimento.
v. nacional-popular.
v. nação.
As primeiras ocorrências do termo nos Q nascem como uma direta adjetivação da expressão “povo-nação”. A combinação dos dois adjetivos representa uma “antítese estratégica na batalha contra a perversão histórica dos conceitos de “nação e povo” (Sanguineti, 1987, XXIII), isto é, contra os mitos retóricos que esses, tomados separadamente, representam. “Observar o fato de que, em muitas línguas, ‘nacional’ e ‘popular’ são quase sinônimos (em russo; em alemão o termo ‘volkisch’ tem quase um significado [ainda] mais íntimo, de raça; nas línguas eslavas em geral; em francês tem o significado, já elaborado politicamente, ligado ao conceito de ‘soberania’; soberania nacional e soberania popular têm, ou tiveram, valor igual)” (Q 3, 64, 343). “Na Itália, o termo ‘nacional’ tem um significado muito restrito ideologicamente e, de qualquer modo, não coincide com ‘popular’, já que na Itália os intelectuais estão afastados do povo, ou seja, da ‘nação’; estão ligados, ao contrário, a uma tradição de casta, que jamais foi quebrada por um forte movimento político popular ou nacional vindo de baixo” (Q 21, 5, 2.116 [CC, 6, 42]). “Popular-nacional” é, pois, o caráter falho e faltante da cultura e da literatura italianas em razão do distanciamento entre intelectuais tradicionais e massas populares que marcou a história da Itália. A literatura italiana é para G., em grande parte, fruto de uma notável incapacidade dos intelectuais de se fazerem portadores das instâncias populares e de um estranhamento deles em relação a elas. Se em outras nações, como na França, por exemplo, a literatura soube expressar um alto grau de identificação nacional, patrimônio de todos os estratos da população, isso se deu essencialmente graças à capacidade dos intelectuais e do povo de se sentirem partícipes de um processo comum, no qual havia sido possível amadurecer contemporaneamente tanto o espírito nacional quanto o pertencimento de classe.
A difusão da literatura popular e dos romances de folhetim estrangeiros na Itália e a ausência de uma literatura popular italiana afligem particularmente G., que ao longo de todo o seu trabalho no cárcere reflete sobre esses temas, propondo com frequência nos Q exemplificações do estranhamento dos intelectuais em relação à realidade do povo, mesmo no caso de autores comumente considerados intérpretes dessa realidade. Mas, se na lista de argumentos principais compilada no início do Q 1 G. não nomeia de maneira direta o problema do nacional-popular, na reformulação das prioridades que ele realiza no Q 8 no momento de começar a escrever os “cadernos especiais”, a questão assume tal autonomia conceitual, com base no vínculo inicial com o tema do brescianismo, que torna necessária sua nomeação explícita na nova lista: “Reação à ausência de um caráter popular-nacional da cultura na Itália: os futuristas” (Q 8, p. 935). Além da reflexão gramsciana sobre o futurismo, dois dados devem ser incorporados: a estreita conexão do tema ao cosmopolitismo, citado imediatamente antes, e a utilização da expressão adjetiva dupla na ordem que G. demonstra frequentemente preferir nos usos literários da expressão. Entretanto, no Q 21, em um “caderno especial” sobre a literatura popular, G. decide propor uma definição conclusiva do “conceito de nacional-popular” (Q 21, 5, 2.116 [CC, 6, 39]), canonizando a ordem inversa dos dois termos.
G. empreende uma pesquisa difícil e pouco frutífera por toda a plurissecular tradição literária nacional, buscando elementos, autores, movimentos literários que possam pelo menos em parte ser comparados aos franceses, que representam um verdadeiro ponto de referência para esse aspecto da reflexão. Mas nacional-popular é um termo destinado a exprimir uma falta, uma ausência, até o fim. O distanciamento entre escritores e povo tem início com a própria literatura e a atravessa em alguns de seus momentos mais importantes. O século XIV aparece marcado por um “duplo filão [...]: um verdadeiramente nacional-popular (nos dialetos, mas também em latim) ligado à novelística anterior, expressão da burguesia; e um outro, áulico, cortesão, anacional, mas que é posto nas nuvens pelos retóricos” (Q 5, 104, 633 [CC, 6, 179]). Retomando as palavras de Angelo Gatti, G. nota que na Itália florescem livros como o Galateo, enquanto faltam obras de moralistas do tipo dos franceses, porque enquanto o intelectual “italiano estuda como ‘dominar’, como ser mais forte, mais hábil, mais astucioso, o francês estuda como ‘dirigir’ e, portanto, como ‘compreender’ para influenciar e obter um ‘consenso espontâneo e ativo’” (Q 15, 14, 1.771 [CC, 6, 255]). As academias também respondem à mesma lógica de casta; existe na Itália uma “desagregação dos intelectuais em igrejinhas e seitas de ‘espíritos eleitos’” (Q 8, 145, 1.030 [CC, 6, 222]), que é, no fundo, causa e consequência ao mesmo tempo da desagregação da “vida popular-nacional” (idem). Os próprios escritores, aliás, são de proveniência não popular e, quando ocasionalmente o estrato popular produz algum escritor, este é particularmente apreciado por sua capacidade de se alçar e de se separar do povo.
Na argumentação gramsciana sobre os fatos literários, o idealismo está sempre presente como elemento complicador. As antinomias entre “espíritos eleitos” e “nação” (Q 8, 145, 1.030 [CC, 6, 222]), entre “literatura artística” e “literatura popular”, entre “belo” e “interessante” (Q 5, 54, 586 [CC, 6, 168]), recebem notável relevo, às vezes num tom ansioso. Na verdade, tanto no plano da pesquisa histórica quanto no plano das expectativas futuras, G. não pensa em uma literatura nacional-popular que se configure como vulgarização pedagógica ou como renúncia à dimensão alta da cultura (como, ao contrário, pareceu durante as longas décadas em que a expressão gramsciana foi conhecida e difundida na famosa versão errada como “nazional-popolare”[a], nunca usada por G.). Isso é evidente quando o autor propõe os clássicos gregos e Shakespeare como exemplos de autores nacionais-populares, mas, cabe dizer que, ao mesmo tempo, não consegue definir margens exatas que impeçam que o plano estético, o histórico-crítico ou o político sobreponham suas respectivas categorias, analíticas ou definitórias que sejam. Não é por acaso que ele se mostra apreensivo desde o início e que o faça usando a primeira pessoa, consciente dos riscos que tal campo de investigação poderia comportar para um intelectual de sua formação. “Na minha discussão, tenho de evitar parecer impregnado por tendências moralistas do tipo de Tolstói ou de Shaw. Para mim, trata-se de uma pesquisa de história da cultura, não de crítica artística, a não ser indiretamente (demonstrar que não sou eu que exijo um conteúdo moral ‘extrínseco’, mas os autores examinados introduzem um conteúdo moral extrínseco, isto é, fazem propaganda e não arte); trata-se de focalizar não porque um livro é ‘belo’, mas porque é ‘lido’, é ‘popular’, ‘procurado’” (Q 3, 151, 405).
A ausência de uma literatura nacional-popular italiana gera a circunstância que na Itália o povo “sofre a hegemonia intelectual e moral dos intelectuais estrangeiros, que se sente mais ligado aos intelectuais estrangeiros do que aos ‘patrícios’, isto é, que não existe no país um bloco nacional intelectual e moral, nem hierárquico nem (muito menos) igualitário [...]. A questão deve ser estendida a toda a cultura nacional-popular e não se restringir apenas à literatura narrativa: o mesmo deve ser dito do teatro, da literatura científica em geral (ciências naturais, história etc.)” (Q 21, 5, 2.117 [CC, 6, 43]). Isso também vale, naturalmente, para a língua, que, se na França expressa uma verdadeira “concepção do mundo, como base elementar – popular – nacional da unidade da civilização” (Q 3, 145, 401 [CC, 2, 96]), na Itália foi proposta como “questão” em termos unitários da mesma forma que a questão territorial, e até mesmo um autor como Alessandro Manzoni caiu no erro de não considerar que tal proposição, não vinda de baixo, transformaria a língua nacional num fato “externo” ao povo-nação (Q 21, 5, 2.118 [CC, 6, 39]). A língua, no entanto, tem uma posição muito particular em relação ao nacional-popular, porque a expressão verbal, comparada às linguagens (técnicas) das artes diferentes da literatura, como a música ou a pintura, “tem um caráter estritamente nacional-popular-cultural” (Q 9, 132, 1.193). G. retoma o argumento em várias notas esparsas por diversos cadernos, principalmente nos Q 13 e Q 23, e por isso atribui a ele um estatuto especial em relação à definição identitária de uma civilização, o reconhece como uma verdadeira ordem de grandeza cultural, sob o qual não existe realmente “tradutibilidade” recíproca com outras culturas.
A qualidade potencial reconhecida à cultura de formar e de expressar a maturidade de uma nação, ou seu grau de progresso, coloca no centro o problema do Risorgimento, do papel dos intelectuais naquele momento, bem como a incompletude do processo em relação às suas potencialidades. O ideal unitário vinha sendo construído retoricamente, “ainda que se deva observar que, em sua época, esta retórica tinha uma eficiência prática atual e, portanto, era ‘realista’” (Q 8, 3, 938 [CC, 2, 160]). Sepolcri, de Ugo Foscolo, havia sido “a maior ‘fonte’ da tradição cultural retórica, que vê nos monumentos um motivo de exaltação das glórias nacionais. A ‘nação’ não é o povo, ou o passado que continua no ‘povo’ mas, ao contrário, o conjunto das coisas materiais que recordam o passado” (Q 5, 32, 569 [CC, 6, 167]). Entendida dessa forma, a construção da nação reproduzia e condensava em si os limites que haviam atrasado até aquele momento sua realização em relação às outras nações da Europa, fundando-se na concretização de uma “‘biografia’ nacional” (Q 19, 50, 2.069 [CC, 5, 119]) que há séculos fazia coincidir o desejo de um Estado italiano com sua existência, na mediação dos intelectuais. Se Gioberti e Mazzini representavam os dois polos da visão da unidade da Itália, Gioberti, sem dúvida, oferecia aos intelectuais uma filosofia mais concretamente nacional e capaz de dar uma dignidade nova, também no plano das relações internacionais, ao pensamento italiano (Q 19, 27, 2.046 [CC, 5, 98]). Além disso, ele reconhecia, ainda que vagamente, o conceito jacobino de “‘nacional-popular’, da hegemonia política, isto é, da aliança entre burgueses-intelectuais (talento) e o povo [...]. No Rinnovamento (Parte II, capítulo “Degli scrittori”), escreve: ‘[...] Uma literatura não pode ser nacional se não for popular; porque, se bem seja de poucos sua criação, universal deve ser sua fruição e uso’” (Q 17, 9, 1.914-5 [CC, 5, 343]). Portanto, se é verdade que os partidos durante o Risorgimento não tiveram uma real função unificadora do povo-nação (Q 15, 25, 1.782 [CC, 5, 322]), o partido moderado, graças a Gioberti, conseguiu propor e tornar hegemônica a sua solução formal para o problema nacional-popular como um equilíbrio entre conservação e inovação, como “classicismo nacional” (Q 8, 30, 959 [CC, 2, 163]), naturalmente sem nenhuma possibilidade de atrelamento entre o movimento dos camponeses e das massas (que depositavam uma fé cega em Mazzini) e as elites dirigentes, que, ao contrário, iam se separando sempre mais do povo à medida que o unificavam territorialmente com as anexações ao Piemonte. Por outro lado, a cultura católica, de que Gioberti era expressão, apesar da vasta difusão nos estratos populares, nunca havia sido real portadora de elementos unificadores nacional-populares; pelo contrário, no Risorgimento, teve até um papel antinacional-popular. De fato, não é possível falar em uma “igreja nacional” italiana, para G., mas de “cosmopolitismo religioso [...]. Separação entre ciência e vida, entre religião e vida popular, entre filosofia e religião; os dramas individuais de Giordano Bruno etc., pertencem ao pensamento europeu e não ao italiano” (Q 9, 55, 1.130 [CC, 5, 308]).
Apesar de trabalhar na pesquisa de nomes que na sua contemporaneidade expressaram ou tentaram expressar o sentido nacional-popular na literatura ou a preocupação em relação a esse limite da cultura italiana, que, àquela altura, já começava a se tornar evidente também para a crítica tradicional (Q 14, 35, 1.692 [CC, 6, 241]), G. propõe apenas reflexões muito parciais, também em razão da própria falta de conhecimentos acerca da literatura do período, admitida abertamente em uma carta. Além da autoridade de Francesco De Sanctis, mais remota, mas densa de intenções nacional-populares (Q 23, 1, 2.185 [CC, 6, 63] e Q 23, 8, 2.197 [CC, 6, 72]) e por isso cara a G., ele reconhece em Giuseppe Cesare Abba um autor nacional-popular, pelo menos no que se refere aos seus escritos de guerra, que, como aqueles do vociano Giani Stuparich (Q 9, 42), representam o sentido de uma experiência de massa, mostram como a guerra foi para os italianos um momento de intensa vida coletiva. E é exatamente nessas situações, como guerras ou eleições, que, segundo G., é possível assistir ao germinar de uma consciência nacional-popular, se a postura mantida pelos intelectuais, porém, oferecer as condições favoráveis para isso (Q 9, 103, 1.166). A história se faz com os “se”. Enfim, são os intelectuais, inclusive os contemporâneos, que na Itália pecam pela falta daquele senso autocrítico que, na América fordista, permite a criação e o sucesso de personagens como Babbitt (Q 5, 105, 634 [CC, 4, 301]). São os intelectuais que não compreendem a necessidade de se transformar de “tradicionais” em “orgânicos”, que não querem colocar em discussão a sua relação manzonianamente “benévola” e paternalista com os “humildes” (Q 7, 50, 896 [CC, 6, 208]). O mesmo se aplica a Croce, máximo expoente da intelectualidade tradicional, de origem nacional, mas de dimensão cosmopolita, que demonstra tal postura em relação ao senso comum, no que se refere à filosofia. Mas “esta atitude de Croce em face do senso comum não conduziu a uma concepção da cultura fecunda do ponto de vista nacional-popular, isto é, a uma concepção mais concretamente historicista da filosofia, o que, de resto, só pode ocorrer na filosofia da práxis” (Q 11, 13, 1.399 [CC, 1, 117]). Croce se comporta em relação à filosofia da práxis como o homem do Renascimento em relação à Reforma Protestante, isto é, não acolhe de maneira igualitária os impulsos reformadores e revolucionários que provêm de baixo, mas quer reabsorvê-los de forma paternalista com o objetivo de relegá-los a um espaço de imobilismo subalterno e não conflituoso (Q 10 II, 41.I, 1.293 [CC, 1, 361]; v. também Q 8, 145, 1.030 [CC, 6, 222]). Para G., Reforma e Renascimento, baixa cultura e alta cultura, devem estar numa relação de troca, de orgânica necessidade recíproca.
A questão, pode-se notar com facilidade, é completamente política, trata-se precisamente da “questão política dos intelectuais” (Q 11, 12, 1.386 [CC, 1, 93]). O mais profundo significado do nacional-popular deve ser procurado nas notas em que G. o identifica com o problema da consciência do Estado, especialmente a propósito de O príncipe e de Maquiavel. “Nenhuma ação de massa é possível se a própria massa não está convencida dos fins que quer alcançar e dos métodos a serem aplicados”, já havia escrito G. em Alguns temas da questão meridional (QM, 144). A vontade coletiva é, assim, um elemento imprescindível para um processo tão complexo como esse da formação do Estado, se compreendido em sentido histórico e concreto, e não como absoluto abstrato. Na história da Itália, por parte dos intelectuais, não se trabalhou para superar a separação entre os “melhores” e o povo, ao contrário, se favoreceu uma visão em que o herói, o voluntário da pátria, fosse exaltado (Q 19, 11, 1.999 [CC, 5, 51]). “Um deserto com um grupo de altas palmeiras é sempre um deserto; aliás, é próprio do deserto ter pequenos oásis com grupos de altas palmeiras” (Q 6, 170, 821 [CC, 2, 147]). A progressiva superação da influência leninista se evidencia plenamente em G. na noção de vontade coletiva nacional-popular, entendida como necessidade de irrupção simultânea dos diversos componentes da sociedade, urbana e camponesa, na vida política (Q 13, 1, 1.560 [CC, 3, 13]), e se evidencia também em algumas formulações não dogmáticas do conceito de “espírito estatal”, visto como vínculo entre as gerações, como solidariedade com os idosos e com as crianças (Q 15, 4, 1.754 [CC, 3, 324]).
“O moderno Príncipe deve e não pode deixar de ser o anunciador e o organizador de uma reforma intelectual e moral, o que significa, de resto, criar o terreno para um novo desenvolvimento da vontade coletiva nacional-popular no sentido da realização de uma forma superior e total de civilização moderna” (Q 13, 1, 1.560 [CC, 3, 18]).
Bibliografia: Asor Rosa, 1964; Durante, 2004; Guglielmi, 1976; Leone De Castris, 1989; Luperini, 1974; Luporini, 1995; Paladini Musitelli, 1996; Petronio, 1969; Sanguineti, 1987; Sapegno, 1951.
Lea Durante
Ver: brescianismo; cosmopolitismo; Croce; cultura; cultura popular; De Sanctis; Gioberti; intelectuais; língua; literatura artística; literatura de folhetim; Manzoni; Maquiavel; moderno Príncipe; povo; Risorgimento; senso comum.
Desde os anos da juventude, a questão do nacionalismo se configura em G. em estreita conexão com a questão do internacionalismo e se constitui um dos temas fundamentais de toda a evolução de seu pensamento. De certa forma, pode-se afirmar que, já em alguns artigos de 1918, G. ressalta a vocação internacionalista imanente ao modo de produção capitalista e o papel da economia burguesa na superação das divisões nacionais e dos contrastes político-militares entre os vários Estados. Nesse sentido, o jovem G. é polêmico em relação a toda forma de nacionalismo entendido como fenômeno político-ideológico próprio de pequenas burguesias frágeis, antiquadas e reacionárias. Nesses anos, G. demonstra simpatia pela cultura liberal – da qual, a partir de 1919, denunciará a abstração –, mas é igualmente influenciado pelo episódio da Revolução de Outubro e pela leitura de alguns escritos de Lenin sobre a necessidade de fazer emergir das várias culturas os elementos democráticos, universalistas e potencialmente socialistas. Apenas assim, segundo G., tornar-se-ia possível transcender a contradição entre cosmopolitismo da economia e nacionalismo da política, que nos Q será identificada como uma das causas fundamentais da crise orgânica do mundo capitalista. Num artigo de maio de 1919, publicado em L’Ordine Nuovo, G. ressalta, entretanto, que até aquele momento a unidade do mundo se realizara pela guerra – única forma em que podia se realizar em regime de propriedade privada e nacional –, ou seja, pela criação de uma hierarquia mundial do capital e da concentração da propriedade privada em trustes de banqueiros, armadores e industriais. Emerge, então, uma percepção mais madura do papel central dos Estados nacionais, a consciência de que a formação de uma economia mundial reforça, e não diminui, a sua função na concorrência internacional e de que existe uma forte contradição entre a realidade do imperialismo e toda a tradição liberal que é formalmente contrária ao Estado e faz da concorrência a “inimiga mais ácida do Estado” (“Lo Stato e il socialismo” [O Estado e o socialismo], 28 de junho – 5 de julho 1919, em ON, 117 [EP, 250]). Não é por acaso que G. recordará, no Q 2, 122, 262 [CC, 5, 199], que apenas no pós-guerra se desenvolve na Itália “um acentuado espírito de nacionalismo econômico”, de forma que “toda nação quer produzir tudo e quer vender sem comprar”.
Todavia, parece ser justamente a crise do capitalismo mundial que atribui à classe operária dos países capitalistas uma precisa função nacional. Pode-se dizer que, por um lado, G. evidencia nos escritos desses anos a posição subordinada da Itália no âmbito da divisão internacional do trabalho, mas, por outro, compreende que tal condição é comum ao conjunto das nações sob o domínio do imperialismo: a luta pela independência nacional por parte de todos os povos oprimidos se torna o momento da luta de classe do proletariado mundial. Ou melhor, apenas a luta de classe é capaz de conferir um conteúdo concreto à própria luta nacional. Como já apontava Lenin nos escritos de 1915-1916, o processo de transição do capitalismo para o comunismo, ainda que em parte já em curso, revela-se para G. mais complexo do que o previsto: os violentos conflitos nacionais que explodem nos países coloniais sujeitos ao domínio das potências imperialistas mostram como a crise geral do capitalismo, longe de comportar uma rápida dissolução de todos os Estados nacionais e de toda divisão nacional numa unidade mundial superior, impõem o reforço, tanto político quanto militar, do Estado soviético e a sua inserção como nova potência mundial no sistema hegemônico entre os Estados. Por outro lado, G. – que nos Q irá se mostrar um crítico implacável de qualquer concepção utópica e defensor de uma “política realista”, com a finalidade de “depurar o internacionalismo de todo elemento vago e puramente ideológico (em sentido pejorativo)” (Q 14, 68, 1.729 [CC, 3, 315]) – acredita que nem após a vitória da revolução internacional será possível prever a extinção dos Estados nacionais: de fato, se por um lado, sem dúvida, “o comunismo só existirá quando e na medida em que for internacional”, por outro, o Estado permanece a “‘forma’ concreta da sociedade humana”, para o proletariado, a sua forma “de defesa e de ataque”. Nesse sentido, no sistema político do comunismo internacional, o Estado socialista deve estar “preparado e organizado de modo a ser capaz de se articular com os outros Estados socialistas” (“Lo Stato e il socialismo”, cit., em ON, 115 [EP, 252]).
A reflexão sobre o tema do nacionalismo nos Q avança num plano duplo, teórico e político. No fundamental Q 3, 2, 284 [CC, 2, 71], G. distingue claramente “nacional” de “nacionalista”, já que se pode ser particular sem predicar o particularismo e “aqui reside o equívoco do nacionalismo, que, na base desse equívoco, pretende frequentemente ser o verdadeiro universalista, o verdadeiro pacifista” (idem). Se de fato é verdade que uma ideia não é eficaz se não é expressa artística ou particularmente por um indivíduo, todavia, “a nacionalidade é uma particularidade primária”, uma vez que se particularizar entre os compatriotas é uma “segunda ‘particularidade’” que “não é o prolongamento da primeira” (ibidem, 285 [CC, 2, 72]). Mas os nacionalistas não querem isso, pois veneram mestres cujo valor “consiste em sua semelhança com o espírito de seu grupo”, e é por isso que “tantos escritores modernos atêm-se tão intensamente à ‘alma nacional’ que afirmam representar”: “É útil, para quem não tem personalidade, decretar que o essencial é ser nacional” (idem). Definitivamente, “deste modo, constitui-se uma hierarquia e uma organização de fato” (idem) e, no plano político, “essa tendência à distinção nacional fez com que a guerra” tenha “se tornado uma guerra de almas nacionais, com suas características de profundidade passional e de ferocidade” (ibidem, 286 [CC, 2, 73]). A reflexão sobre o nacionalismo remete também à reflexão sobre as novas perspectivas abertas pelas tentativas de edificação do “socialismo em um único país” (Q 14, 68, 1.729 [CC, 3, 314]). Superada a hipótese de uma rápida difusão e aceleração do processo revolucionário em escala mundial impulsionada pela Revolução de Outubro e mesmo pelos processos de internacionalização da economia capitalista, o movimento comunista internacional caminhava em direção a uma fase de longa e difícil “guerra de posição”, de resultados até então imprevisíveis. Diante do ineditismo de tal quadro mundial, marcado por notáveis processos de reorganização sociopolítica, o terreno nacional se mostrava ainda mais decisivo do que no passado para a afirmação hegemônica do proletariado, do qual o movimento comunista deveria representar a vanguarda política. Para alcançar tal objetivo, seria necessário, segundo G., constituir um bloco de forças nacionais, o “povo-nação”, que desse vida a uma “vontade coletiva nacional-popular”. Esta representaria “um tipo de nacionalismo político e cultural que foge aos limites dos partidos propriamente nacionalistas” (Q 3, 82, 361 [CC, 6, 161]) e que, ao contrário, impregna toda a cultura e cria “uma dependência e uma ligação estreita entre povo-nação e intelectuais” (ibidem, 362 [CC, 6, 161]). De fato, há países em que “existe nacionalismo, mas não uma situação ‘nacional-popular’, ou seja, onde as grandes massas populares são consideradas gado” (Q 6, 135, 799 [CC, 4, 306]). No caso contrário, o nacionalismo ou “patriotismo” é uma combinação do “elemento hegemônico ético-político” com a vida estatal e nacional e é uma verdadeira “religião popular” (Q 8, 227, 1.084), representando a unidade entre dirigentes e dirigidos.
No que concerne ao contexto italiano, na nota intitulada “O nacionalismo italiano” (Q 2, 25, 181 [CC, 5, 174]), G. observa que “na Itália, ao lado do cosmopolitismo e do apatriotismo mais superficial, sempre existiu um chauvinismo arrebatado, que se relacionava com as glórias romanas e das repúblicas marítimas, bem como com o florescimento individual de artistas, literatos, cientistas de fama mundial” (idem). Sem dúvida, percebe-se como uma característica permanente do povo italiano “a admiração ingênua e fanática pela inteligência como tal” e o correspondente nacionalismo cultural, de um lado, e o “mais ou menos ingênuo, mais ou menos fanático” chauvinismo popular, de outro (Q 9, 141, 1.201-2 [CC, 2, 180]). Mas o verdadeiro “substrato do nacionalismo popular” (Q 3, 46, 326 [CC, 3, 189]) italiano deve ser buscado, segundo G., na tradição cultural do Humanismo e do Renascimento, que, entretanto, se mostrou um frágil fundamento do Risorgimento, comportando um “nacionalismo de intelectuais” (Q 9, 127, 1.190) incapaz de “concentrar em torno da burguesia os estratos mais ativos e inteligentes da população” (Q 3, 46, 326). Na Itália faltou um sentimento consciente “do elemento político-militar e político-econômico” (idem; v. também Q 9, 127, 1.190), do qual é emblemática a figura de D’Annunzio; trata-se de um “‘apoliticismo’ fundamental, no sentido de que dele se podiam esperar todos os fins imagináveis, do mais à esquerda até o mais à direita” (Q 9, 141, 1.202 [CC, 2, 181]). O chauvinismo das massas também revelou desde logo uma peculiaridade: se fazer “acompanhar de uma xenofobia popular igualmente característica” (Q 2, 25, 181 [CC, 5, 174]), um “nacionalismo ‘de raça’” (Q 5, 23, 558 [CC, 2, 104]). Se as primeiras formas de nacionalismo na Itália reúnem muitos liberais e maçons, para G., em seguida, um pequeno grupo de intelectuais saqueou “as ideologias e os modos de pensar áridos, imperiosos, cheios de arrogância e autossuficiência de Charles Maurras” (Q 2, 25, 181 [CC, 5, 174]; itálico da autora) e de seu “nacionalismo integral” (Q 8, 111, 1.007 [CC, 4, 228]). A política externa dos nacionalistas, por sua vez, “não tinha fins precisos: apresentava-se como uma abstrata reivindicação imperial contra todos” (Q 2, 25, 182 [CC, 5, 175]). É, pois, evidente que as tendências nacionalistas, por mais basilares que sejam, segundo G., não podem ser consideradas um dado historicamente insuperável (v. Q 14, 68, 1.729 [CC, 3, 314]): se por um lado a própria natureza cosmopolita dos processos econômicos é estruturalmente contraditória em relação à dimensão estatal que “se desenvolveu cada vez mais no sentido do ‘nacionalismo’, da ‘autossuficiência’” (Q 15, 5, 1.756 [CC, 4, 318]), por outro, a esfera política revela firmes tendências para a formação de pelo menos uma união europeia. Existe realmente “uma consciência cultural europeia” e “existem muitas forças materiais que só com esta união poderão se desenvolver: se em x anos esta união se realizar, a palavra ‘nacionalismo’ terá o mesmo valor arqueológico da atual ‘municipalismo’” (Q 6, 78, 748 [CC, 5, 249]). Além do mais, G. chega a recuperar o valor positivo da tradição cosmopolita italiana: “O nacionalismo de marca francesa é uma excrescência anacrônica na história italiana” (Q 19, 5, 1.989 [CC, 5, 42]), algo “de artificial e de não longa duração” (ibidem, 1.987 [CC, 5, 40]); tratar-se-á mais de recuperar o “cosmopolitismo romano e medieval, mas em sua forma mais moderna e avançada” (ibidem, 1.989 [CC, 5, 42]), aquela do internacionalismo. Daí o interesse da Itália por “se inserir na moderna frente de luta para reorganizar até o mundo não italiano, que contribuiu para criar com o seu trabalho” (idem), além de reconstruir, se possível, um “‘primado civil’ ou hegemonia político-intelectual” (Q 9, 132, 1.193).
Manuela Ausilio
Ver: chauvinismo; cosmopolitismo; D’Annunzio; economia política; Estado; guerra; hegemonia; internacionalismo; liberalismo; nacional-popular; pátria; povo-nação; universal.
São parcas as referências a Nápoles nos escritos pré-carcerários, e elas estão essencialmente ligadas à crônica ou à contingência política. Não obstante, é válido ressaltar o escasso contato de Gramsci com a cidade partenopeia: nesse período, ele viaja a Nápoles para o congresso da federação do partido (setembro de 1924) e ocasião da dissolução do Comitê de apoio a Bordiga (agosto de 1925). Nem mesmo em Alguns temas da questão meridional (1926) se encontram referências explícitas à cidade do Mezzogiorno, embora seja evidente sua implicação. Nos escritos do cárcere, ao contrário, Nápoles está presente com reflexões bastante densas: nos Q, aparece desde as primeiras páginas (Q 1, 43, 34). É no contexto das relações entre população urbana e rural e do papel da cidade “industrial”, “sempre mais progressista do que o campo do qual depende”, que se encontra a primeira referência ao lugar mais importante da Campânia. “A maior cidade italiana, Nápoles, não é uma cidade industrial. Ainda assim, mesmo nessas cidades existem núcleos populacionais tipicamente urbanos [...]. Estes estão submersos, espremidos, esmagados pela outra parte, a rural, de tipo rural, que constitui a grande maioria da população. As cidades do ‘silêncio’. Nesse tipo de cidade, existe uma unidade ideológica ‘urbana’ contra o ‘campo’” (ibidem, 34-5). Trata-se de um problema presente nos anos do Risorgimento que G. se propõe a aprofundar. Um esboço da estrutura socioeconômica da cidade aparece na referência ao predomínio da renda fundiária rural constituída por “(nobres e plebeus) [...], com suas cortes de servos e de lacaios diretos”, em torno dos quais “se organiza a vida prática de uma significativa parcela da cidade, com suas indústrias artesanais”, os profissionais ambulantes, “com a enorme pulverização da oferta imediata de mercadorias e serviços aos desocupados que circulam pelas ruas. Uma outra importante parcela da cidade se organiza em torno da circulação de mercadorias e do comércio por atacado”. A indústria produtiva é relativamente pequena: as “estatísticas oficiais” colocam Nápoles como a “quarta cidade industrial da Itália, depois de Milão, Turim e Gênova [...]. Esta estrutura econômico-social [...] explica grande parte da história da cidade de Nápoles, tão plena de contradições aparentes e de espinhosos problemas políticos” (Q 22, 2, 2142 [CC, 4, 244]).
De modo ainda mais evidente que outras cidades italianas, Nápoles apresenta uma característica peculiar. G. concorda com Goethe na demolição da lenda do “lazzaronismo” napolitano, salientando que seus habitantes “são muito ativos e laboriosos”, mas deve ser compreendida a direção que toma sua laboriosidade: “Ela não é produtiva e não se destina a satisfazer as necessidades e as exigências de classes produtivas” (idem). É o chamado “mistério de Nápoles”, que deixa curioso o poeta alemão e que G. comenta numa das primeiras notas de Americanismo e fordismo (Q 22), ampliando progressivamente o discurso da cidade para a relação entre Norte e Sul, da Itália para o mundo. É significativo que o “mistério” seja tematizado “no coração de sua análise do americanismo” (v. Baratta, 2007). O “ritmo do pensamento” gramsciano se desenrola em várias direções, que podem ser agrupadas em três eixos:
1. Descoberta das características da população napolitana. Para G., “que do Mezzogiorno só conhecia a Sardenha” (LC, 68, a Tania, 11 de abril de 1927 [Cartas, I, 140]), as primeiras verdadeiras descobertas foram oferecidas pelos confinados de Ústica e pela “academia da faca”, organizada por alguns presidiários meridionais que, encontrados numa parada durante a transferência de Ústica para Milão, revelam-lhe “um mundo subterrâneo, complicadíssimo, com uma vida própria de sentimentos, de pontos de vista, de pontos honra” (ibidem, 69 [Cartas, I, 141]). Ao contrário da cidade “rica de homens de palavra fácil e de advogados” (Croce, 1917), em G. tomam forma concreta os homens que dão vida ao mistério de Nápoles, com sentimentos e modos de vida próprios. As referências à “‘impraticabilidade’ das ruas populares de Nápoles”, pois das janelas caem vasos de flores “que esmagam os chapéus-coco e os palhetas dos senhores”, e a episódios análogos, são interpretados como a característica de um mundo que expressa “distanciamento, diferenciação, num ambiente primitivo, ‘quente’, que acredita estar a impunidade ao alcance da mão e se revela abertamente”, ao passo que em circunstâncias “normais” “é dissimuladamente adulador e servil” (Q 4, 65, 508-9 [CC, 4, 101]). Para essa realidade não existem “ruas abertas”, como já recordava num escrito pré-carcerário de 19 de outubro de 1918 (“A ‘intelligentsia’ russa”, em NM, 377-8). O “grande sonho de felicidade” que anima o povo napolitano e que poderia se realizar vencendo “a loteria” (Q 16, 1, 1837 [CC, 4, 15]) – normalmente atribuído à graça de um santo ou de Nossa Senhora – é lido por G. como “concepção passiva e indolente da graça própria da gente comum católica” (ibidem, 1840 [CC, 4, 18]); concessão que encontra na história do sangue de São Genaro outra confirmação. Tais modos de pensar são “úteis para o populacho napolitano, mas não para os intelectuais” (Q 11, 12, 1.384 [CC, 1, 102] e Q 23, 19, 2.208-9 [CC, 6, 87]). Há, por fim, uma “característica permanente do povo italiano”: “a admiração ingênua e fanática pela inteligência como tal [...]. Este sentimento tem força desigual nas várias partes da Itália [...], e da mesma forma em Nápoles, onde também tem um caráter mais espontâneo e popular na medida em que os napolitanos acreditam ser mais inteligentes do que todos, como massa e como indivíduos” (Q 9, 141, 1.201-2 [CC, 2, 180-1]).
2. O papel dos intelectuais. Já no texto sobre a “questão meridional”, G. observa como no Mezzogiorno prevalece a existência de “grandes acumulações culturais e de inteligência em alguns indivíduos ou em restritos grupos de grandes intelectuais, ao passo que não existe uma organização da cultura média” (QM, 155 [EP, 2, 430]). Tal limite pesa bastante sobre o quadro político e cultural da mais importante cidade campana. São inúmeros os intelectuais que povoam os Cadernos e as Cartas do Cárcere e que remetem imediatamente a Nápoles; alguns deles aparecem nos momentos altos da reflexão carcerária. É o caso de Croce, De Sanctis e Bertrando Spaventa; mas oferecem também inspiração os escritos de Pisacane, que conseguiu “dominar uma série de conceitos político-militares postos em circulação pelas experiências bélicas da Revolução Francesa e de Napoleão” (Q 19, 24, 2.016 [CC, 5, 67]), e sobretudo aqueles de Cuoco (Q 15, 17, 1.774-5 [CC, 5, 321]), com base nos quais toma forma a elaboração gramsciana do conceito de “revolução passiva”. Para oferecer “um esboço da tradição intelectual do Sul (notadamente no que diz respeito ao pensamento político e filosófico) em contraposição com o resto da Itália, principalmente com a Toscana”, G. recupera o “epigrama” da alcachofra proposto por Ardengo Soffici: a hortaliça toscana cada vez mais saborosa no seu interior é contraposta à alcachofra napolitana, saborosa nas folhas mais externas, mas ruim no seu cerne (Q 10 II, 38, 1.288 [CC, 1, 358]). A metáfora, por assim dizer, da “oposição entra a cultura científica experimental dos toscanos e a cultura especulativa dos napolitanos”.
3. O Risorgimento napolitano. O tema da relação contraditória entre cidade-campo é retomado – no período pré e pós-unitário – e são aprofundados os elementos que caracterizam as “cem cidades” ou “cidades do silêncio”, a partir da derrota da República partenopeia de 1799, causada pela incapacidade de administrar essa relação (Q 19, 26, 2.036-7 [CC, 5, 87]). Enfim, acrescenta-se que a crônica também não escapa ao crivo da curiosidade de G.: os exemplos são a crise da poesia dialetal e a ventura das canções do bairro napolitano de Piedigrotta. Discordando de Tilgher, para quem a crise se deve ao ressecamento de “realismo e sentimentalismo”, G. afirma que “a época moderna não é expansiva e sim repressiva. Não mais se ri com o coração”, Piedigrotta “foi esvaziada” pela oficialidade e pela rigidez impostas pelo fascismo (Q 1, 101, 95, Texto B [CC, 6, 154]). As páginas sobre Nápoles oferecem comparações sugestivas com a realidade contemporânea, um “visor sobre o mistério do mundo” globalizado.
Giovanni Mimmo Boninelli
Ver: cem cidades; cidade-campo; Croce; De Sanctis; loteria; Mezzogiorno; Norte-Sul; questão meridional; São Januário; Spaventa.
“O que significa dizer que uma certa ação, um certo modo de viver, um certo comportamento ou costume são ‘naturais’ ou que eles, ao contrário, são ‘contra a natureza’? Cada qual, em seu íntimo, acredita saber exatamente o que isso significa; mas, quando se pede uma resposta explícita e argumentada, vê-se que a coisa afinal não é assim tão fácil como pode parecer” (Q 16, 12, 1.874 [CC, 4, 50]). G., na verdade, não considera a espontaneidade, a naturalidade um valor em si; todavia, considera a exaltação romântica do que é natural “historicamente justificado na medida em que nasce em oposição a um certo conformismo essencialmente ‘jesuítico’: ou seja, um conformismo artificial” (Q 14, 61, 1.719 [CC, 6, 248]). G. critica a opinião comum segundo a qual “tudo o que existe é ‘natural’ que exista” (Q 15, 6, 1.760 [CC, 3, 328]): na verdade, “nada do que existe é natural (no sentido extravagante da palavra), mas existe porque existem determinadas condições” (idem). Por isso, G. rejeita a “teoria fatalista daqueles grupos que compartilham a concepção da ‘naturalidade’ segundo a ‘natureza’ dos animais” (Q 16, 12, 1.878 [CC, 4, 54]), para a qual o ambiente social seria a causa da ação humana. De fato, dessa forma, se oculta a responsabilidade pessoal atrás da “responsabilidade social abstrata e inalcançável” (idem). Igualmente, G. recusa qualquer tentativa de naturalizar a situação de atraso de um país: “A pobreza relativa ‘natural’ de cada país na civilização moderna (e em tempos normais) tem também uma importância relativa” (Q 19, 6, 1.990 [CC, 5, 43]). É a própria forma de superprodução que assume a crise econômica nas sociedades capitalistas que mostra como o problema não é “de riqueza ‘natural’ [...], mas de organização social” (ibidem, 1.991 [CC, 5, 44]). O problema é que com o termo “natural” se entende geralmente algo de eterno, uma vez que “os modos de vida aparecem a quem os vive como absolutos, ‘como naturais’” (Q 14, 67, 1.727 [CC, 1, 258]). Trata-se, na verdade, de uma “segunda natureza”, do conjunto dos costumes que numa determinada época tornam-se patrimônio comum. Nessa ótica, toda a história do desenvolvimento técnico e industrial pode ser interpretada como uma luta conta a natureza imediata do homem, “um processo ininterrupto, frequentemente doloroso e sangrento, de sujeição dos instintos (naturais, isto é, animalescos e primitivos)” (Q 22, 10, 2.160 [CC, 4, 262]). A atividade industrial exige, na verdade, “um processo de adaptação psicofísica a determinadas condições de trabalho, de nutrição, de habitação, de costumes etc., que não é algo inato, ‘natural’” (Q 22, 3, 2.149 [CC, 4, 251]). Tal desenvolvimento da sociedade passa pela regulação, ou melhor, pela repressão dos instintos sexuais ‘naturais’. As contradições que tal processo, imposto pelo exterior, produziu fazem com que ele seja com frequência considerado “inatural”, originando, consequentemente, o apelo do retorno à natureza. G. considera a própria psicanálise “um modo de criticar a regulamentação dos instintos sexuais de forma por vezes ‘iluminista’, com a criação de um novo mito do ‘selvagem’ com base sexual” (ibidem, 2.148 [CC, 4, 249-50]).
Assim, em sua opinião, a natureza não é algo “fixo, imutável e objetivo” (Q 16, 12, 1.874 [CC, 4, 50]). Em oposição ao materialismo vulgar, G. considera a “matéria” “social e historicamente organizada para a produção e, desta forma, a ciência natural deve ser considerada essencialmente como uma categoria histórica” (Q 11, 30, 1.442 [CC, 1, 160]). Por isso se pergunta se a redução crociana da natureza a categoria econômica não poderia ser reduzida “aos termos da filosofia da práxis” (ibidem, 1.443 [CC, 1, 160]). Ele também se pergunta se é possível falar de “descoberta” em relação a forças naturais pré-existentes à atividade humana ou se cabe considerá-las “‘criações’ que são estreitamente ligadas aos interesses da sociedade” (idem). Em seu ponto de vista, uma força natural, por exemplo, a eletricidade, “é historicamente ativa, mas não como mera força natural [...], e sim como um elemento de produção dominado pelo homem” (idem). Como força natural, mesmo existindo antes de se tornar uma força produtiva para o homem, “não operava na história, sendo um tema para hipóteses na ciência natural (e, antes, era o ‘nada’ histórico, já que ninguém se ocupava dela e, ao contrário, todos a ignoravam)” (ibidem, 1.443-4 [CC, 1, 161]). Do mesmo modo, segundo G., “a unidade do gênero humano não é dada pela natureza ‘biológica’ do homem; as diferenças do homem que têm importância na história não são as biológicas” (Q 7, 35, 884 [CC, 1, 244]). A natureza do homem não é a mesma nas diferentes épocas históricas e “não pode ser encontrada em nenhum homem particular, mas em toda a história do gênero humano” (ibidem, 885 [CC, 1, 245]). A partir do momento em que “o homem se torna homem, muda constantemente com as mudanças das relações sociais” (idem), não é possível falar de uma natureza humana em geral; essa nada mais é do que “o conjunto das relações sociais, que determina uma consciência historicamente definida” (Q 16, 12, 1.874 [CC, 4, 51]), que é a única que define o que deve ser considerado “natural”. Trata-se, portanto, de fazer emergir a historicidade dos arranjos sociais, para demonstrar que a racionalidade deles, que os faz parecerem “naturais”, funda-se em condições determinadas; com a mudança dessas condições tais arranjos “não mais se justificam, são ‘irracionais’” (Q 14, 67, 1.727 [CC, 1, 258]). O marxismo surge justamente da historicização do modo de produção capitalista e de seus automatismos e, assim, se define como uma crítica da economia política, a qual, por sua vez, os concebe “como ‘eternos’, ‘naturais’” (Q 11, 52, 1.478 [CC, 1, 195]).
Em linhas mais gerais, G. se contrapõe à concepção segundo a qual existiriam leis objetivas, pensadas em analogia com as leis naturais, na base do desenvolvimento histórico. Tal concepção se sustenta em “um finalismo fatalista similar ao fatalismo religioso”, daí que seria inútil e até danosa “qualquer iniciativa voluntária” (Q 13, 23, 1.612 [CC, 3, 69]). Por isso, em sua opinião, não se pode fundar uma formação política “por ‘cooptação’ em torno de um ‘portador infalível da verdade’, [...] que encontrou as leis naturais infalíveis da evolução histórica” (Q 13, 38, 1.650 [CC, 3, 108]), já que tal organização seria dirigida por “um sistema doutrinário rígida e rigorosamente formulado, [...] algo artificial” (Q 3, 56, 337 [CC, 3, 199]). Da mesma forma, G. se contrapõe às concepções políticas não realistas, isentas de “experimentalidade”: para ele, a “vontade coletiva” não se forma nem espontânea nem mecanicamente, pois não é “um dado de fato natural” (Q 15, 35, 1.789 [CC, 3, 334]).
Se G. tem uma posição crítica em relação ao que é apresentado como “natural”, utiliza o termo contrário, “artificial”, numa acepção negativa em referência à esfera individual, enquanto, em relação aos fenômenos de massa, esse termo assume o valor de “adquirido através do desenvolvimento histórico” (Q 16, 12, 1.878 [CC, 4, 55]). Seria errado, portanto, considerá-lo negativamente, uma vez que é atravessado “inclusive na consciência comum com a expressão ‘segunda natureza’” (idem). De fato, frequentemente, “os termos ‘artificial’ e ‘convencional’ indicam fatos ‘históricos’, produzidos pelo desenvolvimento da civilização, e não construções racionalisticamente arbitrárias ou individualmente artificiais” (Q 11, 20, 1.419 [CC, 1, 137]). Assim, por exemplo, as “noções de ‘Oriente’ e ‘Ocidente’” não “deixam de ser ‘objetivamente reais’, ainda que, quando analisadas, demonstrem ser nada mais do que uma ‘construção’ convencional, isto é, ‘histórico-cultural’” (idem). O termo “artificial” é, por sua vez, geralmente utilizado por intelectuais conservadores para criticar, em nome de um método que se pretende inspirado pelas ciências naturais, não apenas as revoluções, mas o próprio conceito de igualdade, considerados artifícios contrários à natureza. Tais posições subentendem, segundo G., um conceito do que seria natural “verdadeiramente convencional e artificial porque a realidade o destruiu” (Q 2, 91, 249 [CC, 3, 173]). Dessa forma, consideram-se naturais e legítimas apenas as ações históricas que tendem “a restaurar o que passou, como se o que passou e foi destruído não fosse tão ‘ideológico’, ‘abstrato’, ‘convencional’ etc., quanto o que até agora não se efetivou, e até mesmo muito mais” (idem).
Renato Caputo
Ver: homem; natureza; objetividade.
Nos Q, “naturalismo” apresenta duas acepções. Por um lado, o termo, combinado com “materialismo”, é usado para indicar velhas e novas formas de “imanência”, de “reação ao transcendente católico”, como “o espiritismo e a magia” renascentistas (Q 17, 3, 1.909 [CC, 5, 338]); por outro lado, o termo indica prevalentemente a corrente literária francesa homônima, alçada a símbolo da progressiva aproximação do real já em curso desde o Renascimento (Q 5, 104, 633 [CC, 6, 178]), além da revolucionária ruptura com uma concepção aristocrática da literatura. Por essas suas prerrogativas, o “naturalismo francês moderno” constitui, para G, a medida para avaliar a posição dos veristas italianos e denunciar seus limites. Diante da “atitude de fria impassibilidade científica e fotográfica” com que na Itália tinha se traduzido, “mais racionalmente do que por Zola” (Q 8, 9, 943 [CC, 6, 213]), a pretensão naturalista da objetividade experimental, G. não exclui que esta possa derivar dos próprios fundamentos da poética naturalista. Comentando a resenha de Giulio Marziot sobre o romance de Lina Pietravalle, Le catene [As cadeias], ele se pergunta “se o naturalismo francês não continha em germe a posição ideológica que, depois, teve grande desenvolvimento no naturalismo ou realismo italiano, e especialmente em Verga: o povo do campo é visto com ‘distanciamento’, como ‘natureza’ extrínseca ao escritor, como espetáculo natural” (Q 6, 9, 688). Não tem dúvidas, porém, ao atribuir a responsabilidade disso às carências constitutivas da cultura e da literatura italianas, ao fato de que – como sente necessidade de pontuar na conclusão da mesma nota – “na Itália o motivo ‘naturalista’ se enraizou numa posição ideológica pré-existente, como se vê em Os noivos, de Manzoni, em que existe o mesmo ‘distanciamento’ em relação aos elementos populares, distanciamento apenas velado por um benévolo sorriso irônico e caricatural” (idem).
Marina Paladini Musitelli
Ver: Manzoni; Verga; verismo.
G. utiliza o termo “natureza” principalmente em sua declinação de “natural”; em particular, contrapõe uma ideia de natureza humana, de ascendência marxiana, à acepção de “direito natural”, utilizada pelo mundo católico, ou àquela de “justo e normal”, que, na realidade, é tal apenas em razão da “nossa consciência histórica atual” (Q 16, 12, 1.874 [CC, 4, 51]). Com Marx, G. defende que a natureza humana não é “nada de fixo, imutável e objetivo”, mas é “o conjunto das relações sociais que determina uma consciência historicamente definida” e que “só essa consciência pode indicar o que é ‘natural’ ou ‘contra a natureza’” (idem). A natureza humana não é, portanto, “algo homogêneo para todos os homens em todos os tempos” (ibidem, 1.875 [CC, 4, 51]), ao contrário, é mutável, uma vez que “sendo contraditório o conjunto das relações sociais, não pode deixar de ser contraditória a consciência dos homens” (ibidem, 1.874-5 [CC, 4, 51]), e com ela mudam as ideias que consolidam a maneira como o ser humano se comporta, já que essas são parte da consciência historicamente determinada do homem. Citando Engels, G. defende ainda que “os ‘instrumentos intelectuais’ [...] não são inatos no homem, mas são adquiridos e se desenvolveram e desenvolvem historicamente” (Q 11, 21, 1.421 [CC, 1, 139]). G. considera, então, os homens iguais em sua adaptabilidade social e, referindo-se a algumas grandes descobertas da história, ressalta como a existência é inseparável do pensamento. A eletricidade, por exemplo, sempre existiu e sempre foi observada em sua forma natural, mas, antes que fosse realmente compreendida e empregada para uso social, não se pode afirmar que tenha tido um efeito significativo sobre a consciência e sobre as relações humanas: “A ‘originalidade’” de uma descoberta, na verdade, “consiste tanto em ‘descobrir’ quanto em ‘aprofundar’, em ‘desenvolver’ e em ‘socializar’, isto é, em transformar em elemento de civilização universal” (Q 6, 77, 745 [CC, 2, 143]; v. também Q 11, 30, 1.442 [CC, 1, 160] e Q 11, 37-9, 1.455-9 [CC, 1, 172-6]). Essa ideia de natureza como um conjunto das atividades humanas, sociais e produtivas historicamente determinadas, é considerada por G. a “inovação fundamental introduzida pela filosofia da práxis na ciência da política e da história”, pois demonstra “que não existe uma ‘natureza humana’ abstrata, fixa e imutável (conceito que certamente deriva do pensamento religioso e da transcendência)” (Q 13, 20, 1.598-9 [CC, 3, 56]). Da mesma forma, pensadores como Spirito e Volpicelli, segundo G., também apresentam uma “concepção da ‘natureza humana’ idêntica e sem desenvolvimento”, que considera os seres humanos meramente “iguais no reino do Espírito” (Q 6, 82, 756 [CC, 3, 236]).
Todavia, G. não acredita, de modo determinístico, que a natureza humana torne o homem capaz de operar espontaneamente para o bem coletivo, que ele possa ignorar qualquer tipo de autoridade. Há algumas passagens nas LC que contêm indicações quanto à educação das crianças, em que G. se opõe à visão espontaneísta e metafísica da natureza humana como “o desenrolamento de um fio preexistente” (LC, 301, a Giulia, 30 de dezembro de 1929 [Cartas, I, 386]), defendida por sua mulher, segundo a qual a “criança” é “em potência todo o homem” e basta apenas “ajudá-la a desenvolver o que já contém em estado latente, sem coerções, deixando agir as forças espontâneas da natureza ou seja lá o que for”. Ele responde: “Ao contrário, eu penso que o homem é toda uma formação histórica obtida com a coerção [...] e é só o que penso: de outro modo, se cairia numa forma de transcendência ou de imanência” (idem). Mais uma vez, em relação à mesma questão, nas LC (LC, 252, a Tania, 22 de abril de 1929 [Cartas, I, 333]; LC, 283, à mãe, 9 de setembro de 1929 [Cartas, I, 365]; LC, 418, a Teresina, 4 de maio de 1931 [Cartas, II, 43]), mas também em várias observações dos Q, o pensador sardo refere-se à necessidade do “vigilante, mas evidente, controle do mestre” (Q 1, 123, 114 [CC, 2, 62]) e defende que o hábito de estudo não é algo que possa oferecer um prazer espontâneo à criança, ao contrário, trata-se de “um hábito adquirido com esforço, aborrecimento e até mesmo sofrimento” (Q 12, 2, 1.549 [CC, 2, 51]). Cabe fazer que a criança adquira certos hábitos de diligência, compostura física e concentração psíquica que só se pode ter “mediante uma repetição mecânica de atos disciplinados e metódicos” (ibidem, 1.544 [CC, 2, 46]). Nesse sentido, “a educação é uma luta contra os instintos ligados às funções biológicas elementares, uma luta contra a natureza, a fim de dominá-la e criar o homem ‘atual’ à sua época” (Q 1, 123, 114 [CC, 2, 62]).
G. polemiza também com as posições libertárias do escritor alemão Hans Frank, segundo o qual “o exame pessoal se opõe ao princípio da autoridade [...], que não passa de coerção, pressão, deformação arbitrária da vida pública e da natureza humana” (Q 3, 3, 287 [CC, 2, 74]). Tal maneira de ver a positividade é considerada por G. “resíduo do espontaneísmo, do racionalismo abstrato que se baseia num conceito de ‘natureza humana’ abstratamente otimista e superficial” (Q 6, 98, 774 [CC, 3, 249]). Quanto à “animalidade” do homem, G. defende uma posição de pessimismo antropológico: em “Animalidade e industrialismo”, julga positivamente a “luta contínua contra o elemento ‘animalidade’ do homem, um processo ininterrupto, frequentemente doloroso e sangrento, de sujeição dos instintos (naturais, isto é, animalescos e primitivos)” (Q 22, 10, 2.160 [CC, 4, 262]).
O fato de G. considerar inevitável um elemento de coerção da natureza humana, que, de outra forma, poderia dar origem a exemplos de imoralidade, pode ser percebido, por fim, no papel que ele atribui ao Estado. Certamente G. julga necessária, em última análise, a abolição do Estado como domínio de uma classe sobre outra, insistindo ser necessário um “sistema de princípios que afirmam como fim do Estado o seu próprio fim [...], isto é, a reabsorção da sociedade política na sociedade civil” (Q 5, 127, 662 [CC, 3, 222-3]). Mas, por outro lado, considera essencial para a existência da sociedade humana a coerção exercida pelo Estado, principalmente na fase inicial de edificação do socialismo. Nessa direção, movem-se as reflexões de seus artigos sobre as ações de Lenin durante a Revolução de Outubro: abolir a coerção teria sido “absurdo”, o que está acontecendo na Rússia é “o chamamento de todos os homens para o exercício da soberania estatal” (“L’ultimo tradimento” [A última traição], 3 de janeiro de 1918, em CF, 537). Num artigo de maio de 1919, ele defende ainda que “o Estado é a própria sociedade como ato concreto de vontade superior ao arbítrio individual, à facção, à desordem, à indisciplina individual” (“Il bordello bolscevico” [O bordel bolchevique], ON, 32).
Manuela Ausilio
Ver: criança; Croce; direito natural; educação; Engels; homem; Marx; natural-artificial.
v. homem.
A história do náufrago que se torna antropófago é atravessada por profundas raízes autobiográficas e densas implicações filosóficas. Ela aparece na carta para a cunhada Tania, do dia 6 de março de 1933, não incluída na primeira edição da Einaudi de 1947. O apólogo, formulado inicialmente durante uma conversa com a mesma Tania, se insere no contexto de um radical agravamento das condições de saúde do prisioneiro (de fato, será gravíssima a crise do dia seguinte, 7 de março de 1933). O conto deve ser lido, então, como um texto de literatura moral, ou seja, marcado por uma tensão construtiva e desenvolvido por G. a título de vontade de “compreensão crítica” de si mesmo. Cabe observar que G., mesmo na dramaticidade do contexto – o perigo de um poder que vai além da “rotina carcerária” (LC, 222, a Giulia, 19 de novembro de 1928 [Cartas, I, 300]) e da doença –, não vive o conto como depósito diretamente autobiográfico, mas numa tensão histórico-política voltada para a construção da autobiografia. Assim, pode-se dizer que G. constrói uma autonarrativa por meio da comparação com a história de um grupo de náufragos: “Antes do naufrágio, como é natural, nenhum dos futuros náufragos pensava em se tornar... náufrago e, portanto, menos ainda pensava em ser levado a cometer atos que os náufragos, em certas condições, podem cometer, por exemplo, o ato de se tornarem... antropófagos. Cada um deles, se interrogado friamente sobre o que faria diante da alternativa de morrer ou se tornar canibal, teria respondido, com a máxima boa-fé, que, dada a alternativa, escolheria livremente morrer. Acontece o naufrágio, o refúgio no barco etc. Depois de alguns dias, faltando alimentos, a ideia do canibalismo se apresenta sob uma luz diferente, até que, num certo ponto, entre aquelas pessoas determinadas, um certo número se torna realmente canibal. Mas, na realidade, trata-se das mesmas pessoas?”. De fato, nesse interim, ocorreu “um processo de transformação ‘molecular’, por mais rápido que tenha sido, no qual as pessoas de antes não são mais as pessoas de depois” (LC, 692-3, a Tania, 6 de março de 1933 [Cartas, II, 315]).
A dramaticidade do conto, determinada pela origem autobiográfica – “uma mudança semelhante está acontecendo em mim (canibalismo à parte)” (ibidem, 693 [Cartas, II, 315]) –, valoriza, não deprecia, a dimensão teórica da reflexão que o fundamenta. Emerge, assim, nesse momento da reflexão no cárcere o “problema filosófico da ‘pessoa’” (Gerratana, 1997b, p. 127) sob a forma de uma teoria materialista dos processos de formação e transformação da personalidade. G. lê em chave molecular a relação entre o elemento corpóreo-senciente e o elemento voluntário na constituição da personalidade, remetendo também o nexo corpo-mente à sua historicidade, isto é, à sua possibilidade de transformação, contra qualquer risco de interpretação subjetivista ou determinista do problema da pessoa: “A mudança ‘molecular’” é, na verdade, também “metáfora materialista de um processo moral” (ibidem, p. 131). Há uma tensão entre a exposição do elemento corpóreo-senciente ao processo de transformação e a resistência construtiva do elemento consciente-voluntário que observa o processo, mas é inevitavelmente sujeito ao mesmo processo de transformação molecular-moral: “O mais grave é que, nestes casos, a personalidade se desdobra: uma parte observa o processo, outra parte o sofre; mas a parte observadora (enquanto esta parte existe, significa que existe um autocontrole e a possibilidade de se recuperar) sente a precariedade da própria posição, isto é, prevê que acontecerá um ponto no qual sua função desaparecerá, isto é, não haverá mais autocontrole, mas toda a personalidade será engolida por um novo ‘indivíduo’ [...]. Pois bem, eu me encontro nesta situação. Não sei o que pode restar de mim depois do fim do processo de mudança, que sinto em curso de desenvolvimento” (LC, 693, a Tania, 6 de março de 1933 [Cartas, II, 316]). Portanto, a metáfora do molecular remete ao nexo corpo-mente (em consonância com G., o “nexo psicofísico”) e se torna o fulcro de uma teoria radicalmente imanentista dos processos de subjetivação.
O núcleo teórico e o conto são desenvolvidos nos Q, nas “Notas autobiográficas”. Portanto, também nos Q, essa reflexão, ainda que generalizada, se explicita por sua raiz autobiográfica, isto é, material e experiencial: “Como comecei a julgar com maior indulgência as catástrofes do caráter. Pela experiência do processo através do qual as catástrofes acontecem”. Aqui G. distingue entre quem repentinamente trai os seus princípios e, em consequência, não merece nenhuma indulgência, e quem sofre “mudanças ‘moleculares’”: “o movimento ‘molecular’ é o mais perigoso, uma vez que, enquanto mostra no sujeito a vontade de resistir, ‘deixa entrever’ (a quem reflete) uma mudança progressiva da personalidade moral, que num certo ponto passa de quantitativa a qualitativa: ou seja, não se trata mais, na verdade, da mesma pessoa, mas de duas” (Q 15, 9, 1.762 [CC, 4, 132]).
Nesse ponto, a tematização antimoralista e política do tema da responsabilidade pessoal se vincula à abordagem materialista-molecular dos processos de transformação da “personalidade moral”. G. reivindica explicitamente um ponto de vista “antimoralista”: contra a “concepção falsamente heroica, retórica, fraseológica [...] todo esforço de luta é pouco” (ibidem, 1.764 [CC, 4, 134]). Ele trata desse conceito por meio de outra imagem, aquela do capitão que, também num caso de naufrágio, só deve abandonar o navio por último, com a garantia de já ter feito de tudo para evitar o naufrágio e salvar coisas e pessoas: “Só o princípio, tornado ‘absoluto’, de que o capitão, em caso de naufrágio, abandona o navio em último lugar e até soçobra com ele, dá esta garantia, sem a qual a vida coletiva é impossível”. Daí a necessidade política, “não moral”, de sancionar também as mudanças moleculares da personalidade. Aliás, G. considera “‘moralmente’ mais justificável quem se modifica ‘molecularmente’ (por força maior, claro)” em relação a quem “se modifica de repente, embora por hábito se pense de modo diverso” (ibidem, 1.763 [CC, 4, 132-3]).
G. retoma aqui o tema da formação de uma nova personalidade pelo exemplo do canibalismo: após ter sofrido “um processo ‘invisível’ [e molecular]” que destruiu suas “forças físicas e morais”, ou seja, que trouxe notáveis “modificações no seu eu”, a mesma pessoa diante do dilema de se tornar canibal ou se matar não raciocinaria mais como se estivesse no auge de suas forças e, portanto, se tornaria canibal. Eis o “drama”: “Fulano prevê o processo de dissolução, isto é, prevê que se tornará... canibal, e pensa: se isto acontecer, num certo ponto do processo me mato. Mas qual será este ‘ponto’?”. Ou seja, ele se encontrou “em pleno processo de transformação além daquele ponto em que suas forças ainda eram capazes de reagir” (ibidem, 1.763-4 [CC, 4, 133-4]): o ponto em que, no curso do processo molecular de transformação, a mudança, de quantitativa, torna-se qualitativa e é determinada a “catástrofe do caráter”; um ponto não predeterminável e identificável, talvez exatamente como o momento em que a consciência cessa de estar presente para si mesma e deixa de se dar conta do processo. E então, justamente em razão da ausência de consciência, não é possível traçar “uma linha clara de demarcação temporal entre as ‘duas pessoas’” (Cavallaro, 2001, p. 52). Tal processo, “próprio do indivíduo, pode ser considerado coletivo” (Q 15, 9, 1.764 [CC, 4, 133]). Referindo-se ao regime fascista, G. afirma que o processo “no presente assumiu uma sua forma especial e... voluntária”, isto é, “o evento é preparado sistematicamente”, “em massa” – também na “‘atenção’ aos indivíduos” – com um “elemento ‘terrorista’ [...] material e mesmo moral”. Daí a responsabilidade de quem não impediu que “se tivesse de passar por certas provas” (idem), que o prisioneiro fosse exposto ao risco do naufrágio.
Eleonora Forenza
Ver: autobiografia; canibalismo; catastrófico; indivíduo; molecular; personalidade; pessoa; quantidade-qualidade.
O conceito aparece no pensamento de G. primeiro na acepção idealista hegeliana (e crociana): liberdade é condicionamento histórico (“Libero pensiero e pensiero libero” [Livre pensamento e pensamento livre], 15 de junho de 1918, em NM, 113 [EP, 1, 178]); o “determinismo econômico”, passando pela “autoconsciência histórica da classe trabalhadora”, torna-se “norma de ação”, a necessidade torna-se “consciência” (“Stato e sovranità” [Estado e soberania], 1-28 fevereiro de 1919, NM, 519 [EP, 1, 219]), o espírito universal se realiza progressivamente no indivíduo (ibidem, 521) etc. Essa mesma acepção é retomada nos Q e progressivamente repensada à luz da filosofia da práxis. G. dá partida a uma reflexão explícita sobre o que é a “necessidade” no Q 4, 40, 465-6 [CC, 6, 362], em que é retomada a célebre frase engelsiana sobre o “salto da humanidade do reino da necessidade para o reino da liberdade” (Engels, 1985, p. 273), logo após (Q 4, 45, 471 [CC, 6, 363]) projetada para definir a própria natureza do materialismo histórico, filosofia do tempo da necessidade, que é destinada a desaparecer com as contradições de que é a teoria. Mais tarde, G. retorna ao tema comparando Marx e Lenin em analogia à relação entre Cristo e São Paulo: “Traçar um paralelo entre Marx e Ilitch, buscando determinar uma hierarquia, não tem sentido e é ocioso; eles expressam duas fases: ciência-ação, que são simultaneamente homogêneas e heterogêneas” (Q 7, 33, 992 [CC, 1, 243]).
A forma de existência atual do materialismo histórico é, pois, a ação, a organização capaz de realizar essa passagem da necessidade à liberdade. E isso só é possível com a condição de construir uma vontade coletiva, na qual a identificação de liberdade e necessidade já esteja iniciada, já seja uma forma de ação. O “novo Príncipe” terá, portanto, de definir “a ‘vontade coletiva’ e a vontade política em geral no sentido moderno, a vontade como consciência operosa da necessidade histórica, como protagonista de um drama histórico real e imediato” (Q 8, 21, 952 [CC, 6, 376]). Surge, assim, o problema político que leva a determinar o que é essa “necessidade histórica”, com a qual a vontade política, para ser eficaz, deve se identificar. Estamos no início de 1932, todo o primeiro semestre desse ano é dominado por uma série de textos em que G. revoluciona completamente o significado de tal conceito, levando-o a identificar-se com os conceitos de “regularidade” e de “automatismo” e reunindo todos sob uma ideia de nova imanência, não especulativa e não metafísica, mas historicista e realista. A primeira referência se dá no Q 8, 128, que, porém, aparece ainda com o título de “Scienza economica” [Ciência econômica] (é o título do texto, escrito na seção miscelânea do caderno). Apenas depois, presumivelmente pouco depois, em Apontamentos de filosofia. Materialismo e idealismo. Terceira série, G. remete a esse texto, sob o título de “Introdução ao estudo da filosofia. Sobre o conceito de regularidade e de lei nos fatos históricos” (Q 8, 222, 1.081). De fato, já no Q 8, 153, 1.033, ele havia escrito: “É preciso se convencer de que não só é ‘objetiva’ e necessária certa ferramenta, bem como um certo modo de se comportar, uma certa educação, uma certa civilização; nessa objetividade e necessidade histórica pode-se colocar a universalidade do princípio moral, ou melhor, nunca existiu outra universalidade além dessa objetiva necessidade, explicada com ideologias transcendentes e apresentada da forma mais eficaz caso a caso para que se obtivesse a finalidade”.
A universalidade, a necessidade, a objetividade se constituem historicamente, de maneira imanente, num enorme conjunto de ações individuais que, por mais “arbitrárias” que sejam, não se opõem ao automatismo, ao contrário, ele é constantemente reabsorvido pela sua pressão e coerção extralegal (é preciso verificar de que modo essa pressão social se exerce): “Em cada momento existe uma escolha livre, que ocorre segundo certas linhas diretivas idênticas para uma grande massa de indivíduos ou vontades singulares, na medida em que estas se tornaram homogêneas em um determinado clima ético-político. Não se trata de afirmar que todas atuam da mesma maneira: ao contrário, os arbítrios individuais são múltiplos, mas a parte homogênea predomina e ‘dita lei’” (Q 10 II, 8, 1.246 [CC, 1, 316]). A falta de qualquer fundamento transcendente, legitimação transcendental, ou de qualquer correspondência a um “princípio” histórico-universal não torna menos eficaz essa construção de universalidade, simplesmente permite pensá-la sem cair na metafísica.
Há necessidade quando há suficiente generalização de um automatismo, o que, como já se disse, compreende também a sua “organização” (v. Q 13, 7, 1.566 [CC, 3, 23] sobre a noção de “indiferente jurídico”): “No sentido histórico-concreto, a necessidade é dada pela existência de uma premissa eficiente que tenha se tornado operante como uma ‘crença popular’ na consciência coletiva. Na premissa estão contidas as condições materiais suficientes para a realização do impulso de vontade coletiva” (Q 8, 237, 1.089). Esse conceito de necessidade é, portanto, segundo G., fruto da tradução em termos filosóficos da elaboração econômica de Ricardo: “A descoberta do princípio lógico formal da ‘lei tendencial’, que conduz à definição científica dos conceitos fundamentais na economia, o de homo economicus e o de ‘mercado determinado’, não foi uma descoberta de valor também gnosiológico? Não implica, precisamente, uma nova ‘imanência’, uma nova concepção da ‘necessidade’ e da liberdade etc.? Esta tradução, ao que me parece, foi realizada precisamente pela filosofia da práxis, que universalizou as descobertas de Ricardo, estendendo-as adequadamente a toda a história e extraindo delas, portanto, uma nova concepção do mundo” (Q 10 II, 9, 1.247 [CC, 1, 318]).
Então como redefinir, com base nisso, a noção de liberdade-necessidade? Num Texto B do Q 11, G. escreve: a “vontade racional, não arbitrária” é aquela “que se realiza na medida em que corresponde às necessidades objetivas históricas, isto é, em que é a própria história universal no momento da sua atuação progressiva” (Q 11, 59, 1.485 [CC, 1, 202]). Mas a noção de “história universal”, a esse ponto, deve ter assumido um significado diferente: de uma perspectiva de imanência realista, ela não poderá ser “antecipada” por ninguém, mas poderá se delinear apenas nos efeitos, caso a caso “regularizados” e tornados “necessitantes” (e obrigatórios) da totalidade dos arbítrios individuais. Essa consideração chega, de forma clara, ao Q 14, 61 [CC, 6, 248] e Q 14, 65 [CC, 6, 250], no contexto de uma discussão sobre o que pode ser uma “literatura segundo um projeto”, como forma de “racionalismo” no contexto da literatura popular: “Qual é o ‘verdadeiro conformismo’, isto é, qual é a conduta ‘racional’ mais útil, mais livre, na medida em que obedece à necessidade? Ou seja: qual é a ‘necessidade’? Cada um é levado a fazer de si o arquétipo da ‘moda’, da ‘socialidade’, e a apresentar-se como ‘exemplar’. Portanto, a socialidade, o conformismo é resultado de uma luta cultural (e não apenas cultural), é um dado ‘objetivo’ ou universal, do mesmo modo como não pode deixar de ser objetiva e universal a ‘necessidade’ sobre a qual se eleva o edifício da liberdade. Liberdade e arbítrio etc.” (Q 14, 61, 1.720 [CC, 6, 249]). A liberdade que se opõe ao arbítrio é tal porque não pode ser planificada arbitrariamente. Previsível é apenas a luta, o que não exime do empenho de organizar suas fases, porque somente assim uma força social é capaz de tirar a iniciativa de sua adversária. Portanto, “a questão não diz respeito à coerção, mas ao fato de se tratar de racionalismo autêntico, de real funcionalidade, ou de um ato de arbítrio” (Q 14, 65, 1.725 [CC, 6, 250]). Toda a questão se concentra em torno do tipo de organização, da forma política que a “necessidade” assume no partido político, da sua natureza mais ou menos democrática e, enfim, da possibilidade de organizar um conformismo que seja realmente de tipo novo, a começar pelo modo como é construído: “Coloca-se o problema de saber se é possível criar um ‘conformismo’, um homem coletivo, sem desencadear uma certa dose de fanatismo [...], de modo crítico [...], como consciência de necessidade livremente aceita, porque ‘praticamente’ reconhecida como tal, através de um cálculo de meios e fins a adequar etc.” (Q 15, 74, 1.834 [CC, 1, 265]).
Fabio Frosini
Ver: automatismo; Engels; filosofia da práxis; imanência; leis de tendência; liberdade; materialismo histórico; mercado determinado; objetividade; previsão; regularidade; Ricardo; universal; vontade coletiva.
v. Croce.
Norte e Sul constituem uma dupla de termos quase sempre citados simultaneamente nos Q. A reflexão é, antes de tudo, de tipo histórico e desde o Q 1 segue substancialmente o que já havia sido afirmado em A questão meridional. A diferença entre Norte e Sul era dada sobretudo pela composição social: as massas camponesas do Sul eram obrigadas a manter economicamente com o próprio trabalho uma quantidade muito grande de população passiva de arrendatários. Com a unificação nacional, a atrasada estrutura meridional passou a ser explorada, tornou-se permanente e foi até acentuada, para drenar as economias de suas classes parasitárias em direção ao Norte. Na economia agrícola do Sul, o protecionismo agrário da esquerda histórica só trouxe vantagens para os grandes proprietários meridionais e para o próprio Norte, grande produtor de cereais. As outras culturas meridionais, voltadas principalmente para o mercado externo, sofreram graves danos do protecionismo, concebido, em especial, para incrementar a produção industrial do Norte (Q 15, 44, 1.804-5, Texto B [CC, 5, 325]).
A política perseguida pelo Partido Liberal até Giolitti e, depois, pelo fascismo, consistia em criar no Norte um bloco urbano (capitalistas-operários) que fosse a base do Estado protecionista, para reforçar a indústria setentrional da qual o Mezzogiorno era mercado de venda. O aspecto particular que assume a Itália central é o de meio de caminho entre o Norte e o Sul. O Mezzogiorno tinha de ser subjugado pelo Norte em uma típica relação semicolonial por meio de dois sistemas: a) controle policial (repressão implacável de qualquer movimento de massa, massacres periódicos de camponeses), combatendo toda difusão do socialismo; b) apoio político aos intelectuais do Sul (burocratas, eclesiásticos, intelectuais tradicionais), como expressão da grande propriedade agrícola, por meio de favores pessoais e de várias formas de privilégio. Toda manifestação intelectual que pudesse expressar ou organizar o descontentamento dos campos do Sul deveria ser sufocada logo no início. Assim, o descontentamento dos campos não podia assumir um aspecto político organizado e as suas manifestações, caóticas e tumultuadas, foram reduzidas a um problema de ordem pública a ser enfrentado pela polícia.
G. considera óbvio que Giolitti tenha sempre se oposto a toda difusão do socialismo no Mezzogiorno: o protecionismo operário encorajado pelo estadista piemontês (reformismo, cooperativas, obras públicas) no Norte trouxe apenas uma vantagem parcial para a classe operária, pressupondo o sacrifício de outros grupos operários e dos camponeses. Em consonância, foram tomadas medidas políticas voltadas a promover no Sul favores clientelistas para a pequena burguesia (empregos públicos, favorecimento para o controle das administrações públicas, legislação eclesiástica menos rígida do que no Norte etc.), isto é, incorporando “a título pessoal” os meridionais mais ativos nas classes dirigentes, com particulares privilégios “judiciários”, empregatícios etc., de modo que o estrato que poderia organizar o descontentamento meridional se tornasse, ao contrário, um instrumento da política setentrional (Q 1, 43, 36; essa e as notas seguintes do Q 1 são retomadas no Q 19 [CC, 5]).
No Risorgimento já se verifica, embrionariamente, a relação histórica entre Norte e Sul como uma relação semelhante àquela de uma grande cidade e um grande campo, antes de tudo nas diferentes formas de cultura e num tipo diferente de intelectual: o intelectual de tipo “curial”, ilustre (e o “paglietta”[b], o rábula napolitano), que põe em contato a massa camponesa com os proprietários fundiários e com o aparato estatal do Mezzogiorno (no qual, ao termo “classe média”, é dado o significado de “intelectual”); o intelectual de tipo “técnico” de oficina, que serve de vínculo entre a massa operária e a classe capitalista, técnico esse que, com o sindicalista e o dirigente político, como vínculo entre massa operária e Estado (englobado pelas corporações na época do fascismo), representa o intelectual no Norte (idem).
A partir da unificação nacional, a política do Partido Liberal sofreu com a esquerda histórica até mesmo uma radicalização. Cavour advertia – recorda G. – para que não se tratasse o Mezzogiorno com estados de sítio, enquanto Crispi recorria a eles para combater o movimento dos Fasci na Sicília. Crispi se ligou aos latifundiários sicilianos com medo das reivindicações camponesas, no momento em que sua política tendia a reforçar o industrialismo setentrional com a guerra tarifária com a França e o protecionismo alfandegário. Ele não hesitou em lançar todo o Mezzogiorno numa crise comercial terrível para fortalecer a indústria, que devia dar ao país uma real independência além de expandir a classe dominante. O governo dos moderados, de 1861 a 1876, havia apenas criado as condições externas do desenvolvimento econômico setentrional (organização do aparato estatal, estradas, ferrovias, telégrafos) e havia sanado as finanças sobrecarregadas pelas dívidas do Risorgimento. Crispi foi o verdadeiro homem da nova burguesia (Q 1, 44, 45) e sua obstinada luta contra toda forma de separatismo entre Norte e Sul, uma verdadeira “obsessão unitária”, na realidade, nada tem de progressista, ainda que se revestindo de paixão antiborbônica. Sua política de expansão colonial também é ligada à mesma obsessão unitária: o camponês meridional queria a terra e Crispi, não podendo dar a ele terra na Itália, vislumbrou a miragem das terras coloniais. O imperialismo de Crispi, sem base econômica, foi combatido pelos próprios capitalistas, mas, no Mezzogiorno, Crispi foi popular em razão da miragem dessas terras (idem). Ele deu grande visibilidade aos intelectuais sicilianos graças ao seu fanatismo unitário (o que não impediu que os latifundiários sicilianos ameaçassem, por várias vezes, com a separação, para proteger seus interesses comprometidos pela agitação dos camponeses). Mas os movimentos de caráter regionalista e autonomista não devem ser interpretados, segundo G., da maneira unívoca de Crispi. A propaganda separatista e pró-borbônica levada adiante pelo jornal Il Mattino, de Nápoles, por exemplo, perseguia os interesses das classes proprietárias, mas o movimento autonomista da Sardenha tinha um significado diferente.
Entretanto, a miséria do Mezzogiorno continuava a ser historicamente inexplicável para as massas populares do Norte, que não entendiam que a unificação não tinha sido criada sobre uma base de igualdade, mas como hegemonia do Norte sobre o Sul, na relação territorial cidade-campo. Em outras palavras, que o Norte era um “polvo” que se enriquecia às custas do Sul e o seu incremento industrial era dependente do empobrecimento da agricultura meridional. As massas do Norte, porém, acreditavam que se o Mezzogiorno não progredia depois de ter sido libertado dos obstáculos ao desenvolvimento moderno que o borbonismo colocava, isso significava que as causas da miséria não eram externas, mas internas. Uma vez que já era arraigada a convicção da grande riqueza natural do terreno, só restava uma explicação: a incapacidade orgânica dos meridionais, sua inferioridade biológica. Essas opiniões já difusas (o “lazzaronismo” napolitano era uma lenda de velha data) foram consolidadas e teorizadas pelos sociólogos do positivismo (Niceforo, Ferri, Orano etc.), assumindo a força de verdade científica. Houve assim uma polêmica Norte-Sul sobre as raças, sobre a superioridade e a inferioridade do Norte e do Mezzogiorno. Enquanto isso, permanecia no Norte a ideia de que o Mezzogiorno representava para a Itália uma “bola de chumbo” acorrentada ao tornozelo, a convicção de que a civilização moderna industrial do Norte seria capaz de grandes progressos não fosse por essa bola de chumbo. No início do século, há uma forte reação meridional também nesse terreno, como as campanhas de Salvemini que culminaram na fundação de L’Unità, mas que já eram conduzidas por La Voce (ibidem, 47).
Nessa situação, fortalece-se o bloco intelectual liderado por Benedetto Croce e Giustino Fortunato, já apontados por G. em QM como “os reacionários mais operosos da península” (ibidem, 155). A ditadura de ferro desse tipo de intelectuais e de alguns grupos urbanos acentuou o mito da “fatalidade histórica” da unificação italiana, mais forte do que toda deficiência política e inaptidão militar. O período liberal, que culminou na era giolittiana, é “santificado” por Croce com adulação e é contraposto às caprichosas e desajeitadas tentativas do partido democrático. A maneira de representar os acontecimentos históricos em tal interpretação ideológica poderia se intitular “história fetichista”. Já para G., Giolitti foi a perfeita continuidade de Crispi, substituindo a violência com o zelo burocrático, mantendo a “miragem da terra” na política colonial, sustentando essa política com a promessa de criar as condições de liberdade de expansão para o futuro (Q 19, 24, 2.019 [CC, 5, 62]). Para diminuir a distância entre Norte e Sul, era preciso que Giolitti, representante da indústria do Norte, desse à nova burguesia mais espaço na direção do Estado, no lugar dos representantes das classes proprietárias de terras meridionais. Para G., Giolitti foi um grande conservador e um hábil reacionário que impediu a formação de uma Itália democrática, consolidou a monarquia e a uniu à burguesia, por meio do fortalecimento do poder executivo, que permitia colocar a serviço dos industriais todas as forças econômicas do país. Com a política de Giolitti, se aprofundou a distância entre Norte e Sul: foi ele o verdadeiro criador da estrutura contemporânea do Estado italiano, ao qual o fascismo só deu continuidade (Q 8, 96, 997, Texto B [CC, 5, 296]). O movimento cultural crociano do “unitarismo obsessivo” estende-se até Gobetti e encontra nele seu ponto de chegada e a origem de sua dissolução. De fato, Gobetti afirma que as diversas classes rurais e as camadas intelectuais podem intervir numa nova formação apenas aceitando as reivindicações camponesas e fazendo delas parte integrante do novo programa de governo (Q 19, 24, 2.013 [CC, 5, 62]).
Mas o programa de Giolitti encontrou, histórica e politicamente, um obstáculo sobretudo em dois fatores: a) o fortalecimento dos intransigentes no Partido Socialista com Mussolini e o seu namoro com os meridionalistas; b) a introdução do sufrágio universal, que alargava consideravelmente a base parlamentar no Mezzogiorno e criava dificuldades para a corrupção individual. Giolitti então substituiu o bloco urbano operários-empresários, por meio do Pacto Gentiloni, pelo bloco entre industriais setentrionais e rurais da campanha “orgânica e normal” (forças eleitorais católicas sobretudo no Norte e no Centro). A extensão do sufrágio havia suscitado, já em 1913, os primeiros traços do fenômeno que terá a máxima expressão em 1919-1921: o afastamento entre camponeses, guiados por uma parte dos intelectuais (ex-oficiais), e grandes proprietários, isto é, a ruptura relativa do bloco rural meridional. Tem-se, assim, o “sardismo”, o partido reformista siciliano e a “renovação” da Itália meridional com tentativas de partidos regionais de ação. Nesses movimentos, a importância da massa camponesa é inversamente proporcional à pressão exercida ideologicamente pelos grandes proprietários, que têm na Sicília um máximo de organização, enquanto na Sardenha sua importância é relativamente pequena. De igual importância é a independência relativa dos respectivos intelectuais (Q 19, 26, 2.039-41 [CC, 5, 87]).
A força rural, apesar de organizada como movimento autonomista ou regionalista, não expressou, segundo G., uma capacidade de iniciativa revolucionária de dimensão nacional. Os intelectuais rurais, de tipo tradicional, não eram orgânicos em relação aos camponeses, enquanto os intelectuais urbanos eram ligados demais aos interesses dos empresários para organizar a revolução em escala nacional. G. logo demonstra historicamente o quanto já havia afirmado, analisando não só as agitações do Risorgimento de 1820-1821, de 1831, de 1848, de 1859-1860, bem como aquelas posteriores à unificação. De 1820 a 1848, a iniciativa parte do Sul, repercutindo no Norte; apenas quando, em 1859-1860, inicia no Norte, chegando até o Sul, numa sincronia em sentido contrário, é que se obtém um sucesso definitivo. As greves de 1894 na Sicília e em Lunigiana tiveram um contragolpe em Milão, em 1898, assim como aquelas de 1919 no Mezzogiorno (ibidem, 2.037 [CC, 5, 87]) tiveram o seu contragolpe nas fábricas de Turim. Tudo isso demonstra como, nos períodos de “crise orgânica”, é a parte mais frágil, a região agrícola do Sul, que reage primeiro, sem conseguir, porém, resistir ao longo do tempo e se afirmar, freada pela “obsessão unitária” e abandonada por um Norte fechado em seus preconceitos. Coube à força urbana do Norte se pôr o problema de organizar ao seu redor as forças urbanas nacionais, sobretudo do Sul. Para G., é na solução desse problema, repleto de contradições, que se encontra a solução do problema nacional. Eleger a Áustria como inimigo comum não esgotava a “questão nacional” e não constituía, para G., nem mesmo seu aspecto fundamental. As forças urbanas do Norte tinham de ajudar as forças do Sul a se tornarem autônomas, a adquirir a consciência de sua função histórica dirigente de maneira concreta, e não puramente teórica e abstrata, sugerindo a elas as soluções para o problema regional fundamental: o problema agrário. Era natural que se encontrassem oposições no Sul; a tarefa mais grave cabia, porém, às forças urbanas do Norte, que não só deviam convencer seus “irmãos” do Sul, mas começar por se convencer dessa complexidade do sistema político (Q 1, 43, 38-40).
G. examina as razões socioeconômicas da submissão do Sul em relação ao Norte, mas também o papel que os intelectuais desenvolveram para perpetuar tal submissão, para justificar historicamente a impossibilidade de renovação social, chegando mesmo a impedir que a insatisfação se tornasse consciente. Benedetto Croce e Giustino Fortunato foram os líderes de um movimento cultural (idealista, classicista e ligado à cultura universal) que se contrapunha ao Norte (positivista e futurista). Os escritos pré-carcerários de G. são ricos de observações socioeconômicas e estruturais sobre a relação entre Norte e Sul. Nos Q, a abordagem do papel dos intelectuais nessa relação apresenta-se extremamente analítica; G. observa até como a Sicília se destaca intelectualmente do resto do Mezzogiorno, aproximando-se com Pirandello e Gentile do futurismo; essa mesma Sicília que tanta classe dirigente havia fornecido ao Estado unitário e onde o poder dos proprietários era mais opressor (Q 19, 26, 2.038 [CC, 5, 87]).
Por extensão, toda a reflexão gramsciana sobre o Sul da Itália e sobre suas relações com o Norte poderia ser válida para a atual relação entre o Norte e o Sul global – e por alguns autores, em primeiro lugar Edward Said, foi de fato lida dessa maneira – dada a relação de subordinação, sob muitos aspectos, semelhante àquela que havia, segundo G., entre o Norte e o Mezzogiorno da Itália. G. prevê, para o Sul do mundo ou para as colônias, enormes depósitos de desagregação social, espaços de fenômenos mais semelhantes à rebelião do que à revolução organizada, que exigiria a presença de intelectuais orgânicos; estes, porém, não podem se definir como tais sem uma resposta estrutural para os problemas socioeconômicos do Sul. Por outro lado, as forças progressistas do Norte não podem se abster de compreender e organizar ao mesmo tempo a renovação social no Mezzogiorno.
Bibliografia: Biscione, 1996; Montanari, 2007; Villari, 1977.
Elisabetta Gallo
Ver: camponeses; cidade-campo; colonialismo; colônias; Crispi; Croce; Giolitti; intelectuais; intelectuais italianos; Pirandello; protecionismo; questão meridional; Risorgimento; Salvemini; Sardenha/sardos.
Além dos usos correntes que faz desse adjetivo em sua escrita, G. não raramente lhe confere um valor peculiar e complexo. Para reconhecer tal valor, é oportuno considerar, como referência geral, a passagem dos Q em que, tendo como base a imagem do “próprio raio luminoso” que “passa por prismas diversos e dá refrações de luz diversas” e observando que “se quisermos a mesma refração é necessária toda uma série de retificações de cada prisma”, G. chega a delinear a qualidade mais própria e essencial “do crítico das ideias e do historiador do desenvolvimento social”: isto é, uma “metodologia” geral que consiste em “encontrar a real identidade sob a aparente diferenciação e contradição” e em “encontrar a substancial diversidade sob a aparente identidade” (Q 1, 43, 33-4). Especialmente a interação, a “fusão”, a “luta” entre o velho e o novo de que fala G. com frequência se colocam dentro dessa metodologia geral de conhecimento crítico, atenta à molecularidade dos processos históricos; pense-se naquela passagem dos Q em que, refletindo sobre um aspecto da crise moderna, aflorado a partir do final da Primeira Guerra Mundial, e geralmente citado como “onda de materialismo”, G. faz referência a uma espécie de “interregno” em que “o velho morre e o novo não pode nascer” (Q 3, 34, 311 [CC, 3, 184]).
Numa outra passagem, G. fala de “fusão entre o velho e o novo” para designar no século XIX a presença, na Inglaterra, de um fenômeno análogo àquele ocorrido na Alemanha: a velha aristocracia permanece “como camada governativa, com certos privilégios”, e se torna também ela “a camada intelectual da burguesia inglesa” (Q 1, 44, 53). Também a propósito do assim chamado conflito entre Estado e Igreja, definido, com uma desejada iunctura oximórica, como “categoria eterna histórica” e por ele entendido como símbolo do conflito historicamente recorrente “entre qualquer sistema de ideias cristalizadas, que representam uma fase ultrapassada da História, e as necessidades práticas atuais”, G. acredita poder chamar em causa a luta “entre o que foi pensado e o novo pensamento, entre o velho que não quer morrer e o novo que quer viver etc.” (Q 6, 139, 802 [CC, 3, 256]).
Também muito relevante, por fim, é a passagem em que G., interrogando-se sobre “por que e como se difundem, tornando-se populares, as novas concepções de mundo”, observa que esse processo de difusão é ao mesmo tempo um processo “de substituição do velho e, muito frequentemente, de combinação entre o novo e o velho” (Q 11, 12, 1.389-90 [CC, 1, 108]). Em seguida, precisa que a pesquisa em tal campo chama em causa especialmente as massas populares, já que nelas o processo de difusão das novas concepções de mundo não se verifica nunca de forma clara, mas de formas complexas e molecularmente complicadas. Segundo G., as massas populares “mais dificilmente mudam de concepção” e, quando mudam, não mudam nunca “aceitando a nova concepção em sua forma ‘pura’, por assim dizer, mas – apenas e sempre – como combinação mais ou menos heteróclita e bizarra” (ibidem, 1.390 [CC, 1, 108]).
Pasquale Voza
Ver: crise; molecular.
Para Kant, só é fenômeno aquilo que o conhecimento humano pode apreender de forma cientificamente válida, isto é, o conjunto dos dados sensíveis unificados pelas categorias postas pelo intelecto. Tal restrição do conhecimento ao fenômeno não excluiria, porém, a referência à “coisa em si”. Além do fenômeno, existe o ente pensado – o “númeno” –, origem do conhecimento, do qual, entretanto, não é possível dar um conceito positivo. G. utiliza o termo como sinônimo de “deus oculto” ou “deus ignorado”, na acepção crítica crociana (Q 8, 61, 977 e Q 10 II, 40, 1.291 [CC, 1, 360]). Nessa última nota (ibidem, 1.290 [CC, 1, 360]), significativamente se faz referência à Sagrada família e à sua forma antiespeculativa: no texto marxiano, de fato, está escrito, afirma G., que a realidade toda se esgota nos fenômenos, mas “a demonstração não é simples”. Se é verdade que conhecemos nas coisas as nossas necessidades, os nossos interesses e, portanto, nós mesmos, porém, é difícil escapar à sensação de que existe algo de desconhecido, ainda que não um verdadeiro númeno. A solução é encontrada no texto cujo título é a resposta para o problema: La conoscenza filosofica come atto pratico, di volontà [O conhecimento filosófico como ato prático de vontade] (Q 10 II, 42, 1.329 [CC, 1, 396]). É na práxis que é possível resolver o dualismo entre o que parece e a concretude das próprias coisas, como vemos também no Q 11, 59, 1.485 [CC, 1, 202], no qual defende que, “para escapar ao solipsismo, e, ao mesmo tempo, às concepções mecanicistas que estão implícitas na concepção do pensamento como atividade receptiva e ordenadora, deve-se colocar o problema de modo ‘historicista’ e, simultaneamente, colocar na base da filosofia a ‘vontade’ (em última instância, a atividade prática ou política)”. G. faz referência à política, a qual não descobre, mas inventa, porque “é a própria história universal no momento da sua realização progressiva”, ou seja, é a consideração dos vínculos e das possibilidades que fazem parte das relações sociais como elementos que expressam forças historicamente dadas e sempre em tensão (idem).
Claudio Bazzocchi
Ver: filosofia da práxis; Kant.
[a] Em contraposição à correta “nazionale-popolare”. (N. T.)
[b] Sobre a origem desse termo, ver nota de tradução à p. 535.