A objetividade do real é apresentada (ou colocada em dúvida) por G. especialmente em relação à ciência, ao senso comum e à religião: “A ciência experimental é o terreno em que uma tal objetivação atingiu o máximo de realidade; é o elemento cultural que mais contribuiu para unificar a humanidade, é a subjetividade mais objetivada e universalizada concretamente”. Por outro lado, o “conceito de objetivo da filosofia materialista vulgar parece querer significar uma objetividade superior ao homem, que poderia ser conhecida mesmo fora do homem: trata-se de uma forma banal de misticismo e de metafisiquice. Quando se diz que certa coisa existiria mesmo que não existisse o homem, ou se faz uma metáfora ou se cai no misticismo. Nós conhecemos os fenômenos em relação ao homem, e como o homem é um devir, também o conhecimento é um devir, portanto, também a objetividade é um devir” (Q 8, 177, 1049; Texto C: Q 11, 17, 1.416 [CC, 1, 129], em que “filosofia materialista vulgar” é substituído por “materialismo metafísico”). E é errônea a “concepção de uma ‘objetividade’ exterior [e mecânica], que corresponde a uma espécie de ‘ponto de vista do cosmo em si’, que é aquele do materialismo filosófico, do positivismo e de certo cientificismo. Mas o que é esse ponto de vista, se não um resíduo do conceito de deus, justamente na sua concepção mística de um ‘deus ignorado’?” (Q 8, 219, 1.080).
Pelo contrário, o “trabalho científico tem duas características: uma que incansavelmente retifica o método do conhecimento e retifica ou reforça os órgãos das sensações e outra que aplica esse método e esses órgãos sempre mais perfeitos em separar aquilo que existe de necessário nas sensações daquilo que é arbitrário e transitório. Estabelece-se assim aquilo que é comum a todos os homens, aquilo que todos os homens podem ver e sentir da mesma forma, contanto que eles tenham observado as condições científicas de investigação. Enquanto se estabelece essa objetividade, ela é afirmada: afirma-se o ser em si, o ser permanente, o ser comum a todos os homens, o ser independente de cada ponto de vista que seja meramente particular” (Q 4, 41, 466-7). Assim, a única objetividade admissível, segundo G., é a intersubjetividade, ou seja, a tendência em direção a ideias compartilhadas por um número cada vez maior de seres humanos e, no limite, por todos. O excerto continua criticando de modo mais direto os pontos de vista da religião e do senso comum: “O senso comum afirma a objetividade do real uma vez que essa objetividade foi criada por Deus e é, portanto, uma expressão da concepção religiosa do mundo. Além do mais, ao descrever essa objetividade, cai nos erros mais grosseiros [...]. Mas tudo o que a ciência afirma é ‘objetivamente verdadeiro’? De modo definitivo? Não se trata, ao invés, de uma luta pelo conhecimento da objetividade do real, por uma retificação sempre mais perfeita dos métodos de investigação e dos órgãos de observação, e dos instrumentos lógicos de seleção e de discriminação? Se é assim, aquilo de mais importante não é a objetividade do real como tal, mas o homem que elabora esses métodos, esses instrumentos materiais que retificam os órgãos sensores, esses instrumentos lógicos de discriminação, isto é, a cultura, isto é, a concepção do mundo, isto é, a relação entre o homem e a realidade. Buscar a realidade fora do homem parece mesmo um paradoxo, assim como para a religião é um paradoxo [pecado] buscá-la fora de Deus [...]. Sem a atividade do homem, criadora de todos os valores, mesmo os científicos, o que seria a ‘objetividade’? Um caos, isto é, nada, o vazio, se é que se pode dizer assim, porque realmente, se se imagina que não existe o homem, não se pode imaginar a língua e o pensamento. Para o materialismo histórico, não se pode separar o pensamento do ser, o homem da natureza, a atividade (a história) da matéria, o sujeito do objeto” (ibidem, 467).
Mas não separar a matéria ou a natureza do homem equivale a afirmar o caráter prático da ciência: “Engels afirma, aproximadamente, que a objetividade do mundo físico é demonstrada pelas sucessivas investigações dos cientistas [...]. Entende-se por ciência a atividade teórica ou a atividade prático-experimental dos cientistas? Penso que deva ser entendida neste segundo sentido e que Engels queira afirmar o caso típico em que se estabelece o processo unitário do real, isto é, através da atividade prática, que é a mediação dialética entre o homem e a natureza, isto é, a célula ‘histórica’ elementar” (Q 4, 47, 473 [CC, 6, 365]). A filosofia da práxis é, por isso, um novo humanismo: “O que significa ‘objetivo’? Será que não significa ‘humanamente objetivo’ e não será, por isso, também humanamente ‘subjetivo’? O objetivo seria então o universal subjetivo, isto é, o sujeito conhece objetivamente porque o conhecimento é real para todo o gênero humano historicamente unificado em um sistema cultural unitário. A luta pela objetividade seria assim a luta pela unificação cultural do gênero humano; o processo dessa unificação seria o processo de objetivação do sujeito” (Q 8, 177, 1.048). E “nessa objetividade e necessidade histórica pode-se pôr a universalidade do princípio moral, ou melhor, nunca existiu outra universalidade a não ser essa objetiva necessidade”, libertada das “ideologias transcendentes e apresentada, a cada vez, no modo mais eficaz a fim de se atingir o fim” (Q 8, 153, 1.033). Aqui encontramos um eco de Kant, criticado, porém, no Q 10 acerca da “coisa em si”: “A questão da ‘objetividade externa do real’, na medida em que é associada ao conceito de ‘coisa em si’ e do ‘númeno’ kantiano. Parece difícil excluir que a ‘coisa em si’ seja uma derivação da ‘objetividade externa do real’ e do assim chamado realismo grego-cristão (Aristóteles-Santo Tomás); isto pode ser visto, também, no fato de que toda uma tendência do materialismo vulgar e do positivismo deu lugar à escola neokantiana e neocrítica” (Q 10 II, 46, 1.333 [CC, 1, 401]). Tomando ainda mais distância de Kant, G. diz que não pode “existir uma objetividade extra-histórica e extra-humana” (Q 11, 17, 1.415 [CC, 1, 133]; ver também Q 11, 37, 1.457 [CC, 1, 172]). Sobre a atividade humana, a filosofia dialético-idealista também se opõe à visão religiosa, assim como alguns artistas: Pirandello “tentou introduzir na cultura popular a ‘dialética’ da filosofia moderna, em oposição ao modo aristotélico-católico de conceber a ‘objetividade do real’” (Q 6, 26, 705 [CC, 6, 183]).
A objetividade do real pode ser também postulada por convenção, se prática e historicamente útil: que valha “o exemplo dos conceitos de ‘Oriente’ e ‘Ocidente’ que não cessam de ser ‘objetivamente reais’, ainda que na análise se demonstrem nada mais que uma ‘construção convencional, ou seja, ‘histórica’ (frequentemente os termos ‘artificial’ e ‘convencional’ indicam fatos ‘históricos’, produzidos pelo desenvolvimento da civilização e não construções racionalmente arbitrárias ou individualmente arbitrárias) [...]. Todavia, essas referências são reais, correspondem a fatos reais, permitem viajar por terra e mar e chegar onde se estabeleceu chegar, prever o futuro, ‘objetivar a realidade’, compreender a ‘objetividade real do mundo externo’. Racional e real se identificam. Creio que sem se entender essa relação não se possa entender o materialismo histórico, sua posição filosófica em contraposição ao idealismo e ao materialismo tradicionais” (Q 7, 25, 874). Nesse último texto, parece possível entrever um eco seja dos “pseudo-conceitos” crocianos, seja do pragmatismo.
Giuseppe Prestipino
Ver: ciência; Kant; materialismo e materialismo vulgar; materialismo histórico; númeno; Pirandello; religião; senso comum; verdade.
v. objetividade.
No dia 12 de janeiro de 1918, a imprensa italiana tornou público o discurso do presidente estadunidense Wilson, no qual se formulava um programa de catorze pontos que visava a possibilitar um acordo entre as grandes potências para pôr fim à guerra. Comentando os artigos dos jornais de Turim, G. pontua que se tratava “da opinião pública burguesa [...]. E a opinião pública do proletariado, que existe, que tem máximas e princípios gerais, não pode se expressar por meio dos órgãos naturais: os comícios e manifestações livremente realizadas ao ar livre” (“A opinião pública”, em CF, 552-3). A relação entre a imprensa e a opinião pública ainda está no centro das atenções de G. em uma nota carcerária na qual recorda como, algumas vezes, justamente os jornais, sobretudo aqueles independentes, são usados por forças “ocultas e irresponsáveis” (Q 19, 5, 1.984 [CC, 5, 38]) para criar “movimentos ocasionais de opinião pública, que se devem manter acesos até a obtenção de determinados objetivos e, em seguida, se deixam enfraquecer e morrer” (idem). A opinião pública é “o ponto de contato entre a ‘sociedade civil’ e a ‘sociedade política’, entre o consenso e a força” (Q 7, 83, 914 [CC, 3, 265]), e por isso está duplamente ligada com a hegemonia política (Q 13, 37, 1.638 [CC, 3, 92]). De fato, quando o Estado quer iniciar uma ação pouco popular deve primeiro criar uma opinião pública adequada, ou seja, organizar e centralizar elementos da sociedade civil. É verdade que a opinião pública sempre existiu, mas tal como a entendemos hoje, precisa G., nasce “às vésperas da queda dos Estados absolutistas, isto é, no período de luta da nova classe burguesa pela hegemonia política e pela conquista do poder” (Q 7, 83, 915 [CC, 3, 265]). Elemento essencial é o controle da opinião pública voltado para o monopólio dos órgãos da mesma, uma vez que, sendo ela ligada à vontade política pública, poderia desta discordar; em consequência, se desencadeia a luta para controlar jornais, partidos, parlamento “de modo que uma só força modele a opinião e, portanto, a vontade política nacional, dispondo os discordantes numa nuvem de poeira isolada e inorgânica” (idem).
Lelio La Porta
Ver: aparelho hegemônico; consenso; Estado; hegemonia; sociedade civil; sociedade política.
G. utiliza o termo na crítica a costumes e crenças ilusórias, portanto, apassivantes, articulando a referência marxiana à religião como o “ópio do povo”, formulada na Crítica da filosofia do direito de Hegel. Introdução, de 1844. Nas notas intituladas “A religião, a loteria e o ópio da miséria”, G. formula uma articulada hipótese filológica: a “expressão ‘ópio da miséria’ usada por Balzac acerca da loteria” poderia ser fonte da expressão de Marx “‘ópio do povo’ para a religião”; tal passagem teria “sido ajudada pela reflexão sobre o pari de Pascal, que aproxima a religião do jogo de azar” (Q 16, 1, 1.838 [CC, 4, 16]). G. estende o uso do termo, definindo também a “literatura comercial” como “ópio”, “‘alucinógeno’ popular” (Q 5, 54, 587 [CC, 6, 169]), e refletindo sobre “literatura popular como ópio do povo” (Q 21, 13, 2.133 [CC, 6, 58]): como a religião, a “literatura não artística”, de aventura e para a diversão (aliás, não, a literatura tout court), tem desde sempre uma função de “alucinógeno contra a banalidade cotidiana” para aquele povo “cuja atividade sempre foi taylorizada”; na modernidade, assiste-se à “racionalização coercitiva” também das “classes médias e intelectuais”, oprimidas pela “precariedade”, pelos “inúmeros riscos da vida cotidiana” (ibidem, 2.131-3 [CC, 6, 57-8]). O efeito alucinógeno e apassivante de “uma nova espécie de ópio” também deriva de interpretações supersticiosas e demasiado crentes do progresso científico: por exemplo, a fé na “força taumatúrgica do homem” e no desenvolvimento das máquinas (Q 11, 39, 1.458-9 [CC, 1, 176]). Retomando, em registro antiloriano, a polêmica de Croce com o economista Graziadei, G. se pergunta se a lei marxiana da queda tendencial da taxa de lucro pode ser considerada reação legítima àquele “ópio” constituído pelo “culto da ciência” e pela “religião do progresso” positivistas e em que medida tal lei não tenha sido também objeto dessa mesma “opiomania” que “impediu uma [sua] análise mais cuidadosa” (Q 28, 11, 2.330 [CC, 2, 265-6]), transformando “arbitrariamente uma tese científica” num “mito popular” que, como os narcóticos, produz “um instante de exaltação [...] mas enfraquece permanentemente o organismo” (Q 10 II, 36, 1.284 [CC, 1, 353]).
Eleonora Forenza
Ver: literatura popular; queda tendencial da taxa de lucro; religião; utopia.
G. critica a atitude daqueles partidos que não almejam se tornar forças de governo, preferindo estar sempre na oposição. Ele se pergunta o que significa “se propor a estar sempre na oposição” e responde que isso não pode senão preparar “os piores desastres”: enquanto a posição de oposição (mesmo sendo necessário distinguir entre as forças opositoras com base na natureza delas) é cômoda para os opositores, certamente não o é para quem está no governo, que deverá, cedo ou tarde, “colocar-se o problema de desbaratar e varrer a oposição” (Q 6, 97, 771 [CC, 3, 247]). Um papel particular da oposição é realizado pelos partidos do parlamento inglês, que se opõem para “disputar o corpo eleitoral na próxima eleição” (Q 6, 40, 714 [CC, 3, 227]): as forças de governo fazendo promessas, as forças de oposição desacreditando-as. Na Itália, levando em consideração o período que vai de 1860 a 1900, nota-se um transformismo molecular graças ao qual “as personalidades políticas individuais criadas pelos partidos democráticos de oposição se incorporam individualmente à “‘classe política’ conservadora-moderada”, dando vida a uma organização dominante avessa a qualquer tentativa de reforma orgânica sugerida de baixo que tenha como objetivo a substituição de “uma ‘hegemonia’ ao bruto ‘domínio’ ditatorial” (Q 8, 36, 962 [CC, 5, 286-7]).
Lelio La Porta
Ver: eleições; governo; parlamento; transformismo.
Para G., a oratória é uma modalidade demagógica, portanto, antidemocrática, de comunicação política: “Demagogia quer dizer [...] se servir das massas populares, de suas paixões sabiamente excitadas e nutridas [...]. O pior ‘demagogo’ quer entrar em relação com as massas diretamente (plebiscito etc., grande oratória, golpes de cena, aparato coreográfico fantasmagórico [...])” (Q 6, 97, 772 [CC, 3, 247-8]). Na esteira das teses – indiretamente conhecidas – de Thomas B. Macaulay sobre os oradores áticos, G. retorna outras vezes (Q 1, 122, 113; Q 1, 153, 135; Q 4, 18, 439; Q 8, 113, 1.008 [CC, 2, 167]; Q 11, 15, 1.406 [CC, 1, 121]) à relação entre oralidade e escrita, confrontando-a, sobretudo, com os problemas pedagógicos colocados pela criação de “uma nova cultura a partir de uma base social nova que não tem tradições, como a velha classe dos intelectuais” (Q 16, 21, 1.892 [CC, 4, 68]). A “instabilidade da base cultural de alguns grupos sociais, como os operários urbanos” (ibidem, 1.889 [CC, 4, 65]) não pode ser enfrentada exaltando o instrumento retórico do convencimento imediato, que incentiva “os erros de lógica formal” (ibidem, 1.891 [CC, 4, 67]) e formas superficiais de agregação. “Também hoje a comunicação falada é um meio de difusão ideológica que tem uma rapidez, uma área de ação e uma simultaneidade emotiva enormemente mais amplas do que a comunicação escrita (o teatro, o cinema e o rádio, com a difusão de alto-falantes nas praças, superam todas as formas de comunicação escrita, desde o livro até a revista, o jornal, o jornal mural), mas na superfície, não em profundidade” (idem). O que precisa ser desenvolvido, ao contrário, são aqueles “modos de pensar” que são “elementos adquiridos, e não inatos” (ibidem, 1.892 [CC, 4, 68]), e que podem sozinhos garantir a solidez do vínculo político assim constituído. Por esse motivo é muito mais grave o fato de que não só o Ensaio popular[a] [de Bukharin] “padeça [...] de todas as deficiências da conversação, das fraquezas argumentativas da oratória” (ibidem, 1.891 [CC, 4, 68]), mas que o autor recorde “no prefácio [...] quase como uma honraria, a origem ‘falada’ de sua obra” (Q 11, 15, 1.406 [CC, 1, 124]).
Fabio Frosini
Ver: abstração; Bukharin; escola; técnica do pensar.
No longo e articulado Q 2, 6 [CC, 5, 157] – rico em cifras e dados, e que contém também um diagrama – G. retoma e comenta o escrito do economista Tommaso Tittoni sobre a situação financeira italiana dos anos 1925-1927, também em relação a de outras nações europeias, em dois artigos publicados na Nuova Antologia, ambos intitulados “Problemas financeiros”, respectivamente de 16 de maio de 1925 e de 1º de junho de 1927. O “orçamento italiano – lê-se – não é uma conta de fato, de tipo inglês, que registra receitas e despesas efetivamente ocorridas, mas uma conta de direito, de tipo francês, que compreende, por um lado, as receitas estimadas e concretizadas e, por outro lado, as despesas ordenadas, liquidadas e empenhadas na forma prescrita pela lei” (Q 2, 6, 147 [CC, 5, 158]). Isso implica o grande inconveniente que em um regime de competência os resíduos, sejam ativos ou passivos, não possam ser avaliados da mesma forma que recebimentos e pagamentos: “Nenhum exercício se esgota em si mesmo”, porque “deixa sempre créditos a receber e restos a pagar, de modo que, à gestão do orçamento do próprio exercício, acrescenta-se a gestão destes créditos e débitos dos exercícios anteriores, que a caixa terá de suportar” (idem).
Mais tarde, no Q 22, G. observa que sobre o orçamento do Estado italiano pesam o aparelho administrativo e um iníquo sistema pensionista. Com base nas análises de Renato Spaventa, G. ressalta que um décimo da população italiana é constituído por homens com pouco mais de quarenta anos, portanto, no pleno vigor das forças físicas e intelectuais. Ocorre que eles, “depois de 25 anos de serviço público, não se dediquem mais a nenhuma atividade produtiva, mas vegetem com aposentadorias mais ou menos elevadas, ao passo que um operário só pode desfrutar de uma aposentadoria depois de 65 anos e um camponês não tem limite de idade para o trabalho” (Q 22, 2, 2.143-4 [CC, 4, 245]). Coisa que não ocorre nos Estados Unidos, onde a racionalidade da composição demográfica impede a existência de “classes numerosas sem uma função essencial no mundo produtivo, isto é, classes absolutamente parasitárias” (ibidem, 2.141 [CC, 4, 242]).
Vito Santoro
Ver: crise; débito público; fordismo; títulos do Estado.
A L’Ordine Nuovo, revista semanal publicada entre 1º de maio de 1919 e 24 de dezembro de 1920 (entre 1921-1922 foi diário e órgão do Partido Comunista d’Italia [PCd’I], mais tarde tornando-se periódico), vincula-se um período preciso da experiência política gramsciana na Turim do “biênio vermelho”, em 1919-1920. É a revista que, dirigida por G., acompanha as lutas operárias e, em estreita relação com elas, teoriza uma “democracia proletária” baseada no papel dos Conselhos de Fábrica. Estes últimos – na teorização de G. – são também a tradução italiana dos sovietes russos, mas com uma conotação específica própria centrada no autogoverno dos produtores. Sem renegar a experiência teórico-prática de L’Ordine Nuovo, G. oferece nos Q um julgamento sintético, que não pode deixar de ser também parcialmente autocrítico, sobre o “biênio vermelho”, que logo depois das falhas de direção política devidas, sobretudo, à maioria maximalista do Partido Socialista Italiano (PSI), cederá lugar à reação fascista: “O ‘espontâneo’” – escreve G. – “era a prova mais cabal da inépcia do partido, porque demonstrava a cisão entre os programas altissonantes e os fatos miseráveis. Mas à medida que os fatos ‘espontâneos’ ocorriam (1919-1920), contrariavam interesses, abalavam posições adquiridas, suscitavam ódios terríveis até em gente pacífica, faziam sair da passividade estratos sociais estagnados na podridão: criavam, precisamente por sua espontaneidade e pelo fato de serem repudiados, o ‘pânico’ genérico, o ‘grande medo’ de que não podiam deixar de concentrar as forças repressivas impiedosas para sufocá-los” (Q 3, 42, 320 [CC, 3, 186]).
Nos Q, a primeira referência à experiência do “biênio vermelho” está no Q 1, 61, 72 [CC, 6, 349], em que são lembradas as “tentativas de Agnelli em relação a L’Ordine Nuovo que defendia um seu ‘americanismo’”. Esse Texto A é retomado em duas notas de segunda redação no Q 22. A primeira contém um complemento extremamente significativo: “Tentativas de Agnelli de absorver o grupo de L’Ordine Nuovo que defendia uma forma própria de ‘americanismo’ aceitável pelas massas operárias” (Q 22, 2, 2.146 [CC, 4, 248]). G. refere-se à reflexão e à ação do ordinovismo em relação às então novas temáticas ligadas ao fordismo e ao taylorismo, especificando que não se tratava de retomar os princípios tout court, mas de “traduzi-los” segundo um ponto de vista operário. No segundo Texto C (Q 22, 6, 2.156 [CC, 4, 258]), G. explica a necessidade de separar a técnica organizativa do taylorismo-fordismo de seu uso de classe (tese própria também do grupo dirigente bolchevique): “Foram precisamente os operários os portadores das novas e mais modernas exigências industriais e, a seu modo, as afirmaram implacavelmente; pode-se mesmo dizer que alguns industriais compreenderam esse movimento e procuraram se apropriar dele [...] é desse modo que se pode explicar a tentativa feita por Agnelli de absorver L’Ordine Nuovo e sua escola no complexo da Fiat, e de instituir assim uma escola de operários e de técnicos especializados para o desenvolvimento industrial e do trabalho com sistemas ‘racionalizados’”.
Entre o texto do Q 1, de 1929-1930, e aqueles do Q 22, de 1934, encontram-se dois Textos B. O primeiro, de 1930, reivindica ao “movimento turinês” o mérito de não ter “negligenciado e muito menos desprezado” a espontaneidade das massas, mas de ter tentado educar tal espontaneidade (Q 3, 48, 330 [CC, 3, 194]). No segundo, de 1932, G. se atém aos “acontecimentos que sucederam a guerra” e ao movimento operário turinês guiado pelo “movimento para valorizar a fábrica” (Q 9, 67, 1.137 [CC, 4, 312]) e aproxima a fragmentação das tarefas da grande fábrica à descrição da crescente divisão do trabalho no processo produtivo feita por Marx n’O capital: “Que uma divisão do trabalho cada vez mais perfeita reduza objetivamente a posição do trabalhador na fábrica a movimentos de detalhe cada vez mais ‘analíticos’, de modo que ao sujeito escapa a complexidade do trabalho comum, e na própria consciência sua contribuição se deprecie até que pareça facilmente substituível a todo instante; que, ao mesmo tempo, o trabalho combinado e bem ordenado dê uma produtividade ‘social’ maior e que o conjunto dos mestres da fábrica deva se conceber como um ‘trabalhador coletivo’ são os pressupostos do movimento de fábrica que tende a tornar ‘subjetivo’ aquilo que é ‘objetivamente’ dado”, ou seja, a utilizar conscientemente os progressos técnicos para se afirmar como nova classe dominante. De fato, escreve G.: “De resto, o que quer dizer objetivo neste caso? Para o trabalhador individual, ‘objetivo’ é o encontro das exigências do desenvolvimento técnico com os interesses da classe dominante. Mas esse encontro, essa unidade entre desenvolvimento técnico e os interesses da classe dominante, é só uma fase histórica do desenvolvimento industrial, deve ser concebido como transitório. A conexão pode se dissolver; a exigência técnica pode ser concretamente concebida não só como algo separado dos interesses da classe dominante, mas como algo unido aos interesses da classe ainda subalterna” (ibidem, 1.138 [CC, 4, 313]). Os processos objetivos do desenvolvimento da produção capitalista criam a possibilidade de passar a uma nova “fase histórica”, em que o “trabalhador coletivo” (a expressão é de Marx), superando sua condição de subalternidade, se transforme em sujeito, ao mesmo tempo político e econômico de uma nova ordem. Conclui G.: “Que tal ‘cisão’ e nova síntese seja historicamente madura é demonstrado de maneira peremptória pelo fato de um tal processo ser compreendido pela classe subalterna, que justamente por isso não é mais subalterna, ou seja, mostra que tende a sair de sua condição subordinada. O ‘trabalhador coletivo’ se enxerga como tal, e não só em cada fábrica isoladamente, mas em esferas mais amplas da divisão do trabalho nacional e internacional, e essa consciência adquirida dá uma manifestação externa, política, justamente nos organismos que representam a fábrica como produtora de objetos reais, e não de lucro” (idem). É nessa vontade de querer fundar uma “nova ordem” política diretamente sobre o “trabalhador coletivo” que reside a peculiaridade do “conselhismo” gramsciano e do próprio “ordinovismo”. Uma hipótese que politicamente não havia se demonstrado madura e que havia sido deixada de lado, mas que G. defende apaixonadamente. Para além disso, resta o conselhismo gramsciano como proposta de possível superação da divisão entre economia e política, entre bourgeois e citoyen, como hipótese de um novo tipo de democracia e de Estado alternativos à democracia e ao Estado burgueses.
Outro ponto peculiar da experiência da L’Ordine Nuovo retomado nos Q é aquele que concerne à necessidade de afirmar um novo tipo de intelectual. Não mais “o tipo tradicional e vulgarizado de intelectual [...] dado pelo literato, pelo filósofo, pelo artista [...]. No mundo moderno, a educação técnica, estreitamente ligada ao trabalho industrial, mesmo aquele mais primitivo e desqualificado, deve constituir a base do novo tipo de intelectual. Neste sentido trabalhou o semanário L’Ordine Nuovo, visando a desenvolver certas formas de novo intelectualismo e a determinar seus novos conceitos, e essa não foi uma das menores razões de seu sucesso, porque tal proposta correspondia a aspirações latentes e era adequada ao desenvolvimento das formas reais de vida” (Q 12, 3, 1.551 [CC, 2, 53]; Texto A: Q 4, 72, 514). O “novo intelectual”, para G., deve “misturar-se ativamente na vida prática, como construtor, organizador, ‘persuasor permanente’ porque não puro orador – e todavia superior ao espírito matemático abstrato; da técnica-trabalho chega à técnica-ciência e à concepção humanista da história, sem a qual permanece ‘especialista’ e não se torna ‘dirigente’ (especialista + político)” (idem). Também aqui a proposta de L’Ordine Nuovo fincava as próprias raízes diretamente no trabalho industrial, baseava-se na superação do distanciamento das funções intelectuais e políticas em relação àquelas da produção.
Guido Liguori
Ver: americanismo e fordismo; brescianismo; espontaneísmo; fura-greve; intelectuais; intelectuais orgânicos; Marx; parlamento; revolução; taylorismo; trabalhador coletivo.
O adjetivo “orgânico” é frequente a partir das obras juvenis, nas quais G. designa um complexo unitário e vital com uma metáfora extraída, de fato, do mundo da biologia, sob a influência (talvez) de um vitalismo de linhagem bergsoniana-soreliana. No verbete “metódico”, esclarece-se que o uso gramsciano, não tão frequente, mas certamente o mais forte e original do termo, encontra-se nas passagens em que é contraposto a “orgânico”, e que um exemplo típico de tal contraposição está na relação entre Estado, em sentido estrito, e sociedade civil como momentos constitutivos do “Estado integral”. Ele critica toda distinção rígida “entre sociedade política e sociedade civil, que, de distinção metódica faz-se com que se torne, e seja apresentada, como distinção orgânica” (Q 13, 18, 1.590 [CC, 3, 47]). A dupla de conceitos é reencontrada no Q 4, 38, 460: “Especula-se inconscientemente (por um erro teórico cujo sofisma não é difícil identificar) sobre a distinção entre sociedade política e sociedade civil e se afirma que a atividade econômica é própria da sociedade civil e que a sociedade política não deve intervir em sua regulamentação. Mas, na realidade, essa distinção é puramente metódica, não orgânica, e na vida histórica concreta, sociedade política e sociedade civil são uma mesma coisa” (idem). Processos orgânicos podem caracterizar um período histórico estrutural ou superestrutural. O transformismo é um recurso da “revolução passiva”: “Não se tratava de um fenômeno isolado; era um processo orgânico que substituía, na formação da classe dirigente, aquilo que na França acontecera na Revolução e com Napoleão, e na Inglaterra com Cromwell” (LC, 586, a Tania, 6 de junho de 1932 [Cartas, II, 209]). Aqui, “substituía” não significa “era o equivalente de”, mas sim “supria” a ausência ou a debilidade de uma fase revolucionária da burguesia italiana. Às vezes, “orgânico” é sinônimo de “sistemático”, sobretudo quando caracteriza o tratamento teórico-filosófico dos acontecimentos históricos, enquanto se distingue de uma mera exposição historiográfica não sustentada pela metodologia histórica. No Q 7, 24, 871-2 [CC, 1, 238], G. talvez se refira aos opúsculos históricos de Marx, retornando à “metodologia histórica marxista [...]. Poder-se-á ver quantos cuidados reais Marx introduz em suas pesquisas concretas, cuidados que não podem encontrar espaço nas obras gerais [...] em uma exposição metódica sistemática [...], em que, além do método filológico e erudito, [...] deveria ser explicitamente tratada a concepção marxista da história”. O termo “orgânico” também é sinônimo de “sistemático” quando caracteriza um conjunto de escritos ligados por um fio condutor unitário: “Em novembro de 1920, fui convencido por Giuseppe Prezzolini a publicar em sua editora uma coletânea de artigos que, na realidade, tinham sido escritos segundo um plano orgânico” (LC, 458, a Tatiana, 7 de setembro de 1931 [Cartas, II, 83]). Sobre “reflexão mais metódica e sistemática” também se fala no Q 10 II, 41.VIII, 1.314 [CC, 1, 361].
Giuseppe Prestipino
Ver: metódico; revolução passiva; sociedade civil; sociedade política.
Nos Q, “organismo” designa de modo muito preciso todas as formas nas quais se condensa certa atividade histórica, teórica ou prática, até o ponto que se torna autônoma e capaz de expressar uma vontade unitária, porque dotada de uma determinada organização centralizada. Logo, um organismo é um conjunto de atividades políticas organizadas: o Estado (Q 10 II, 41.I, 1.293 [CC, 1, 361]), a nação moderna (Q 9, 99, 1.162), uma certa organização social (Q 11, 16, 1.406 [CC, 1, 125]), eventualmente o Commonwealth (Q 6, 54, 714 [CC, 3, 229]), e também o partido político (Q 8, 21, 951 [CC, 6, 374]), a Igreja católica (Q 4, 53, 495 e Q 19, 6, 1.966 [CC, 5, 42]), a Câmara do Trabalho (Q 3, 42, 319 [CC, 3, 185]), o exército (Q 9, 62, 1.132), mas também a ciência política (Q 4, 8, 431) ou uma classe social (Q 8, 2, 937 [CC, 2, 271]). Para G., os organismos podem ser tanto privados quanto públicos, um e outro fazendo parte, de várias formas, do Estado integral. Seu interesse, porém, volta-se particularmente para os organismos privados da sociedade civil, e entre esses, para o partido político (v. Q 8, 21, 951 [CC, 6, 374]). Efetivamente, o problema do Partido Socialista foi que ele “concretamente” não chegou a ser um “organismo independente, mas apenas [...] elemento constitutivo de um organismo mais complexo [...] descentralizado, sem vontade unitária” (Q 3, 42, 321 [CC, 3, 185]). Por outro lado, a independência não se estabelece por decreto: que um organismo – unidade de uma multiplicidade – se “una” em função de “um sistema doutrinário rígida e rigorosamente formulado” (Q 3, 56, 337 [CC, 3, 199]) é algo teorizado pelo “centralismo orgânico”, que “imagina ser capaz de fabricar um organismo de uma vez por todas, desde já objetivamente perfeito” (idem). Ao contrário, “uma consciência coletiva, ou seja, um organismo vivo só se forma depois que a multiplicidade se unifica através do atrito dos indivíduos: e não se pode dizer que o ‘silêncio’ não seja multiplicidade” (Q 15, 13, 1.771 [CC, 3, 333]). De fato, “um organismo coletivo é constituído de indivíduos, os quais formam o organismo na medida em que se deram, e aceitam ativamente, uma hierarquia e uma direção determinada” (ibidem, 1.769-70 [CC, 3, 332]).
Fabio Frosini
Ver: centralismo; Estado; Igreja católica; orgânico; partido; Partido Socialista; vontade coletiva.
Da mesma forma que “orgânico” (e “inorgânico”), é uma metáfora utilizada por G. para indicar interdependência entre as partes ou funcionalidade de cada uma das partes num todo organizado. A incapacidade de se viabilizar uma organização se verifica ou porque um sujeito ainda é politicamente imaturo ou porque os grupos contrários a ele o lançam num estado de crise organizacional: num período de crise, “o monopólio dos órgãos de opinião pública: jornais, partidos, parlamento” pode fazer “que uma só força modele a opinião e, assim, a vontade política nacional, desagregando os que discordam numa nuvem de poeira individual e inorgânica” (Q 7, 83, 915 [CC, 3, 265]). E, vice-versa, uma organização ausente ou imatura dos subalternos pode, em princípio, facilitar o recurso à força opressiva “como reação das classes dominantes ao subversivismo esporádico e inorgânico das massas populares” (Q 8, 25, 957). O recurso à força pode ter lugar como resposta à agudização de uma crise econômica, mas também por uma “crise de hegemonia da classe dirigente, que se dá porque a classe dirigente falhou em algum grande empreendimento político para o qual pediu ou impôs com a força o consenso das grandes massas (como a guerra), ou porque amplas massas (sobretudo de camponeses e de pequeno-burgueses intelectuais)”, se bem que ainda não politicamente organizadas, passaram “da passividade política para uma certa atividade, e apresentam reivindicações que, em seu conjunto desorganizado, constituem uma revolução” (Q 13, 23, 1.603 [CC, 3, 60]). Diante da presença de certa atividade das grandes massas, sua desorganização facilita o recurso dos dominantes a regimes repressivos e/ou dele deriva. O recurso dos dominantes à força pode vir acompanhado, em especial no terreno geopolítico, de uma organização do consenso ao qual podem se curvar os dominados, por exemplo, por meio da mediação de um grupo de intelectuais que assuma a tarefa de fazer convergir o interesse da classe hegemônica de uma região mais desenvolvida, no sentido capitalista, e o interesse dos proprietários de terras que exploram os grupos subalternos de outra região menos desenvolvida (ou ainda semifeudal). É esse o tema da “questão meridional”. A modernidade chega a sua completude ou, poderíamos dizer, a modernidade futura é aquela prevista pelo – ou “personificada” no – novo partido como organização que faz nascer um novo Estado ou se identifica com ele: “O moderno Príncipe deve e não pode não ser o anunciador e o organizador de uma reforma intelectual e moral” (Q 13, 1, 1.560 [CC, 3, 18]). O partido novo, assim como o sindicato, também é uma das “organizações privadas” (Q 4, 69, 513) ou “assim denominadas privadas” (LC, 459, a Tatiana, 7 de setembro de 1931 [Cartas, II, 84]), mas difere dos clubes, organizações não rígidas (Q 1, 47, 57 [CC, 3, 119]) da França revolucionária, isto é, do jacobinismo que atinge “sua perfeição formal no regime parlamentar, que realiza [...] a hegemonia da classe urbana sobre toda a população [...] com o consenso permanentemente organizado” (Q 1, 48, 58).
Mas G. também investiga os primórdios de uma organização moderna. Na Idade Média italiana havia “um só exemplo completo de organização, aquele ‘corporativo’ (política enxertada na economia)” (Q 1, 47, 57 [CC, 3, 119]). Na primeira modernidade, “a força urbana setentrional [...] começa a ter problemas ‘próprios’, de organização”, e somente após ter “atingido certo grau de unidade e de combatividade, [...] exerce uma função diretiva ‘indireta’” (Q 1, 43, 38), até porque podem facilitá-la “a dispersão e o isolamento da população rural” (Q 1, 44, 48). Um centro “para a organização e a ‘condensação’ do grupo intelectual dirigente da burguesia italiana do Risorgimento é aquele constituído por Vieusseux em Florença” (Q 6, 171, 821 [CC, 5, 270]). Convém de fato estudar “a organização material voltada a manter, defender e desenvolver a ‘frente’ teórica e ideológica” (Q 3, 49, 332 [CC, 2, 78]), porque a relação entre as forças políticas depende do “grau de homogeneidade, de autoconsciência e de organização alcançado pelos vários grupos sociais” (Q 13, 17, 1.583 [CC, 3, 40-1]).
No século XX, vem à luz a política “totalitária”: um partido se esforça para que os outros cidadãos ativos “encontrem nesse único partido todas as satisfações que antes encontravam na multiplicidade de organizações” e para “destruir todas as outras organizações ou incorporá-las num sistema cujo único regulador seja o partido. Isso ocorre: 1) quando um determinado partido é portador de uma nova cultura e se verifica uma fase progressiva; 2) quando um determinado partido quer impedir que outra força, portadora de uma nova cultura, torne-se ‘totalitária’; verifica-se então uma fase objetivamente regressiva” (Q 6, 136, 800 [CC, 3, 254]). “O desenvolvimento do partido em Estado reage sobre o partido e exige dele uma contínua reorganização e desenvolvimento, assim como o desenvolvimento do partido e do Estado em concepção do mundo, isto é, em transformação total e molecular (individual) dos modos de pensar e atuar, reage sobre o Estado e sobre o partido, obrigando-os a se reorganizarem continuamente” (Q 17, 51, 1.947 [CC, 3, 354]). Em ambos os “partidos-Estado”, a polícia, em sentido estrito, “é o núcleo central e formalmente responsável da ‘polícia’, que é uma organização bem maior” (Q 2, 150, 278 [CC, 3, 181]). Estatolatria e “mitologia” do líder carismático se encontram tanto em um (por uma fase prevista como transitória) como em outro “totalitarismo”. Mussolini e também Croce remetem ao Sorel do mito-ação; G., que apreendeu e reelaborou alguns conceitos sorelianos (o espírito de cisão, o bloco histórico, a ética como aspiração especificamente humana), estuda “como Sorel, partindo da concepção da ideologia-mito, não atingiu a compreensão do partido político, mas se deteve na concepção do sindicato profissional. É verdade que para Sorel o ‘mito’ não encontra sua expressão maior no sindicato, como organização de uma vontade coletiva, mas na ação prática do sindicato e de uma vontade coletiva” (Q 13, 1, 1.556 [CC, 3, 14]).
Enfim, o termo é recorrente com uma rica adjetivação, indicando a atenção de G. ao caráter ativo e construtivo de todos os fenômenos sociais: “Organização científica até do trabalho intelectual” (LC, 360, a Tatiana, 20 de outubro de 1930 [Cartas, I, 448]), organização burguesa, produtiva, industrial, de empresa ou empresarial, financeira, bancária, sindical, organização de ofício, de auxílio, de interesses, privada, profissional, social, corporativa medieval, econômico-corporativa, de classe, operária, do trabalho, de luta, de massa, feminina, organização da escola, da cultura, da hegemonia cultural, do consenso, dos intelectuais, ideológica, científica, jornalística, religiosa, do papado, católica, eclesiástica, clerical, da igreja, territorial, nacional, internacional, mundial, estatal, jurídica, administrativa, coercitiva, oficial, militar, militante, da guerra, organização permanente, organização política, do partido.
Giuseppe Prestipino
Ver: frente ideológica; inorgânico; moderno; moderno Príncipe; orgânico; polícia; Sorel.
Alfredo Oriani é definido por G. como “o representante mais honesto e apaixonado pela grandeza nacional-popular italiana entre os intelectuais italianos da velha geração” (Q 8, 165, 1.040 [CC, 6, 223]), embora isento de uma profundidade crítico-reconstrutiva em razão de sua posição “abstrata, retórica e mergulhada em seu ‘titanismo’ de gênio incompreendido” (Q 9, 42, 1.120). Daí seu substancial infortúnio com os contemporâneos, que foi apenas um pouco remediado por uma reavaliação póstuma que, para o pensador sardo, parece “mais um embalsamamento funerário do que uma exaltação da nova vida de seu pensamento” (Q 8, 165, 1.040 [CC, 6, 223]).
No decorrer da reflexão carcerária, G. se detém longamente sobre uma obra de Oriani, La lotta politica in Italia [A luta política na Itália] (1892), que ele define como exemplar daquela literatura crítica sobre o Risorgimento incapaz de dar conta de finalidades educativas claras, dado seu caráter “destacadamente literário e ideológico” (Q 10 II, 29, 1.267 [CC, 1, 337]). Trata-se de uma “história fetichista”, centrada em “‘personagens’ abstratos e mitológicos”, como “a Federação, a Unidade, a Revolução, a Itália” (Q 19, 5, 1.980 [CC, 5, 28]). Oriani baseia-se numa tradição de pesquisa que vê a chave interpretativa de um acontecimento do passado nos fatos que o sucedem. Dessa forma – lê-se no Q 9, 106, 1.169-70 –, “todo processo histórico é um ‘documento’ histórico de si mesmo, é mecanizado, exteriorizado e reduzido, no fundo, a uma lei determinista de ‘retilineidade’ e ‘unilinearidade’”. Assim, o problema da formação do Estado moderno italiano no século XIX se reduz a “ver esse ‘Estado’, como unidade ou como nação, ou genericamente como Itália, em toda a história anterior, como a galinha no ovo fecundado” (idem).
Vito Santoro
Ver: Gobetti; Missiroli; Risorgimento.
Nos Q, a primeira e celebérrima diferença entre Leste e Oeste nota que “no Oriente, o Estado era tudo, a sociedade civil era primitiva e gelatinosa; no Ocidente, havia uma relação justa entre Estado e sociedade civil, e, ao oscilar o Estado, podia-se imediatamente reconhecer uma robusta estrutura da sociedade civil. O Estado era apenas uma trincheira avançada, por trás da qual se erguia uma robusta cadeia de fortalezas e de casamatas; em medida diversa de Estado para Estado, é claro, mas exatamente isto exigia um acurado reconhecimento de caráter nacional” (Q 7, 16, 866 [CC, 3, 262]). Trata-se de uma passagem muito complexa, que remete à questão dos intelectuais, às estratégias revolucionárias de Trotski e Lenin, à simbologia militar da “guerra de posição” e da “guerra manobrada”, como adverte o título da nota. Num único raciocínio, muito articulado, G. expõe algumas formas histórico-políticas para especificar a natureza da relação entre Oriente e Ocidente, sobretudo em torno das estratégias de luta política, que, no entanto, também marcam indeléveis fronteiras de civilização. É evidente que a demarcação conceitual entre as duas áreas do mundo, para G., se define seja com base no diferente peso específico do Estado, considerando a sociedade civil ou não, seja com base nesta última como lugar de vontade e de mediações decisivas, ou de concepções do mundo por vezes até mais influentes do que a própria política e do que o Estado-aparelho; eis o fundamento da análise diferenciada, instrumento essencial dos encargos heurísticos da política (“cuidadoso reconhecimento de caráter nacional”), que passam também pela relação Leste-Oeste.
Além disso, a correlação Oriente-Ocidente propõe dois elementos de fundo. Em primeiro lugar, há a ampla mirada histórico-política de G., na qual se baseia seu esquema de interpretação analítica de organizações sociais específicas, projetado em escala mundial; é a mesma lógica do confronto entre Europa e Estados Unidos, no centro do estudo sobre o americanismo e o fordismo. Em segundo lugar, graças justamente à relação entre civilização ocidental e oriental, emerge uma sensibilidade objetivamente cosmopolita em G., contrária a seu juízo recorrente sobre o cosmopolitismo dos italianos, sinal de desorientação política e de escassa atenção ao papel do Estado. Provavelmente, o cosmopolitismo “escondido” na análise gramsciana das características histórico-civis do Oriente e do Ocidente, e também em outras passagens, expressa um recorte antiespeculativo, ou melhor, de recuperação consciente da natureza política daquilo que diferencia as civilizações, suas formas de poder e de conflito. Esse esclarecimento permite captar as múltiplas leituras internas à relação que G. apresenta entre Leste e Oeste, aliás, composta de variados símbolos, dificilmente redutíveis a uma unidade.
Antes de tudo, em registro rigorosamente histórico, as duas partes do mundo são reconduzidas à uma fonte idêntica, que de longa data faz parte da memória histórica das áreas comumente chamadas de Oriente e Ocidente. Sua ascendência comum é a cidade de Atenas, modelo máximo de refinamento e, também, da “arqueologia” intelectual de todos os sistemas aperfeiçoados de poder. Mas dessa premissa coincidente partem as diferentes histórias-noções de Oriente e Ocidente; o Oriente se volta para Bizâncio e para a Rússia, o Ocidente, para Roma e para a Europa: “Atenas e Roma têm suas continuidades nas igrejas ortodoxa e católica: também aqui deve-se afirmar que Roma foi seguida mais pela França do que pela Itália e Atenas-Bizâncio, pela Rússia czarista. Civilização ocidental e oriental. Isso até a Revolução Francesa e talvez até a guerra de 1914” (Q 17, 33, 1.936 [CC, 5, 349]). Deve ser ressaltado o princípio absolutamente superestrutural que interfere na primeira divisão entre as duas diferentes civilizações, a despeito da matriz na antiguidade grega em comum. E deve ser também ressaltada a dupla articulação do problema: se Atenas representa a arché, a civilização romana se duplica entre a própria Roma e Bizâncio, isto é, entre os dois eixos de que se originaram outras tantas histórias. Por um lado, as características ocidentais levam a uma curiosa sucessão – nada desmotivada – entre Roma e França; por outro lado, o estatuto filosófico de Atenas se traduz na diferença religiosa e na autonomização de Bizâncio, que, por sua vez, transmite à Rússia czarista a ideia da vida como disciplina e religião, quase servidão. Os dois grandes paradigmas de civilização, mesmo de modo muito sintético, em que a essência política absorve toda a “narrativa” histórica, já fornecem a bússola de um pensamento capaz de atravessar a barreira do tempo. Aqui o discurso gramsciano, finamente político, lembra muito a distinção, também totalmente política, de Maquiavel entre Ocidente e Oriente, por meio dos modelos de soberania do “rei de França” e do “Turco”, seu contrário (O príncipe, cap. 4): o primeiro se sustenta sobre uma fusão de vigor da ordem institucional e precário consenso dos súditos; o segundo também é soberano, mas na combinação inversa entre ordem personalizada e obediência de tipo religioso. E não é por acaso que tanto o secretário florentino quanto o dirigente comunista tenham excluído a Itália da tipificação das contribuições da civilização propriamente ocidental. O final de 1914, limiar extremo da periodização gramsciana dos dois modelos representados, se explica pela força destrutiva da guerra e por seu significado de fronteira, de limite do esgotamento de qualquer solidariedade possível entre razão e domínio, entre cultura e potência.
Aprofundando-se ainda mais nas articulações entre Oriente e Ocidente, G. assume, do primeiro, o fator religioso, a fim de medir sua tendência a frear a modernização: “Por que o islã não poderia fazer aquilo que o cristianismo fez?”, pergunta ele, depois de ter acenado à capacidade de adaptação da religião cristã-católica a uma sociedade de tipo mais avançado: “Se se admite que a civilização moderna, em sua manifestação industrial-econômica-política, terminará por triunfar no Oriente (e tudo prova que isso ocorre e que essas discussões sobre o Islã acontecem porque há uma crise determinada precisamente por essa difusão de elementos modernos), por que não se deve concluir que o Islã necessariamente evoluirá? Poderá permanecer tal e qual? Não: já não é mais o mesmo de antes da guerra. Poderá desaparecer subitamente? Absurdo. Poderá ser substituído por uma religião cristã? Absurdo supô-lo para as grandes massas” (Q 2, 90, 247 [CC, 2, 68]).
Chamou a atenção de G. uma intervenção do orientalista Michelangelo Guidi, no prefácio a um artigo, em texto julgado “medíocre”, de um diplomata afegão sobre o Oriente. Independentemente da ocasião da nota, para G. o mundo islâmico é atrasado em relação ao Ocidente; de fato, não possui ainda deste último o moderno sistema produtivo-industrial, com o qual a religião católica encontrou um bom equilíbrio, graças ao incremento, no catolicismo dos países industrializados, do componente jesuíta, que se tornou matriz de “uma grande hipocrisia social” (idem). No processo de secularização, já consumado à sombra da transformação industrial, reside a causa desse tipo de vantagem do Ocidente face ao Oriente islâmico, ainda que as motivações típicas da educação histórico-materialista de G. o levem a crer que seja possível que o Islã alcance rapidamente a estrada da modernização, uma vez que a indústria chegue até lá.
Atento às raízes religiosas da civilização oriental, G. inequivocamente relaciona Ocidente e indústria, Ocidente e inovação. Eis a herança da Revolução Industrial, fator essencial, isto é, discriminante em última instância, da especificidade do Oeste, e instrumento simbólico para sua interpretação das diferenças no confronto entre civilizações. Ainda que se deva salientar elementos ulteriores desse reconhecimento gramsciano, já se compreende porque nosso autor sublinha o valor superestrutural de uma diferença que, a seu juízo, não poderá nunca ser reduzida a uma referência meramente geográfica-territorial. Em uma passagem das páginas carcerárias, rubricada no tema Objetividade do real e redigida no contexto da crítica ao célebre ensaio “sociológico” de Bukharin (recorrente nos Q), G. se propõe a romper com toda inclinação positivista no reconhecimento histórico-político e decide utilizar o sentido não geográfico das noções, embora deduzidas da linguagem da geografia, que para ele não serve como espelho da natureza: “Para compreender exatamente as significações que esse conceito pode ter [‘objetividade do real’ – ndr], pode ser oportuno desenvolver o exemplo das noções de ‘Oriente’ e ‘Ocidente’, que não deixam de ser ‘objetivamente reais’, ainda que, quando analisadas, demonstrem ser nada mais que uma ‘construção’ convencional, ou seja, ‘histórica’ (normalmente os termos ‘artificial’ e ‘convencional’ indicam fatos ‘históricos’, produzidos no desenvolvimento da civilização, e não construções racionalmente arbitrárias ou individualmente arbitrárias)” (Q 7, 25, 874, Texto A, retomado mais detidamente no Q 11, 20, 1.419 [CC, 1, 137]). A presença simultânea, nas duas referências geográficas, do valor de “objetividade” e de “convencionalidade” torna mais claro que elas correspondem a formas de denominar, em jargão quase “cartográfico”, mundos historicamente diferentes, realidades humanas que não coincidem, a ponto de poderem representar mundos civis reciprocamente estranhos e distantes: eis, pois, os dois hemisférios por detrás da seca justaposição conceitual entre Oriente e Ocidente. Esses dois lugares, tomados em sentido simplesmente territorial, não seriam nunca “objetivos” se – adverte G. – se imaginasse um mundo sem humanidade, em que “todo ponto da terra é Leste e Oeste ao mesmo tempo” (idem). Mas nem mesmo o elemento humano da história bastaria para explicar a distinção além de seu significado geográfico, se o sentido sócio-político da mesma história não fosse influenciado por “construções convencionais e históricas não do homem em geral, mas das classes cultas europeias, que, por meio de sua hegemonia mundial, as fizeram ser aceitas em todo o mundo” (Q 7, 25, 874). O discurso passa pelas hegemonias culturais, confluência da reflexão dos Q, e indica também uma crítica do europeísmo, nomotético divisor de águas entre Leste e Oeste.
Na complexa reconstrução da identidade do Ocidente, retorna o filtro da fenomenologia superestrutural das civilizações, ao qual a ciência política de G. não pode renunciar. Nesse sentido, não é fácil recompor nas notas do cárcere uma noção linear de Ocidente, que, porém, se pode extrair de citações de trabalhos de outros, de textos jornalísticos, de contribuições deduzidas de indícios e indiretas notícias culturais. De fato, algumas reflexões de nosso autor derivam de sugestões da “batalha das ideias”, sinal evidente de sua abertura a esclarecimentos de múltipla proveniência. É o caso da atenção que G. dedica a um artigo de Filippo Burzio, jornalista antifascista do La Stampa, talvez ignorando sua conclusão final, com a “teoria do homem-demiurgo”, mas percorrendo detalhadamente sua reconstrução das características do Ocidente, em torno de duas épocas. Na primeira, o efeito de ordenamento das religiões é rompido pela Reforma e por seu rastro de guerras; na segunda, a reconquista da ordem “se apoia” – escreve G., num meio termo entre paráfrase de Burzio e observação pessoal – “em três pilares: o espírito crítico, o espírito científico, o espírito capitalista (talvez fosse melhor dizer ‘industrial’)” (Q 1, 76, 83 [CC, 3, 121]).
A constatação de que só a ciência e a economia do capitalismo mantêm sua atualidade, contrariamente à crise da consciência crítica europeia, é retomada no Q 1 como sinal de uma cisão entre pensamento e ação no seio dos intelectuais ocidentais. Não é claro o quanto é de G. e o quanto é de Burzio nessa interessante consideração; resta o fato de que o termo “crise”, bem evidenciado no campo dos intelectuais, se delineia como condição possível, quase “normal”, do Ocidente e, sobretudo, do Ocidente na modernidade. Não foi em termos análogos que G. se expressou a propósito do Oriente. A crise não é senão o reflexo de um conjunto de contradições, capaz de tipificar alguns componentes próprios da civilização ocidental. Convém recordar ao menos dois desses componentes, que, no discurso gramsciano, parecem ter particular força expressiva, bem como parecem ser símbolos do próprio “universo”: o primeiro é sugerido ao nosso autor por um escrito de Bergson (L’énergie spirituelle), em que este se pergunta, segundo a paráfrase das notas carcerárias, “o que teria acontecido se a humanidade tivesse dirigido o próprio interesse e a própria investigação para os problemas da vida interior ao invés de para aqueles da vida material. O reino do mistério seria a matéria e não o espírito, ele [Bergson – ndr] diz” (Q 5, 29, 567 [CC, 4, 101]). Independentemente do mérito do problema, aliás extraído de uma leitura de segunda mão, merecem atenção dois pontos desse parágrafo, rubricado justamente Oriente-Ocidente. O primeiro consiste na significativa “correção” lexical realizada por G. quando afirma que, “na realidade, ‘humanidade’ significa Ocidente, porque o Oriente se deteve exatamente na fase da investigação dirigida apenas ao mundo interior” (idem). A sobreposição da consciência ocidental à ideia de humanidade em geral é um outro sinal da percepção, em G., de uma dimensão hegemônica das definições mais consolidadas e da capacidade do Ocidente de ocupar todo o espaço das formas de organização e de civilização e de escapar à regra da relativização geográfica, à qual deveria responder. A razão dessa irrefreável dilatação do sentido da ideia do Oeste é explicitada pela reformulação da relação entre espírito e matéria de Bergson, que G. inverte e esclarece quando, de modo manifestamente retórico, se pergunta “se não é propriamente o estudo da matéria – isto é, o grande desenvolvimento das ciências entendidas como teoria e como aplicação industrial – que fez nascer o ponto de vista de que o espírito é um ‘mistério’, pois imprimiu ao pensamento um ritmo de movimento acelerado, fazendo pensar àquilo que poderá ser ‘o porvir do espírito’ (problema que não se coloca quando a história está estagnada) e fazendo com que o espírito seja visto como uma entidade misteriosa” (idem).
No centro do raciocínio se coloca, portanto, a conotação industrial do estudo e da aplicação das ciências ou, em poucas palavras, o peso do industrialismo, e, por isso, do modelo ocidental de civilização, como causa profunda do abandono do espírito na esfera escura do mistério; isso equivale a dizer que no Ocidente o problema da produção e da aquisição material se tornou um materialismo objetivo, em condição de subtrair a espiritualidade ao controle ordinário da consciência subjetiva. Assim, falar da aceleração do exercício do pensamento, mas somente na sua projeção num genérico “porvir”, parece uma breve, mas condoída, alusão de G. à dificuldade do próprio pensamento, num clima de materialização da ciência, em evitar sua alienação na perspectiva de uma espera inerte e quase perdida nas fases de turbulência da história. Em suma, crescimento do interesse na “matéria” e redução da incidência dos problemas do espírito são propostos, mesmo que numa linguagem impressionista e muito elíptica, como os dois corolários da centralidade da indústria, característica do Ocidente e de sua modernização integral.
Bibliografia: Coutinho, 2006; Salvadori, 2007.
Silvio Suppa
Ver: americanismo; cosmopolitismo; crise; Estado; Europa; França; geografia; guerra de movimento; guerra de posição; industrialismo; intelectuais; Islã; Maquiavel; objetividade; sociedade civil.
Nos Q, a acepção mais óbvia do termo “original” é introduzida dentro de uma nova acepção, que não a anula, mas a redefine. Se o original é o único que se opõe à cópia seriada, tal significado surge historicamente – e assim deve ser visto, segundo G. – como “significado romântico [....] em oposição a um certo conformismo essencialmente ‘jesuíta’: isto é, um conformismo artificial, fictício, criado superficialmente para os interesses de um pequeno grupo ou camarilha, não de uma vanguarda” (Q 14, 61, 1.719 [CC, 6, 248]). Mas, para além desse significado negativo, deve-se buscar uma originalidade positiva, a fim de que “a própria parte absorva e vivifique uma doutrina original própria, correspondente às próprias condições de vida” (Q 8, 196, 1.059). Deve-se reconhecer que “há conformismo ‘racional’, quer dizer, que responde [...] ao mínimo esforço para obter um resultado útil, e a disciplina de tal conformismo [...] deve se tornar ‘espontaneidade’ ou ‘sinceridade’” (Q 14, 61, 1.719-20 [CC, 6, 248]). Por essa razão, “que uma massa de homens seja conduzida a pensar o real presente, coerentemente e de forma unitária, é fato ‘filosófico’ bem mais importante e ‘original’ do que a descoberta, por parte de um ‘gênio’ filosófico, de uma nova verdade que permanece patrimônio de um pequeno grupo de intelectuais” (Q 11, 12, 1.378 [CC, 1, 93]), já que é somente isso que modifica a realidade e marca uma época. Original como contrário a seriado deve ser visto, pois, mais profundamente, como expressão de certa forma de vida, que tende a encontrar em si mesma a própria razão de ser. Nesse sentido, G. fala de original como aquilo que surge do interior, que não é determinado pelo exterior (Q 1, 46, 55 e Q 3, 59, 338 [CC, 2, 79]); como sinônimo de “independente”, em referência ao marxismo (Q 4, 1, 420 [CC, 6, 354]; Q 4, 3, 422; Q 4, 11, 433 [CC, 6, 358]; Q 7, 29, 877 [CC, 6, 372]; Q 7, 33, 882 [CC, 1, 242]) e à “civilização” que ele dá origem (Q 4, 24, 443). Aqui a originalidade, isto é, a absoluta inconfundibilidade em relação a qualquer outra filosofia e forma de vida, não é uma característica que se procura, mas uma expressão de sua independência histórica, de sua capacidade de se propor como civilização “integral”.
Fabio Frosini
Ver: conformismo; necessidade.
G. atribui um significado particular ao termo “ortodoxia” em duas notas (Q 4, 14 [CC, 6, 360] e Q 11, 27 [CC, 1, 152]), respectivamente Texto A e Texto C, intituladas “O conceito de ‘ortodoxia’”. As aspas no termo indicam claramente o desejo de lhe atribuir um significado diferente do usual, derivado do léxico da história das religiões. De fato, G. escreve que “o conceito de ‘ortodoxia’ deve ser renovado e remetido às suas origens autênticas. A ortodoxia não deve ser buscada neste ou naquele discípulo de Marx, nesta ou naquela tendência ligada a correntes estranhas ao marxismo, mas no conceito de que o marxismo basta a si mesmo, contém em si todos os elementos fundamentais, não somente para construir uma concepção total do mundo, uma filosofia total, mas para fazer viva uma total organização prática da sociedade, isto é, para se tornar uma civilização integral, total” (Q 4, 14, 435 [CC, 6, 360]). Enquanto sempre se discutiu sobre ortodoxia tendo por base uma pretensa “fidelidade” dos seguidores de uma doutrina a sua letra, a seu espírito ou à intenção de seu precursor, é necessário deslocar a discussão das pessoas para a própria teoria, e avaliar os intérpretes a partir de sua capacidade de identificar o elemento de independência e autônoma vitalidade da doutrina.
De fato, G. associa explicitamente a renovação do conceito de ortodoxia à necessidade de confrontar a tendência, manifestada por Bukharin no Ensaio popular, a cair “no dogmatismo” justamente por não ter “colocado a questão da ‘teoria’” (Q 4, 13, 435); e no Texto C recorda que Croce tenta “reabsorver a filosofia da práxis e incorporá-la como serva da cultura tradicional” (Q 11, 27, 1.435 [CC, 1, 152]). Afirmar a ortodoxia marxista não significa, portanto, nada além de afirmar o caráter original e independente do marxismo, e isso no sentido teórico e prático: seu caráter “revolucionário” uma vez que é “elemento de separação completa de dois campos, pois é vértice inacessível para os adversários” (Q 4, 14, 435 [CC, 6, 360]).
Fabio Frosini
Ver: Bukharin; marxismo.
Escrevendo sobre a crise do Ocidente e polemizando com todos que quisessem atribuí-la à crise do historicismo e da consciência crítica, G. se pergunta se, ao contrário, “esta crise não está [...] ligada à queda do mito do progresso indefinido e ao otimismo que dele depende” (Q 1, 76, 84 [CC, 3, 120]); é o mesmo otimismo do século XIX que, com a religião do progresso, se apresentava como uma forma de ópio (Q 28, 11, 2.330 [CC, 2, 265]). O sindicalismo também cai vítima desse mito: de fato, em toda uma série de discussões “que se dizem ligadas à filosofia da práxis” está presente muito mais o liberalismo do que o sindicalismo, “que dava importância primordial à relação fundamental econômico-social e só a isso” (Q 13, 17, 1.581 [CC, 3, 36]). As outras ocorrências do termo estão sempre relacionadas à noção de “pessimismo”. No caso de Guicciardini, o ceticismo não é um pessimismo da inteligência que, no entanto, “pode ser unido a um otimismo da vontade nos políticos realistas ativos” (Q 6, 86, 762 [CC, 3, 241]). No Q 9, 60, 1.331 [CC, 3, 295], G., afirmando que não é preciso sonhar de olhos abertos e fantasiar, lembra que “é preciso atrair a atenção violentamente para o presente assim como ele é, se se quer transformá-lo. Pessimismo da inteligência, otimismo da vontade”. Ainda a propósito do nexo otimismo-pessimismo, G. nota que o primeiro se apresenta com frequência sob a forma de fatalismo e que a essa postura se reage com base na inteligência: “O único entusiasmo justificável é aquele que acompanha a vontade inteligente, a operosidade inteligente, a riqueza inventiva em iniciativas concretas que modificam a realidade existente” (Q 9, 130, 1.192 [CC, 1, 256]). Além do mais, face à desordem intelectual e moral, “é preciso criar homens sóbrios, pacientes, que não se desesperem diante dos piores horrores e que não se exaltem por qualquer tolice. Pessimismo da inteligência, otimismo da vontade” (Q 28, 11, 2.331-2 [CC, 2, 265]).
Lelio La Porta
Ver: Guicciardini; pessimismo; progresso; vontade.
[a] Com a expressão Ensaio popular Gramsci se refere ao livro A teoria do materialismo histórico: manual popular de sociologia marxista de Bukharin. Ou seja, Ensaio popular é um apelido que ele deu ao livro. No Brasil, a edição trouxe como título Tratado de materialismo histórico (Rio de Janeiro, Laemmert, 1970). (N. R. T.)