v. estrutura.
Sobre o tema da unidade de teoria e prática dispomos de um pronunciamento autobiográfico. Em um texto da primavera de 1932, referindo-se a 1917, G. observa: “Naquela época, o conceito de unidade entre teoria e prática, entre filosofia e política não me era claro, e eu era, sobretudo, tendencialmente crociano” (Q 10 I, 11, 1.233 [CC, 1, 304]). Já nesse trecho emerge a forma com que G. se distancia de Croce: se o nexo teoria-prática equivale ao de filosofia-política, a inteira questão passa de categorial a política e histórica: é o problema da relação entre filosofia alemã e política francesa, com a conexa questão da importância teórica, para a filosofia da práxis, da “tradutibilidade das linguagens”.
Contudo, o problema da unidade de teoria e prática está também no centro do informe de Bukharin ao II Congresso Internacional de História da Ciência e da Tecnologia do verão de 1931 (v. Bukharin, 1977b). G. recebe o texto em 31 de agosto do mesmo ano (LC, 453, a Tania, 31 de agosto de 1931 [Cartas, II, 79]) e começa a discuti-lo em novembro do mesmo ano (Q 7, 47, 894). Traz a data do mês seguinte o início da reflexão sobre a unidade teórica e prática (Q 8, 169, 1.041, intitulado Unità della teoria e della pratica [Unidade da teoria e da prática]). Pode-se, portanto, conjeturar que ao dispor-se a discutir o tema, G. tivesse presente seja seu crocianismo juvenil seja a intervenção, atualíssima, do autor do Ensaio popular, líder da delegação soviética ao Congresso londrino.
O tema é desenvolvido nos Q em poucos textos (Q 8, 199, 1.060; Q 10 II, 31, 1.270-1 [CC, 1, 339]; Q 14, 58, 1.717 [CC, 4, 125]; Q 15, 22, 1.780 [CC, 1, 260]), entre os quais se destacam por importância o citado Q 8, 169, 1.041 e o Texto C do Q 11, 12, 1.385-7 [CC, 1, 93-114]. Aqui, e nas variantes das duas redações, encontra-se o essencial da reflexão de G. A questão é colocada inicialmente como relação histórica entre “consciência teórica” e “atuar” prático. O “trabalhador médio” (no Texto C, “o homem ativo de massas”) poderá assim ter “duas consciências teóricas, uma implícita no seu operar e que realmente o une a todos os seus colaboradores na transformação prática do mundo, e uma ‘explícita’, superficial, que herdou do passado” (Q 8, 169, 1.041). A relação entre os dois momentos é, portanto, um problema político (no Texto C esclarece-se que a unificação de teoria e prática tem-se “primeiro no campo da ética, depois, no da política”: Q 11, 12, 1.385 [CC, 1, 103]) e, consequentemente, uma “questão de hegemonia” (Q 8, 169, 1.041).
A “historicização” do nexo teoria-prática (contra Croce) significa para G. a recondução de tal nexo à noção de hegemonia: somente ela fornece a exata perspectiva para entendermos de forma não especulativa essa relação, isto é, para compreendermos tanto o fato de que unidade de teoria e prática (assim como a unidade do “espírito humano”) sempre existe, formalmente, quanto de que para a filosofia da práxis o que importa é que essa unidade se produza materialmente, ou seja, politicamente. Essa distinção é formulada com clareza em Q 15, 22, 1.780 [CC, 1, 260]: “Teoria e prática. Já que toda ação é o resultado de vontades diversas, com diverso grau de intensidade, de consciência, de homogeneidade com o inteiro conjunto da vontade coletiva, é claro que também a teoria correspondente e implícita será uma combinação de crenças e pontos de vista igualmente desarticulados e heterogêneos. Todavia, existe adesão completa da teoria à prática, nestes limites e nestes termos. [...] A identificação de teoria e prática é um ato crítico, pelo qual se demonstra que a prática é racional e necessária ou que a teoria é realista e racional. Daí porque o problema da identidade de teoria e prática se coloca especialmente em determinados momentos históricos, chamados “de transição”, isto é, de mais rápido movimento de transformação, quando realmente as forças práticas desencadeadas demandam a sua justificação a fim de serem mais eficientes e expansivas, ou quando se multiplicam os programas teóricos que demandam, também eles, a sua justificação realista, na medida em que demonstram a sua possibilidade de assimilação por movimentos práticos, que só assim se tornam mais práticos e reais”.
Assim, a questão da unidade teórica e prática deve ser historicizada não somente em seu conteúdo, mas na própria dinâmica do seu emergir e se impor como questão a ser resolvida. Como também típica das fases de transição, ela faz parte do mais amplo conceito de hegemonia, cuja elaboração por parte do movimento comunista é imposta pela necessidade de enfrentar, teórica e praticamente, a passagem da “velha” à “nova” organização social. G. observa no Q 8, 169, 1.041 que “a unidade de teoria e prática não é um fato mecânico, mas um devir histórico, que tem sua fase elementar e primitiva no senso de ‘distinção’, de ‘superação’, de ‘independência’. Eis porque em outro lugar observei que o desenvolvimento do conceito-fato de hegemonia representou um grande progresso ‘filosófico’ além de político-prático”. E no Texto C acrescenta: “Já que implica e supõe necessariamente uma unidade intelectual e uma ética adequada a uma concepção do real que superou o senso comum e tornou-se crítica, mesmo que dentro de limites ainda restritos” (Q 11, 12, 1.385-6 [CC, 1, 104]). Na passagem da primeira à segunda redação esclarece-se o fato de que o conceito-fato de hegemonia já é, em si mesmo, o sinal disto, de que uma unidade material de teoria e prática se formou, ou seja, que as demandas por racionalização da prática e de realização da teoria, ainda que parcialmente, começaram a encontrar uma correspondência.
Essa configuração difere seja daquela de Croce, como já se viu, seja da de Bukharin. No relatório de 1931, Bukharin fala de unificação de teoria e prática como equivalente da criação de uma sociedade planificada, em que “o pré-conhecimento teórico da necessidade pode se tornar imediatamente norma de ação” (Bukharin, 1977b, p. 385). Isto é, ele supõe uma “necessidade” histórica conhecível separadamente das dinâmicas politicas, a ser instituída como norma de conduta de massa. Para ele, em suma, a relação entre teoria e prática equivale àquela entre ciência pura e ciência aplicada, como nota G. no Q 15, 10, 1.766 [CC, 3, 330] (v. Bukharin, 1977b, p. 381).
Formular o tema da unidade de teoria e prática tem, portanto, o significado de uma intervenção ideológica exata no contexto contemporâneo, na luta que comunismo e liberalismo engajaram pela hegemonia (o caso do fascismo é para G., desse ponto de vista, secundário; “o idealismo atual”, de fato, justamente sobre esse tema, registra o seu ponto mais débil, porque “faz coincidir” imediatamente “ideologia e filosofia (isso significa em última análise a unidade [por ele] postulada entre real e ideal, entre prática e teoria etc.), ou seja, é uma degradação da filosofia tradicional com respeito à altura a que Croce a havia conduzido com suas ‘distinções’”, Q 1, 132, 119). Essa consequência política é ainda visível no Q 8, 169, 1.041: “Nos novos desenvolvimentos do materialismo histórico, o aprofundamento do conceito de unidade da teoria e da prática ainda está em uma fase inicial: ainda estão presentes resíduos de mecanicismo. Fala-se ainda de teoria como ‘complemento’ da prática, quase como acessório etc. Penso que nesse caso também a questão deva ser colocada historicamente, ou seja, como um aspecto da questão dos intelectuais. A autoconsciência historicamente significa criação de uma vanguarda de intelectuais: uma ‘massa’ não se ‘distingue’ e não se torna ‘independente’ sem se organizar e não há organização sem intelectuais, ou seja, sem organizadores e dirigentes”. Aqui G. alude a Mirskij, 1931, p. 651-3, ou seja, a uma fonte importante, aos seus olhos, para compreender os desenvolvimentos teóricos atuais na União Soviética. As críticas de G. aqui expressas dirigem-se exatamente à ainda incipiente compreensão do conceito de unidade de teoria e prática, e têm, portanto, um inevitável desenvolvimento em referência também ao destino atual do conceito-fato de hegemonia.
Fabio Frosini
Ver: Bukharin; Croce; filosofia da práxis; solipsismo; tradutibilidade.
A expressão faz referência a um processo que “todo ato histórico” supõe, enquanto esse só pode ser realizado pelo “homem coletivo”. Ora, dado que “a cultura, em seus vários níveis, unifica uma maior ou menor quantidade de indivíduos em estratos numerosos”, que estão “mais ou menos em contato expressivo, que se entendem entre si em diversos graus etc.”, o processo de unificação cultural coincide com um momento necessário da elaboração de uma vontade coletiva, por isso “uma multiplicidade de vontades desagregadas, com fins heterogêneos, solda-se conjuntamente na busca de um mesmo fim, com base em uma idêntica e comum concepção de mundo” (Q 10 II, 44, 1.331 [CC, 1, 398]). A valorização da “frente de luta cultural”, ou seja, da hegemonia, cabe nesse projeto (Q 10 II, 12, 1.235 [CC, 1, 320]), no qual a “questão da linguagem e das línguas” assume um papel de “primeiro plano”. Para G., linguagem e língua têm importância, antes de tudo, por sua origem e eficácia prática, por seu caráter ideológico e por sua função organizativa. Aqui está a distinção entre a abordagem de G. e a dos promotores das línguas fixas e universais, que prescindem das diferenças culturais e histórico-sociais. Para G., a constituição de uma cultura e de uma língua são inseparáveis (Q 10 II, 44 [CC, 1, 398] e Q 6, 71 [CC, 6, 196] mas v. já Q 1, 43 e Q 1, 44). Essa concepção une-se completamente, por fim, com a questão da objetividade do real, que pressupõe “uma luta pela objetividade (para livrar-se das ideologias parciais e falaciosas) e esta luta é a mesma luta pela unificação cultural do gênero humano”: “O conhecimento real para todo o gênero humano historicamente unificado em um sistema cultural unitário”. Assim, supera-se “todo ponto de vista que seja puramente particular ou de grupo” e constrói-se uma homogeneidade de abordagem cognitiva à realidade, pela qual se pode afirmar algo como “objetivo” (Q 11, 37, 1.456 [CC, 1, 172]).
Rocco Lacorte
Ver: cultura; hegemonia; homem coletivo; língua; linguagem; objetividade; vontade coletiva.
Em diversos contextos G. usa o adjetivo “universal”, em acepções muito diferentes: histórica, política, literária, filosófica etc. (por exemplo, Q 6, 24 [CC, 3, 225]; Q 6, 151 [CC, 4, 211]; Q 6, 77 [CC, 2, 142]; Q 8, 204; Q 8, 208; Q 11, 66 [CC, 1, 210]; Q 15, 14 [CC, 6, 255]; Q 17, 1 [CC, 5, 336]). Vamos nos deter sobre os significados filosóficos que para G. tem o “universal”, sem descuidar do âmbito político e histórico. O conceito é discutido nas notas dedicadas a Benda, do qual G. retoma a crítica à errada relação entre universalismo e nacionalismo de uma cultura, mas ao qual imputa não ter examinado a questão dos intelectuais do ponto de vista da situação de classe (Q 3, 2, 285 [CC, 2, 71]). “Universal” é usado por G. ao analisar, nas notas sobre estrutura e superestrutura, o afirmar-se de uma fase em que uma ideologia se impõe, “determinando, além da unidade econômica e política, também a unidade intelectual e moral, mediante um plano não corporativo, mas universal” (Q 4, 38, 457-8). Falando de ética e política, G. enuncia a tese segundo a qual não pode existir associação que não seja sustentada por determinados princípios éticos de caráter universal (Q 6, 79, 750 [CC, 2, 230]). G. fala de universal quando analisa o conceito de “científico” e de método da pesquisa científica, que não existe em geral, mas apenas em relação à própria lógica. Para G. a metodologia mais universal é tão somente a lógica formal ou matemática (Q 6, 180, 826-7 [CC, 1, 234]). G. discute filosoficamente o “universal” quando tematiza o problema do nexo liberdade-disciplina, observando que a liberdade deve ser acompanhada mais pela responsabilidade do que pela disciplina. “Responsabilidade contra o arbítrio individual: só é liberdade aquela ‘responsável’, ou seja, ‘universal’, na medida em que se propõe como aspecto individual de uma ‘liberdade’ coletiva ou de grupo, como expressão individual de uma lei” (Q 6, 11, 692 [CC, 1, 234]). Finalmente, fala-se de universal também quando se enfrenta o tema da “realidade objetiva”, quando G. define o objetivo como “universal subjetivo”, ou seja, um tipo de conhecimento que é objetivo porque é real e válido para todo o gênero humano historicamente unificado em um sistema cultural unitário. Nesse sentido a luta pela objetividade nada mais é que processo de objetivação do sujeito, “que se torna cada vez mais universal concreto” (Q 8, 177, 1.048-9).
Giuseppe Cacciatore
Ver: Benda; ciência; disciplina; estrutura; ética; intelectuais; liberdade; nacionalismo; objetividade; superestrutura/superestruturas.
Geralmente, G. é bastante crítico com a organização e com o funcionamento da universidade italiana, naqueles anos ainda uma instituição de elite. O trabalho das universidades, com o das academias, desenvolvia, de qualquer forma, um papel de destaque na organização da vida cultural como continuação do processo iniciado na escola, em perspectiva a “escola única” gramsciana do futuro, que obedeceria à necessidade de reunir “a teoria e a prática, o trabalho intelectual e o trabalho industrial” (Q 8, 188, 1.055 [CC, 2, 169]). Os cursos universitários às vezes eram demasiado circunscritos, ao passo que, para ter uma cultura, é preciso de metodologias e visões bem mais amplas. Efetivamente G. pergunta-se: na universidade “deve-se estudar ou estudar para saber estudar?” (Q 6, 206, 844 [CC, 2, 151]), e cita com aprovação o objetivo de universidade perfilado pelo cardeal inglês J. H. Newman: “A formação do intelecto, isto é, um hábito de ordem e sistema, o hábito de relacionar todo conhecimento novo com os que já se possui e integrá-los em conjunto” (Q 15, 46, 1.806 [CC, 2, 189]). Na realidade, às vezes acontecia de o professor universitário não conhecer o aluno (Q 9, 119, 1.184 [CC, 2, 174]); doutro lado, estreitavam-se relações entre os professores e os estudantes mais assíduos e vocacionados para a pesquisa, de modo que se permitia a um docente criar sua “escola” com base em “pontos de vista determinados (chamados de ‘teorias’) sobre determinadas partes de sua ciência” (Q 1, 15, 12 [CC, 2, 59]).
Além das universidades estatais, já existia a Universidade Católica de Milão – provável precursora, segundo G., de outros ateneus parecidos –, que preparava “células católicas” para sua inserção na “equipe dirigente laica”, uma classe formada, ao contrário, nas universidades estatais. Paradoxalmente, mas somente em aparência e somente dentro de certos limites, o sistema católico é julgado mais democrático, por causa de sua “elaboração e seleção a partir de baixo” (Q 16 II, 1.868-9 e 1.872). Outro tipo de universidade era representado pelos movimentos “dignos de interesse” das universidades populares, que respondiam a uma “necessidade popular”, mas que com demasiada frequência degeneravam em “formas paternalistas” (Q 8, 213, 1.070).
Derek Boothman
Ver: educação; escola.
Um dos argumentos mais controversos é a avaliação dos processos em curso na URSS stalinista recolhida nos Q, quando, após 1927 – com o abandono da Nova Política Econômica (NEP, na sigla em inglês), o lançamento do primeiro plano quinquenal, a industrialização acelerada, a coletivização do campo com a forte intervenção pelo alto do PCUS e do Estado, a marginalização de alguns dos principais dirigentes da Revolução de Outubro e da Internacional Comunista (derrotada em 1926-1927 pela oposição “de esquerda” e em 1928-1929, pela oposição “de direita”) –, se perfila um tipo de Estado, de sociedade, de direção política relativamente novos com respeito à primeira década revolucionária. Face aos tumultuosos processos em curso na URSS, ainda sem nada definitivamente consolidado (portanto não se pode olhar para ela com os olhos de quem, décadas depois, se depara com outro objeto bem mais definido), G. pode dispor no cárcere de poucas informações, frequentemente sumárias e de segunda ou terceira mão. Do G. que observa com atenção crítica, mas também com participação sentimental e paixão política – não se pode “saber sem compreender e especialmente sem sentir e ser apaixonado” (Q 4, 33, 452) –, ocorreria saber colher o “ritmo do pensamento em desenvolvimento” (Q 16, 2, 1.841-2 [CC, 4, 18]), evitando o “erro de método filológico” de “forçar os textos” para fazer que digam mais do que realmente dizem. (Q 6, 198, 838 [CC, 4, 108]).
O leitmotiv de G., já desde os primeiros escritos de 1917, a respeito dos processos originados pela Revolução Russa está na escolha de enraizá-los no concreto da história, na “realidade efetiva”, que G. concebe não como “algo de estático e imóvel”, e sim como, “ao contrário, uma relação de forças em contínuo movimento e mudança de equilíbrio”, sobre o qual o “político em ato” (e não o “diplomático” ou o mero “cientista da política”) atua, visando superá-la em “um novo equilíbrio” progressivo (Q 13, 16, 1.578 [CC, 3, 34]). Ao avaliar o país dos sovietes, G. mostra-se absolutamente estranho à aplicação de um modelo abstrato de socialismo; à história, à inaudita contradição que ela reserva ao proletariado no poder na fase da NEP – “jamais ocorreu na história que uma classe dominante, em seu conjunto, se visse em condições de vida inferiores a determinados elementos e estratos da classe dominada e submetida” (“Sobre a situação no partido bolchevique”, outubro de 1926, em CPC, 129 [EP, II, 390]) – G. faz referência na carta de 14 de outubro de 1926 ao Comitê Central do PCUS. A adesão à “história efetiva, concreta, viva, adaptada ao tempo e ao lugar, como surgia de todos os poros da sociedade determinada que devia ser transformada [...] segundo as novas relações históricas” (Q 19, 24, 2.034 [CC, 5, 62]) está na base – desde o Q 1(1929) até o mais tardio Q 19 (1934-1935) – da repetida crítica à estratégia proposta por Trotski da “revolução permanente” (“fórmula político-histórica” à qual, em outros contextos, tal como a história francesa de 1789 a 1871, G. atribui o papel de “mediação dialética”: Q 13, 17, 1.582 [CC, 3, 36]). Tal estratégia, “retomada, sistematizada, elaborada, intelectualizada pelo grupo Parvus-Bronstein, manifestou-se inerte e ineficaz em 1905 e a seguir: era uma coisa abstrata, de gabinete científico” (Q 1, 44, 54), ao passo que “a corrente que a combateu [...] aplicou-a de fato [...] segundo as novas relações históricas, e não segundo uma etiqueta literária e intelectualista” (Q 19, 24, 2.034 [CC, 5, 62]). Na nota em que se menciona explicitamente “o desacordo fundamental” entre Trotski e Stalin, G. enfrenta dialeticamente a questão da relação nacional-internacional, ou seja, a relação entre revolução socialista na Rússia e revolução no Ocidente, criticando a inefetividade histórica da revolução permanente e defendendo Stalin contra as acusações de nacionalismo, “se se referem ao núcleo da questão”. Para G. não existe uma alternativa nítida entre desenvolvimento do socialismo em um só país e desenvolvimento da revolução mundial, mas uma estreita relação e combinação de forças: “Por certo o desenvolvimento é no sentido do internacionalismo, mas o ponto de partida é ‘nacional’ e é deste ponto de partida que se deve partir”, portanto, a escolha da maioria do PCUS é correta, “mas a perspectiva é internacional e não pode deixar de ser. É preciso, portanto, estudar exatamente a combinação de forças nacionais que a classe internacional deverá dirigir e desenvolver segundo a perspectiva e as diretrizes internacionais. A classe dirigente só será dirigente se interpretar exatamente esta combinação, da qual ela própria é componente, e só como tal pode dar ao movimento uma determinada orientação, de acordo com determinadas perspectivas” (Q 14, 68, 1.729-30 [CC, 3, 314]).
Essa abordagem dialética caracteriza a reflexão in progress sobre a URSS. G. compreende historicamente e afirma politicamente a viragem do “socialismo em um só país”, mas a concebe sempre no quadro do internacionalismo: derrotada a revolução no Ocidente, a consolidação da URSS equivale à construção de uma casamata na longa guerra de posição que se desenvolve em nível mundial. O sucesso dessa construção não é certo e tampouco adquirido de vez. A transição socialista é um processo complexo, que se funda sobre a capacidade da classe dirigente de saber interpretar seu papel que, na situação histórica dada do atraso russo, com escassos elementos de “sociedade civil” (Q 7, 16, 866 [CC, 3, 261]), consiste em iniciar o processo de transformação econômico-social “pelo alto”, recorrendo também à disciplina e à coerção estatal: “O Estado é o instrumento para adequar a sociedade civil à estrutura econômica, mas é necessário que o Estado ‘queira’ fazer isto, ou seja, que o Estado seja dirigido pelos representantes da mudança acontecida na estrutura econômica” (Q 10 II, 15, 1.253-4). “O princípio da coerção, direta e indireta, na ordenação da produção e do trabalho é correto”, mas é errado o modelo militar. A crítica de método é dirigida a Trotski, mas pode valer também para a maioria: é preciso resguardar-se da tendência a “acelerar, com meios coercitivos exteriores, a disciplina e a ordem na produção”, o que acaba “necessariamente em uma forma de bonapartismo” (Q 22, 11, 2.164 [CC, 4, 265]), que – mas é somente a “história concreta” e não “um esquema sociológico” que pode dizer isso – pode ser progressivo, “se ajudar a força progressiva a triunfar ainda que com certos compromissos”, ou regressivo (Q 13, 27, 1.619 [CC, 3, 76]).
A transição requer a educação das massas para que elas sejam protagonistas do “processo molecular de afirmação de uma nova civilização”: “Trata-se, na verdade, de trabalhar para a elaboração de uma elite, mas esse trabalho não pode ser separado do trabalho de educação das grandes massas; as duas atividades, aliás, são na verdade uma só atividade, e é precisamente isso o que torna o problema difícil” (Q 7, 43, 891-2 [CC, 1, 247]). Trata-se do nexo dialético de Reforma e Renascimento: “Se se tivesse de fazer um estudo sobre a União [Soviética], o primeiro capítulo, ou mesmo a primeira seção do livro, deveria precisamente desenvolver o material recolhido nesta rubrica sobre ‘Reforma e Renascimento’” (Q 7, 44, 893 [CC, 1, 249]). Os dois momentos da história moderna, lidos por G. inicialmente em oposição – um popular-progressivo, outro elitista-restaurador –, são pensados, na elaboração mais alta, como inter-relacionados, e ambos concorrentes na constituição da nova sociedade: o desenvolvimento teórico à altura dos desafios postos pela construção do socialismo é uma práxis tão indispensável quanto a participação construtiva das massas à realização do plano quinquenal. A dificuldade – e a arte – da política está em saber construir as modalidades de suas conexões.
Podemos reconduzir a isso a crítica de G. à debilidade da elaboração teórica na URSS, seja na filosofia, seja na teoria econômica. O Ensaio popular de sociologia, de Bukharin (de 1921) – texto fundamental da Internacional Comunista, usado também por G. em 1925 para a Escola de partido (v. “Introdução ao primeiro curso da escola interna de partido”, abril-maio de 1925, em CPC, 56) –, é demolido de forma sistemática na segunda seção do Q 11, desde o “modo de pensar [...] ainda mais criticável e superficial” do que o de Loria (Q 11, 29, 1.441 [CC, 1, 157]). Em vez de colocar a filosofia da práxis como filosofia autônoma e original, torna-a subalterna ao materialismo metafísico, ao positivismo, ao evolucionismo; desprovido dos “conceitos de movimento histórico, de devir e, consequentemente, da própria dialética [...] incide plenamente no dogmatismo e, por isso, numa forma, ainda que ingênua, de metafísica” (Q 11, 14, 1.402 [CC, 1, 120]), ou melhor, de “velha metafísica”, na tentativa de “reduzir tudo a uma causa, a causa última, a causa final [...] uma das manifestações da ‘busca de deus’” (Q 11, 31, 1.445 [CC, 1, 163]), com um “anti-historicismo metodológico” que transforma a história da filosofia em “um tratado histórico de teratologia” (Q 11, 18, 1.416 [CC, 1, 135]). A crítica permanece substancialmente inalterada mesmo com respeito à relação apresentada por Bukharin no Congresso dos Cientistas de Londres no verão de 1931, que lhe chegou imediatamente no cárcere (LC 453, a Tania, 31 de agosto de 1931 [Cartas, II, 79]). Porém, nesse caso o ataque de G. é contra a tendência prevalecente na cultura soviética, herdada por Engels e retomada por Lenin, à partição do marxismo em materialismo dialético e materialismo histórico (v. Q 11, 22, 1.425 [CC, 1, 140]). O manual econômico de inspiração bukhariniana de Lapidus e Ostrovitjanov (Précis d’économie politique, 1928) também é submetido à mesma crítica de dogmatismo e inadequação para o desafio teórico posto por uma estrutura em que “o trabalho se tornou gestor da economia” (Q 10 II, 23, 1.262 [CC, 1, 331]). Caraterizado por uma “forma de pensar ossificada”, não se confronta com a teoria econômica clássica e neoclássica (Q 15, 45, 1.805 [CC, 1, 453]), “é ‘dogmático’”, se apresenta como se fosse – e não é absolutamente o caso – a expressão de uma ciência que “já houvesse penetrado no período clássico de sua expansão orgânica” (Q 10 II, 37, 1.286 [CC, 1, 356]). Desinteressa-se anticientificamente do “custo comparado”. Mas também a economia socialista deverá “preocupar-se com as utilidades particulares e com as comparações entre essas utilidades, com o objetivo de extrair delas iniciativas de movimento progressivo”, percebido por G. na retomada da emulação socialista, as “competições” dos udarniki (trabalhadores de assalto), que representam “um modo de ‘comparar’ os custos e de insistir em sua contínua redução, identificando e mesmo suscitando as condições objetivas e subjetivas nas quais isso é possível” (Q 10 II, 23, 1.262 [CC, 1, 333]). G., cujo pensamento dialético é estruturalmente estranho a qualquer abordagem unilateral, evidencia o grande atraso teórico do manual e, contemporaneamente, o desenvolvimento progressivo do movimento real, que põe e enfrenta na prática social os problemas postos pela nova sociedade e gestação.
G. mantém a mesma abordagem em relação à teoria e à prática do plano, pela qual se mostra fortemente interessado (v. os pedidos de diversos livros sobre o argumento, LC, 817 a Mussolini, setembro de 1930 [Cartas, II, 441]), comunicando ter lido minuciosamente o excerto do The Economist sobre o primeiro plano quinquenal (LC, 432, a Tania, 29 de junho de 1931 [Cartas, II, 58]), que usa como pedagógica referência na novela para o filho Delio (LC, 426, a Giulia, 1º de junho de 1931 [Cartas, II, 50]). A URSS encontra-se ainda em “uma fase de primitivismo econômico-corporativa [...] com elementos ‘de plano’ ainda escassos” (Q 8, 185, 1.053 [CC, 3, 286]), e fica distante a perspectiva de “uma economia segundo um plano mundial”, para chegar à qual “é necessário atravessar fases múltiplas”, conscientes das “leis da necessidade” impostas pela fase histórica, que não é a da vitória mundial do socialismo, quando a iniciativa econômico-política será passada “nitidamente às forças que visam à construção segundo um plano, de pacífica e solidária divisão do trabalho” (Q 14, 68, 1.729 [CC, 3, 315]). A economia planificada implica um envolvimento ativo das massas e, como tal, “é destinada a destruir a lei estatística mecanicamente entendida, isto é, produzida pela mescla casual de infinitos atos arbitrários individuais”, “se bem que terá que se basear na estatística, o que, contudo, não significa a mesma coisa: na realidade, a ‘espontaneidade’ naturalista é substituída pela consciência humana” (Q 11, 25, 1.429-30 [CC, 1, 148]). A realização do plano suscita “um florescimento de iniciativas e de empreendimentos que surpreendem muitos observadores” (Q 7, 44, 893 [CC, 1, 249]), apesar das críticas derrotistas e superficiais, como a crítica “burocrática” de Boris Souvarine-Liefscitz (Q 7, 43, 891-2 [CC, 1, 247]), ou de Guido De Ruggiero em sua resenha de 1932 do livro L’expérience du Bolchévism, de Arthur Feiler (Q 10 II, 31, 1.273-4 [CC, 1, 339]). A atenção para o florescimento de iniciativas pela base, as “competições”, a emulação socialista, tornam os processos em curso na URSS dificilmente registráveis na categoria de “revolução passiva”.
A distância evidenciada por G. entre atraso na alta elaboração teórica e movimento progressivo das massas poderá ser, mais cedo ou mais tarde, superada, encontrando a “forma teórica” adequada: “Ao se trabalhar praticamente para fazer história, faz-se também filosofia ‘implícita’ (que será ‘explícita’ na medida em que os filósofos a elaborarem coerentemente” (ibidem, 1.273 [CC, 1, 343]). Nesse sentido G. se interessa pelas lutas teóricas entre “mecanicistas” e “dialéticos”, das quais tem notícias em 1930 (LC, 702, a Tania, 10 de abril de 1933 [Cartas, II, 324] e LC, 704, a Giulia, 10 de abril de 1933 [Cartas, II, 326]), e saúda a derrota dos “mecanicistas”, sobre a qual lê sumariamente em um artigo de D. S. Mirskij de outubro de 1931 (que, porém, se refere principalmente à sucessiva exclusão dos “dialéticos”): “Pode-se ver como ocorreu a passagem de uma concepção mecanicista e puramente exterior para uma concepção ativista, que está mais próxima, como observamos, de uma justa compreensão da unidade entre teoria e prática, se bem que ainda não lhe tenha captado todo o significado sintético” (Q 11, 12, 1.387 [CC, 1, 106]). Na fase inicial (a fase “econômico-corporativa”) da sociedade de transição, na qual se apresenta a tarefa de organizar novas relações de produção fundadas sobre a propriedade coletiva, o Estado é “condição preliminar de cada atividade econômica coletiva” (Q 10 II, 20, 1.258 [CC, 1, 327]), portanto, “um período de estatolatria é necessário e até oportuno: esta ‘estatolatria’ é apenas a forma normal de ‘vida estatal’, de iniciação, pelo menos, à vida estatal autônoma e à criação de uma ‘sociedade civil’ que não foi possível historicamente criar antes da elevação à vida estatal independente”. Todavia, o papel do Estado não pode, por uma espécie de “fanatismo teórico”, ser absolutizado ou concebido como perpétuo, mas deve ser criticado “para que se desenvolvam e se produzam novas formas de vida estatal, em que a iniciativa dos indivíduos e dos grupos seja ‘estatal’, ainda que não se deva ao ‘governo dos funcionários’ (fazer com que a vida estatal se torne ‘espontânea’)” (Q 8, 130, 1.020 [CC, 3, 279]). É o grande tema leninista (Estado e revolução) da extinção do Estado: “Sobre esta realidade, que está em contínuo movimento, não se pode criar um direito constitucional do tipo tradicional, mas apenas um sistema de princípios que afirmam como fim do Estado seu próprio fim, seu próprio desaparecimento, isto é, a reabsorção da sociedade política na sociedade civil” (Q 5, 127, 662 [CC, 3, 222-3]). G. parece aqui retomar os temas de E. B. Pašukanis (A teoria geral do direito e o marxismo, 1924; v. também Q 8, 2, 937 [CC, 3, 271]). Entre as duas fases, inicial, econômico-corporativa, e final, fundada sobre o autogoverno dos cidadãos na “sociedade regulada”, a forma estatal mais adequada é aquela – de origem liberal, porém dialeticamente mudada de signo – do Estado-veilleur de nuit, “isto é, de uma organização coercitiva que protegerá o desenvolvimento dos elementos de sociedade regulada em contínuo incremento e que, portanto, reduzirá gradualmente suas intervenções autoritárias e coativas. E isso não pode fazer pensar num novo ‘liberalismo’, embora esteja por se dar o início de uma era de liberdade orgânica” (Q 6, 88, 764 [CC, 3, 245]).
Bibliografia: Cospito, 1994; Frosini, 2004; Grigor’eva, 1991; Vacca, 1989.
Andrea Catone
Ver: Bukharin; compromisso; econômico-corporativo; Estado; estatolatria; hegemonia; Lenin; Partido Comunista; Reforma; revolução permanente; Rússia; sociedade regulada; Stalin; Trotski.
O confinamento na ilha de Ustica, pequena comuna italiana da região da Sicília, de 7 de dezembro de 1926 até 20 de janeiro de 1927, é para G. uma experiência relativamente positiva, pela amenidade das paisagens, precursora de inspirações interessantes, e pela possibilidade de movimentar-se respirando o salubre ar do mar. A viagem para chegar à ilha é pouco “confortável”, mas “rica de motivos diversos, dos shakespearianos aos farsescos” (LC, 8, a Tania, 9 de dezembro de 1926 [Cartas, I, 78]). Também a viagem de Ustica a Milão com trânsito em vários cárceres é “instrutivo”, tal como “uma longuíssima fita de cinema” (LC, 41, a Tania e Giulia, 12 de fevereiro de 1927 [Cartas, I, 114]). Em Ustica, da população de 1.300 habitantes (1.600 em LC, 18, a Tania, 19 de dezembro de 1926 [Cartas, I, 88] e em LC, 23, a Sraffa, 21 de dezembro de 1926 [Cartas, I, 93]), cerca de 600 são “presos comuns” ou seja “criminosos que sofreram várias condenações” (LC, 8, a Tania, 9 de dezembro de 1926 [Cartas, I, 88]). A vida e a não-ainda-morte deles lembra a G. a novela Uma estranha cavalgada, de Kipling. Os confinados vivem de um dinheiro dado pelo governo, que chamam de “mazzetta” (LC, 8, a Tania, 9 de dezembro de 1926 [Cartas, I, 89]), e gastam em vinho (as pobres refeições levam de fato ao “alcoolismo mais depravado em brevíssimo tempo”) e jogando baralho, tornando-se fáceis vitimas dos usurários. Sua vida é “primitiva e elementar”, neles, as “paixões atingem, com rapidez espantosa, o ápice da loucura”, mas também entre os intelectuais sopram “rajadas imprevistas de loucura absurda” (LC 32, a Tania, 7 de janeiro de 1927 [Cartas, I, 104]). G. está, ao invés, com os confinados políticos que representam “toda a gama de partidos e de preparação cultural” (LC, 22, a Sraffa, 21 de dezembro de 1926 [Cartas, I, 93]) e com os quais organiza cursos de cultura geral que podem salvá-los dos grandíssimos “perigos do desânimo” (LC, 28, 2 de janeiro de 1927 [Cartas, I, 100). A psicologia dominante na ilha é a que tem por base a “economia do soldo”, que “só conhece a adição e a subtração das unidades simples” (LC, 78, a Tania, 25 de abril de 1927 [Cartas, I, 151]). A população originária da ilha se mostra muito hospitaleira e atenciosa. No correr do tempo G. dar-se-á conta de que, definitivamente, o confinamento em Ustica era “ainda um paraíso da liberdade pessoal em relação à condição de encarcerado” (LC, 372, à mãe, 15 de dezembro de 1930 [Cartas, I, 460]).
Jole Silvia Imbornone
Ver: cárcere ou prisão; Sraffa.
Nos escritos de Turim, em particular até 1918, “utopia” indica um plano bizarro esboçado friamente, em abstrato, na convicção de que os eventos políticos podem ser arbitrariamente predeterminados (“La Città futura” [A cidade futura], 2 de fevereiro de 1917, em CF, 3; “Tre princìpi, tre ordini” [Três princípios, três ordens], 2 de fevereiro de 1917, ibidem, 5-6; “Teoria e pratica. Ancora intorno all’esperanto” [Teoria e prática. Ainda acerca do esperanto], 29 de janeiro de 1918, ibidem, 672; “Libero pensiero e Pensiero libero” [Livre pensamento e Pensamento livre], 15 de junho de 1918, em NM, 113 [EP, I, 178]; “Per conoscere la rivoluzione russa” [Para conhecer a revolução russa], 22 de junho de 1918, ibidem, 134 e 136-7 [EP, I, 186-90]; “La comissione per il dopoguerra” [A comissão para o pós-guerra], 13 de julho de 1918, ibidem, 209; nesse último texto G. escreve: “A utopia consiste [...] em não conseguir conceber a história como livre desenvolvimento, em ver o futuro como uma solidez já moldada, em acreditar em planos preestabelecidos”). Ela coincide nesse período com o jacobinismo, concebido aqui como quintessência da política burguesa. O enriquecimento que o conceito de utopia conhece desde o início dos Q, além do fato de se desprender do jacobinismo (que recebe já antes de 1926 uma acepção positiva em forte proximidade ao marxismo), consiste em duas passagens: antes de tudo, a utopia é qualificada como ideologia tendencialmente individual, e, portanto, arbitrária; em segundo lugar, de maneira apenas aparentemente contraditória, ela é contextualizada historicamente como tipo de escrita, gênero literário, de modo que progressivamente é posto em luz seu conteúdo político, podendo a utopia ser gradativamente devolvida à história, que esclarece o seu caráter de ideologia dos grupos sociais subalternos. As duas acepções são evidentemente entrelaçadas, porque a utopia como gênero literário, modalidade de pensamento isolada e impotente, deixa, todavia, emergir algumas reivindicações profundas e de outra forma não documentáveis dos grupos que vivem, como escreve G. intitulando o Q 25, “às margens da história”.
Nos Q a utopia adquire, portanto, um duplo valor: como expressão dos intelectuais, deve ser denunciada e combatida; como expressão do “senso comum” de massa, deve ser reformada, criticada construtivamente e substituída por uma abordagem realística e laica (no sentido de Maquiavel) ao mundo e à história. O primeiro aparecimento do termo condensa não casualmente esses dois momentos. Discutindo sobre o “sarcasmo” em Marx como expressão estilística de uma atitude teórico-política, G. nota que isso serve a separar “as velhas concepções na espera que as novas concepções, com sua solidez adquirida por meio do desenvolvimento histórico, dominem até adquirir a força das ‘convicções populares’. Essas novas concepções já foram assumidas para quem usa o ‘sarcasmo’, porém, na fase ainda ‘polêmica’; se se expressassem ‘sem sarcasmo’ seriam uma ‘utopia’ porque somente individuais ou de pequenos grupos” (Q 1, 29, 24). Esse juízo é mantido em todos os Q: G. insiste em diversas ocasiões sobre a “necessidade de ‘novas crenças populares’, ou seja, de um novo ‘senso comum’ e, portanto, de uma nova filosofia” (Q 8, 175, 1.047) como passagem inescapável da reforma intelectual e moral, isto é, da construção de uma nova hegemonia. Por outro lado, não cessa de voltar sobre a distinção entre ideologia como um conjunto de “elucubrações arbitrárias de determinados indivíduos” e ideologia como “superestrutura necessária de uma determinada estrutura”, especificando que apenas a segunda acepção delimita o terreno no qual se formam as vontades coletivas (Q 7, 19, 868-9 [CC, 1, 237]).
O início da investigação sobre a utopia como gênero literário, como expressão por meio dos intelectuais de instâncias difusas, tem-se em um grupo de textos do Q 3 (69, 71, 75, 113) intitulados, exceto o último, Utopie e romanzi filosofici [Utopias e romances filosóficos]. Aqui G. propõe-se analisar as “utopias e romances filosóficos e suas relações com o desenvolvimento da crítica política, mas especialmente com as aspirações mais elementares e profundas das multidões”. E especifica: “Estudar se há um ritmo na aparição desses produtos literários: coincidem com determinados períodos, com os sintomas de profundas mutações históricas?” (Q 3, 69, 347). A hipótese é de que utopias e romances filosóficos expressam não somente o primitivo surgimento de um projeto político alternativo ao aristocrático, mas também – “inconscientemente” e “ainda que através do cérebro de intelectuais dominados por outras preocupações”, como se especifica no Texto C, Q 25, 7, 2.290 [CC, 5, 142] – refletem as exigências mais elementares dos grupos sociais subalternos. No citado Texto C, em que confluem os textos do Q 3 dedicados à utopia (e significativamente intitulado Fontes indiretas), o caráter problemático da relação entre alto e baixo, entre intelectuais e aspirações das multidões, emerge em outra variante instaurativa: “As Utopias se deveram a determinados intelectuais que formalmente retomaram o racionalismo socrático da República de Platão e substancialmente refletem, muito deformadas, as condições de instabilidade e de rebelião latente das grandes massas populares da época; são manifestos políticos de intelectuais, que querem alcançar o Estado ideal” (ibidem, 2.292 [CC, 5, 143]). Esse ponto, doutro lado, é já apontado no Q 3, 71, 348: “É preciso [...] ver se estas iniciativas [as utopias literárias – ndr] são a única forma com que a ‘modernidade’ podia viver no ambiente da Contrarreforma: a Contrarreforma, como todas as Restaurações, somente pôde ser um compromisso e uma combinação substancial, senão formal, entre o velho e o novo”.
O significado das utopias como expressão de uma organização social alternativa deve ser, portanto, muito atenuada, mesmo não estando mais diante da precedente liquidação da utopia como capricho meramente individual. Ao contrário, valoriza-se nela a capacidade de ser compromisso entre velho e novo (revelador o termo “restauração” que se deve referir a toda a reflexão sobre a “revolução passiva”), aliás, elemento de modernização das relações sociais.
Mais tarde, no outono de 1931, G. retorna ao argumento, concentrando a atenção sobre o desenvolvimento do “gênero” utópico da Contrarreforma ao Iluminismo: “Contrarreforma e utopias: desejo de reconstruir a civilização europeia segundo um plano racional. Outra origem e, talvez, a mais frequente: modo de expor um pensamento heterodoxo, não conformista e isto especialmente antes da Revolução Francesa” (Q 6, 157, 811-2 [CC, 5, 264]). A utopia como estímulo à renovação da sociedade desdobra-se, aqui, realmente em duas vertentes: enquanto a primeira prossegue a leitura em chave “restauração” (combinação de velho e novo), a segunda retoma a questão inicialmente posta no Q 3, 69, 347 acerca do nexo com as aspirações populares, reformulando-as por meio da ligação com os desenvolvimentos do século XVIII do gênero utópico. “Das utopias nasceria” – prossegue Gramsci – “também a moda de exaltar os povos primitivos, selvagens (o bom selvagem), supostamente mais próximos da natureza. (Isto se repetiria na exaltação do ‘camponês’, idealizado por parte dos movimentos populistas.) Toda esta literatura teve importância não desprezível na história da difusão das opiniões político-sociais entre determinadas massas e, portanto, na história da cultura” porque “indica [...] a passagem da exaltação de um tipo social feudal à exaltação das massas populares, genericamente, com todas suas exigências elementares (nutrir-se, vestir-se, abrigar-se, reproduzir-se) às quais se busca dar racionalmente uma satisfação” (Q 6, 157, 812 [CC, 5, 265]). A encruzilhada do Iluminismo permite então a G. dar sentido à sua mesma pergunta inicial: o nexo entre intelectuais e povo. O gênero utópico entra assim em uma relação de comunicação historicamente específica com o patrimônio ideológico das classes subalternas quando os intelectuais – pela primeira vez na história – dirigem-se ao “povo”, não como algo de “estranho” do qual se deve “desconfiar” e ter “medo” (Q 3, 82, 362 [CC, 6, 161]). Por essa razão os iluministas são receptivos em relação aos mitos populares, àquela mitologia que exprime as pulsões mais imediatas, mas também mais profundas das massas dos excluídos da história.
Graças a essa recuperação da herança iluminista, G. começa a refletir sobre os modos em que historicamente se verificou a tradução da utopia em política, ou seja, sua expressão em linguagem política – por parte de movimentos intelectuais ou de partidos políticos, tais como os jacobinos –, das aspirações mais profundas de liberdade, justiça e igualdade das massas às margens da história. Nessa luz adquirem um significado político (e, portanto, filosófico) tanto o “direito natural” como a história das heresias religiosas (v. por exemplo, Q 3, 12 sobre Davide Lazzaretti), ou a mesma dimensão religiosa da política jacobina (no Q 6, 87 [CC, 3, 243]).
Todavia, uma vez obtido esse resultado, pelo qual a religião aparece em todo o seu peso político, torna-se igualmente importante, para G., instituir uma marcada diferenciação entre as implicações políticas da religião e das utopias racionalistas dos intelectuais, de um lado, e a filosofia da práxis, de outro. A religião, de fato, permanece uma evasão das contradições atuais, um “ópio do povo” (v. Q 6, 28, 706). Ela é, aliás, “a utopia mais ‘mastodôntica’, isto é, a metafísica mais ‘mastodôntica’ que já apareceu na história, é a tentativa mais grandiosa de conciliar em forma mitológica as contradições históricas: ela afirma, é verdade, que o homem tem a mesma ‘natureza’, que existe o homem em geral, criado à semelhança de Deus e, por isso, irmão dos outros homens, igual aos outros homens, livre entre outros homens, e que ele pode se conceber desta forma espelhando-se em Deus, ‘autoconsciência’ da humanidade, mas afirma também que nada disto pertence a este mundo, e sim a outro (utopia). Mas, enquanto isso, as ideias de igualdade, de liberdade, de fraternidade fermentam entre os homens, que não são iguais ou irmãos de outros homens nem se veem livres entre eles. E ocorre na história que toda sublevação geral das multidões, de um modo ou de outro, sob forma e com ideologias determinadas, apresenta estas reivindicações” (Q 4, 45, 472 [CC, 6, 365]). Segundo esse texto, o caráter utópico comum da religião popular e das construções racionalistas dos intelectuais é explicável não começando pelos intelectuais, mas pela religião popular: o “conceito da ‘natureza humana’ abstratamente otimista e superficial”, próprio da utopia democrática, utopia que hoje, porém, está “implícita” no “direito moderno” (Q 6, 98, 774 [CC, 3, 248]), é de derivação religiosa. Mas tais são também “a concepção de ‘espírito’ das filosofias tradicionais, bem como a de ‘natureza humana’ encontrada na biologia” (Q 7, 35, 885 [CC, 1, 245]). Em todos esses casos, a uma realidade contraditória e dividida substitui-se uma representação unificada e harmônica. Institui-se assim uma grande oposição entre a filosofia da práxis, de um lado, e, do outro, todo o complexo das filosofias, das religiões etc., recolhidas com o nome de “utopia”: “O filósofo atual [entende-se aqui o filósofo da práxis – ndr] não pode se evadir do terreno atual das contradições, não pode afirmar, a não ser genericamente, um mundo sem contradições, sem com isso criar imediatamente uma utopia” (Q 4, 45, 471-2 [CC, 6, 364-5]).
A filosofia possui uma força política, que, todavia, é inseparável de uma função de ocultamento, de evasão e de procrastinação da práxis, desde que se permaneça no terreno da utopia, ou seja, da relação com a religião, desde que se aceite a figura do filósofo como filósofo somente “individual” (Q 10 II, 44, 1.331 [CC, 1, 398]) e da filosofia como filosofia somente “individual” (Q 8, 211, 1.069), em vez de desenvolver a figura do “‘filósofo democrático’, isto é, do filósofo consciente de que sua personalidade não se limita à sua individualidade física, mas é uma relação social ativa de modificação do ambiente cultural”. G. prossegue: “Quando o ‘pensador’ se contenta com o próprio pensamento, ‘subjetivamente’ livre, isto é, abstratamente livre, é hoje motivo de troça: a unidade entre ciência e vida é precisamente uma unidade ativa, somente nela se realizando a liberdade de pensamento; é uma relação professor-aluno, uma relação entre o filósofo e o ambiente cultural no qual atuar, de onde recolher os problemas que devem ser colocados e resolvidos; isto é, é a relação filosofia-história” (Q 10 II, 44, 1.332 [CC, 1, 398]).
Nessa chave devem ser lidas as reflexões sobre a relação entre o pensamento de Benedetto Croce e a utopia que se encontram no Q 7, 35, 886 [CC, 1, 243]: “Que a dialética hegeliana tenha sido um [no manuscrito uma variante interlinear: “o último” – reflexo dessas grandes encruzilhadas históricas e que a dialética, de expressão das contradições sociais, deva se transformar, com o desaparecimento dessas contradições, em uma pura dialética conceitual, estaria na base das últimas filosofias de fundamento utópico, como a de Croce”. Então a filosofia distorce e frustra (com plena consciência, ou seja, com finalidades políticas precisas) o impulso para transformar o mundo, que também contém como utopia, no momento em que recusa a dialética (ou melhor, a “reforma” na lógica dos distintos), como faz Croce. Hegel, ao contrário, representa o lugar no qual a filosofia mais se aproximou da tradução da utopia em política, porque acolheu na dialética a política, isto é, a Revolução Francesa, na qual a tradução teve realmente lugar. Ver sobre isso o Q 4, 45, 471 [CC, 6, 364]: “Hegel representa, na história do pensamento filosófico, um papel especial; e isto porque, em seu sistema, de um modo ou de outro, ainda que na forma de ‘romance filosófico’, consegue-se compreender o que é a realidade, isto é, tem-se, num só sistema e num só filósofo, aquele conhecimento das contradições que, antes dele, era dado pelo conjunto dos sistemas, pelo conjunto dos filósofos, em polêmica entre si, em contradição entre si”.
Hegel ocupa um lugar em si porque acolheu na filosofia a unidade de teoria e prática: dele é a maior tentativa de unir idealismo e materialismo realizada no interior da filosofia tradicional e, portanto, sua comparação entre franceses (política) e alemães (teoria) é “a paráfrase de Marx, na qual em A sagrada família defende Proudhon contra Bauer”. Não somente: isso “parece bem mais importante como ‘fonte’ do pensamento expresso nas Teses sobre Feuerbach de que os filósofos explicaram o mundo e que se trata agora de mudá-lo, isto é, que a filosofia deve tornar-se ‘política’, ‘prática’, para continuar a ser filosofia: a ‘fonte’ para a teoria da unidade de teoria e prática” (Q 8, 208, 1.066). Mas tudo isso acontece em Hegel de forma especulativa (v. Q 4, 3, 424) e, portanto, está na raiz da teoria e da prática da “revolução passiva”. A filosofia da práxis poderá então estar à altura de sua herança se conseguir compreender a si mesma e ao seu adversário, ou seja, às razões históricas da revolução passiva como intervenção política no campo das crenças populares, para acolher – e ao mesmo tempo neutralizar – suas instâncias “progressivas”.
Bibliografia: Frosini, 1999; Kanoussi, 2000; Medici, 2005; Sichirollo, 1958.
Fabio Frosini
Ver: Contrarreforma; Croce; filosofia; filosofia da práxis; Hegel; ideologia; Iluminismo; ópio; racionalismo; religião; sarcasmo; senso comum; vontade coletiva.