1. MACAU, 1937
Há muito que os sinos haviam anunciado a hora das ave-marias. O sacristão acabava de arrumar o altar-mor, onde fora celebrada a missa da tarde. O padre oficiante já se havia recolhido ao Seminário de São José, ali próximo.
O tempo mudara durante a tarde, com aguaceiros e ventos fortes, anunciando a aproximação de uma tempestade. O sinal 3, indicativo de um ciclone tropical de média intensidade, havia sido hasteado na fortaleza do Monte, colocando a cidade de prevenção. O mês de Setembro era ainda propício a estes fenómenos atmosféricos no Sul da China e o pequeno território estava, normalmente, dentro do seu raio de acção. Por isso, toda a gente sabia quais os protocolos a adoptar à passagem de um tufão. Como era ao entardecer, os colégios já estavam encerrados, as lojas e todo o comércio começavam, também, a fechar as portas e a população a recolher-se a suas casas. No Porto Interior, reforçavam-se as amarrações das centenas de embarcações ali abrigadas, tancares e sampanas, que constituíam uma imensa aldeia flutuante onde viviam famílias inteiras no único lar que conheciam e que partilhavam com os seus altares e com os seus deuses. Eram sempre os mais fustigados durante as grandes tempestades. Um pouco por toda a cidade começavam a aparecer os primeiros sinais de agitação e dos estragos que estas tempestades causavam à sua passagem — tabuletas de trânsito arrancadas dos seus lugares, espalhadas pelas ruas, toldos de bares e restaurantes, reduzidos a farrapos drapejantes, janelas e portas que batiam ruidosamente nos seus batentes, uma miríade de objectos esvoaçando por todos os lados ao sabor das rajadas intermitentes do vento. E os avisos sonoros das embarcações nas águas do rio soavam por todos os lados vindos do Porto Interior ou das suas imediações, alarmando as populações mais ainda do que os sinais clássicos de tempestade eminente que há muito se haviam tornado quase familiares…
Uma figura de frágeis contornos femininos esgueirou-se de um dos becos escuros próximos da Igreja de São Lourenço e, envolta na penumbra do entardecer, dirigiu-se à porta lateral de acesso à sacristia. A luz mortiça de um candeeiro público permitiu por fugazes momentos vislumbrar uma mulher chinesa, vestida com a roupa habitual das tancareiras, calças largas de cor negra e cabaia a condizer, um lenço cobrindo o cabelo. Lutando contra o vento forte que se fazia sentir, aproximou-se da soleira da porta e, olhando ao seu redor para se certificar de que não estava a ser observada, depositou um pequeno fardo no chão. Tão rapidamente como viera, logo desapareceu engolida pelas sombras de uma ruela.
Terminadas as tarefas no templo silencioso, o sacristão apressou-se para regressar também ao Seminário de São José, antes que desabasse a tempestade numa violência que todos temiam. Fechou a porta e quase se estatelou na calçada ao tropeçar no embrulho depositado na soleira. Baixou-se para lhe pegar, sentindo imediatamente o cheiro de pescado que saía da serapilheira encharcada pela chuva. De repente, o embrulho agitou-se e do seu interior chegaram-lhe, abafados, uns vagidos.
— Meu Deus, o que vem a ser isto agora!? — pensou em voz alta, a expressão um misto de surpresa e curiosidade.
Voltou a abrir a porta da sacristia disposto a deixar ali o embrulho. Hesitou, por momentos. Colocou o embrulho no chão lajeado da sacristia e começou a desembrulhar as diversas voltas da trouxa. Da garganta escapou-se-lhe um grito de alarme e de perplexidade, abafado pelo choro de um recém-nascido. Envolto num pedaço rasgado de seda vermelha, trazia ainda vestígios do cordão umbilical amarrado com uma palha de arroz, molhado pela chuva e manchado pelos vestígios dos fluídos libertados durante o parto. A tez estava ligeiramente azulada por causa do frio e visivelmente sufocada por falta de ar. Mas no instante seguinte soltava um choro forte, liberto da mordaça.
— Por Nossa Senhora, o que aconteceu contigo, criatura de Deus?!
Pela primeira vez na sua vida aquele noviço deparava-se com uma situação muito comum em Macau — o abandono de recém-nascidos, normalmente do sexo feminino. Era, aliás, uma situação que acontecia por toda a China. Nascidas em circunstâncias menos favoráveis, marcadas pelo estigma da desvalorização da mulher para o trabalho nas regiões mais pobres, o destino de muitas raparigas era o abandono à porta das igrejas ou orfanatos ou, frequentemente, serem afogadas à nascença.
Com o bebé nos braços, correu debaixo da chuva, já torrencial, em direcção ao seminário. Ali chegado, dirigiu-se a uma pequena sala de refeições, anexa à cozinha, e deteve-se perante o padre a quem uma amah servia o jantar. Ainda ofegante, elevou a criança nos braços, repentinamente silenciosa, e, refreando a excitação, disse:
— Esta criança foi deixada à porta da sacristia! Estava roxa, quase morta, e deve ser recém-nascida porque ainda tem parte do cordão umbilical… O que vamos fazer, senhor padre Manuel?
Como se tivesse escutado as palavras do sacristão e tivesse consciência do seu significado, o bebé recomeçou a chorar convulsivamente.
— Oh, meu Deus, a pobre criança está toda molhada e deve estar com fome! Deixa-me adivinhar… é uma menina!
— Não sei, senhor padre, não vi! — O homem ainda não estava em si.
— Duvido muito que seja um menino. — O padre levantou-se da mesa e pegou na criança. — É uma menina. Temos de a agasalhar e de a alimentar com urgência, senão não vai resistir.
Dirigiu-se à criada chinesa que presenciava a cena em silêncio, a expressão fechada, um meio sorriso triste.
— Ainda bem que aqui estás, Liang Lin! Tu tens uma bebé pequenina e estás em condições de amamentar esta criança. Vá, pega nela, enxuga-a bem e vai já dar-lhe de mamar na cozinha. Entretanto, eu vou pensar no que havemos fazer com um bebé recém-nascido… Receio por ela como consequência de ter apanhado chuva e ter estado, não sabemos durante quanto tempo, sem respirar normalmente e completamente encharcada. Vamos ver como se porta durante as próximas horas! Ao longo desta noite será o tempo de sabermos da sua sorte. Vou rezar por ela…
Liang Lin pegou na criança e apertou-a contra o peito, dirigindo-se em passo miúdo para a cozinha, onde foi encontrar a cozinheira chinesa que fazia as últimas limpezas do dia, antes de regressar a casa. Surpreendida, olhou para a criada que se sentava já num dos bancos junto à mesa com o recém-nascido ao colo, e perguntou-lhe em cantonense:
— Ayeaaa! Mas o que é isso?…
Sem lhe responder, Liang Lin descobriu os seios e colocou o bebé a jeito. A criança segurou instintivamente o que tinha mais perto da boca e sugou o leite com inesperada força. Instantes depois tudo se repetia com o outro seio. Liang Lin pensou que naquela noite teria menos leite para a sua criança, mas não se importou. E quem a observasse naquele instante teria visto no seu olhar uma doçura que lhe ameninava as feições grosseiras. Subitamente, a criança aquietou-se, o suave vagido que soltava enquanto mamava deixou de se ouvir. Tinha adormecido! A cozinheira, até ali em silêncio contemplando a cena que lhe recordava qualquer coisa no seu passado, a avaliar pelo brilho pouco habitual que se lhe notava nos olhos, voltou a falar:
— A criança não pode ficar assim nuazinha. O tempo está frio para um bebé recém-nascido. — Tinha-se aproximado e acariciava a criança enquanto falava.
— Sim, tens razão! — anuiu Liang Lin. — Eu vou a correr à igreja buscar alguma roupa de bebé que as senhoras macaenses trouxeram para a quermesse da semana que vem.
— Vai, vai! Eu pego nela para a aquecer!
A-Lam era uma mulher pequena e redonda que trabalhava na cozinha do seminário havia já algumas décadas. Conhecia os gostos, as dietas e conseguia realizar o estranho milagre culinário do aportuguesamento de algumas receitas chinesas. Embrulhou a criança no avental com desusada ternura e encostou-a bem ao peito farto. Deixou-se assim ficar, provavelmente reconfortada num remorso secreto de que ninguém sabia. Era viúva e não tinha filhos, muito provavelmente por obra do destino ou, talvez, porque nunca sentira, até ao dia em que enviuvara, qualquer apelo a uma maternidade. Por uma vez, aceitara engravidar, cedendo às pressões do marido. Mas o único parto da sua vida acontecera há muito tempo e não gostava de se lembrar dele, naquela angústia que o tempo não conseguira amenizar. Vira de relance, por um instante apenas, que acabava de ser mãe de uma menina. A palavra soara nos seus ouvidos como um anúncio de morte. Alguém embrulhara apressadamente aquele corpinho frágil e minúsculo numa serapilheira, desaparecendo da sua vista pela porta estreita que dava directamente para a rua. Lembrava-se vivamente daquele choro inicial de criança acabada de nascer e o silêncio repentino que lhe chegou do exterior. Nunca tinha sido capaz de perguntar o que acontecera naquela noite à sua menina.
Quando Liang Lin voltou com a roupa escolhida na sacristia, vestiram a bebé com algumas das peças mais pequenas, uma fralda de algodão, uma camisinha também de algodão e um casaco tricotado em lã macia, uma peça de luxo que já pertencera a uma criança rica, certamente. Calçaram-lhe as botinhas minúsculas e enrolaram-na num farfalhudo xaile também de lã. Apesar de todo aquele movimento, a bebé continuava a dormir pacificamente, sobre a mesa. Ficaram assim sentadas na cozinha, enternecidas, observando-a, resistindo à tentação de lhe pegarem, numa disputa latente, até que apareceu padre Manuel.
— Bom, estive a pensar no assunto! As órfãs abandonadas costumam ser entregues às religiosas, no Asilo. — Referia-se ao Asilo da Santa Infância, no Convento de Santa Clara. — Padre Manuel fez uma pausa, como se estivesse à espera de uma anuência delas. E continuou: — Mas para um bebé recém-nascido é muito cedo para entrar já no orfanato. A melhor solução, neste momento, é ser entregue a uma amah. Contudo, com a tempestade que se aproxima, hoje já não poderemos tratar disso!
Reflectiu um instante, olhando para Liang Lin. E decidiu:
— Liang Lin, tu podias tomar conta dela durante uns tempos. Eu encarrego-me das despesas que tiveres.
O coração da criada chinesa havia ficado tocado pelo destino reservado àquela criança se o sacristão não a tivesse encontrado, abandonada durante toda a noite à porta da igreja e exposta à intempérie que assolava naquele momento todo o Território. Fora mãe seis meses antes. E se a sua menina tivesse tido o mesmo destino que o daquele pobre criança? Afastou o pensamento ao sentir uma arrepio de frio pelo corpo. Nunca lhe passaria pela cabeça a ideia de abandonar a própria filha nem nunca permitiria que lha tirassem para um destino daqueles. Era chinesa, conhecia bem os costumes do seu país, mas também era cristã, aliás, um dos requisitos para trabalhar no Seminário de São José. Em Macau, esses costumes, sobretudo os mais desumanos, nunca seriam tolerados.
Apressou-se a dizer a padre Manuel, que aguardava uma resposta, que aceitava a incumbência de tomar conta da menina. O sacerdote suspirou de alívio e olhou-a com um sorriso que dizia tudo do agrado que sentia pela sua decisão.
— E como é que se vai chamar? — perguntou ele, sorrindo.
Liang Lin olhou o sacerdote como que para se certificar de que a pergunta lhe era dirigida. Era visível no seu sorriso que ele lhe oferecia a decisão.
— Mei Lin! — respondeu ela, quase num murmúrio.
— Mei Lin?! — perguntou o sacerdote, surpreendido.
— Mei Lin! — repetiu ela em voz mais alta.
— Mei Lin será, então, o seu nome chinês. Eu escolherei o nome cristão. — E antes de abandonar a cozinha, acrescentou num tom de urgência: — Amanhã, quando for possível celebrar a missa, se a tempestade amainar, será baptizada! Está muito frágil e não sabemos se resistirá. Se conseguir, temos uma lutadora para criar. Esta noite vou pedir a Deus que a mantenha entre nós se for essa a Sua vontade.
A pequena Mei Lin dormiu nessa noite o seu primeiro sono em segurança, rodeada de conforto e de ternura. Se, por estranha magia, ela pudesse saber, muitos anos depois, dos acontecimentos daquela noite, testemunhando-os de um lugar secreto, perdido algures no tempo, teria sorrido com uma sensação de felicidade.
Nessa noite, na sua diabólica passagem de destruição, o tufão abateu-se sobre a cidade e as ilhas de Taipa e de Coloane com maior violência do que aquela que tinha sido prevista pela meteorologia de Hong Kong. A chuva diluviana caía em bátegas tremendas, agitadas pelas rajadas de vento de duzentos e cinquenta quilómetros por hora. Na fortaleza do Monte havia sido içado o sinal 8, o mais grave de todos, uma mensagem de desastre eminente mas que, apesar disso, não traduzia aquela realidade tão inesperada. Nunca antes uma tempestade por ali passara com tanta violência! A cidade seria fustigada durante toda a noite e uma boa parte daquela manhã de Setembro, um rasto de destruição visível nos destroços dos automóveis e embarcações, árvores arrancadas pela raiz, inundações por todos os lados, ruas e calçadas destruídas, cadáveres de animais espalhados como se fosse o cenário de uma batalha sem sobreviventes, demolições por toda a cidade, mas em especial nos bairros mais pobres, mais castigados pela fragilidade das suas construções. Os mais graves incidentes aconteciam habitualmente no Porto Interior, como agora, com a perda de muitas vidas. Naquela noite seriam ultrapassados os limites das experiências anteriores no pânico das populações tão violentamente castigadas, na devastação visível por todo o lado, nas incontáveis mortes. Todos esses limites tinham sido tão tragicamente excedidos.
Mei Lin sobreviveria àquela noite dantesca e seria ali, naquela cidade cheia de inquietações, de dor e de angústia em momentos assim, que viria a perceber que os tufões que castigavam Macau na época das monções eram muitas vezes mais pacíficos do que os que assaltavam as vidas de tantos dos seus habitantes…