3. O ACOLHIMENTO DA BENEFICÊNCIA DE SANTA CLARA
O toque do sino soou em todo o colégio para dar início à rotina diária. Nas camaratas das raparigas começava a agitação matinal. Viam-se já muitas delas de pé, a vestirem-se, outras a fazer a cama, outras ainda a caminho da casa de banho colectiva. Mas algumas, poucas, aproveitam ainda o sono dos últimos instantes até ao segundo toque do sino ou até à chegada das amahs que conheciam bem naqueles preparativos para começarem um novo dia.
Clara, a freira de serviço naquela manhã, entrou na camarata das mais novas, acompanhada por duas amahs e por algumas alunas mais velhas que ali iam revezadamente todas as manhãs para ajudarem nas primeiras tarefas do dia.
— Vamos, vamos, meninas, toca a acordar! — diziam as amahs em voz mais alta.
Ainda ensonadas, as retardatárias começaram a lavar-se e a vestir-se com a ajuda das amahs e das outras alunas. Eram geralmente as mais novas, entre os cinco e sete anos, as que se deixavam ficar na cama por mais uns instantes. Em menos de um quarto de hora estavam todas reunidas na capela para as primeiras orações, o «alimento do espírito», nas palavras de madre Pia. Eram os dez minutos mais silenciosos do dia, aqueles que ali passavam ajoelhadas, algumas em oração silenciosa mas a maior parte à espera do sinal para darem por terminados aqueles instantes para, finalmente, se dirigirem ao refeitório.
Maria e Luísa, o nome cristão dado pelas freiras a Liang Hua, haviam sido as últimas órfãs a transitarem do Asilo da Santa Infância para o Acolhimento da Beneficência de Santa Clara. Como eram mais ou menos da mesma idade foram colocadas juntas na camarata das mais novas. Rapidamente se estabelecera entre ambas uma relação de cumplicidade e uma amizade espontânea e incondicional justificadas, principalmente, pelas suas dificuldades em explicarem-se em português. Ao contrário de Maria, que falava português, Luísa apenas conhecia algumas palavras, sendo nítida a dificuldade em se entender com algumas freiras e, sobretudo, com as alunas que não falavam cantonense. Só com as amahs chinesas ela se sentia à vontade.
Naquela manhã, como já era hábito, Maria e Luísa seguiam juntas na formatura à saída da camarata. Clara chamou-as antes de entrarem na capela.
— Maria, continuas encarregue de ensinar à Luísa as orações em português e o que ela deve fazer durante a missa. Tu já sabes bem o catecismo, não é verdade?
— Sim, irmã Clara! Não se preocupe que eu ensino à Luísa tudo o que puder.
O pequeno-almoço, com a duração de vinte minutos, era invariavelmente constituído por leite ou chá e pão torrado com manteiga ou compota. Era no refeitório que davam início ao programa do dia, invariavelmente com os cânticos religiosos, com uma duração média de dez minutos. Logo a seguir começavam as aulas nas turmas mistas, constituídas por raparigas portuguesas e macaenses. Sete freiras portuguesas asseguravam as aulas do ensino oficial, em português, que vigorava no Território. Para além das lições curriculares, havia também aulas de Inglês, música, canto, costura e culinária.
O período da tarde era reservado para estas duas últimas actividades manuais. Madre Pia tinha uma frase que resumia a sua estratégia para estas disciplinas que, para as alunas órfãs, eram de especial exigência: «Meninas, uma boa dona de casa equivale a uma boa esposa!»
A exigência tinha também como finalidade ensiná-las a serem autossuficientes e autoconfiantes, para poderem ganhar o próprio sustento, quando abandonassem o convento. Algumas, optavam por professar quando ali concluíam os seus estudos, servindo a comunidade como noviças, tomando votos mais tarde.
Madre Pia ia observando, com agrado, o desenvolvimento de Maria. Havia prometido a padre Manuel fazer o melhor pela sua protegida e, aparentemente, estava a cumprir essa promessa. Pensava em Luísa, que acompanhava a amiga nos progressos sem que, no entanto, existisse alguém da parte dela a quem a mesma promessa tivesse sido feita e mais tarde devida. E pensava para consigo, nesses momentos, que, afinal, era a si própria que devia essa promessa.
Frequentemente, Clara informava madre Pia sobre as suas preocupações e projectos, sobre o comportamento das alunas e dos seus progressos. Fazia-o nesse fim de dia no gabinete desta e a conversa depressa recaiu sobre as duas órfãs e delas, Maria.
— Em relação à Maria, só creio que existe um problema a que teremos dar muita atenção, minha madre! Refiro-me em especial à sua rebeldia e a dificuldade que demonstra em acatar as ordens que lhe são dadas! Todas as irmãs e as mestras de costura, apesar de gostarem muito dela, se queixam do seu temperamento rebelde. A Luísa é completamente diferente, é humilde, e raramente acompanha a Maria nas suas travessuras. Entre elas, minha madre, ainda não descobri quem é que influencia quem…
A superiora ouvia-a, mas parecia estar longe dali. Lembrava-se do compromisso que tinha assumido para com padre Manuel. Teria ela que lhe dar conta das preocupações de Clara sobre aqueles sinais de rebeldia de que a criança dava mostras? Inconscientemente, abanou a cabeça. Não! Era uma questão que poderia ser corrigida. Não achava necessário, para já, transmitir-lhe aquelas preocupações que Clara com ela partilhava. Sorria, bem-disposta, quando lhe respondeu.
— Eu sei, irmã Clara! Tenho, também eu, observados sinais desse comportamento. Teremos tempo para lho corrigir. É preciso estarmos atentas e actuar com tacto. Penso que se trata de um comportamento próprio da sua personalidade que tem de ser corrigido com firmeza, mas sem castigos.
Clara ouvia-a sem a interromper. No fim, observou:
— Se a Maria não mudar, se mantiver aquela rebeldia, o atrevimento de muitas das suas atitudes, a indisciplina de que dá mostras em várias ocasiões, será uma pessoa infeliz na vida adulta. Deus queira que consigamos moldar-lhe a personalidade noutro sentido, minha madre! — E acrescentou em voz mais baixa: — Não vai trocar impressões sobre este assunto com o senhor padre Manuel?
Madre Pia olhou-a distraidamente mas sem responder à pergunta directamente. Pelo seu pensamento passou, mais depressa que a velocidade da luz, a ideia de que a sua subordinada estava a invadir a esfera dos assuntos da sua competência como directora daquele colégio. Mas no rosto ainda jovem Clara viu apenas um suave sorriso aflorar-lhe como resposta à sua pergunta impertinente, talvez mesmo atrevida.
— Não se preocupe com isso, irmã Clara. Vamos a duas actuar para corrigirmos a personalidade rebelde da criança. Estamos perfeitamente a tempo. Aos dez anos ela saberá dominar-se se formos capazes de lhe fazer sentir o que é bom e o que é mau. Conto com a sua ajuda e espero que nas nossas próximas conversas possamos estar ambas contentes com os progressos que formos registando nela em cada dia que passa.
Fisicamente, Maria destacava-se das outras crianças chinesas. Era mais alta e as suas feições não eram totalmente orientais, sugerindo algum tipo de miscigenação. A pele possuía um tom bronzeado pela constante exposição ao sol e ao ambiente marítimo do Porto Exterior, onde ia nadar com frequência às escondidas de toda a gente que a conhecia. Os trabalhos auxiliares que fazia na horta do convento, ajudando as religiosas que se dedicavam a essas tarefas, contribuíam visivelmente para o seu desenvolvimento físico. E no porte atlético que exibia mais recentemente era visível o despontar de formas reveladoras de uma puberdade precoce.
Conforme prometera a Clara, madre Pia chamou Maria ao seu gabinete num final de tarde, pouco antes da hora de jantar. Queria ter com a criança uma conversa mais prolongada para perceber melhor aquele comportamento rebelde de que todos se queixavam. Tinham as duas uma relação muito chegada e, talvez por isso, lhe escapassem as razões da rebeldia crescente que nela sentiam algumas das madres que com ela lidavam mais de perto. Maria chegou ao gabinete bem-disposta e descontraída e no rosto não lhe notou madre Pia os sinais de alarme que encontrava habitualmente nas crianças que a iam ver por ordem das respectivas professoras para serem repreendidas de forma mais marcante. A Madre Superiora deduziu que ela não tinha qualquer ideia sobre os receios que Clara manifestara alguns dias antes no seu gabinete.
Deixou que Maria se aproximasse como fazia sempre que ia ali para lhe falar. Como de costume, Maria segurou-lhe a mão entre os dedos e deu-lhe um beijo. Era sempre o mesmo ritual quando a visitava, longe da vista de toda a gente. Nunca a ensinara sobre aqueles gestos, espontâneos desde a primeira vez. Um dia, tinha já decorrido muito tempo desde que ali chegara, inesperadamente, Maria aproximara-se e beijara-lhe a mão, segurando-a entre as suas. Mais nenhuma, de entre aquelas centenas de crianças, tivera a iniciativa — ou a ousadia — de a cumprimentar daquela forma. E sentiu naquele gesto um apelo que não soube definir exactamente. Mas aceitou-o e sentiu por ela uma ternura que nunca antes nenhuma outra criança lhe tinha suscitado.
Sorriu-lhe e viu-lhe no olhar uma alegria genuína por estar ali. Indicou-lhe a cadeira do outro lado da escrivaninha. Ignorou-a durante longos minutos para acabar o expediente do dia. Houvera um teste de Matemática na turma de Maria no princípio dessa manhã. Corrigido imediatamente pela professora daquela disciplina, tinha-lhe sido entregue para dele tomar conhecimento. Era sempre assim. Do lado esquerdo da escrivaninha estavam as provas desse teste matinal, em folhas de formato A4. Com a ponta do dedo foi levantando as folhas até lhe aparecerem as de Maria, duas, escritas de um lado e do outro. Reconhecê-las-ia num milhão de folhas iguais àquelas. No topo da primeira página, a vermelho, estava a classificação da professora: dezoito valores, num máximo de vinte.
Levantou o olhar e quase corou! Maria observara tudo e sorria-lhe. E não teve a certeza de aquele sorriso fosse mesmo inocente. Sem se desmanchar, disse-lhe, sorrindo-lhe também:
— Muito bem, Maria!
— Qual foi a nota que a irmã Olímpia me deu, madre Pia?
— Amanhã saberás. Não devo ser eu a dizer-te.
— Foi, ao menos, positiva? — E o sorriso desvanecera-se do rosto.
— Não te posso dizer, Maria. Terás de esperar que a irmã Olímpia te diga que nota tiveste no teste.
Desenhou-se uma linha recta nos lábios da criança. O olhar baixou para o sítio onde descansavam os pés da superiora. As mãos seguravam os braços da cadeira em que estava sentada com uma força visível nos nós dos dedos sem cor. Madre Pia olhou-a para se certificar dos sintomas de uma fúria mal disfarçada pelo descontentamento de uma vontade contrariada. Concluiu que estava perante uma reação despropositada numa criança daquela idade. E no seu pensamento recordou as palavras de Clara.
Durante longos instantes, abateu-se um desconfortável silêncio entre as duas. Madre Pia fixara em Maria um olhar que ela nunca antes tinha conhecido. Lentamente, viu-lhe a crispação desaparecer, ao rosto regressar a suavidade infantil que lhe conhecia. As mãos inquietas no regaço eram agora o único sinal de um embaraço próprio de uma criança da sua idade apanhada numa falta sem importância.
Mas se madre Pia fosse mais perspicaz teria podido ver que o apaziguamento de Maria não era verdadeiro. Não havia nela uma ponta de sinceridade nos gestos estudados, naquele instante de aparente submissão à autoridade da Madre Superiora. E teria também ficado admirada com a capacidade de dissimulação daquela criança!
O diálogo entre as duas reiniciou-se uns instantes depois. Foi madre Pia quem quebrou o silêncio.
— Tenho sabido de algumas coisas a teu respeito que me desagradam, Maria…
Ainda sentada, Maria endireitara-se na cadeira ao ouvir estas palavras. Contudo, não respondeu. Parecia preocupada com o que acabara de ouvir. O pequeno rosto fechava-se e nos lábios desenhava-se uma expressão de preocupação e de desagrado. Dir-se-ia que começaria a chorar de um momento para o outro. Finalmente, titubeante, perguntou em voz sumida:
— Que coisas, irmã?!
— Coisas que me desagradam, minha filha. São as tuas atitudes, mais do que qualquer outra coisa. A tua rebeldia, a desobediência, as coisas que tu não respeitas, sobretudo quando pensas que ninguém está a ver-te. E o que mais me preocupa é essa forma que tu tens de tentares passar sempre por cima das coisas quando pensas que ninguém vai dar por nada…
Maria baixava os olhos, exibindo um constrangimento que estava longe de sentir. As suas delicadas feições ensombravam-se teatralmente. Não gostava de aborrecer madre Pia, a quem devotava uma verdadeira afeição, e esforçava-se por lhe demonstrar um arrependimento adequado à tolerância da religiosa.
— Madre, eu tenho tentado, mas é mais forte do que eu! A irmã Clara está sempre a ralhar-me por tudo e por nada! A única mestra que nunca ralha comigo é a A-San.
— Mas, filha, tens de fazer um esforço e prometer-me que vais ter mais juízo! E o problema de que se queixam as irmãs não está só na tua desobediência habitual e, tantas vezes, quando pensas que ninguém vai dar por nada. Também chegam aos meus ouvidos queixas de que tu passas muito tempo fora do colégio. Ora, tu sabes que as alunas só estão autorizadas a sair do colégio acompanhadas por uma irmã ou na companhia de algum familiar próximo. Apenas quando arranjam algum trabalho fora do convento são autorizadas a sair sozinhas. Especialmente agora, com a guerra aqui ao lado e a insegurança nas ruas da cidade, pejadas de refugiados e de gente sem escrúpulos!
— Eu sei, madre Pia! Mas eu tenho saído apenas para ajudar a irmã Luz quando vai ao mercado de São Lourenço. Às vezes, aproveito para fazer uma visita ao senhor padre Manuel, porque a Igreja de São Lourenço fica mesmo em caminho. Outras vezes, é quando vamos todas nadar nas barracas de banho do Porto Exterior, mas aí vamos sempre acompanhadas por uma irmã.
E punha o ar mais cândido do mundo a pensar que com ele desarmava a freira.
Na verdade, enquanto as outras internas evitavam sair, receosas do que pudessem encontrar para lá das paredes protectoras do convento, Maria escapava-se durante horas, em excursões exploratórias por Macau, quase sempre ao acaso, mas sempre em busca de qualquer coisa que ela não sabia definir. Era a única altura em que Luísa não a acompanhava, temendo o que a esperava lá fora, e lembrando-se das recomendações das freiras sobre os perigos que corriam nessas saídas. Maria bem tentava convencer a amiga a ir com ela nessas pequenas aventuras, mas sempre sem sucesso:
— Vem comigo! Vais ver que nos vamos divertir. Há tanta coisa para ver em Macau!
— Não vou contigo! E acho que tu também não devias sair. As irmãs estão fartas de nos avisar para os perigos que correm as raparigas sozinhas no meio da cidade! Dizem que as ruas estão cheias de gente perigosa. No outro dia ouvi uma conversa entre duas amahs e falavam de crianças que desaparecem porque as comem! Que horror!
— Não sejas parva! Não há perigo nenhum! Isso são estórias que as freiras e as amahs inventam para nos assustar!
— Não são! A conversa que eu ouvi era apenas entre elas, em voz baixinha!
Mas Maria esgueirava-se pela horta em direcção ao muro das traseiras do convento sempre que podia. Luísa ficava a contar as horas para o seu regresso, temerosa de que ela não voltasse ou que uma das freiras desse pela sua ausência, o que acontecia frequentemente. Ao contrário do que dissera a madre Pia, Maria também costumava ir sozinha até à zona do Porto Exterior, o local onde a população da cidade ia, normalmente, a banhos e para ir nadar. Da plataforma elevada, onde ficavam as palafitas, a miudagem mergulhava corajosamente para as águas mais profundas. Era o sítio ideal para se aprender a mergulhar e ela considerava-se já uma nadadora exímia.
Mas, naquele dia, o colégio seria abalado pela notícia da descoberta do corpo desmembrado de uma das amahs numa das zonas mais sombrias do descampado localizado defronte do Porto Exterior. A primeira reacção foi de espanto, de surpresa e de dor. Depois chegaria de manso, num crescendo de pânico e de insegurança, a certeza de que se desenrolava lá fora, na cidade barulhenta e frenética, uma guerra povoada pela maldade humana em nome de ideais proclamados aos quatro ventos por lideranças distantes dali…
E no dia seguinte, uma outra notícia era recebida com tristeza pelas pessoas que lhe eram mais chegadas: a irmã Clara regressava de uma curta viagem a Hong Kong. Ali, fora informada por um médico inglês de que sofria de uma doença grave em estado muito avançado…