4. A GUERRA

O dia 16 de Janeiro de 1945, de um inverno ameno, amanheceu calmo e soalheiro. As ruas da cidade iam-se enchendo do bulício habitual da multidão entregue aos costumeiros afazeres. Nas escolas, as crianças começavam as primeiras lições do dia.

Repentinamente, do céu cinzento, por cima das águas calmas do Rio das Pérolas, uma esquadrilha de aviões de guerra rasgou a neblina residual da manhã. E na ingenuidade de quem por ali circulava àquela hora, eram os heróis inesperados, arrancados de cartazes do cinema num passe de mágica. Os aviões fizeram uma estranha pirueta a baixa altitude para depois se dirigirem ao Porto Exterior, a uma pequena distância dali, onde se localizavam os hangares do antigo Campo de Aviação Naval de Macau. Ali estavam instalados os depósitos de combustível que alimentavam os hidroaviões Osprey. E no instante seguinte uma chuva de bombas, do tamanho de um dedal vistas àquela distância, desceu deles em direcção ao campo. Viu-se um clarão imenso e depois outros semelhantes e por toda a cidade ecoaram os sons de terríveis explosões.

Os primeiros sinais de pânico surgiram imediatamente. «Macau está a ser bombardeada pelos americanos!»

A notícia correu célere pela cidade ao mesmo tempo que chegavam a todos os recantos os sons das explosões e uma densa cortina de fumo negro espalhava-se sobre o rio, visível nos locais mais distantes, desde o Fa Xi Quei à Fortaleza de Santiago. Durante uns longos segundos fez-se silêncio. Os aviões tinham desaparecido misteriosamente e nem o som dos seus motores se ouvia. Chegaram ao horizonte no instante seguinte, vindos das alturas, aproximando-se do solo a uma velocidade estonteante, tornando impossível qualquer fuga para procurar abrigo. Agrupavam-se à distância e, à medida que se aproximavam, das asas de cada um, nasciam pequenas estrelas, muito brilhantes, como se fossem sinais de uma luz muito potente. Os silvos das balas de elevado calibre ouviam-se, então, no instante seguinte, atingindo vários alvos referenciados, como o Quartel de São Francisco e a estação de rádio, na Estrada D. Maria II.

Repentinamente, e tal como haviam surgido, os aviões afastaram-se e desapareceram no horizonte, sobrevoando o rio ainda adormecido, engolidos pela neblina.

Na cidade, registavam-se estragos importantes: cinco hidroaviões reduzidos a cinzas, um sem-número de embarcações afundadas. A estação de rádio, localizada na Estrada de Dona Maria II desaparecera. No seu lugar, estava uma imensa cratera! Ao cair da noite fazia-se no colégio a chamada das internas antes da hora de jantar. Faltavam três meninas e a amah Lai Pin. Na manhã seguinte o corpo de Lai Pin foi encontrado entre os escombros da base aérea. Das meninas nunca mais se soube a sua sorte.

Um sentimento de insegurança tomava conta de toda a população. No seu quotidiano, desde que começara a guerra sino-japonesa, Macau já se habituara a ser sobrevoada pelos aviões japoneses que bombardeavam o território chinês e, com o início da guerra no Pacífico, caças e bombardeiros americanos varriam os céus da cidade e dos arredores, dirigindo-se para os territórios já dentro da China, para largarem as suas bombas sobre o ocupante japonês. Os roncos dos motores já não impressionavam ninguém. O sentimento de segurança proporcionado pela declarada neutralidade de Portugal no conflito e, consequentemente, do Território, tornando-o imune à guerra que se desenrolava à sua volta, era partilhado por toda a gente — chineses, macaenses, refugiados e estrangeiros, de passagem ou residentes. Comentavam-se nos cafés e nas tertúlias as vitórias e derrotas dos Aliados, bem como as posições da armada americana, avistada ao longe, em águas consideradas internacionais. A guerra tinha outra morada. A do vizinho do lado.

Embora a situação de Macau se tivesse complicado com o alastrar da guerra à região do Pacífico e com a ocupação de Hong Kong pelos japoneses no Natal de 1941, o conflito era teoricamente estranho ao Território. Apenas se sentia pelos milhares de refugiados que chegavam da China e pelos ingleses que tinham conseguido escapar dos campos japoneses de prisioneiros, na vizinha colónia. A população da cidade quintuplicara e os centros de refugiados regurgitavam. Começaram os racionamentos de víveres que, em breve, se esgotariam. A fome, a doença, a miséria, o meretrício imperavam. Pais famintos transaccionavam as próprias filhas. Muitos desgraçados apareciam mortos nas ruas da cidade. Havia relatos de actos de canibalismo — quadrilhas que recolhiam os corpos para deles se alimentarem e para o comércio da carne. E circulavam boatos sobre a venda de crianças para consumo humano. A confirmar alguns desses boatos, seria preso um cozinheiro do Hotel Central que admitiu que costumava servir carne humana a quem a solicitasse, disposta a pagar por ela um preço elevado!

Apesar do estatuto de neutralidade de Portugal, que impedia a ocupação do Território por forças japonesas à luz do direito internacional, rapidamente se percebeu que os senhores da colónia eram, efectivamente, os ocupantes japoneses. O coronel Sawa, o arrogante e inteligente chefe dos serviços secretos do exército imperial japonês, o Kempentai, sediado em Guandong, muito próximo das Portas do Cerco, pelo impedimento de se manter em solo macaense neutral, tornou-se uma espécie de chefe-sombra da repartição dos Serviços de Economia de Macau, liderada por Pedro José Lobo, um importante «filho da terra». A CCM — Companhia Cooperativa de Macau — geria a entrada de bens de primeira necessidade, especialmente de arroz, feijão, azeite e açúcar, que faltavam constantemente no Território porque o governo português não tinha meios para assegurar o fornecimento regular dessas mercadorias. Esta empresa era participada em cerca de trinta por cento pelo governo do Território e o capital restante distribuía-se pelo exército japonês e por várias famílias poderosas locais e de Hong Kong, estas refugiadas em Macau após a ocupação da colónia inglesa. Na fuga, haviam transferido para o Território os seus negócios, as suas empresas e os seus bancos. Era nesta conjuntura empresarial que assentava em grande parte a economia do Território. Uma economia que regulava tudo — pessoas e negócios — de acordo com interesses geridos pelos proveitos do negócio, frequentemente inestético e amoral.

Para alimentar os milhares de refugiados, o governo local, por instruções emanadas de Lisboa, entregava às forças japonesas tudo o que pudesse servir como moeda de troca para a aquisição de bens essenciais — navios, armamento, equipamento de comunicações, e um indefinido conjunto de materiais úteis ao ocupante. Apesar desse esforço, todos os dias eram recolhidas dezenas de cadáveres, vítimas da fome e do frio, nas arcadas da Rua de Almeida Ribeiro e noutras zonas da cidade.

O braço armado do coronel Sawa em Macau estava nas tradicionais máfias chinesas, as «tríades», radicais, sanguinárias e de uma eficiência assombrosa nas acções que desenvolviam ao serviço de interesses sempre inconfessáveis. Sob as suas ordens, as tríades passaram a assegurar as funções de polícia de segurança pública e de fiscais aduaneiros. Além disso, no Território operava secretamente um bem organizado serviço de espionagem japonês, firmemente coordenado pelo oficial, com o qual colaboravam activamente os chineses a soldo do governo-fantoche de Nanquim. Nesta engrenagem complexa, a sua autoridade ultrapassava a do governo local português que, em boa verdade, se limitava a ser um espectador mais ou menos passivo e impotente da vida no Território. Macau transformara-se num centro de espionagem e de contra-espionagem de todos os países envolvidos no conflito internacional. Nunca se sabia quem era quem…

Embora indirectamente fosse considerado um palco de guerra, Macau era, ao mesmo tempo, um oásis de paz. No cosmopolita Hotel Central, uma autêntica Torre de Babel, as festas e os bailes eram permanentes. Militares portugueses cruzavam-se com oficiais das forças do Império do Sol Nascente e com os soldados chineses de Wang Jing Wei, de braço dado com mulheres jovens de diferentes nacionalidades e das mais diversas proveniências. Algumas inconfessáveis. Outras misteriosas. Ao som das grandes orquestras locais todas as noites se realizavam bailes para animar uma sociedade distante de um mundo dividido pela guerra e pelas causas que a tinham originado. A atmosfera fazia lembrar a Xangai dos loucos anos 30 nos confins de uma China turbulenta, povoada pelo pior e pelo menos mau de uma vaga de refugiados de meio mundo num cenário onde a miséria e a nobreza conviviam na tormentosa ocupação de um inimigo quase afável e frequentemente cruel. Por toda a Macau, os cabarets e as salas de jogo estavam à cunha até de madrugada. Ali se viam as mulheres mais belas, envergando atrevidos cheongsam, as femmes fatales ocidentais, os espiões de todas as nacionalidades e os omnipresentes gangsters das tríades chinesas. Toda a gente vivia como se não houvesse o dia seguinte!

Na manhã do ataque dos americanos aos hangares do Porto Exterior, as explosões ouvir-se-iam no Colégio de Santa Rosa de Lima, localizado ali bem perto. Avistavam-se as colunas de fumo negro libertado dos depósitos incendiados. Em pânico, as religiosas apressaram-se a esvaziar as salas de aula, reunindo todas as alunas na igreja, tentando manter a calma entre elas. Madre Pia havia já enviado alguém ao Seminário de São José para se informar do que se estava a passar no Território.

— Vamos morrer todas! — diziam algumas crianças em pranto.

Apesar do pânico que se tinha apoderado de toda a cidade, várias centenas de pessoas deslocaram-se ao local do ataque para ver o cenário de destruição. Inesperadamente, uma esquadrilha de caças reapareceu e lançou mais duas bombas arrasando o que restava dos hangares, já reduzidos a um montão de ferros retorcidos. Foi a debandada geral!

Os boatos começavam a propagar-se e era a certeza de todos que Portugal havia finalmente entrado na guerra, e que Macau iria sofrer as consequências. Houve quem garantisse que vira os caças americanos a descolarem do porta-aviões Enterprise, fundeado ao largo, e que, a seguir, a cidade seria bombardeada, do mar, pela armada americana. As culpas eram atribuídas ao Governo de Portugal e à sua simpatia política a favor do Japão.

«Lá se vai a apregoada neutralidade de Portugal e a segurança das gentes de Macau!»

O saldo dos bombardeamentos desse dia seria de cinco pessoas mortas e vários feridos. Não fora o objectivo do ataque ferir a população, como se saberia mais tarde.

Padre Manuel visitou o Colégio de Santa Rosa de Lima no dia a seguir ao incidente. Queria saber em que situação teriam ficado as religiosas, as alunas e as auxiliares, face ao perigo que haviam corrido, pela proximidade do colégio ao local dos bombardeamentos. Madre Pia, por sua vez, estava ansiosa por saber das novidades que ele lhe levaria, assegurando-lhe que estava tudo bem dentro do colégio. Por precaução, que não saberia bem definir, evitou referir a amah e as três alunas desaparecidas.

— Tudo não passou de um susto, felizmente! As aulas foram retomadas e as alunas estão calmas. E Vossa Reverência, já saberá de alguma coisa sobre tudo o que aconteceu?

— Olhe, madre Pia, pelo que consegui apurar os bombardeamentos americanos foram desencadeados para impedir que as forças japonesas se abastecessem dos combustíveis existentes nos depósitos dos hangares do campo de aviação. Toda a gente conhece o acordo entre a administração do Território e os japoneses, para a troca de combustíveis por carregamentos de arroz. Os americanos vieram cá para lhes arruinar o negócio. E para nos dificultar a vida! Vai haver falta de arroz em Macau nos tempos mais próximos, irmã. Pelos vistos, agora acabou-se o negócio do Pedro José Lobo… Mas ele já é um homem muito rico!

— A sério? — Via-se no rosto de madre Pia um sorriso de alívio. — Então, não existe qualquer veracidade na notícia de que os americanos vão atacar novamente Macau?

— Não, de todo! Isto foi só uma manobra de sabotagem dos americanos.

— Valha-nos Deus, já corria por aí que Portugal tinha entrado na guerra…

— Disparate! Toda a gente sabe que a guerra está praticamente no fim, é uma questão de tempo. Os alemães estão derrotados e, sem a ajuda do Eixo, os japoneses não se aguentam.

— Ah, que alívio!

— Quem não ganhou para o susto foi o Pedro José Lobo!

— Então?!

— Pois, acho que teve de fugir de carro, debaixo da metralha dos caças! A sede da CCM fazia parte dos alvos da esquadrilha americana. Dizem que só se conseguiu salvar porque saltou do carro para fora antes de se incendiar e explodir quando foi atingido pelos tiros da metralhadora de um dos caças!

E os dois religiosos ainda sorriam quando se despediram, cúmplices naquele pecadilho em pensamento quase mortal que os tempos daquela guerra perdoavam antecipadamente. Naquela noite, certamente que ambos pediriam a Deus o perdão que se impunha às suas consciências, postos de joelhos nas suas últimas e vespertinas orações de um dia igual a tantos outros.

A Segunda Guerra Mundial chegaria formalmente ao fim nesse ano de 1945. A Alemanha rendia-se a 7 de Maio e o Império do Sol Nascente cairia a 2 de Setembro. Em Macau festejou-se esse acontecimento com o brilho, a cor e os sons exuberantes de um réveillon antecipado. Mas durante muitos anos a sua sombra e os seus fantasmas, a angústia de uma ocupação feita de golpes e ataques traiçoeiros, a visão da fome e das suas consequências sociais, o medo e os seus traumas, mantiveram-se presentes no quotidiano das suas populações. Só com a chegada de uma nova geração viria a renascer a confiança.