5. A FUGA
Lentamente, a vida no Território regressava ao ritmo habitual, no bulício quase frenético de uma «babilónia» cheia de contradições, de gente que chegava e partia apressadamente, que falava várias línguas de todo o mundo, especialmente o cantonense, o francês, o português e o inglês.
Também em Santa Clara tudo entrara na rotina dos dias. Madre Pia revelara-se uma mulher determinada na administração da congregação e do Colégio de Santa Rosa de Lima, conhecida e respeitada para lá dos seus muros pela comunidade residente e pelo clero. A obra crescera desde a sua chegada, em tamanho e em prestígio, e o ensino que ali se fazia era considerado um dos melhores de Macau e Hong Kong.
Uma das preocupações da religiosa era o futuro de Maria e a sua personalidade rebelde. O assunto tornara-se uma questão do foro pessoal que partilhava frequentemente com padre Manuel. À volta dessa questão, a relação entre ambos fortificou-se com o tempo e dela nasceria uma amizade pessoal sólida e duradora.
«Tenho de fazer qualquer coisa para refrear a rebeldia daquela miúda!», pensava madre Pia com frequência.
Maria crescera e a sua primeira menstruação chegaria pouco depois de ter completado doze anos. Madre Pia tivera com ela uma conversa durante a qual nenhuma delas se sentiu à vontade.
Era uma quinta-feira como qualquer outra. Era justamente nesse dia que padre Manuel a visitava para conversarem. O assunto era, invariavelmente, a sua protegida. Mas, para lá de tudo, havia sempre uma ponta de secreta suspeita em cada um deles sobre se não seria esse também o pretexto para se encontrarem. Em determinada altura, madre Pia achou mais próprio que a porta do seu gabinete se encontrasse sempre aberta quando essas reuniões tinham lugar. Mas quem de fora os visse ali confortavelmente sentados não deixaria de ficar surpreendido por nada se ouvir, no exterior, das palavras que trocavam, entrecortadas por pequenos goles do chá que era servido, frequentemente renovado por uma noviça ao longo do encontro.
Cumprimentaram-se formalmente, como sempre. Ela tocou com os lábios ao de leve nas costas da mão direita que ele lhe estendia, ao mesmo tempo que fazia uma vénia ligeira. Antes e depois desse instante os olhares trocavam-se e ambos se sorriam devotamente.
— Como tem passado, Vossa Reverência? — perguntava-lhe ela invariavelmente, depois de se instalarem.
— Bem, muito obrigado, minha madre. E por cá?
— Lindamente, como é habitual, graças a Deus! — respondia ela.
— E como está a nossa «afilhada»? — Era a pergunta sacramental, o mote da conversa.
— Olhe, senhor padre…
O ar dela tinha-se fechado. Ele surpreendia-se porque, desta vez, a conversa entre ambos começava de uma forma diferente da habitual. O chá tinha sido servido mas nenhum deles tocou nas respectivas chávenas. Ele recostou-se no cadeirão de costas altas em que se sentava, cruzou as mãos sobre o tecido leve da batina branca e esperou que ela completasse a frase. E alguns instantes depois retomou a frase, repetindo-a.
— Olhe, senhor padre, quero falar-lhe de uma questão que poderá considerar delicada…
Padre Manuel sentiu-se incomodado. Inquieto. Endireitou-se na cadeira como se quisesse ouvir melhor o que ela ia dizer-lhe a seguir. E a madre continuou:
— É sobre a Maria que quero falar-lhe, como sempre. Mas, desta vez, a questão tem aspectos novos. Tenho estado, como sabe, muito preocupada com a sua personalidade. O senhor tem-me dito com frequência que o tempo é o melhor mestre que a vida lhe poderá dar. Tenho concordado consigo. Mas não podemos ficar à espera de que aconteça qualquer coisa. Temos que tomar a iniciativa e dar-lhe essa oportunidade…
Havia no rosto de padre Manuel um sorriso de alívio. Afinal era sobre Maria que iriam falar. Voltou a recostar-se no espaldar da cadeira segurando, finalmente, a chávena de chá ainda fumegante. E antes do primeiro gole, perguntou-lhe:
— E que oportunidade é essa, irmã?
— Penso que é uma oportunidade que devemos oferecer-lhe antes que seja tarde demais…
O ar dela era grave, a voz tinha descido de tom. Era ela agora quem esperava um sinal de apoio da parte dele.
— Ouvi-la-ei atentamente, Irmã Superiora. — Era a primeira vez que ele a chamava assim, mas havia na sua voz uma urgência nova, e ela percebeu que teria de ser cuidadosa, embora assertiva, na exposição do seu plano. Decidiu-se, então, por uma entrada brusca.
— A única saída que vejo para o futuro da Maria, para o futuro que nós ambicionamos para ela, é o casamento!
Padre Manuel não conseguiu apreender imediatamente o sentido da frase. Precisou de um instante para o fazer. Endireitou-se de novo na cadeira evitando o olhar firme que ela lhe dirigia. A seguir, respondeu-lhe em voz neutra:
— Aos doze anos?!
— Aos doze anos, senhor padre — confirmou ela no mesmo tom.
— Mas é uma criança! Uma menina…
— Já não é uma criança. A Maria é uma mulher em muitos aspectos da sua personalidade. Tem uma personalidade fortíssima mas imatura, que ainda está a tempo de ser educada fora desta casa. Ela precisa de viver num ambiente novo, diferente deste onde cresceu e se transformou numa criança rebelde. O casamento é uma solução, com o marido certo. E, se acertarmos nessa escolha, tem a oportunidade de vir a ter um futuro bem melhor do que o que antevejo para ela. Estou muito preocupada, senhor padre Manuel!
Havia uma nítida mordacidade na resposta que ouviu dele:
— E como iríamos nós escolher um marido para a Maria, irmã? Há algum catálogo disponível? Permita-me que diga que acho esta ideia muito lamentável, madre Pia! Vai contra todos os projectos que tenho para ela! Como poderíamos nós resolver a questão da sua rebeldia com um casamento forçado? Como pode uma criança de doze anos ser esposa de um homem? Que tipo de homem seria esse, irmã?!
— Um homem bom, senhor padre Manuel! Um homem bom…
— Poderá um homem bom interessar-se por uma menina de doze anos para sua esposa?!
— Sim! Doze anos é uma idade boa para uma menina chinesa se casar! É com essa idade que muitas se casam e têm filhos, aos treze, catorze, quinze anos…
— Filhos, aos doze anos?! Aos treze ou catorze?! Em que país vive, madre Pia?
— Na China, senhor padre Manuel!
Um silêncio denso caiu entre eles. A tensão que se sentira nos últimos momentos daquela conversa cresceu ainda mais com aquele silêncio. E ambos compreenderam que teriam de fazer uma pausa naquela altura. Mas para madre Pia era imperioso que aquela conversa não ficasse por ali.
— Compreendo perfeitamente as suas objecções, senhor padre. Move-me, como a si também, o superior interesse da Maria, o seu futuro, o seu bem-estar, a sua felicidade como pessoa e como mulher. Só assim fará sentido o projecto que acarinhámos durante estes anos. Acho que nos devemos dar uma pausa para reflectirmos e amadurecermos esta ideia. Peço-lhe que a aceite nesse sentido. Vale a pena voltarmos em breve a este assunto. É demasiado importante para o adiarmos por muito tempo ou mesmo para o esquecermos. Espero que concorde comigo neste ponto.
Padre Manuel erguera-se e preparava-se para sair. Tornara-se urgente a caminhada de regresso a São Lourenço. Ainda sem lhe responder, estendeu-lhe a mão. Mas ela, desta vez, não lha beijou no preceito do protocolo habitual. Limitou-se a segurar-lha entre as suas de forma claramente eclesiástica, sorrindo-lhe. Já perto da porta do gabinete, padre Manuel respondeu-lhe:
— Vou fazer como me pede, madre Pia, vou pensar na conversa que tivemos hoje aqui. Mas não regresso a casa muito feliz. Na próxima semana voltaremos a falar sobre tudo isto.
Se padre Manuel tivesse sido mais rápido a chegar à porta do gabinete, e se a tivesse aberto repentinamente, teria surpreendido Maria, que, do outro lado, escutara toda a conversa entre as duas pessoas mais importantes da sua vida e percebera que o seu destino estava, inapelavelmente, traçado.
Maria presenciara de longe a chegada de padre Manuel. Aproximara-se dele para o saudar mas fora interrompida no gesto por uma das amahs e perdeu-o momentaneamente de vista. Percebeu então que ele se dirigia ao gabinete da regente, no primeiro andar, e calculou que o assunto que lá seria tratado seria sobre ela e sobre o seu comportamento. Correu, ainda na esperança de o apanhar antes de entrar no gabinete, e reparou, ao chegar, que ele já se sentara em frente de madre Pia. Tarde demais! E foi assaltada pela curiosidade sobre a conversa que ali iria ter lugar. Colou-se à porta, que ficara entreaberta, e ouviu a conversa do princípio ao fim. Afastou-se apressadamente em direcção ao dormitório antes que o sacerdote abrisse a porta para se retirar.
Há muito tempo que alimentava o sonho de fugir do colégio. Não poderia nunca dizer que fora alguma vez infeliz naquela que fora durante os últimos sete anos a sua casa. Ultimamente, porém, sentia-se desconfortável e oprimida pelas constantes admoestações das amahs e, principalmente, de madre Pia, de quem lhe chegava o castigo maior numa censura vinda dela e numa certa frieza que sentia nela quando a procurava. Sabia-se vigiada, sentia-se aprisionada, numa liberdade condicionada pelos imperativos da disciplina interna, pelos regulamentos rígidos, pelas obrigações irrecusáveis de cumprir formalidades que a cansavam, como a catequese, a missa à hora certa e as constantes orações, matinais, vespertinas, às refeições, no princípio e no fim de cada aula, diariamente, com uma sobrecarga insustentável aos domingos. Sem saber definir exactamente porquê, tinha a percepção de que esses sentimentos eram comuns a muitas colegas suas, à maior parte das amahs e — pasme-se! — a algumas das noviças que ainda não tinham tomado os votos definitivos. A prática de uma religião quase escravizante, autoritária, formalizada, cronografada. Sentia uma necessidade irreprimível, cada vez mais forte, de se libertar daquela prisão. Comparava-se aos passarinhos aprisionados nas gaiolas de bambu que muitos chineses passeavam pelos parques e jardins públicos, inúmeros no Território, convencidos de que nessa prisão, chilreando alegremente entre canteiros de flores, os seus passarinhos eram felizes.
Sabia que iria ter pena de deixar Santa Clara. E sentiria, certamente, saudades de algumas pessoas. De Luísa, a sua melhor e única amiga. E de madre Pia, de quem gostava verdadeiramente. Para já não falar de padre Manuel, a quem, tinha disso consciência, devia a vida e por quem sentia uma grande gratidão. Aqueles eram os afectos da sua vida. Para acalmar a consciência, obrigava-se a pensar: «Mais tarde ou mais cedo, teria sempre de abandonar o orfanato, mas não será nunca por um casamento forçado!» Fosse com um português ou com um chinês, não queria tornar-se numa esposa obediente e submissa como via serem todas as esposas chinesas que conhecia e de que ouvira falar.
Só Luísa conhecia o seu pensamento. Tinham sido inúmeras as conversas sobre aquele assunto. E todas elas acabavam mal, com as amigas mais ou menos zangadas uma com a outra, porque Luísa não desistia de a convencer a mudar de ideias e Maria não queria ter para si o destino de muitas raparigas chinesas que por ali tinham passado, tantas vezes regressadas, mais tarde, à procura de um abrigo — as sevícias, os maus tratos, os castigos a que eram sujeitas espelhados nos rostos juvenis, estranhamente envelhecidos, depois de utilizadas como criadas para todo o serviço ou como vulgares muichais para os devaneios sexuais dos patrões e abandonadas ou expulsas das casas onde viviam, tantas vezes presas a afectos pelas crianças que lá tinham nascido ou que tinham ajudado a criar… Eram incontáveis os argumentos da amiga para a demover, mas a nenhum deles Maria se rendeu. E o seu plano foi tomando corpo, ganhando vida, até que, naquele fim de tarde, ao escutar aquela conversa, tomou a decisão final de o executar.
Ia evadir-se de Santa Clara nessa noite!
A sineta do pátio central tocou cinco vezes. Em poucos minutos, o refeitório encheu-se de dezenas de raparigas barulhentas, de pé, à volta das mesas com lugares marcados. Em cada uma, de quatro a seis lugares, uma noviça ou uma amah. Motivos pedagógicos e disciplinares tinham ditado esse procedimento ao longo do tempo. As alunas internas daquele colégio aprendiam a comportar-se à mesa de forma irrepreensível. À entrada do refeitório, eram aguardadas por duas amahs e uma freira. Ninguém se sentava enquanto não ficava completa a mesa grande onde se sentavam as freiras. Finalmente, chegou madre Pia que tomou o seu lugar ao centro da mesa grande. Na imensa sala, fortemente iluminada, não se ouvia qualquer ruído. O silêncio era absoluto. A ordem para se sentarem, depois da breve oração de graças, só chegaria depois de ser observado esse instante de silêncio.
Do fundo da sala ouviu-se bem alto a voz de uma freira:
— Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo!
Uma hora mais tarde, quando o relógio marcava dezanove e quarenta e cinco, todas a alunas recolhiam aos dois dormitórios — o das «grandes» e o das «pequenas». Às vinte, as luzes eram apagadas, excepto as de presença e as das celas individuais das freiras. As sombras da noite chegavam, finalmente, para protegerem Maria na fuga em direcção ao seu destino. Estaria ele escrito nas estrelas daquele longínquo e misterioso céu do Extremo Oriente?
A madrugada ia alta quando se ergueu em silêncio da cama onde se deitara vestida, por de baixo do lençol branco. Fingira-se adormecida quando a amah passara por ali depois de desligadas as luzes, com o foco de uma pequena lanterna directamente apontado para o seu rosto.
Tinha preparado uma pequena trouxa com peças de roupa e algumas patacas de uma mesada simbólica que padre Manuel lhe fazia chegar. Com ela numa das mãos e as chinelas chinesas na outra, atravessou em silêncio o dormitório e viu-se no exterior. Calçou-se antes de descer a escadaria em direcção à porta grande. Por ali a saída seria muito mais difícil. Em alternativa, atravessou a cozinha e sentiu o cheiro forte de restos de comidas que, na manhã desse novo dia, daí a poucas horas, seriam levados para a paróquia, que as ofereceria aos pedintes habituais. Abriu a porta de serviço, atravessou o pátio das traseiras, percorreu os carreiros que delimitavam a horta até ao fim. Um muro alto, que conhecia bem de tantas vezes o ter transposto às escondidas, era o último obstáculo. Instantes depois estava na rua. Aquele lugar nunca tinha tido segredos para si. Tinha agora um: o do seu futuro. Olhou para o muro uma última vez, antes de se afastar dali.
No plano original, era a Liang Lin a quem iria pedir abrigo e protecção para os dias imediatos. Mas depressa chegou à conclusão de que ela não hesitaria um instante em devolvê-la ao colégio ou falar imediatamente com padre Manuel. A-San, a amah que ensinava trabalhos oficinais, fora sempre uma segunda opção nesse plano. E passou a ser a primeira, seguindo o instinto que lhe dizia que com ela o seu segredo estaria mais seguro. Recordava-se de uma conversa com ela, no fim de uma aula de costura. A amah gostava de falar com ela em cantonense e de tratá-la pelo seu nome chinês.
«Mei-Lin, já pouco mais tenho para te ensinar! E com aquilo que sabes não será difícil arranjares trabalho lá fora. Se algum dia precisares disso, fala comigo que eu posso ajudar-te. Conheço muita gente em Macau, pessoas que estão sempre a precisar de empregadas.»
Maria estava naquele momento muito longe de imaginar a definição de «empregadas» no mundo em que, brevemente, iria viver. Muito longe! E, afinal, um mundo tão perto dali!
No velho relógio do Leal Senado eram nesse momento quatro horas. Dentro de pouco tempo ia nascer por ali um novo dia. A essa hora, Macau já fervilhava de gente. Se se apressasse, chegaria a casa de A-San ainda a tempo de lhe falar antes que saísse para o trabalho.
Animada pelos seus próprios pensamentos tomou a direcção do Porto Interior e estugou o passo. Uma hora depois localizava a Travessa da Caldeira. A meio, estava a casa de A-San, um prédio baixo e com aspecto decrépito, as janelas ainda fechadas. Não viu nenhuma luz acesa.
Fez correr o trinco frágil da cancela de ferro que, solta, deslizou contra o batente até ficar completamente aberta. Iria ser assim tudo tão fácil como tinha sido até àquele momento? Deu-se conta, finalmente, de que tinha acabado de fazer uma importante troca na sua vida, ao desprezar a segurança de um casamento de conveniência com um desconhecido pela insegurança de uma aventura cuja dimensão não saberia avaliar naquele momento. Em boa verdade, a sua vida começava ali, junto àquele portão de ferro, à porta daquela casa humilde onde ia implorar hospitalidade.
Resolutamente, aproximou-se da porta de madeira, pintada de um verde berrante, e bateu nela com os nós dos dedos até sentir dor. A porta abriu-se alguns instantes depois. Na soleira, uma mulher baixa e entroncada, a tez morena, nos olhos enviesados uns óculos de lentes grossas. Não viu nenhum sorriso no rosto daquela mulher. Nem de surpresa nem sequer de boas-vindas. Era A-San.