7. FOREIGN MUD

Mei-Lin dissera adeus à inocência naquela noite! Fora rápido e doloroso na carne… mas e na alma?

Viu-se, de repente, mergulhada no tenebroso submundo de Macau, dos prazeres comprados pela bagatela de uma moeda exactamente igual à que atiravam aos mendigos os casais enamorados que passeavam na San Malô ao cair da noite!

O ópio, para os chineses, com o jogo do fantan e a prática do amor, completava a «trindade dos prazeres»! As salas do ópio eram consideradas paraísos tentadores e nauseantes, onde os corpos repousavam em esteiras, num ambiente compartimentado e silencioso, em que o único ruído era o do resfolegar dos cachimbos. Aos fumatórios regressavam frequentemente todos os que já haviam experimentado aquele inferno paradisíaco, entregues a um suicídio feliz e de muita paz numa inconsciência cúmplice de uma morte desejada.

Mei Lin passou aquela noite em claro, tentando encontrar um sentido para a vida que agora começava para ela de uma maneira brutal e inesperada. Teve, na penumbra do seu canto esconso, uma eternidade para recordar os últimos acontecimentos, tudo quanto antes a havia conduzido àquele lugar e à situação tão precária em que agora se via. Ocorreu-lhe a ideia de fugir dali, refazer-se daquela noite tenebrosa que acabara de viver. Mas fugir para onde? A quem iria ela pedir ajuda depois do mais do que provável rompimento com madre Pia e com padre Manuel devido à sua fuga?

«Voltar para o convento está, definitivamente, fora de questão!», pensava.

Alguma coisa lhe segredava, no entanto, que, daquele lugar de pesadelo, poderia resultar, um dia, qualquer coisa que valesse a pena, num futuro sem data e sem tempo. O quê…? As muichais nunca recebiam dinheiro pelo «trabalho» extra que faziam aos clientes ainda conscientes ou mesmo vagamente dormentes! Então, o que poderia esperar dali? Decidiu, resignada, que ficaria até que lhe chegasse uma oportunidade de sair em segurança para qualquer outro lugar onde pudesse trabalhar e viver em condições melhores e menos degradantes.

E o tempo foi correndo. Na rotina dos seus dias encontrou uma certa tranquilidade. Aprendeu a dançar e voltou a tocar pipa, fazendo valer as aulas de música que tivera no colégio. Dormia durante uma parte do dia, para se retemperar para mais uma noite de trabalho. Gradualmente, foi sendo requisitada por alguns clientes que lhe acenavam com quantias tentadoras. Até ali conseguira resistir. Até àquela noite.

Algumas semanas depois do traumático episódio vivido em casa de Jing Qua, cedeu perante a insistência de um jovem que via ali pela primeira vez, provavelmente muito rico a avaliar pelo seu aspecto cuidado, a roupa de alto preço que vestia, a corrente em ouro que se afundava no bolso do colete negro e o anel de diamantes que exibia com naturalidade no anelar da mão esquerda. Tinham sido apenas beijos e nada mais. Retraíra-se quando ele tentou despir-lhe o quimono. Percebeu que ele jamais utilizaria a violência para ir além daquelas carícias. Eram sensações completamente novas para ela. Nunca antes tinha sido assim acariciada por um homem. Aquele tinha sido o primeiro. Sentia-lhe a mão passear-lhe sobre as formas pubertárias numa carícia que lhe despertava um novo e inesperado desejo. Sabia o que viria a seguir. Susteve-lhe o movimento, sorrindo-lhe. Segurou-lhe a mão que a acariciava e apertou-lha na sua. Lentamente, pousou-lha no estrado acolchoado. Ele não reagiu. Mei Lin acendeu o cachimbo, chegou-lhe para mais perto o suporte metálico. Levantou-se, compôs-se, correu a frágil cortina do compartimento e afastou-se.

Ele voltou na noite seguinte. Vinha vestido com a mesma elegância, trazia o mesmo ar distinto no trajar e num certo maneirismo comum aos jovens chineses que tinham frequentado universidades na Europa e nos Estados Unidos. Ela soubera naquele instante que ele estava ali por causa dela. Conduziu-o a um gabinete do segundo andar, dos mais caros pela privacidade que proporcionavam. Regressou para lhe preparar um cachimbo e voltou a subir. Entrou no quarto e encontrou-o de pé à sua espera. Ele tirou-lhe das mãos os objectos que ela preparara e pousou-os sobre o tapete ao lado da cama. Segurou-a, enlaçou-a e beijou-a. Foi um beijo ligeiro, quase superficial. Foi mais o corpo dele que ela sentiu contra si. E sentiu-se bem como nunca antes tinha sentido. Estava à espera daquilo sem perceber porquê. Sabia que ele viria de novo para a ver e percebeu que também ela queria que ele voltasse. Ele beijou-a de novo e Mei Lin sentiu-lhe a língua tocar-lhe os lábios, penetrar-lhe a boca. Instintivamente, correspondeu, como se aquele fosse o beijo que sela um pacto de amor. Não houve preliminares nem palavras. Foi rápido e bom. Da segunda vez foi mais lento, mais profundo, mais apaixonado. Ele vestiu-se à pressa enquanto ela o contemplava como se ele fosse um deus saído das entranhas dos seus sonhos de menina-mulher. Ajustou ao colarinho gomado o nó da gravata de seda. Extraiu da carteira um maço de notas e depositou-o no tampo da pequena mesa ao lado da cama. Sorriu-lhe enquanto abria a porta. No instante seguinte desaparecia. Mei Lin ouviu-lhe os passos ao longo do corredor e soube que nunca mais o voltaria a ver.

Aquela tinha sido a primeira noite de um sonho que sonhara acordada e consciente ainda antes da fuga do colégio. Um sonho de menina, sem as incursões adultas que vivera durante aquela hora na companhia de um príncipe perfeito saído da noite de um Oriente que ela não conhecia. Tivera do amor a amostra inicial, aquela que nunca mais se apagará da memória de uma mulher.

Mei Lin sabia que aquele encontro seria o último. Sabia, sem perceber porquê, que ele nunca mais voltaria ali. E remeteu o assunto para o fundo da memória. Decidiu ser prática e fazer da vontade que os homens tinham de estar com ela a fonte dos seus rendimentos. Tinha decidido tornar-se uma mulher rica. A partir daí raro seria o homem que a cortejasse que não visse satisfeito o seu desejo. E de dia para dia sentia-se mais segura de si e das suas capacidades para proporcionar prazer aos homens. Passou a receber os clientes do fumatório com uma clara vontade de interpretar as suas fantasias sexuais a troco de um preço que nem todos poderiam pagar. E a partir desse momento pôs de lado a esperança de um dia se reconciliar com as pessoas que a tinham criado até ao dia em que fugira do colégio. Estava, assim, consumado o corte definitivo com o seu passado de menina.

Passou a vestir-se de uma maneira diferente para receber os clientes, muito semelhante àquela que usavam as suas colegas, que, nela, realçavam o ar provocante que recentemente assumira. Envergava um sensual cheongsam de seda que lhe realçava a beleza púbere. Os homens eram instalados em canapés chineses ou deitados nas esteiras colocadas no chão e aguardavam que ela carregasse os cachimbos com as bolinhas pardas do ópio, sentindo sobre si os olhares lúbricos da maior parte deles. Estranhamente, começou a notar que exercia sobre as clientes a mesma atracção e descobriu que se contavam entre os melhores clientes nas gorjetas generosas que recebia. Os cachimbos eram acesos à chegada ao compartimento, o cliente instalava-se confortavelmente e o ópio coava-se pelo depósito de água, engordurando-a. Um perfume adocicado invadia o ambiente, e o suave resfolegar dos cachimbos transformava-se numa melodia que se ia juntar às dolentes árias entoadas pelas raparigas lá fora, enquanto dedilhavam os seus pipa envernizados de onde saiam acordes de uma suave música chinesa. Era nesse momento que os sinais de sonolência se manifestavam e com ela iniciavam-se as fantasias eróticas que o cliente pedisse. Estiravam-se então nas almofadas de palha fina para iniciarem a viagem que os levara ali, sempre com a ajuda da rapariga que estivesse de serviço. Mãos experientes e lábios carregados de carmim percorriam os seus corpos entorpecidos em carícias proibidas que eram a principal razão da assiduidade de muitos clientes, tudo pelo preço de uma gorjeta mendigada para a maior parte delas. Para Mei Lin, esse preço era sempre mais alto e pago com generosas gorjetas. Mei Lin começava a ser conhecida por razões que teriam entristecido aqueles que tinham sonhado para ela um futuro muito diferente.

A hospedaria da San Malô era uma das mais conhecidas e procuradas da cidade, e a sua frequência aumentara desde que se começara a falar de uma nova rapariga que tocava música dolente e lhes tocava o corpo com mãos de feiticeira, cantava e dançava sem igual, enquanto os fumos perfumados transportavam os clientes para paraísos desconhecidos e inusitados, de um mundo fabuloso, afinal, ali tão perto daquela trágica realidade…

O fumatório era sobretudo frequentado por chineses. Portugueses e macaenses, salvo algumas excepções, não tinham por hábito a frequência desses lugares de um prazer antigo e que ali, naquele lugar remoto da China milenar, representava, como em qualquer outro, o esquecimento e a ausência. Ocasionalmente, aparecia um forasteiro. Eram estrangeiros, normalmente tripulantes de navios em escala no porto de Hong Kong, e que ouviam falar que a vida nocturna de Macau oferecia quase tudo por pouco dinheiro. Apanhavam o ferry que ligava as duas cidades, levando estudado o itinerário que os conduziria aos locais onde todas as perdições os aguardavam — no jogo, nos braços das meninas chinesas no último estádio de uma infância roubada ou nos fumos do ópio inebriante.

Numa certa tarde, o comandante de um vaso de guerra norte-americano, pertencente a uma esquadra ancorada no porto de Hong Kong, desembarcou do ferry, no Porto Interior. Não era a primeira vez que o oficial pisava solo português, onde já estivera durante o conturbado período da Guerra do Pacífico. Apanhou um dos vários riquexós que aguardavam clientes à saída da ponte-cais, e entregou ao condutor, um chinês de meia-idade, magro, descalço, de calções, camisa amarrotada e o tradicional chapéu de palha de arroz, um pedaço de papel onde alguém tinha escrito em caracteres chineses o nome do fumatório. Rapidamente chegou à San Malô e parou mesmo em frente ao edifício cinzento de portas vermelhas. O passageiro apeou-se e dirigiu-se para o pequeno cubículo que servia de recepção. Jing Qua olhou-o com interesse dissimulado, avaliou-o pelo porte e pelo aspecto, fez-lhe a vénia reservada aos clientes importantes. Eram eles quem, invariavelmente, deixavam as gorjetas mais generosas. Mas eram, sobretudo, aqueles que nunca discutiam os montantes cobrados como se quisessem comprar uma discrição a qualquer preço naquilo que lhes parecia ser uma incursão proibida ao mundo do pecado. Desfazendo-se em mesuras, Jing Qua conduziu o homem para um quarto situado no primeiro andar. Num inglês pidgin, disse ao cliente que iria procurar uma menina especial. Dirigiu-se ao piso inferior e procurou Mei Lin, que atendia um chinês gordo esparramado numa das esteiras, já num estado visivelmente catatónico.

— Tu vens agora atender um cliente importante. Deixa a Siu Siu a substituir-te. Vai já ao 37. Compõe-te! — E, sem desviar dela o olhar lúbrico habitual, acrescentou:

— Vais pedir-lhe o dobro do habitual. Mas só pedes «no fim». E quando acabares vai ter comigo.

Mei Lin fez um aceno, conhecedora das regras da casa — entregar todo o dinheiro que os clientes lhes davam! Só depois disso o patrão lhes pagava algumas patacas que mal chegavam para comprar um novo cheongsam. Com ela, Jing Qua era especialmente exigente pelo despeito que sentia por nunca mais ter conseguido que a rapariga o aceitasse de novo, depois daquela noite. Valiam-lhe as gorjetas especiais que recebia e das quais Jing Qua não suspeitava.

No quarto, fracamente iluminado por uma lanterna chinesa e apenas decorado com um canapé coberto com almofadas de seda gasta, uma cama almofadada, larga e baixa, e uma pequena mesa, onde se encontrava toda a parafernália para a preparação do ópio, o cliente aguardava-a, já confortavelmente recostado na cama. Mei Lin mal olhou para ele. Enquanto preparava o cachimbo de piteira excepcionalmente longa, colocando com um fino estilete a pequena bola de ópio no fornilho, o americano fazia-lhe perguntas num inglês simples a que ela respondia o mais laconicamente que podia, na mesma língua, com uma fluência que o surpreendeu.

— Como é que uma rapariga do Norte e ainda tão nova vem parar a um lugar destes?

— Eu não sou do Norte, nasci aqui em Macau!

— Que idade tens? — insistiu ele.

Ela ignorou a pergunta, receosa da reacção dele — embora soubesse por experiência própria que quanto mais nova fosse a rapariga mais interesse despertava no cliente.

— Trabalhas aqui há muito tempo?

— Não, estou aqui há pouco tempo.

— E onde estavas tu antes de vires para aqui?

— Num flower boat tanka — mentiu Mei Lin.

— O que é isso?

— É um bordel!

Não lhe explicou que os tanka ou boat people, eram pessoas diferentes das outras. Que nasciam, viviam e morriam nos seus barcos, onde faziam tudo o que fazem as pessoas durante o dia, todos os dias. Não lhe apetecia conversar com o americano. Estava ansiosa que ele, finalmente, se mostrasse disponível. O homem não tinha pressa nenhuma e ela sentiu-se impaciente e irritada com isso. Mas o que o cliente viu nela foi o sorriso que lhe dirigiu. Um sorriso estudado, encantador na mensagem que transmitia, de um convite irresistível para uma hora ou duas, numa viagem vertiginosa que ela tornaria inesquecível.

— E porque é que o teu patrão te colocou num bordel tanka, se nasceste em Macau? És tão chinesa como os outros chineses, não é assim?

— Foi exactamente por causa do meu aspecto, diferente das outras raparigas chinesas. Mas, depois, quando começou a ver que eu era mais procurada do que as outras raparigas, decidiu trazer-me para o fumatório. E, também, porque eu sou a única que fala inglês!

Finalmente, o cachimbo estava pronto. Mei Lin levantou-se e desapertou a túnica estudadamente mas não a despiu. Entreabria-se com os gestos lânguidos que fazia mas o americano não demorou muito o olhar sobre os pequenos e bem delineados seios parcialmente descobertos, a púbis provocante, as pernas longas e elegantes, toda a sensualidade estudada ao mais ínfimo detalhe.

Ela deu um pequeno passo na direcção dele e debruçou-se, tocou-lhe suavemente o peito nu com a mão aberta e empurrou-o lentamente até o ver afundar a cabeça na almofada de seda. Ele parecia rendido e aspirou longamente o fumo branco pela primeira vez. O seu olhar regressou ao corpo dela, agora mais demoradamente. De pé, ela fazia movimentos sugestivos, lentos, provocantes, num estranho bailado silencioso. E no olhar que lhe dirigia ele viu mil promessas e as imagens de um sonho que estava prestes a começar. O resfolegar do cachimbo ouvia-se como sussurro. Deixou escorregar pelo corpo o cheongsam e ficou nua, imóvel, provocante nos mamilos erectos, nas pernas ligeiramente abertas e a mão que afagava levemente o triângulo pubiano de contornos vagos. Ia começar uma viagem que ele nunca mais esqueceria. Para ela seria apenas mais uma tarefa rotineira que desempenhava sempre com um prazer contido. No fim, ergueu-se silenciosamente, apanhou do chão o cheongsam e voltou a vesti-lo, recolheu de cima da mesinha o maço de notas que ele ali colocara, no início da sessão, e saiu do quarto sem sequer o olhar. Dirigiu-se à recepção para entregar o dinheiro a Jing Qua e foi para seu quarto. Por aquela noite, terminara o seu trabalho.

Dedicou ao americano que acabara de deixar meio adormecido um rápido pensamento: «Pela primeira vez, um homem sabe proporcionar-me um prazer sexual que, até hoje, nunca pensei que pudesse existir!»

Mas Mei Lin ainda não sabia que nos prazeres do sexo não havia limites.

Depressa o esqueceria. E a vida prosseguiu normalmente no fumatório da San Malô, até um certo dia.

Para além do ópio, Jing Qua possuía um outro vício, comum à maioria dos chineses — o jogo! Empenhava nele tudo o que tinha e o que não tinha em dinheiro que pedia emprestado a prestamistas agiotas e perigosos. O ópio ficava-lhe relativamente barato porque entrava na sua contabilidade como um encargo operacional. Os seus credores eram perigosos membros de tríades, a quem não era nada aconselhável falhar os prazos de pagamento, sob pena de aparecer retalhado, numa das praias da Taipa ou de Coloane, o corpo sem vida do faltoso, eventualmente desmembrado, muito provavelmente desventrado! Era o pagamento final da uma dívida de quem já esgotara, junto de um credor silencioso e implacável, todos os argumentos para ganhar mais uma hora de vida.

Afogado em dívidas, foi um dia obrigado a entregar a uma tríade, incondicionalmente, todos os seus bens, entre os quais estava o edifício do fumatório e com ele as suas muichais, para saldar apenas uma parte dessas dívidas. As raparigas acabariam vendidas a vários bordéis, as «casas das flores» da Rua da Felicidade, também chamada «rua do amor». Mei Lin, seria revendida por cento e sessenta patacas à madame de uma dessas casas. No contrato de venda, Mei Lin era classificada como muichai e a sua condição continuaria, assim, a ser a de uma escrava sexual.