9. MANUEL LOBO VICENTE

Manuel Lobo Vicente saiu do Hotel Central, depois de uma noite em que perdera uma centenas de patacas no fantan. Aquele era o seu vício mais recente. A roleta tinha sido o anterior, demasiado caro para continuar. Em nenhum deles tinha tido sorte e os resultados continuavam a ser os mesmos.

O fantan era o jogo mais popular, sobretudo entre os chineses, no qual dissipavam verdadeiras fortunas. No casino Hao Xing, localizado no primeiro piso do Hotel Central, luzes coloridas iluminavam os rostos excitados e ansiosos dos jogadores. Sobre a mesa do fantan estavam quadrados de papel com quatro números. Um rapaz ia tilintando um monte de sapecas que, à força de mexidas, tinham adquirido uma bela cor de ouro. O banqueiro tomava um punhado das moedas que cobria com uma taça invertida. Começavam a fazer-se as apostas. Destapando as moedas, o banqueiro separava-as rapidamente em grupos de quatro com um palito de marfim. Os olhos de todos tomavam um brilho de loucura, fixando-se na operação e esperando ver quantas moedas restariam no fim — esse seria o número vencedor. Enquanto o jogo ia decorrendo, a assistência soltava murmúrios antecipando os números que queriam ver ganhar. Das bocas contorcidas soltavam-se brados de felicidade ou grunhidos de frustração, quando a contagem chegava ao fim.

Manuel dirigiu-se ao bar para uma última bebida, antes do regresso a casa. Fora ali, naquele bar quase silencioso que, ao princípio da noite, a vira pela primeira vez. Estava acompanhada por um homem de aspecto severo e autoritário, que contrastava com a grácil figura feminina. Tão discretamente quanto lhe era possível seguira-lhe os movimentos do outro extremo do bar quase deserto. Deixara que o seu olhar lhe percorresse o corpo esbelto, a pose sensual, o busto perfeito que lhe adivinhou sob a roupa, as pernas longas e elegantes que exibia até ao meio das coxas e as mãos delicadas que bem poderiam servir de modelo a um escultor da craveira de um Michelangelo.

Fez um sinal ao barman que se aproximou solícito.

— Quem é? — E indicava a mesa onde ela estava.

Sem desviar a cabeça o velho barman sorriu brevemente e respondeu-lhe:

— Suponho que o senhor doutor se refira à rapariga…

— Sim, sim!

— É Mei Lin…

— Não lhe perguntei como se chama…

— Sim, senhor! — respondeu-lhe em voz neutra. — Mei Lin é uma pei-pa-chai muito famosa, senhor!

— E onde é que pode ser encontrada, se é uma pei-pa-chai?

Uma pergunta de muito fácil resposta para um barman bem informado.

— Na Rua da Felicidade, na mais famosa «casa das flores», a de madame Li Wei.

Manuel pediu ao barman mais uma bebida, recostou-se na confortável poltrona de couro e por ali se deixou ficar na contemplação daquela mulher-menina que era, afinal, uma pei-pa-chai e que dali, daquela penumbra que tornava o seu voyeurismo mais discreto, lhe parecia ser a mulher mais desejada da sua jovem existência.

Viu-os erguerem-se da mesa e dirigirem-se para os elevadores. Instantes depois, abandonou o bar para regressar, finalmente, a casa. Já no carro, lembrou-se de que teria na manhã seguinte de falar com o pai sobre dinheiros. Aquela noite tinha sido um desastre para as suas finanças, limitadas a uma mesada que o fazia sentir-se desconfortável e, frequentemente, embaraçado perante alguns dos seus amigos. Tencionava mostrar-se finalmente disponível para começar a trabalhar com ele na firma de advocacia com escritório na Avenida da Praia Grande.

Regressou a casa. O pesado portão deslizou suavemente para o deixar passar, acenou ao chinês que o guardava e estacionou o carro na garagem. Subiu ao piso térreo da imensa residência, passou pela sala onde se deteve para um último whisky. Ao fundo, mesmo ao alcance de um olhar, estava o Rio das Pérolas de águas castanhas profundas, eternamente irrequieto e perigoso, na última parte do seu longo curso, prestes a fundir-se com o oceano, àquela hora já sulcado por sampanas a motor, vistas dali minúsculas como se fossem de brincar, cada uma delas com uma luzinha bruxuleante que a sinalizava.

Na manhã seguinte, já o Sol nascera há muito, Manuel acordou com umas suaves batidas na porta do quarto. Ainda antes de responder, a porta abriu-se e uma figura feminina entrou silenciosamente no quarto escurecido pelos pesados cortinados, transportando um tabuleiro que pousou numa mesa baixa, ao lado da cama. Em seguida correu completamente os cortinados, e a luz forte do sol do meio-dia inundou o aposento.

— Bom dia, menino Manuel! A sua mãe mandou-me trazer-lhe o pequeno-almoço.

Manuel resmungou um agradecimento sem a olhar. Esperou que ela saísse para se levantar e dirigiu-se à casa de banho do quarto. Manteve-se sob o duche de água fria durante muito tempo. Doía-lhe a cabeça. A noite anterior não fora definitivamente das melhores para o seu fígado. Bebera demasiado.

De repente, voltou-lhe à memória a pei-pa-chai que vira no hotel.

E foi nesse momento que decidiu encontrar-se com ela ainda nesse dia. Enfiou o roupão em turco e foi tomar o pequeno-almoço no terraço do quarto.

A magnífica vista sobre a baía fez-lhe pensar no quanto gostava de Macau. Não por ali ter nascido, até porque a pequenez do Território provocava-lhe, por vezes, uma sensação de claustrofobia. Amava Macau por ser uma terra tão sui generis, onde coexistiam dois mundos e duas civilizações. A sua própria família era um exemplo disso.

Manuel regressara recentemente a Macau, depois de alguns anos a estudar Direito, em Coimbra. Nascera no Território, onde passara a infância e parte da adolescência. Era filho de uma das mais tradicionais famílias macaenses, os Lobo Vicente, em cujas gerações se cruzavam várias ascendências: portuguesa, inglesa, chinesa e goesa. E, muito remotamente, a francesa. No entanto, a família orgulhava-se da sua «portugalidade», alimentada em visitas frequentes de toda a família a Portugal e com as relações profissionais e políticas do pai com vultos proeminentes do Estado e da finança na capital do país. A mãe, uma senhora portuguesa de uma família tradicional da alta burguesia, era natural de Coimbra e ali conhecera o futuro marido, um estudante de Macau a cursar Direito na velha universidade. Casaram e, como não poderia deixar de ser, escolheram regressar ao Território sob administração portuguesa no Extremo Oriente, onde ele se viria a estabelecer como advogado. Rapidamente cresceu em prestígio, muito requisitado sobretudo em causas contra a administração portuguesa do Território, tradicionalmente contestada por interesses afectos a Pequim mesmo que, aparentemente, pudessem parecer privados.

Era neste mundo complexo da política e dos negócios jurídicos que o jovem Manuel estava a um passo de ingressar pela mão do pai.

Fisicamente, era alto e elegante, no rosto os traços orientais pouco pronunciados mas inegáveis nos olhos vagamente oblíquos. Herdara da parte inglesa da família, através da bisavó Edith, a pele e o cabelo claros e os olhos azuis. Era um pedaço de homem que obrigava muitas mulheres a segundo e mais demorado olhar. Na faculdade deixara os corações de muitas colegas destroçados! Agora, em Macau, procurava ambientar-se na comunidade portuguesa e estrangeira, aquela onde se sentia mais à-vontade. A única excepção a este comportamento cosmopolita estava na frequência demasiado assídua de locais de jogo e de diversão nocturna e, em pouco mais de um mês, já percorrera todos eles!

Mas o comportamento libertino e gastador do jovem Lobo Vicente era do perfeito conhecimento de seu pai e até objecto da sua aprovação tácita. E quando, num certo dia, dona Josefina, sua mãe, desabafava com o marido sobre as suas preocupações maternais em relação aos perigos em que o filho incorria, ele olhou-a com ternura, acariciou-lhe a face e, mansamente, tranquilizou-a:

— Não te preocupes, minha querida. Quando começar a trabalhar terá de abrandar. Até lá, que se divirta e conheça o mundo que o rodeia.