10. LUÍSA

Após a fuga de Maria do colégio, descoberta apenas na manhã do dia seguinte, Luísa, a pequena órfã sua amiga, caíra numa profunda tristeza. As freiras procuravam consolá-la, redobrando com ela os cuidados que costumavam ter, muito em especial, para com as órfãs, e até madre Pia assumiu definitivamente a sua protecção. Luísa depressa recuperou, aplicando-se nas aulas e no trabalho oficinal de uma forma tal que passou a ter resultados notáveis.

A fuga de Maria afectara todas as religiosas mas, em particular, madre Pia. A notícia também fora recebida com grande consternação por padre Manuel que, de início, se recusou a aceitar a ideia de que a sua protegida não iria voltar. O tempo foi correndo… alguns anos passaram. Nunca mais ninguém teve notícias de Maria. Esfumara-se na nebulosidade do tempo e, aos poucos, passou a ser uma recordação dolorosa para todos e uma angústia que o tempo foi atenuando.

Luísa crescera entretanto e tornara-se numa jovem responsável, de educação apurada, pronta para enfrentar a vida dentro das modestas expectativas que a sua condição apontava. Fisicamente, tornara-se uma jovem bonita. De altura mediana pelos padrões das mulheres chinesas, era de uma beleza discreta. Nos traços do rosto eram vivas as evidências da mestiçagem habitual em Macau, resultante da procura de mulheres chinesas pelos portugueses ali residentes para encontros sem história e sem consequências. Era, em termos práticos, uma macaense e nessa condição não destoava de uma parte importante da população do Território. Depois de concluir os estudos até ao nível oficial máximo que o colégio podia leccionar, por lá continuou com a função de monitora em substituição de professores, nas aulas de catequese sempre que faltava o religioso responsável, e passou a ser também a organizadora de todas as festas previstas no calendário do colégio no âmbito do ensino.

Um dia, Luísa foi chamada ao gabinete de madre Pia. Não era habitual o chamamento, e no seu espírito cresceram as suspeitas de que estaria para breve uma alteração profunda na sua vida. Sabia que esse dia haveria de chegar. A sua presença ali ia para lá da lógica, que impõe a uma finalista a iniciativa de seguir em frente, procurar outro lugar na vida, enfrentar os desafios e os riscos que a aguardavam para além daqueles muros, despedir-se, finalmente, da protecção que eles lhe tinham proporcionado durante os anos da sua meninice e dos de uma infância que acabava ali.

Apresentou-se a madre Pia depois de uma noite mal dormida. A religiosa sorriu-lhe docemente, apontou-lhe a cadeira que tinha à frente da escrivaninha. Luísa sentou-se e sentiu-se, pela primeira vez em muito tempo, apoderada por um sentimento de angústia, visível no rosto pálido.

A madre abriu ainda mais o sorriso e tranquilizou-a. Ofereceu-lhe chá numa caneca fumegante, num gesto raro que reservava para os momentos solenes e para as visitas importantes. Luísa pensou nesse momento que estava longe de ser uma visita importante para madre Pia.

A religiosa deixou que ela se tranquilizasse. Olhava-a com doçura quando, finalmente, lhe disse:

— Luísa, está na altura de decidires o teu futuro! Para continuares connosco por muito mais tempo no convento, só como noviça. E eu sei que não é isso que tu queres…

Calou-se e esperou dela uma reacção que não veio. E continuou:

— Sabes que eu gosto muito de ti, não sabes?

— Sei, sim, minha madre! — respondeu-lhe Luísa num murmúrio.

— E tu sabes também que eu sei que não tens qualquer vocação para seguires a vida religiosa.

— Sim…

— E também sabes que eu nunca te deixaria sair daqui sem certezas, insegura, com destino incerto. Não sabes?

— Sim…

— Tu queres casar-te quando chegar esse momento, com um homem bom, que te proteja, que goste de ti, que te dê um lar, filhos…?

— Sim! — A palavra foi expelida do peito. Luísa endireitou-se na cadeira. Uma Luísa diferente tinha surgido repentinamente ante o olhar satisfeito da religiosa.

Animada com a reação dela, madre Pia continuou:

— Há uma oportunidade agora de iniciares esse processo. Acho que não a deves perder!

— Que oportunidade, minha madre?

— Há poucos dias recebi uma visita muito interessante, Luísa!

— Uma visita muito interessante, minha madre?

— Sim, muito interessante! Chegou-me por intermédio do senhor padre Manuel. E falámos de ti!

— De mim?

— Sim, de ti. Já ouviste falar da dona Josefina?

— Não, minha madre. Nunca ouvi.

— Mas ela já ouviu falar de ti!

Aguardou uns instantes que ela assimilasse o alcance daquela conversa. Não interrompeu o silêncio que se instalara entre elas. Vagueou o olhar pelo seu gabinete com um renovado interesse. Até que Luísa murmurou a pergunta seguinte:

— Quem é a dona Josefina, minha madre?

Madre Pia sorria de novo quando lhe respondeu:

— É uma das grandes benfeitoras da nossa Ordem. O marido é um homem muito poderoso em Macau. E é através do senhor padre Manuel que ela pratica actos de caridade. Mas o mais importante para este momento é que tu saibas que foi ela quem pagou, todos estes anos em que aqui estiveste a estudar e a viver. Mas não foi apenas em relação a ti que ela teve esse gesto. Muitas outras colegas tuas beneficiaram dessa generosidade durante anos.

Madre Pia deixou uma vez mais que as suas palavras produzissem efeito em Luísa. E, momentos depois, continuou:

— Pois bem! A dona Josefina sofre agora de graves problemas de saúde. Tem uma casa grande e netos ainda pequenos. Precisa de alguém da máxima confiança para tratar dos netos e para governar a casa.

Uma vez mais a religiosa quis ter a certeza do efeito das suas palavras e forçou uma nova pausa. Luísa deixou-se ficar em silêncio.

A madre retomou pouco depois o discurso:

— Foi exactamente neste ponto que eu pensei em ti. E o senhor padre também! Os dois ao mesmo tempo.

— Pensou em mim para ir trabalhar para a dona Josefina, minha madre?

— Sim, Luísa. Exactamente! Falámos de ti e a dona Josefina está à tua espera.

— Quer dizer que eu terei que abandonar o colégio ainda hoje, minha madre?

— Não! Não é assim que eu te deixarei ir, Luísa. Eu não te vou expulsar daqui e abandonar-te à tua sorte. O senhor padre Manuel e eu colocámos uma condição à dona Josefina, que ela aceitou imediatamente.

— Qual foi?

— Quando entrares em casa da dona Josefina serás sua afilhada e não uma mera governanta e perceptora dos seus netos. Foi essa a condição que nós lhe apresentámos.

— E ela aceitou?

— Sim! De imediato.

— E quando é que eu vou para casa dela?

— Irás com o senhor padre Manuel, que te vai entregar a ela. Será nesse momento que ela se vai tornar tua madrinha.

— Como, minha madre?!

— Com uma promessa que fará solenemente perante o senhor padre Manuel numa pequena cerimónia.

A face de Luísa desanuviara-se. Madre Pia via-lhe agora, num sorriso aberto, a determinação de partir o mais depressa possível.

— Prometes-me que te vais portar bem, Luísa?

— Prometo, minha madre. Prometo solenemente!

— Vou falar com o senhor padre para lhe dizer que estás pronta. Mando chamar-te mais tarde.

Luísa levantara-se à medida que a religiosa dizia estas últimas palavras. Aproximou-se dela, segurou-lhe a mão e beijou-a suavemente, dizendo:

— Dê-me a sua bênção!

— Que Deus te abençoe, minha filha!

No dia seguinte pelas dez horas Luísa chegava à residência de dona Josefina na companhia de padre Manuel. Eram aguardados pela dona da casa que os recebeu a sós numa saleta do rés-do-chão. Foi tudo muito rápido e quase informal não fosse o brevíssimo juramento da anfitriã em presença de uma bíblia que padre Manuel levara consigo.

Ainda nesse dia, Luísa seria apresentada a Miguel, o filho mais velho de dona Josefina e pai das crianças que lhe tinham sido entregues, imediatamente a seguir à partida do padre. Aparecera repentinamente na sala onde ela estava a ter com as crianças uma primeira conversa. Vinha acompanhado pela mãe e quase não lhe falou. Instantes depois retiravam-se mas a porta do compartimento ficara entreaberta. Luísa foi fechá-la ainda a tempo de ouvir a madrinha dizer ao filho, já na sala grande, para não se preocupar porque as crianças estavam em boas mãos: «Esta rapariga foi criada e estudou no Convento de Santa Clara, dirigido pelas irmãs Clarissas. Foi-me recomendada por padre Manuel e madre Pia, que a abonaram com palavras elogiosas sobre as suas qualidades e o seu carácter. Ambos a conhecem desde criança. Foi sempre uma aluna brilhante e de comportamento exemplar. O empenho deles na vinda dela foi tão grande, Miguel! E, no entanto, só a deixaram vir na condição de a aceitar como minha afilhada!»

Ainda à porta, Luísa seguira a conversa entre mãe e filho, resistindo ao impulso de a fechar. Mas sentiu-se estranhamente feliz, sem saber bem porquê, quando ouviu a única frase que ele pronunciou: «Gostei dela, mãe!»

As tarefas de Luísa eram múltiplas, mas ela desempenhava-as com esmero e eficiência. De manhã, preparava as meninas para serem conduzidas pelo motorista ao Colégio de Santa Rosa de Lima. Durante o resto da manhã ocupava-se com a supervisão das duas criadas e da cozinheira, e com a assistência a dona Josefina nas suas diversas ocupações. À tarde, quando as crianças regressavam do colégio, ficava com elas enquanto faziam as tarefas escolares. Supervisionava as suas refeições e tempos livres, tal e qual o faria uma mãe.

Naquela manhã, a pedido de dona Josefina, fora excepcionalmente levar o pequeno-almoço a Manuel, na ausência de uma das criadas chinesas. Depois, dirigira-se à estufa, onde dona Josefina estava já ocupada com as suas plantas.

Manuel apareceu pouco depois, para se despedir da mãe antes de sair.

— Bom dia, mãe! De volta das suas orquídeas? Estão muito bonitas, parabéns! — Beijou-a carinhosamente na face.

— Bom dia, meu filho! Ontem chegou tardíssimo… eu ouvi-o, porque ainda não estava a dormir, estas minhas insónias estão cada vez piores! Estava mesmo agora a dizer à Luísa para telefonar para o consultório do doutor Xavier para ele me observar esta tarde. O menino não quer acompanhar-me?

— Oh, mãe, lamento, mas esta tarde já tenho um compromisso! Não tem mais ninguém que a possa acompanhar?

— Sim, meu filho! A Luísa poderá ir comigo. Não se preocupe.

Manuel lançou um breve olhar à jovem que segurava os utensílios de jardinagem. Fora-lhe apresentada como afilhada de sua mãe, mas mal a cumprimentara. Também mal olhara para ela, quando nessa manhã lhe fora servir o pequeno-almoço. Para ele, era mais uma das serviçais, uma chinesa vulgar e deslavada. Não era, definitivamente, o tipo de rapariga para quem olharia duas vezes.

Luísa sentira um certo desapontamento com a indiferença dele. Aquele jovem, bonito e bem-parecido, cativara-a, estranhamente, mas a maneira fria com que ele a olhava fizera-a voltar à realidade — ali, o seu lugar era o de servir. Estava muito abaixo dos padrões de raparigas que interessavam àquele rapaz.