12. UMA CERTA PEI-PA-CHAI
— Onde poderei encontrar Mei Lin?
A pergunta era dirigida a uma prostituta da «casa das flores» onde falara pela primeira vez com madame Li Wei. Manuel voltara ali com o intuito de confrontar a madame com o facto de nunca mais o ter mandado avisar do regresso de Mei Lin, mas informaram-no de que nem Li Wei nem Mei Lin trabalhavam naquela casa e que ele não era mais bem-vindo ali. Interpelara então uma das raparigas de um grupo que se encontrava na entrada fumando e conversando. Era muito jovem, talvez com quinze anos. Ela olhou-o com ar profissional e sorriu-lhe languidamente, mostrando-lhe os seios ainda mal formados.
— Para que quer a Mei Lin se estou aqui eu?
— Eu quero apenas falar com ela. Não quero mais nada. Mas agradeço-te a oferta. Sabes dizer-me onde a poderei encontrar? — insistiu Manuel, acenando-lhe com uma nota de cinquenta dólares de Hong Kong.
A prostituta já tinha percebido que dali nada mais levaria. Teria agora que merecer aquela nota que lhe via na mão e que valia mais do que o triplo do que qualquer homem lhe pagava por uma noite inteira de serviço.
— Conhece aquele hotel pequeno na Rua dos Mercadores? Fica no número dez. A Mei Lin deve lá estar! — respondeu, estendendo a mão para receber o dinheiro.
Manuel procurou o número indicado. O edifício amarelo, de dois pisos, parecia mais uma hospedaria ou um fumatório do que um hotel. Passou pelo chinês da recepção sem lhe dizer uma palavra e subiu o lance de escadas. Um único corredor comprido, com portas de um lado e de outro, ia desembocar numa espécie de varandim aberto sobre a rua. A luz era fraca, mas quando se aproximou do varandim, viu a rapariga, encostada de costas para a rua, a fumar um cigarro. Vestia uma cabaia curta, de seda verde jade, e calçava meias cor-de-rosa. Tinha o cabelo negro, solto sobre os ombros, e pouca maquilhagem. Parecia muito mais nova do que quando a vira pela primeira vez no Hotel Central. Quando Manuel se aproximou, ela encarou-o com ar interrogativo, à espera de que ele fosse o primeiro a falar.
— Mei Lin?
Ela olhou-o com surpresa.
— Como sabe o meu nome?
— Uns amigos falaram-me de si. Já nos tínhamos cruzado, mas ainda não tinha tido a oportunidade de lhe falar. — Manuel estava nervoso, parecia um rapazinho no seu primeiro encontro.
Ela apagou o cigarro e desencostou-se do varandim.
Passou por ele roçando-o com força. Ele sentiu o aroma a sândalo e jasmim do perfume dela.
— Quer ir para o quarto? Estou livre. Neste momento não tenho compromissos…
— Não! Eu quero encontrar-me consigo noutro lugar, não aqui.
— Mas é este o meu lugar…
— Eu sei. Mas quero encontrar-me consigo noutro lugar! — insistiu ele. — E não quero quarto nenhum! Quero conversar consigo, apenas isso!
— E quanto é que me paga?
— Pago-lhe aquilo que me pedir. Mas não quero quarto nenhum! — repetiu Manuel.
— Está bem, porque não? Diga-me quando e onde.
— Pode ser já esta noite, no Hotel Central?
Mei Lin ficou pensativa durante uns instantes e ele receou que ela se mostrasse indisponível. Qual é o homem que se quer encontrar com uma prostituta bonita apenas para conversar?! A resposta dela chegou na forma de pergunta:
— Às sete horas, no bar do hotel?
Às sete horas, em ponto, Manuel atravessava o átrio do Hotel Central. Instalou-se no bar, de onde podia observar o átrio e quem chegava. Queria assistir à entrada, certamente triunfal, de Mei Lin e à admiração que ela provocaria nos homens. O relógio marcava trinta minutos depois das sete, quando a viu passar pela porta giratória. Parou uns instantes a tentar localizá-lo e quando o viu no bar, dirigiu-se para lá. Estava linda, com uma maquilhagem natural, o cabelo solto sobre os ombros, como a vira nessa tarde. Vestia uma cabaia longa em seda negra com motivos florais dourados, discreta no corte, de manga comprida larga, e apertada no pescoço. Não era, decididamente, a imagem de uma pei-pa-chai. Mesmo assim, não passou despercebida aos olhares masculinos. Manuel levantou-se para a cumprimentar. E naquele instante, vendo-a aproximar-se, deu-se conta de que à vista daquela mulher nenhum homem conseguiria resistir ao encanto que se desprendia dela, ao poder daquele olhar meigo, à sua arte de sedução levada a um refinamento e graciosidade inexcedíveis.
— Olá! — Mei Lin deu-lhe um afectuoso beijo na face, como se cumprimentasse um velho amigo.
— Olá, Mei Lin, desde esta tarde!
Manuel achou extraordinário o facto de já se sentir completamente à-vontade na sua presença, como se se conhecessem desde sempre. Porém, manteve um ar cerimonioso, como convinha num primeiro encontro.
— Tomamos aqui uma bebida ou passamos já ao restaurante? Reservei mesa!
A resposta dela desarmou-o.
— Vamos directos ao restaurante! Estou faminta!
Já instalados no Golden Jade, e depois de encomendarem a refeição, Manuel procurou saber mais sobre ela.
— Nasceu em Macau?
— Sim, aqui mesmo!
— E tem cá família, pais?
Uma sombra perpassou pelo olhar dela.
— Eu sou órfã. Não conheci os meus pais.
Mei Lin recordava o que a mãe adoptiva, Liang Lin, lhe contara sobre as circunstâncias do seu nascimento. Com imaginação e fantasia ela criava a sua própria versão.
— Eu sou filha do vento porque A-Má, a deusa dos Céus e protectora dos navegantes, me deixou à porta da Igreja de São Lourenço, no dia em que nasci. A Igreja de São Lourenço é a Igreja da Fé no Vento. Quem sabe, talvez eu fosse filha de piratas!
— Filha de piratas? — Manuel esboçou um sorriso misto de surpresa e divertimento. — Porquê?!
Ela tinha um ar perdido quando lhe respondeu.
— No dia em que eu nasci, dizem que houve um terrível tufão! Um junco de piratas afundou-se e eu fui salva por A-Má, que me trouxe para terra… Por isso eu vou sempre ao Templo da Barra queimar pivetes e tenho no meu quarto um pequeno altar dedicado a A-Má.
— E se os seus pais fossem simples pescadores?…
— Não, porque eu herdei a coragem, a astúcia, o espírito combativo dos piratas! E só os piratas são assim!
— Então, e depois de aparecer na Igreja de São Lourenço, o que é que lhe aconteceu? — perguntou ele.
— Fui criada por uma amah que trabalhava para o pároco da igreja e, quando fiz cinco anos, fui para a Santa Infância e depois para o Acolhimento da Beneficência de Santa Clara.
— Educada num convento de freiras?! Não acredito! — Manuel estava perplexo. — Se foi educada pelas freiras, certamente é cristã. Como é que também venera e acende pivetes à deusa A-Má?
— Eu sou cristã, até recebi no baptismo o nome de Maria. Mas também acredito no budismo e no taoismo, cujos deuses me dão mais respostas do que os santos e santas da Santa Madre Igreja! E de Deus nunca tive o mais leve sinal de que Ele saiba da minha humilde existência.
— E o que a levou a enveredar por esta vida de… cantadeira? Certamente tinha qualidades para desempenhar outro trabalho.
Mei Lin não viu naquela pausa qualquer sinal de ironia.
— Ah, isso é uma longa estória… Mas eu gosto de ser uma pei-pa-chai!
A comida chegou e Mei Lin achou que o assunto se esgotara. Pegou nos fai-tchi e começou a comer com grande apetite. Manuel olhava-a fascinado. Parecia uma garota travessa. Se não soubesse, dificilmente acreditaria na sua verdadeira profissão.
— Agora, é a sua vez! Conte-me tudo sobre si. Nasceu em Macau?
Manuel percebeu que ela não queria voltar a falar de si e decidiu não insistir.
— Sim, nasci em Macau. Aqui passei a infância e parte da adolescência. Fui para Portugal estudar. Regressei há pouco tempo.
— E vai cá ficar a trabalhar, ou volta para Portugal?
— Não, agora fico por cá. A minha família é de Macau e vou trabalhar com meu pai e meu irmão, na firma de advogados.
— Ah, um advogado! Já conheci alguns…
Ele não quis saber que advogados conhecera ela e manteve-se em silêncio.
— E a sua família? Tem mais irmãos?
— Sim, tenho um irmão mais velho, o Miguel, que vive lá em casa com as duas filhas. Divorciou-se! Além dele, vivemos lá eu, os meus pais e uma afilhada de minha mãe, que é também a perceptora das crianças. E também duas avós e um tio, irmão de minha mãe. Um dia vai conhecer a minha casa!
— Oh, não pense nisso! Eu não sou o género de rapariga que se leve a casa da família!
Manuel detectou uma ponta de amargura na sua voz. Mas ela logo se recompôs. Acabaram a refeição e foram sentar-se no lounge do hotel, num recanto afastado da porta principal. Ela pediu um chá e ele um digestivo. A conversa continuou, noite adentro, e Manuel estava surpreendido com Mei Lin e com a sua versatilidade. Discorria sobre vários assuntos, desde cultura, teatro, música e cinema à política local, citava frequentemente Confúcio e contava divertidas estórias sobre o seu trabalho com pei-pa-chai, revelando uma surpreendente capacidade de autocrítica.
«Que mulher interessante!», pensava ele. Estranhamente, ia-se sentindo cada vez mais atraído por ela. E aquela atracção que o levara até ali ganhava agora a forma de uma paixão inesperada, mais serena e determinada. Absteve-se de qualquer avanço sexual nessa noite. Deixara de ser esse o seu objectivo imediato, apesar da intensidade do desejo que o assaltava perante a sua beleza exótica, a graciosidade das formas na exuberância que lhes adivinhava numa nudez que queria que chegasse apenas no momento certo. «Não a quero apenas por uma noite!», pensou.