13. A FÉNIX RENASCIDA
Dois meses depois destes acontecimentos Manuel Lobo Vicente assentou com o pai o início da sua actividade como advogado. Naquela manhã, entraram os dois no escritório da Praia Grande e Manuel foi formalmente apresentado aos sócios e aos empregados na sua nova qualidade de sócio. Ali entrara inúmeras vezes como filho do doutor António Lobo Vicente. Conhecia todos eles e todos eles o conheciam. As formalidades legais tiveram lugar nessa tarde e os detalhes orgânicos da firma foram sendo ultimados nos dias seguintes. À noite teve lugar um jantar em casa dos Lobo Vicente. Convidadas seriam as pessoas mais chegadas e algumas figuras importantes do Território, entre elas macaenses, chineses e portugueses.
Conhecia a lista de convidados para aquele jantar porque a mãe quisera que ele dela tomasse conhecimento com antecedência. Conversaram sobre alguns deles e os motivos que levavam a que recebessem um convite para aquele jantar. A Manuel pareceu tudo muito bem pensado, mas ficou surpreendido com a presença de um deles, um homem chamado Lou Yo Vo. A mãe explicou-lhe que se tratava de um velho amigo do pai, um banqueiro influente em Macau, Lisboa, Londres e, sobretudo, Hong Kong, onde a sua actividade bancária tinha maior peso, pois detinha dois dos maiores bancos daquele território sob administração inglesa. E, no entanto, uma figura parda raramente avistada em público. Vivia uma parte do tempo na Europa e nos Estados Unidos, passava em Macau alguns dias por ano e tinha a sua residência formal no território de Hong Kong. Houvera um tempo em que as autoridades dos dois territórios suspeitavam das suas relações com individualidades ligadas às tríades do contrabando do ouro e dos diamantes, mas nunca tais suspeitas se confirmaram para alívio de certos círculos políticos em vários países do Extremo Oriente.
Manuel anotou mentalmente que tinha de se avistar em privado com Lou Yo Vo. Ninguém melhor do que ele para o aconselhar sobre problemas com tríades. Não voltara a estar com Mei Lin depois do encontro de ambos no Hotel Central. De certa forma perdera-lhe o rasto. O início da actividade profissional exigira dele uma maior concentração, mas não desistira do seu propósito de a conquistar.
Dois dias depois do memorável jantar em sua casa, Manuel dirigiu-se directamente ao banco de Lou Yo Vo em Macau, o Seng Iu Bank, situado na Avenida da República, não muito longe do seu escritório. Fez-se anunciar a uma recepcionista que imediatamente o conduziu ao último piso do edifício. Sem que tivesse de esperar, um assessor do banqueiro introduziu-o num pequeno gabinete mobilado com elegância. Numa das paredes apaineladas pôde admirar um imenso aquário com peixes raros. Poucos minutos depois foi o próprio Lou Yo Vo quem o veio buscar para o levar para o seu gabinete. Era um homem alto para os padrões chineses, e teria passado há muito dos sessenta anos. Não fossem as feições asiáticas que denunciavam a sua origem, estava definitivamente na presença de um homem educado na Europa, seguramente em Inglaterra, provavelmente num colégio cheio de história. Lou Yo Vo indicou-lhe uma poltrona e sentou-se imediatamente na outra em frente dele. Desabotoou o casaco, inclinou-se ligeiramente para a frente e perguntou-lhe num inglês com sotaque americano:
— Em que é que eu posso ajudá-lo hoje, meu querido amigo?
Manuel explicou-lhe o encontro que tivera no Hotel Kwoc Chai com o homem que o ameaçara quando ali procurara uma certa pei-pa-chai. A fisionomia do banqueiro não se alterou em nenhum momento durante a narrativa. Impassível, como se estivesse só, ergueu-se com surpreendente agilidade, afastou-se em direcção à ampla secretária e sorveu o líquido de uma caneca de porcelana como se estivesse a morrer de sede. Sem nada oferecer ao visitante, regressou depois ao seu lugar, acomodou-se, cruzou as pernas e recostou-se no espaldar almofadado quase como se se preparasse para uma soneca aligeirada. Manuel julgou ver-lhe no rosto macilento e imberbe a sombra de um sorriso trocista.
O relato já ia longo, mas Manuel julgava que seriam necessários todos os detalhes para que o outro percebesse a importância do assunto. No entanto, o banqueiro interrompeu-o pouco depois, abruptamente e com uma certa deselegância. O sorriso trocista era agora visível no rosto do chinês. E nesse momento de uma pausa incómoda em que ambos se entreolhavam sem palavras, Manuel foi assaltado por uma pergunta a que não saberia responder naquele instante mas que o tempo acabaria por fazer: «Quem é, afinal, Lou Yo Vo?»
Havia agora no semblante do chinês um ar de estranha complacência. E sorria bondosamente para o visitante. Manuel sentia-se perplexo com a sua reacção ao relato que lhe fizera. Transmitira-lhe, sobretudo, a ideia de que o seu interesse em Mei Lin estava muito para além de um vulgar flirt.
O banqueiro ergueu-se do cadeirão uma vez mais. Dirigiu-se a uma das paredes do imenso gabinete, revestida por painéis negros de vidro fosco de alto abaixo, movendo um deles ao toque imperceptível de um dedo e revelando uma garrafeira que qualquer barman ambicionaria. Verteu uma dose parcimoniosa de whisky para dois copos e ofereceu um deles ao visitante, o qual se mantinha perplexo perante a atitude enigmática do banqueiro. Em voz pausada, num português surpreendente, Lou Yo Vo disse-lhe:
— O seu assunto está tratado. Não se preocupe mais com as tríades, as ameaças, as vigilâncias e com as sombras da noite. Pode procurar essa rapariga quando quiser! Ela chama-se Mei Lin? A sua Mei Lin está livre de todas a servidões.
Lou Yo Vo ergueu o copo, aguardou que Manuel lhe repetisse o gesto, e brindou:
— À sua saúde!
Manuel, de forma pouco convencida, repetiu:
— À sua… e obrigado! Mas eu não compreendi muito bem o que aqui se passou…
— Deixe lá isso! O que importa, nesta vida, é o resultado das batalhas. As armas que usamos pouco contam para o balanço final. — O banqueiro fez uma pausa no discurso pomposo e logo a seguir acrescentou com ênfase desusado: — Fica a dever-me um favor, não se esqueça! E lembre-se de que na China há favores sagrados que são dívidas de sangue que, frequentemente, nem a morte é suficiente para saldar.
Na mão que o banqueiro lhe estendia Manuel teve a maior surpresa da sua vida. Era o maço de notas rasgadas, o mesmo que oferecera a Li Wei dois meses antes, o mesmíssimo que tentara entregar-lhe o tríade ameaçador naquela noite, mas agora salpicado de um sangue coagulado e enegrecido pelo tempo decorrido. Se tivesse de apostar, diria que aquelas gotas de sangue que manchavam as notas pertenciam à malograda Li Wei.
Manuel foi conduzido ao átrio principal do banco por uma hospedeira bonita, uniformizada num fato masculino, camisa branca e gravata vermelha, sapatos altos elegantes. Antes de regressar ao interior do edifício desenhou com o corpo uma graciosa vénia de despedida.
Manuel entrou no carro e foi nesse momento que caiu em si, digerindo a espantosa entrevista que acabara de ter com Lou Yo Vo. Afinal, seria ele o amante secreto de Mei Lin naquela noite? Seria por ele a guarda feroz que faziam naquele hotel os tenebrosos e invisíveis elementos das tríades? Compreendia agora a estranha tranquilidade e segurança que rodeava a sua família num lugar de conflitos e ajustes sangrentos e silenciosos como era aquela Macau onde nascera. Que mais haveria ainda por descobrir dos mistérios daquela terra que o tocavam de perto e tão inconscientemente?
Mas agora tinha pela frente mais uma tarefa complicada: a de localizar Mei Lin! Por onde andaria ela?
Ah Hon, o velho motorista de seu pai havia mais de vinte anos, segurança fiável e bem preparado a quem o velho advogado confiaria a família cegamente, com um passado suspeito e misterioso mas do inteiro conhecimento do patrão, foi a quem o jovem recorreu para localizar Mei Lin. Informado de que ela já não se encontrava na «casa das flores» da Rua da Felicidade, e sem pistas cabais, achava que deveria começar pelo fim, pelo Hotel Kwoc Chai, onde a vira pela segunda vez. Mas esperava que Ah Hon lhe trouxesse uma pista mais sólida. O motorista pedira-lhe umas horas e Manuel esperou que elas se esgotassem para seguir as indicações que dele lhe chegassem.
Na tarde do mesmo dia, Ah Hon veio falar-lhe. Abordara certos amigos bem informados e tudo indicava claramente que Mei Lin vivia agora no Hotel Kwoc Chai.
Mas a parte mais surpreendente da conversa que teve com o motorista foi a informação que ele trouxe desses misteriosos contactos.
— A rapariga chinesa que o menino procura é uma prostituta que só homens muito ricos podem pagar…
Manuel olhou-o com surpresa e respondeu:
— Até aí sei eu…
— E sabe que ela tem ultimamente um amante chinês que comanda uma tríade?
— Já me tinham avisado. E sabes o nome desse homem?
Ah Hon inclinou-se mais para ele e segredou-lhe:
— Wang. É o homem que comanda a tríade mais importante de Macau.
Manuel confiara a Ah Won o episódio passado com o membro da tríade, por isso, o motorista insistiu em acompanhá-lo, mas Manuel recusou, firme na decisão de ir só. E pensou que aquela corrente que o levaria a Mei Lin era, afinal, muito mais extensa do que inicialmente imaginara.
Anoitecia quando se pôs a caminho do hotel. Poucos minutos depois dirigia-se à recepção.
— Creio que a menina Mei Lin está aqui hospedada. Quero falar-lhe!
Manuel reparou no olhar interrogativo que o recepcionista dirigiu a um colega mais velho e no discreto assentimento deste a uma pergunta que apenas o olhar fazia. O jovem mostrou-se imediatamente solícito e confirmou que Mei Lin se encontrava lá hospedada.
— Ela está no hotel?
A informação chegou momentos depois. Estava no hotel.
— Pretendo falar-lhe — disse Manuel ao recepcionista, entregando-lhe um cartão-de-visita. — Pergunte à menina Mei Lin se estará disponível e se prefere que eu suba ou encontrar-se comigo no bar do hotel.
— A menina Mei Lin diz que estará no bar dentro de dez minutos e que o procura lá.
No quarto, após receber o telefonema da recepção sobre a presença de Manuel no hotel, Mei Lin sorria, enquanto se preparava para descer ao seu encontro. E, ao mesmo tempo, sentia-se perplexa com a insistência daquele homem em encontrar-se com ela mais uma vez. Soubera depois daquele encontro inicial quem era Manuel Lobo Vicente. Chegaram-lhe recados de várias pessoas sobre os esforços que ele fizera para a localizar. Soubera da morte bárbara de madame Li Wei, uma das pessoas que lhe falara dele, da sua substituição por uma outra madame de quem nunca ouvira falar e do recado que Manuel recebera para não voltar à casa da Rua da Felicidade. Relacionava tudo isso com o interesse do amante em mantê-la em exclusivo ao seu serviço, tanto mais que este a informara secamente de que a comprara por um preço absurdo aos novos proprietários do bordel onde trabalhara. Proibira-a de estar com outros homens daí em diante. Passaria a viver naquela suite do hotel. Mei Lin sentia-se, pela primeira vez na sua vida, prisioneira de um homem misterioso, certamente muito rico e poderoso, possessivo e irascível, que a controlava de perto e a fazia sentir-se a escrava sexual que nunca fora de ninguém. E, de alguma forma, percebia a relação entre todos estes pensamentos. Estava consciente, acima de tudo, de que o homem que servia seria impiedoso se ela o atraiçoasse. Dele sabia apenas o seu nome: Wang.
Sobre a cómoda onde dava ao rosto naquele momento os últimos retoques na maquilhagem habitual, estava uma requintada folha de papel de linho, sem timbre, que lhe chegara às mãos algumas horas antes, entregue pelo próprio director do hotel num gesto que lhe emprestava a autenticidade que a falta de uma assinatura lhe roubava, com uma simples frase redigida em inglês numa letra elegante, a tinta preta: «Está livre para seguir a sua vida. Não voltará a encontrar-se com o senhor Wang. Boa sorte!» Com a carta chegara também um espesso envelope de papel pardo contendo um volumoso maço de notas de Hong Kong, a maior quantidade de dinheiro que Mei Lin alguma vez vira, na vida… e o seu contrato de meretriz, que ditara toda a sua existência na «casa das flores»!
Acabou de se arranjar e maquilhar e desceu ao átrio, dirigindo-se ao bar quase deserto àquela hora.
Manuel escolhera uma mesa no interior do bar. O barman veio atendê-lo, mas ele nada pediu. Acendeu um cigarro e recordou aquele dia, dois meses antes, em que conhecera Mei Lin. Parecia-lhe que tinha passado sobre esse dia uma eternidade!
Despertou dos seus pensamentos quando viu Mei Lin aproximar-se. Estava agora à sua frente. Sorria-lhe ao ver que o surpreendera. Ele levantou-se, convidou-a a sentar-se e fez um sinal ao barman atento, que se aproximou. Pediram as bebidas e nenhum deles falou enquanto não chegavam.
— Estava em pensamentos profundos! — observou ela.
— Sim, é verdade! Estava a lembrar-me da tarde em que a conheci.
— E jantámos no Hotel Central, lembra-se?
— Claro que me lembro!
— Não me conheceu, na verdade. Foi uma noite estranha para mim. Foi o primeiro cliente que não quis dormir comigo! E eu estava à sua disposição. Em boa verdade, até me apetecia estar consigo. Não sei se isso me envaidece ou se entristece. De qualquer forma, já passou.
— E agora, ainda lhe apetece?
— Apetece-me sempre. E, neste momento, apetece-me muito estar consigo!
Manuel lembrava-se daquela noite mágica em que ficara fascinado com a versatilidade dela, simultaneamente ingénua sedutora.
Subitamente, ele propôs-lhe que jantassem. Ela aceitou sem hesitação.
— Em privado? — voltou ele a perguntar-lhe.
— Em privado! — concordou ela imediatamente.
— Vou tratar disso. Não me demoro. Não desapareça!
Mei Lin viu-o afastar-se e pensou que, afinal, desta vez haveria mais qualquer coisa do que uma simples conversa. Cinco minutos depois Manuel regressava.
— Podemos subir quando quisermos. Dentro de uma hora estaremos a jantar. Acha bem?
— Acho lindamente!
Ao entrarem na suite todas as luzes se acenderam automaticamente. E agora, sob uma iluminação diferente da do bar, ele pode olhá-la em toda a sua exótica beleza. O seu rosto parecia o de uma boneca de porcelana chinesa, de faces rosadas e boca de carmim. O cheongsam vermelho, curto, evidenciava todas as formas do seu corpo elegante e provocante. Tinha o cabelo negro de azeviche, brilhante e sedoso, apanhado ao alto com um alfinete de jade, deixando ver o pescoço esguio e elegante.
Sentaram-se na cama imensa como se a experimentassem e riram-se um para o outro. Manuel preparava-se para quebrar o silêncio quando ela se ajoelhou à sua frente e colou os lábios aos dele, num beijo demorado. Manuel sentiu-lhe a língua procurando a sua e correspondeu. Uma torrente de emoções invadiu-o como uma descarga eléctrica. Pela sua vida amorosa haviam já passado algumas mulheres, com as quais tivera experiências mais ou menos duradouras. Não se lembrava de uma única vez ter sentido o que sentia naquele instante. Ergueram-se, sempre enlaçados, no beijo interminável. Afastaram-se finalmente para se desfazerem da roupa. Havia neles uma urgência nova, inesperada, nas carícias, na posse recíproca, na fusão dos corpos, na contemplação das formas. Manuel elevou-a nos braços até junto da cama. Abriu os botões do cheongsam, pondo a descoberto o colo firme e arfante. Manuel sentiu o desejo crescer e viu no olhar dela a súplica e a urgência de uma entrega que não poderia esperar nem mais um instante. Amaram-se durante toda a noite como se cada vez fosse a última. Ela sentiu, finalmente, a paixão assoladora, o ímpeto da entrega, o prazer último e derradeiro de um acto que nunca antes experimentara como prostituta. E durante essa noite mágica não foi a pei-pa-chai de um encontro pago, de orgasmos fabricados ao ritmo das horas, da espera sonolenta e cansada pelos rubores e humores de parceiros inusitados e ocasionais. Tomava agora consciência da sua capacidade de amar e de ser uma mulher amada para além daquilo que o seu corpo lhe oferecia. Olhara pelo espelho do toucador, enquanto ele dormitava, durante muito tempo, aquela estranha mulher que tinha à sua frente, belíssima numa nudez nova, sorridente com uma felicidade desconhecida, poderosa na consciência que a iluminava na certeza de que tudo na sua vida seria diferente a partir daquela noite. E queria ter a certeza de que nada do que ali se passara seria mais tarde recordado como um sonho que se desfaz ao romper da madrugada.
A manhã ia já longa quando Manuel acordou. Olhou Mei Lin demoradamente, em silêncio, adormecida de novo a seu lado, indefesa e frágil na sua belíssima nudez. Sentiu uma tremenda dificuldade em dominar a onda de emoções que o invadia naquele momento. Nascia nele um sentimento que nunca nenhuma outra mulher lhe despertara.
Acariciou-lhe os seios, e beijou-os ao de leve na esperança de que ela despertasse pronta e solícita. Amaram-se mais uma vez e uma vez mais sem pausas, entregues a si próprios na solidão daquela intimidade inexcedível, sôfregos um do outro, fundidos num só e abraçados muito para além do último clímax.
Foi ele quem falou primeiro.
— Quero que cases comigo hoje. Quando voltarmos a amar-nos, mais logo à noite, seremos marido e mulher, unidos pelo casamento.
Mei Lin e Manuel casaram nessa tarde, numa cerimónia civil. Depois, a pedido dela, foram ao Templo da Barra, onde um monge budista incensou a sua união em frente ao altar dedicado a A-Má.
Para trás, ficaria a folha do seu contrato de meretriz que levara consigo para queimar na chama de uma vela. Era como se estivesse a exorcizar pelo fogo o seu passado. Ressurgiria das cinzas, qual fénix renascida!