14. DONA JOSEFINA

Manuel levou Mei Lin para sua casa, na Penha, ao fim da tarde do dia a seguir ao casamento. As cores alaranjadas do ocaso reflectiam-se nas águas espelhadas da baía da Praia Grande. Sampanas e juncos de velas nervuradas salpicavam o mar, regressando da sua faina diária, recolhendo-se à sombra protectora do Porto Interior.

Ia preparado para o choque que aguardava a família. Depois de ter dito a sua mãe que não estava preparado para um casamento, aparecer subitamente com uma esposa chinesa com um passado de prostituta seria, no mínimo, como trazer para casa uma tempestade tropical de último grau!

Fez algumas recomendações a Mei Lin, preparando-a para o que iria enfrentar.

— Meus pais, especialmente minha mãe, são muito tradicionais. Até hoje, só minha bisavó Edith, avó de meu pai, foi filha de um casamento misto: a mãe era chinesa, de Hong Kong, e o pai inglês. Mas acho que foi uma grande estória de amor e foi através dela que o sangue chinês entrou na nossa família. Nunca houve mais nenhum membro dos Lobo Vicente que tivesse casado com alguém de etnia chinesa. Eu serei o primeiro depois dela!

— Mas isso quer dizer que teus pais não aceitam alguém da minha etnia na família? — Mei Lin mostrava-se apreensiva.

— É mais ou menos isso! Acham que é uma mestiçagem degradante do sangue português de que a família tem tanto orgulho. Conto-te isto para estares preparada porque vais sentir algum desconforto de início. Mas eu estou convencido de que, quando tiverem oportunidade de te conhecer melhor, te vão aceitar de braços abertos!

— Não seria melhor preparares primeiro a tua família para me apresentares mais tarde? — Havia um certo receio na voz dela.

— Confia em mim! — Manuel passou-lhe o braço sobre os ombros, numa atitude protectora. — Além disso, eu estarei sempre a teu lado!

Saíram do automóvel defronte do grande portão de entrada. Manuel recolheu a pouca bagagem de Mei Lin. Ele pedira-lhe para abandonar no hotel toda a sua roupa de trabalho, recolhendo apenas o que fosse realmente necessário, prometendo-lhe para breve uma ida a Hong Kong para renovar o guarda-roupa.

Mei Lin envergava o tailleur cinzento com que ele a vira no Hotel Kwoc Chai. Era o único fato europeu que possuía. O seu vestuário habitual eram os cheongsams coloridos. Apesar disso, estava elegante e o cabelo apanhado com sobriedade num totó, fazia-a parecer mais velha. Mentalmente, dirigiu uma prece à deusa A-Má, a sua protectora, para que a guiasse na sua nova vida e para que a nova família a aceitasse.

Entraram em casa e a primeira pessoa que encontraram foi Luísa, que acabara de dar o jantar às crianças. Não pareceu reconhecer Mei Lin. Afinal, haviam passado alguns anos desde a última vez que se tinham visto. Muita coisa mudara em Mei Lin, estava mais adulta, crescera à força. Em vez dos seus dezassete anos, aparentava muitos mais. Em boa verdade, cada ano que ela vivera valia bem por três ou quatro.

Mei Lin, pelo contrário, reconheceu imediatamente a amiga e ex-colega. A custo conteve uma exclamação de surpresa. Nunca pensara ir encontrar Luísa, logo ali, naquela casa. Seria um sinal do destino?

— Luísa, sabe onde está a minha mãe? O meu pai já chegou?

— Não, doutor Manuel! Telefonou a dizer que vinha mais tarde. E a senhora dona Josefina está na saleta do primeiro andar.

— Está bem! Nós vamos ter com ela. Peça a alguém que nos leve um chá daqui a uns minutos.

Mei Lin, ainda abalada por reencontrar Luísa, deixou-se conduzir por ele. Estava ansiosa e, sobretudo, nervosa, por causa do encontro iminente com a sogra.

Dona Josefina chegou pouco depois de se ausentar, momentaneamente, à sala aconchegada onde passava uma boa parte dos seus dias, normalmente a sós. Fez uma festa ao filho que não via há dois dias e olhou interrogativamente para Mei Lin, com o semblante subitamente fechado. Manuel observou a mãe longamente, aproximou-se dela ainda mais e segurou-lhe a mão.

— Mãe, peço-lhe que receba aqui, em nossa casa mas, acima de tudo, no seu coração, minha mulher! — E apressou-se a acrescentar: — Casámos ontem numa curta cerimónia no Registo Civil.

O rosto da velha senhora empalideceu. E durante muito tempo ouviu-se na pequena sala um silêncio tenso e ensurdecedor. Manuel manteve-se sereno perante a reacção da mãe, sem sequer tentar atenuar o efeito da declaração que acabara de fazer. A sua atenção concentrava-se na mulher — para ele, seguramente, a pessoa mais necessitada do seu apoio perante a tempestade que se avizinhava. Luísa chegava nesse momento com o chá e pediu-lhe que trouxesse um copo de água morna para a mãe.

Mei Lin mantinha-se em silêncio, apegando-se com força ao braço do marido. Luísa voltou com a água e chegou-a aos lábios da madrinha que, lentamente, se recobrava do abalo causado pela declaração do filho. O ambiente tenso mantinha-se. As faces da progenitora iam ganhando cor e muito rapidamente passaram a um rosado vivo, um sinal de que deixara de estar bem com o mundo e se preparava para uma batalha violenta. Abriu os olhos lentamente, fixando-os na recém-chegada. Endireitou-se na cadeira e manteve-se em silêncio. Manuel não tentou amenizar o ambiente. Deixou-se ficar junto a Mei Lin, indiferente à reacção da mãe. Qualquer cedência que lhe fizesse naquele momento torná-la-ia mais forte e menos tolerante. Queria mostrar-lhe que estava determinado, definitivamente, em que ela aceitasse sua mulher como parte integrante da família.

Dona Josefina manteve-se em silêncio durante mais algum tempo, fixando um ponto imaginário entre o filho e a intrusa, mergulhada nos seus pensamentos, ostensivamente indiferente à presença deles. Havia sido, sem dúvida, um enorme choque! Algum tempo antes, em conversa, o filho dissera-lhe que não pensava tão cedo em casamento. E agora, como que num passe de magia negra, aparecia-lhe com uma esposa chinesa, sabia-se lá saída de onde!

«Isto só pode ser um pesadelo! Eu vou acordar e não está aqui ninguém…» Fechou os olhos e voltou a abri-los. E lá estavam eles, Manuel de braço dado com a mulher chinesa, numa atitude que tinha dificuldade em classificar. «O meu filho enlouqueceu de vez. O que é que faço, meu Deus?»

Manuel, Mei Lin e Luísa olhavam-na expectantes, sem dizer palavra, aguardando que ela recuperasse a compostura. Finalmente, dona Josefina falou:

— Meu filho, devo confessar que me apanhou completamente de surpresa! Ainda há poucos dias tivemos uma conversa sobre o casamento. Recorda-se do que me disse na altura? Afinal, parece que a sua ideia já era outra!

— Oh, mãe, tem toda a razão! Mas deixe-me dizer-lhe que até para mim foi uma surpresa. Porém, no instante em que conheci a Maria, soube que ela era a mulher da minha vida! Não podia arriscar perdê-la, daí ter-lhe pedido para casar comigo. Garanto-lhe que não foi de todo uma atitude irreflectida, nem sequer premeditada! — Olhou para a mãe sem a sombra de um sorriso e continuou: — Só lhe peço que receba a Maria, como sua filha. E que abençoe o nosso casamento!

Dona Josefina não lhe respondeu. Não conseguia esconder a contrariedade e o desconforto que a situação lhe causava. E o desgosto que sentia pela atitude de Manuel. Em voz pausada, reflectindo um cansaço de morte, acabou por dizer:

— Meu filho, o menino é maior e vacinado e faz o que entende com a sua vida! Mas não podia, pelo menos, ter falado deste assunto comigo e com o seu pai?! — Olhou para Mei Lin com ar severo durante mais tempo do que poderia durar um olhar de boas-vindas. Percorreu com um olhar demorado toda a sua figura, da cabeça aos pés fixando-a, finalmente, directamente nos olhos.

Mei Lin aguentou estoicamente aquele olhar quase malévolo, de semblante impassível. Manuel avisara-a de que aquele momento seria duro mas esquecera-se de lhe dizer que seria também uma prova de vida. Finalmente, dona Josefina dirigiu-se ao filho:

— Esta família tem regras que devem ser respeitadas! Venha comigo até à biblioteca, porque temos de ter uma conversa muito séria. — E dirigindo-se ostensivamente à nora, acrescentou em voz seca: — A sós!

Levantou-se energicamente e dirigiu-se para o interior da casa. Manuel olhou para a mulher e fez-lhe um gesto para se deixar ficar onde estava. Era a primeira vez que a mãe lhe falava daquela maneira.

Quando chegou à biblioteca viu que a mãe o aguardava de pé, junto à janela.

— Feche a porta e aproxime-se! Onde é que tinha a cabeça, Manuel? Uma esposa chinesa? Sabe o que isso significa? O seu pai tem conhecimento desta loucura?!

— Não, mãe, o pai não sabe de nada. Ainda não falei com ele. Quis que a mãe fosse a primeira pessoa a saber e esperei que fosse mais compreensiva. É da minha vida que estamos a falar e não de preconceitos! Pensei sempre que a sua primeira prioridade fosse a de me ver feliz e realizado. Nunca pensei que a mãe fosse capaz de receber minha mulher desta maneira. Estou decidido a sair desta casa e não voltar a pôr cá os pés. A mãe sabe perfeitamente que já houve um casamento chinês na família! A bisavó Edith… — Manuel calou-se abruptamente.

— Está farto de saber que o caso da sua bisavó Edith foi completamente diferente, não pode servir como exemplo! Tenho a certeza de que seu irmão e a restante família vão ter a mesma opinião que a minha. De seu pai, não sei, nem me interessa!

Manuel retomou o tom conciliatório:

— Mas, mãe, o que quer que eu faça agora? Esta é a minha casa e deveria ser também a da mulher que eu escolhi. O que lhe peço é que dê à Maria uma oportunidade de mostrar que gosta de mim. É uma pessoa que percorreu um caminho muito difícil. Precisa de compreensão e de tolerância justamente das pessoas que me são mais chegadas. Não posso compreender a sua atitude, minha mãe! Onde estão os princípios que me ensinou sobre a força do carácter, sobre a tolerância, sobre a humildade?

— Bom, não vou pôr-vos na rua, nem deixar que o menino saia desta casa, como é óbvio! Mas ela vai ter de provar que é digna da nossa confiança e merecedora de um lugar nesta casa. Agora, que o mal está feito, só me resta minimizar os danos.

Um pouco mais calma, quis saber detalhes sobre a nora.

— Sabe, ao menos, de que família vem? Que educação tem?

— Não sei, mãe! A Maria é órfã desde tenra idade. Foi acolhida pelas irmãs de Santa Clara, onde cresceu e foi educada.

— E onde é que a conheceu?

— Conhecemo-nos no Hotel Central, uma noite destas. Amigos comuns apresentaram-nos. Depois, vimo-nos mais um par de vezes. A mãe sabe que Macau é uma cidade pequena… as pessoas estão sempre a tropeçar umas nas outras!

— O que é que ela fez na vida?

Manuel evitou responder à questão directamente, mas sabia que, mais tarde ou mais cedo, se iria descobrir qual fora a verdadeira profissão de Mei Lin.

— Mãe, peço-lhe por favor, para ir dar uma palavra à Maria, que deve estar desconsolada com a recepção que teve.

— Mais logo tratarei disso. Preciso de interiorizar o que aconteceu. Não posso neste momento ser agradável com ninguém.

Manuel encaminhou-se para a saleta onde deixara Mei Lin na companhia de Luísa, mas viu-as no terraço através da janela e foi ter com elas. Conversavam amenamente e só quando se aproximou conseguiu ouvir o que diziam.

— Afinal, já se conheciam?

— Sim! Eu e a Luísa fomos colegas em Santa Rosa de Lima. Já não nos víamos há longo tempo, desde que eu deixei o colégio. Quando saí a Luísa ainda lá continuou por algum tempo.

Ao fim da tarde, Manuel foi esperar o pai no jardim. Mei Lin ficara no quarto a preparar-se para o jantar. Manuel pedira-lhe que vestisse qualquer coisa que nada tivesse de ousado e que lhe emprestasse um ar alegre. Animara-a, dizendo-lhe que o pior já passara e contara-lhe a resignação da mãe. Era uma questão de tempo para que as coisas se normalizassem e fosse ultrapassada a crispação da progenitora.

Quando o pai chegou tiveram os dois uma conversa onde não houve segredos. Manuel precisava da cumplicidade paterna para que Mei Lin fosse aceite sem resistência pela sua família.

— Tem a certeza de que é a mulher certa para si? — perguntou António ao filho antes de subirem.

— Tenho, pai!

— Então vai tudo correr bem. Amanhã deve ir ter com padre Manuel e ela deve acompanhá-lo. Esclareça o que houver para esclarecer e marque o casamento religioso.

Antes de subir ao encontro da mulher, o velho Lobo Vicente fechou-se na biblioteca e fez um longo telefonema ao seu amigo Lou Yo Vo. Quando, minutos mais tarde, se dirigia ao piso superior, levava no rosto enrugado um sorriso de satisfação.

Nessa noite, Mei Lin jantava com a sua nova família. Na imensa mesa redonda, a mãe era a figura central. À sua direita sentava-se Miguel, o filho mais velho. À direita do pai sentava-se Mei Lin. O ambiente não era, exactamente, festivo. Havia tensões latentes, caras fechadas, gestos nervosos. A meio da refeição, dona Josefina perguntou a Mei Lin, sorrindo-lhe pela primeira vez:

— Depois de sair de Santa Rosa de Lima em que é que se ocupou durante estes anos até conhecer o Manuel?

O silêncio que caiu sobre aquela mesa de toalha branca e copos de cristal foi abrupto e mais violento do que uma vaga do mar bravio a bater nos costados de um barco! António Lobo Vicente rasgou-o ao dizer:

— A Maria foi uma das assessoras do meu amigo Lou Yo Vo num dos seus bancos. Hoje ele telefonou-me a dar-me os parabéns por me ter tornado sogro de uma mulher encantadora e pediu-me para lhes transmitir, a ela e ao Manuel, os seus votos das maiores felicidades. E declarou que deixará de ser o meu banqueiro se não for convidado para padrinho.

Definitivamente, dona Josefina via escancarada a porta de sua casa a uma torrente de sangue chinês!