15. A ESPOSA CHINESA

Aos poucos Mei Lin começava a integrar-se no seio familiar e, para além do marido, tinha Luísa como aliada. As crianças, filhas de Miguel, acolheram-na sem qualquer resistência, e o sogro recebeu-a igualmente sem reservas. Distanciara-se das polémicas familiares. Dona Josefina ainda tentou convencê-lo de que era uma regressão no estatuto social da família, mas ele não lhe deu qualquer importância, desvalorizando abertamente a argumentação da mulher.

Miguel mostrava-se, de uma maneira geral, indiferente ao assunto, recebera Mei Lin contidamente, mas Manuel sabia que o irmão era quase sempre um aliado da mãe, com quem, aliás, partilhava opiniões frequentemente, em conversas entre os dois, quase em segredo, quando se juntava à progenitora na pequena saleta para lhe escutar os desabafos e confiar-lhe os seus. E prometera-lhe até descobrir quem era a mulher com quem o irmão se casara tão repentinamente. Luísa surpreendera-os no segundo dia após a chegada de Mei Lin, na conversa a sós que tiveram naquela tarde, na saleta habitual.

— O meu irmão só pode ter perdido totalmente o tino e a noção das conveniências! Sempre pensei que ele fosse arranjar uma esposa portuguesa. Mas não se preocupe, mãe… eu vou investigar essa chinesa.

Porém, dona Josefina já estava a pensar muito para além disso. E a resposta dela chegava carregada de intenções:

— Uma coisa lhe garanto, meu filho: as crianças que cheguem à nossa família deste casamento não têm culpa nenhuma e vão ser criadas e educadas como as suas filhas. Eu mesma me encarregarei disso! Com a rapariga é que não sei o que hei-de fazer. Também não quero magoar o seu irmão apesar de estar profundamente desiludida com ele! Mas prometo que eu mesma vou descobrir quem essa mulher é.

Nesse domingo, toda a família foi à missa que era dita nesse dia na Sé Patriarcal. Mei Lin confessara ao marido o seu desejo de regressar aos hábitos cristãos dos quais se havia afastado desde Santa Rosa de Lima. Acompanhou o marido, apesar da inequívoca resistência de dona Josefina. Mas Manuel, ignorando-a, insistiu na presença da mulher a seu lado, naquela que era a primeira aparição da família em público depois do casamento.

Tratando-se de uma das mais antigas e respeitadas famílias da comunidade macaense, a que tradicionalmente estabelecia a ponte entre as comunidades portuguesa e chinesa, era inevitável que se espalhassem e subissem de tom os comentários.

— Quem é aquela rapariga com os Lobo Vicente? Não me digam que a dona Josefina arranjou outra afilhada!

— Não! Segundo me contaram no Clube Militar, é a mulher do filho mais novo!

— Casou com uma chinesa?… O rapaz endoidou de vez! Custa-me a acreditar que a dona Josefina a tivesse aceitado!

— Pois, consta que o rapaz nem sequer consultou a família. Apareceu com ela em casa, já com o facto consumado!

No fim da missa, e como era habitual, formavam-se grupos no adro da catedral e o oficiante ia saltitando entre cada um. E não deixava de ser estranha a circunstância de que, em nenhum momento, os membros de cada uma daquelas comunidades se misturassem. Macaenses de um lado, em pequenos grupos de familiares ou amigos, os mais numerosos. Do outro, os dos portugueses, mais pequenos e em menor número. E os chineses nunca ficavam, praticando nessa ocasião a mesma regra dos jantares entre amigos — no fim do último prato servido, despediam-se rapidamente uns dos outros e afastavam-se de imediato.

Dona Josefina, contrafeita, apresentou Mei Lin aos parentes e amigos, no fim da missa.

— Esta é a minha nora, Maria, mulher do meu filho Manuel!

Os tios e os primos apressaram-se a felicitá-los. Fernando, o irmão mais velho de António Lobo Vicente, abraçou Manuel.

— Parabéns, meu rapaz! Então onde é que foi o casamento? Em Portugal?

— Não, tio, foi aqui em Macau! Mas foi uma surpresa para toda a família. Foi apenas o do Registo Civil. Dentro de pouco tempo será aqui.

A Elisa, mulher de Fernando, não escapou a expressão fechada da cunhada.

O projecto de um casamento pela igreja foi sendo esquecido por toda a família e até por Manuel que via em Mei Lin um certo desinteresse nesse passo. E à medida que o tempo passava, Manuel foi constatando, um pouco em cada dia, que a sua família se distanciava cada vez mais do seu casamento e, ostensivamente, ia criando barreiras à integração da mulher no seio da família. Dona Josefina tratava a nora com subtil desprezo. E quando a mencionava tornava-se, frequentemente, desagradável, referindo-se-lhe como «aquela mulher» ou «aquela chinesa».

Manuel desistira de vencer a resistência da mãe, aliada ao irmão, que tratava a cunhada com indiferença e proibira a ajuda dela nas lições das filhas. No escritório, Miguel carregava a agenda do irmão mais novo como se quisesse ocupá-lo ao máximo e afastá-lo de casa e da mulher.

Mei Lin sentia-se cada vez mais sozinha e isolada. Com excepção do marido, Luísa continuava a ser o seu único apoio. À velha amiga era penoso ver a forma como Mei Lin era tratada naquela casa, mas nada podia fazer por não ter qualquer influência na família. Só o velho Lobo Vicente parecia importar-se com ela. Continuava a ser dona Josefina o centro da vida familiar e ninguém, nem de dentro nem de fora daquelas paredes, se atrevia a defrontar a velha matriarca.

Como prometido, dona Josefina deslocou-se a Santa Rosa de Lima, para falar com madre Pia. A freira recebeu-a no seu gabinete, com grande deferência, como sempre fazia a uma das maiores benfeitoras do colégio.

— Dona Josefina, a que devo o enorme prazer da sua visita? Toma um chá? — Sem esperar pela resposta, disse à noviça que fazia o secretariado para mandar buscar a bebida. — Mas sentemo-nos, por favor!

— Madre Pia, o assunto que me traz aqui é um pouco delicado. — Dona Josefina hesitou por uns momentos, não muito certa da melhor forma de abordar a freira. — Calculo que o colégio tenha as suas regras de privacidade, em relação às alunas e ex-alunas…

Madre Pia anuiu com a cabeça. Dona Josefina retomou o discurso.

— Bem, será melhor eu ir directa ao assunto! Terá já ouvido comentar sobre o casamento de meu filho Manuel com uma antiga aluna deste colégio!

— Sim, senhora dona Josefina, fui informada — respondeu madre Pia secamente, adivinhando-lhe o veneno.

— E também foi informada de que o casamento foi apenas o do Registo Civil?

— Também fui! — A religiosa estava secretamente ansiosa por saber onde iria acabar aquela incursão viperina, surpreendente, da velha senhora.

— Essa circunstância não a perturba, madre Pia?

O ar de madre Pia era de surpresa pelo inesperado da pergunta.

— Não vejo qual possa ser o problema! — respondeu-lhe.

— Não vê?!

— Não, o casamento pelo registo civil é válido.

— Pois é! Mas, como religiosa, não vê?! Como tutora de uma criança que nasceu aqui para a vida, que educou e em quem depositou as melhores expectativas, não vê?!

— Não, senhora dona Josefina. Não vejo. Dirijo um colégio religioso e um convento. Se alguma das minhas noviças escolhesse esse caminho, sentiria uma enorme compaixão. Mas nunca sentiria pena. Cada uma das pessoas que passam por esta casa tem o direito às suas escolhas. O meu papel é apenas o de as esclarecer para que possam fazer as suas escolhas conscientemente.

Josefina Lobo Vicente percebeu que tentara obter a cumplicidade da pessoa influente errada. Percebeu que nunca poderia vir a contar com o apoio da religiosa. Percebeu, finalmente, que se encontrava num ambiente hostil. Teria de mudar de estratégia.

— Minha madre, sabe perfeitamente que no meu coração não existe ódio, não sabe? E sabe que tenho sido incansável no apoio financeiro à sua Ordem e, sobretudo, a este colégio, na sua missão de ajudar crianças desamparadas… Estava à espera da sua solidariedade, da sua compreensão para as minhas preocupações sobre o casamento do meu filho Manuel. Ninguém sabe, exactamente, quem é essa mulher, a vida que teve depois de abandonar Santa Rosa de Lima, por onde andou. Deve haver qualquer coisa porque o meu filho casou-se com ela sem sequer comunicar à família, como se tivesse algo para esconder. Meu marido diz que ela trabalhou num banco, mas eu não acredito.

Fez uma pausa para passar pelos lábios um lenço branco. E logo a seguir continuou:

— A única coisa que eu consegui saber é que a rapariga estudou aqui, em Santa Rosa de Lima. E é aqui que eu quero apelar para a sua ajuda, madre Pia… para me dizer se tem informações sobre ela.

— Minha senhora — era a primeira vez que a tratava assim —, deixe-me que lhe responda sucintamente às várias questões que levantou. Sim, nós estamos muito agradecidas, em Cristo, pela sua bondade nas ajudas financeiras e em todos os demais actos da sua generosidade cristã. Sobre as considerações que fez, e que eu escutei caridosamente, mantenho o que lhe disse. Mas, afinal, que relação existe entre a sua nora e este colégio? Como se chama ela, afinal?

— Chama-se Maria. Ela e a minha afilhada, Luísa, foram colegas aqui no colégio. Lembra-se dela, não lembra?

Madre Pia estremeceu. «Se me lembro de Maria? Claro que me lembro!», pensou. Com a maior naturalidade, respondeu a dona Josefina:

— Tenho uma vaga ideia de uma aluna com esse nome, há uns bons anos atrás, mas saiu do colégio muito antes da Luísa e nunca mais soube nada dela. Lamento! — Silenciosamente, elevou um pensamento aos céus, pedindo «perdoai-me, Senhor», ao mesmo tempo que se erguia para se despedir da visitante.

De volta a casa, mais frustrada do que nunca, dona Josefina não se deu por vencida. «Hei-de descobrir quem tu és, minha menina, ou eu não me chame Maria Josefina Quitéria de Lobo Vicente!»

Após a saída de dona Josefina, a freira sentou-se pesadamente e reflectiu sobre a conversa que acabara de ter. Inesperadamente, sentiu os olhos humedecerem-se de emoção. Ao fim de tantos anos, acabara de saber que Maria estava viva e bem casada!

«Que alívio! Foi como se tirassem um peso do meu coração!»

Fez soar o pequeno sino energicamente. Imediatamente apareceu no gabinete uma noviça solícita.

— Vem comigo ao seminário. Manda parar e esperar por mim o primeiro riquexó que passar pelo portão da frente.