17. O RAPTO
O primeiro filho de Manuel e de Mei Lin nasceria num clima de aparente harmonia familiar. Uma espécie de paz conformada. Dona Josefina, mais tolerante, parecia ter esquecido a sua cruzada contra a nora. Nunca chegara a ter a oportunidade de a confrontar com o seu «vergonhoso passado». Mas continuava convencida de que o filho desconhecia completamente o segredo da mulher.
Quando nasceu a criança, um menino a quem chamaram João, entregaram-na aos cuidados de uma áma-lête — a sempre presente ama-de-leite de todos os lares macaenses.
Seguindo a velha tradição, Mei Lin não teve qualquer objecção em que outra mulher amamentasse o filho, forçada também pela sua própria insuficiência lactante. E esforçava-se por ser uma mãe devotada, mas era Luísa quem estava sempre presente em todos os momentos da vida daquela criança.
Dona Josefina absteve-se de interferir na educação do neto durante os primeiros anos, mas já havia manifestado a sua vontade em se encarregar dela a partir da sua entrada para o jardim-de-infância em Santa Rosa de Lima.
Mei Lin compreendeu, a partir de certa altura, que não seria fácil ter a influência adequada na educação do filho. Contudo, não se mostrou muito preocupada com isso. O tempo haveria de encaminhar as coisas e corrigir os desvios que as circunstâncias a forçavam a aceitar agora. Ela queria para eles um futuro construído no seio de uma família macaense luso-descendente, resgatando-os da herança chinesa que teria para lhes oferecer. Se, para isso, tivesse de aligeirar o seu papel, abdicando mesmo de alguns dos seus direitos maternais, fá-lo-ia conscientemente. Havia, porém, uma outra razão que justificava a paz interior que a invadia. E naquela noite, depois de se amarem, deu a notícia ao marido.
A velha matriarca recebeu a notícia da nova gravidez da nora com alguma reserva, disfarçando a alegria que ela lhe dava. E, se até então o ambiente familiar era suportável, passou a ser, a partir daí, quase feliz e harmonioso.
Na semana seguinte, Manuel e Mei Lin embarcaram no Fat Shan, um dos ferries que fazia a ligação entre Macau e a colónia inglesa, onde Mei Lin seria vista por um reputado obstetra inglês. O preço da consulta também o era. Os resultados da observação da parturiente estavam dentro dos parâmetros. Não havia lugar para preocupações.
A travessia demorava cerca de quatro horas para cada lado, numa primeira classe luxuosa, com todo o conforto.
A paz dos homens subira, finalmente, a uma Penha redimida e tolerante. Até que, num certo dia, o futuro começou a acontecer.
Numa tarde amena de Setembro, Luísa decidiu levar o pequeno João ao Jardim de São Francisco. Estranhamente, deixara de avistar o segurança chinês que chamara para os acompanhar. Quase silenciosamente, um carro preto travou bruscamente junto da criança que brincava a poucos metros de distância. Dois homens encapuzados saíram do carro, apanharam a criança e agarraram nela, arrastando-os para os bancos traseiros do automóvel, que se pôs em marcha a grande velocidade em direcção à parte baixa da cidade. Luísa ia vendada, mas percebeu, a certa altura, pelos ruídos, odores e vozear típico, que lhe eram familiares, que eram transportados para a zona do Porto Interior. Sentiu as voltas violentas que dava por um trajecto, sem dúvida, sinuoso e, por fim, pararam abruptamente. Foram carregados para uma embarcação, um barco ou um junco, pela flutuação que se sentia. Obrigaram-na a sentar-se no chão, com a criança ao colo. Ouviu depois o roncar de um motor potente, o balanço da embarcação mais vivo e ritmado. Os raptores mantiveram-se em silêncio durante toda a viagem, um sinal claro da disciplina que os dominava. Navegaram durante cerca de uma hora, estimou Luísa. Foi, de facto, um junco chinês que aportou a um pontal de uma praia deserta, de areia negra, salpicada de seixos e de conchas expelidas nas marés do Rio das Pérolas. Foram levados com estranha e surpreendente delicadeza para uma casa abandonada, parcialmente embutida num maciço rochoso, longe do pontal, a julgar pelos dez minutos de marcha que os levaram até lá. A criança, em silêncio, terá sido carregada por um dos raptores. No interior da casa, o ambiente era abafado e bafiento, o que ela sentiu quando entrou, provavelmente por estar fechada há muito tempo. Foram levados para uma divisão distante da porta de entrada. Foi nesse momento que retiraram a venda a Luísa. Viu três homens encapuzados bem vestidos com fatos de bom corte. Viu o pequeno João ainda ao colo de um deles. Encontravam-se num vasto compartimento sem janelas, espartano no mobiliário de má qualidade, de fabrico chinês: um colchão sem lençóis e uma mesa baixa. Nenhum deles falou. A criança foi-lhe passada para os braços pelo homem que a segurava com estranha delicadeza. Saíram do quarto e ouviu a chave girar na fechadura. Em cima da mesa tinham deixado duas garrafas com água e uma com leite. Percebeu imediatamente que o objectivo do rapto era a criança. Ela estaria ali enquanto a criança vivesse. Depois disso, seria uma testemunha a eliminar.
Passaram algumas horas, quantas não saberia dizer. Dentro do quarto o ar era quente.
Acordou de uma sonolência pesada com as vozes que lhe chegavam abafadas do exterior. Falavam em cantonense. A porta abriu-se alguns instantes depois e entrou um chinês de tez escura, a avaliar pelas mãos bem tratadas, a única parte do corpo que dele podia ver por estar encapuzado, seguido por dois guarda-costas armados, também chineses. Os outros homens permaneceram do lado de fora do quarto. O pequeno João continuava a dormir, alheado do que se passava à sua volta. O homem dirigiu-se a Luísa, num português correcto. Num tom afável, perguntou-lhe:
— Quando voltam os pais da criança de Hong Kong?
— Devem regressar já amanhã. — A medo, Luísa acrescentou: — Não sei porque estamos aqui e gostaria que me dissesse. Se for por muito mais tempo a criança terá de ser alimentada. E o leite que aqui foi deixado já deve estar azedo.
O homem não lhe respondeu logo. Luísa sentiu-se observada por ele. Pelos orifícios do capuz conseguia ver dois olhos negros que brilhavam como brasas vivas, fixando-a. Analisando-a. Devassando-a. Apertou a criança nos braços como se o quisesse proteger deles e não insistiu na pergunta. Mas a voz dele chegou-lhe pouco depois, mais uma vez surpreendente na brandura.
— Quem aqui está é o menino. Você, não está! E a razão por que ainda está viva é que ainda não viu a cara de nenhum de nós. Reze para que ninguém lha mostre. Quanto à criança, é um assunto muito simples: queremos um resgate pela sua vida. Sobre a alimentação, não se preocupe. Trouxe comigo os víveres necessários para hoje e diariamente chegarão outros.
Estas foram as suas últimas palavras. Pouco depois Luísa ouviu a chave girar de novo na fechadura e os passos do homem que se afastavam da porta.
No que pareceu a Luísa ser o dia seguinte o mesmo homem regressou. Reconheceu-o pela voz porque envergava um fato diferente do do dia anterior. Mas agora vinha acompanhado por uma mulher de idade desconhecida porque, também ela, se apresentou de rosto encoberto. Na mão direita dele viu dois envelopes em papel castanho. A mulher dirigiu-se à criança familiarmente, como se já a conhecesse. O homem aproximou-se de Luísa. Escolheu um dos envelopes e entregou-lho. Aguardou que ela o tomasse entre os dedos e depois disse-lhe:
— Vais ser levada, daqui a algum tempo, ao local de onde te fomos buscar. Esse envelope que tens na mão deverá ser entregue ao Manuel Lobo Vicente. E só a ele. Percebeste?
— Sim… — respondeu Luísa já angustiada por ver que iria deixar o pequeno João nas mãos daquela gente.
O homem pareceu adivinhar-lhe o pensamento e tranquilizou-a.
— Não te preocupes que nada de mal acontecerá à criança. — Segurando no segundo envelope, acrescentou: — Este deverás entregar a Mei Lin, a sós, e só a ela.
— Conhece os pais do menino, então!
— Sim, conheço. Mas esse assunto não te diz respeito. A-Má protege-te! Vais sair daqui com vida e intacta! O que não deixa de ser um desperdício!
— Eu?! — questionou ela.
— Sim, rapariga, tu! — Luísa notou-lhe na voz um certo tom jocoso. Nunca saberia ao que estava a ser poupada. As tríades raptavam frequentemente raparigas, algumas muito jovens, para se divertirem em grupo, as quais eram depois sumariamente assassinadas. Os seus corpos mutilados e irreconhecíveis desapareciam, frequentemente tragados pelas águas turvas em zonas afastadas de Coloane ou da Taipa, arrastadas pelas correntes fortes para grandes distâncias.
A mulher aproximou-se de Luísa e colocou-lhe um capuz. Atou-o depois junto ao pescoço. Encaminhou-a para a porta e sentiu-se conduzida para o exterior da casa.
Nem sequer tivera a oportunidade de se despedir do pequeno João.
— Se queres que a criança volte para casa, não faças nenhuma asneira! Entrega as mensagens apenas aos pais.