20. MADAME LAI CHOI SAN
Durante a viagem para Coloane, Mei Lin insistiu com Wang para que lhe contasse como tinha acontecido a milagrosa «ressurreição» de Lai Choi San. Havia qualquer coisa de fascinante na vida daquela mulher e sentia em si própria um impulso, que não saberia definir, que tornava imperioso e até urgente que conhecesse toda a sua história.
— Na verdade, ela nunca morreu! — prosseguiu Wang — Foi tudo encenado. Estava ameaçada de morte há muito tempo! Uma das razões da sentença de morte que lhe foi decretada foi a sua ligação à indústria de pesca de Macau, de que tinha o monopólio de protecção, que se desenvolvia pela repressão violenta da concorrência marítima, afundando os barcos de frotas estranhas, e pelos esquemas de corrupção que contavam com o aval das autoridades do Território. O negócio dos raptos, outra das suas actividades, estava a dar para o torto! Os japoneses também andavam de olho nela por causa do negócio de armamento para os nacionalistas. E sabes qual foi a solução que eles encontraram?
Mei Lin não lhe respondeu e esperou que ele continuasse.
— Afundaram-lhe os juncos todos de uma assentada! Milagrosamente, ela escapou, mas seriamente ferida. Foi atingida nas costas e acabou por ficar no estado em que a viste, depois de longos meses a lutar pela vida e numa demorada convalescença. E nem ela é capaz de explicar bem o que aconteceu… Foi resgatada do mar por tripulantes que dariam a vida por ela. Pensaram que estava morta. Quando, finalmente, recobrou a consciência, percebeu que a única forma de se salvar da perseguição era encenar a sua morte a partir dali. Chamou os mais próximos e deu-lhes instruções precisas para espalharem a notícia. E foi num clima mais tranquilo a partir daí que encontrou a solução perfeita para o problema: escapar para os Estados Unidos. Lá, seria rapidamente esquecida e teria todo o tempo e recursos inesgotáveis para se tratar. Mas nada desse plano resultou! Apesar de estar rodeada de gente fiel, que levaria a sua protecção até às últimas consequências, mesmo com o sacrifício das suas vidas, a vigilância exercida sobre os pontos de partida para a sua fuga tornavam os seus planos demasiado arriscados — mesmo condenados ao fracasso e à sua morte. Só lhe restava um refúgio em Macau sob uma titubeante autoridade dos portugueses, que, na verdade, estava também sujeita a um clima de tensão.
Wang calou-se. A viagem terminara. Mei Lin susteve-o, segurando-o pelo braço. Sentia uma voz interior que lhe dizia que aquela estória era muito importante para si.
— E depois? O que é que aconteceu a seguir?
— O resto, tu já sabes!
— Não sei, não!
— Então, não estás com pressa para veres o teu filho?
— Estou! Mas quero que me contes o resto da história… Vamos buscá-lo agora, mas depois contas-me, está bem?
— Está bem! Vamos.
O junco tinha acostado silenciosamente a um pequeno pontal. Momentos depois entravam na construção aparentemente abandonada, disfarçada no meio de um maciço de rochas. Mei Lin foi encontrar o filho na companhia de uma velha amah. A criança correu para ela, contente, e atirou-se para os seus braços abertos. Não denotava qualquer sinal de ansiedade ou medo. Tinha sido bem tratado e, provavelmente, tinham-lhe dito que alguém viria em breve para o ir buscar.
— Mamã, vieste tu! E a Luísa? Ela disse que me vinha buscar para acabarmos o jogo…
— Sim, meu querido, vim eu! A Luísa teve de ficar em casa, para onde vamos também, agora. O jogo acabou!
Regressaram ao junco que os levaria de regresso a Macau. Não saberia explicar exactamente porquê, mas Mei Lin sentia-se invadida por uma sensação de paz que não conhecia há muito tempo. O pequeno João, entretanto, adormecera pacificamente no seu colo. O junco começou a afastar-se do pontão e manobrou para apontar a proa em direcção a Macau. Wang acendeu um cigarro e olhou-a demoradamente, perguntando-se que interesse seria aquele que despertara nela a estória da velha pirata. Manteve-se ainda em silêncio por mais alguns instantes e logo reiniciou o relato interrompido uma hora antes.
— Lai Choi San passou a viver em reclusão naquela mansão. Tinha sido construída durante as suas longas ausências. Era em tudo semelhante à de West River. Nela se rodeou de gente da sua confiança. Os negócios no jogo, na droga, na prostituição e no tráfico cresciam e consolidava-se a imensa fortuna que detinha. Na sombra, ela tudo dirigia com mão de ferro e, tantas vezes, de uma forma inclemente para os que falhassem.
Mei Lin estava cada vez mais surpreendida.
— Incrível! E presa a uma cadeira de rodas…
— Sim, mas não é tudo! Continuou aliada ao General Chiang Kai Shek, sendo também uma patrocinadora incontornável do Kuomintang. Durante a guerra, uma parte da sua casa serviu como esconderijo de nacionalistas e de espiões americanos. Era a parte secreta dessa construção. Ninguém conseguiria dar com o acesso a ela mesmo que vivesse lá durante muito tempo e todos os cómodos se tornassem familiares. Como estava presa à cadeira de rodas, a sua mão direita era Huang Pemei, mais conhecida por Madame Two-Revolvers, que era simultaneamente agente dos serviços secretos americanos. A minha tríade, descendente da sociedade secreta fundada pelo famoso pirata Chang Pao, denominada Hall of Heaven and Earth, seria contratada para assegurar a sua protecção e para estabelecer a ligação com os nacionalistas do Kuomintang, impedidos de entrar em Macau. Trabalhamos para eles, até hoje. Foi assim que começou a minha ligação a Lai Choi San.
— Estou sem palavras! Durante todos estes anos, nunca se descobriu o que tinha efectivamente acontecido à Rainha dos Piratas… e ela a viver mesmo debaixo do nosso nariz!
— Pois, ela conseguiu enganar toda aquela gente que tanto a procurou!
Durante alguns instantes ficaram em silêncio. Lá fora, caída a noite, ouvia-se o marulhar das pequenas ondas de encontro à amurada do junco. Mei Lin encarou Wang e viu-lhe no rosto uma expressão fria. E as palavras que ele pronunciou a seguir, quase em surdina, provocaram-lhe um calafrio.
— Não te esqueças de que até saldares a tua dívida fazes oficialmente parte da organização de Lai Choi San. Estás obrigada a um pacto de silêncio! Ouviste aquilo que me pediste que te contasse. Não podes revelar nada disso a ninguém, nem ao teu marido e nem sequer a ela. E a garantia do teu silêncio e da tua obediência é o teu filho e todos os filhos que venhas a ter no futuro! Vamos agora estabelecer as condições da tua colaboração. Para que não haja más interpretações, tu não fazes parte da minha tríade, porque as mulheres não são admitidas. Eu sou apenas o intermediário entre ti e madame Lai Choi San… Ela é a tua verdadeira patroa! Todas as missões para as quais fores nomeada serão sempre executadas ao seu serviço.
— E essas missões… são semelhantes à que fiz quando te acompanhei a Hong Kong, com aquela carga de pedras preciosas?
— Sim! Aquele foi um teste, no qual te saíste bem. — Wang passou a explicar-lhe como funcionava o esquema: — No contrabando do ouro e do ópio, o transporte da mercadoria é assegurado por juncos muito rápidos fortemente escoltados por ninjas preparados para morrerem. Mas, no caso das pedras preciosas, as operações exigem um procedimento mais refinado e discreto. Tu tens o perfil de uma operacional improvável. Um agente da polícia dificilmente desconfia de uma mulher como tu. O tráfico de diamantes começa agora a ter uma expressão maior, pela procura que tem no mercado internacional. São valiosos, fáceis de esconder e de transportar. Cada «correio» pode transportar muitos milhões de dólares numa simples operação. E a origem é sempre muito difícil de descobrir se tudo estiver bem organizado, mesmo quando o correio é surpreendido. Os diamantes servem para muita coisa e cabem em muitos negócios. Lembras-te do que conversámos sobre as armas que recebemos em alto-mar? Sabes como foram pagas? Com diamantes! O Kuomintang está permanentemente interessado em pedras preciosas por todas estas razões. Mulheres como tu são a peça fundamental para estas operações, e em casos de força maior podem mesmo «comprar» alguns agentes da autoridade, passando-os para o nosso lado. Temos vários assim, por aqui. Não imaginas…
Mei Lin percebeu nas palavras de Wang a existência de um preço contratual que não estava na disposição de pagar — e, muito menos, em nome de um patriotismo que lhe era indiferente.