28. A ÚLTIMA MISSÃO
E o tempo foi correndo. Mei Lin foi deixando que os dias passassem, um após outro, sem voltar a procurar Lai Choi San. Aos poucos, na distância que o tempo ia fazendo crescer, foi-lhe chegando a força para esquecer tudo sobre a sua origem e a imagem da velha corsária foi-se esbatendo para deixar de si, apenas, a memória difusa de alguém que nunca chegara a ser verdadeiramente importante na sua vida.
As suas viagens a Hong Kong tornaram-se mais raras, esporádicas, quase sempre por motivos menores. Os encontros com Wang tinham cessado de modo abrupto. Vagamente, sabia que naquele ritmo novo da sua vida estava a mão de Lai Choi San.
Manuel abandonara o seu lugar no Governo após a partida de Nobre de Carvalho. Uma aragem fresca e risonha soprava agora para os lados da Penha.
Era chegado um tempo de acalmia. Mei Lin consultou Wang sobre uma viagem à Europa que desejava fazer com a família durante um mês. Ele só lhe daria a resposta no dia seguinte, ia pensar no assunto. Mas Mei Lin sabia que ele iria consultar alguém acima de si, provavelmente Lai Choi San. Então, Wang disse-lhe que estava livre para ir sem preocupações. Uns dias depois Mei Lin embarcava com destino a Inglaterra na companhia do marido, dos filhos e de uma amah.
Nos princípios do mês de Setembro desse ano regressavam a Macau.
Foi logo na manhã do dia seguinte ao seu regresso, um sábado, que recebeu um recado de Wang para se encontrarem no Hotel Kwoc Chai pelas quatro horas. Foi encontrá-lo à sua espera no bar. Wang olhou-a sem surpresa, como se se tivessem visto no dia anterior. Rapidamente, acabou a sua bebida e pediu-lhe que o acompanhasse ao exterior para falarem mais à vontade. Foi no parque de estacionamento exterior que a conversa teve lugar.
— Temos de ir a Hong Kong muito em breve! — começou ele por dizer.
— Quando? — perguntou-lhe Mei Lin, admirada.
— Muito em breve! Talvez amanhã, nos próximos dias, esta semana…
— A entrega habitual?
— Sim. Um lote grande.
— Grande?
— Muito grande!
— Kuomintang?
— Sim. Aguarda que eu te avise. Não podes sair de Macau.
— Não tenciono sair.
Separaram-se sem despedidas.
Às onze horas dessa noite soou na casa da Penha a campainha da porta de serviço. O motorista de um táxi entregou à criada que o atendeu um envelope fechado dirigido a madame Lin. Dois minutos depois a destinatária abria-o longe das vistas da família, dele extraindo uma simples folha de papel onde leu uma frase curta: «Segunda-feira, nove horas, Fat Shan.»
Naquele domingo, o dia amanheceu chuvoso e com sinais de borrasca maior. Vindo do Sul, aproximava-se um dos tufões habituais naquela época do ano. As primeiras medidas de segurança tinham sido accionadas nessa madrugada. Embora se comentasse que o Rose nem sequer chegaria às proximidades do Território, seria fixado o sinal 8 por mera prudência, em substituição do 3 inicialmente previsto. Mei Lin lembrou-se da velha mnemónica que dizia «September, to remember».
— Amanhã, de manhã, vou a Hong Kong!
Foi durante o jantar que deixou cair a frase e todos os olhares se viraram instantaneamente sobre si.
— Amanhã?! E logo agora que é esperado um tufão!
— Mas o que é que vais fazer a Hong Kong? — Sem esperar pela resposta dela, Manuel disse autoritariamente: — Cancela e marca um dia da semana que vem! Não é seguro fazer a travessia nesta altura!
— Não posso cancelar a minha ida a Hong Kong, Manuel, a menos que se confirme a tempestade e sejam suspensas as carreiras. Esta consulta estava marcada há cerca de um mês. Não posso interromper este tratamento que estou a fazer com o melhor obstetra de Hong Kong…
Manuel ouviu-a sem a interromper. Ela reparou que tinha desaparecido a crispação que lhe notara antes. Viu-lhe mesmo um sorriso desenhar-se nos lábios quando ele voltou a falar.
— Queres que te acompanhe? Eu posso perfeitamente não ir ao escritório amanhã para ir contigo…
— Não é preciso, meu amor! Eu vou bem, e volto depressa! Não há necessidade de adiares assuntos teus por este motivo.
Nessa noite Manuel procurou-a. Nunca aqueles encontros entre eles tinham sido coisa pouca, de clímaxes tíbios, de frete conjugal. A entrega de ambos era como sempre fora — apaixonada, exaltada, sôfrega e prolongada. No fim, quando acabaram e se despediram até à manhã seguinte, como faziam sempre, Mei Lin não pôde deixar de sentir uma dor estranha e quase urgente de um remorso que lhe chegava contra a sua vontade.