30. MISSING

Macau fora poupada pelo Rose. Depois de algumas horas sob rajadas de ventos na ordem dos duzentos e vinte quilómetros por hora, a tempestade dirigiu-se para Cantão. Pela manhã foi feita a avaliação dos estragos, nada havendo de catastrófico para relatar, ao contrário do que se passara na vizinha Hong Kong, onde os ventos ciclónicos permaneceriam até ao dia seguinte. As comunicações telefónicas entre as duas colónias seriam restabelecidas dois dias depois do desastre do Fat Shan.

Foi justamente em Macau que a notícia causou maior impacto na população porque a maior parte dos passageiros e dos membros da tripulação era natural do Território ou dos arredores dele.

Em casa da família Lobo Vicente a angústia chegou de madrugada pelo som difuso da BBC que Miguel sintonizara ao constatar o silêncio das emissoras de Hong Kong como consequência do corte generalizado de energia eléctrica.

Manuel decidiu deslocar-se à colónia inglesa logo que as travessias fossem restabelecidas. E na tarde desse dia entrava no Península para ficar a saber que Mei Lin não se encontrava lá hospedada. Apeteceu-lhe dar um estalo ao pobre recepcionista que sorria cortesmente enquanto pulverizava a esperança que alimentara de ali encontrar a mulher.

Não precisou de apanhar um táxi para se deslocar à clínica onde Mei Lin tinha a consulta marcada. Ficava a um quarteirão de distância. O que teve foi que enfrentar a multidão da caótica Kawloon para conseguir vencer rapidamente a distância e amenizar a angústia que o assaltava.

Mas, lá chegado, sentiu-se invadido pelo desânimo perante uma recepcionista que o informava muito profissionalmente que madame Lobo Vicente não estivera lá no dia anterior, não tinha qualquer marcação para aquela data e que nem sequer o médico que referia se encontrava em Hong Kong, actualmente em Londres num simpósio.

Restava-lhe uma última esperança. Um último degrau para atingir o inferno. O Tsimshatsui Ferry Terminal ficava a vinte minutos da clínica, se se apressasse. Àquela hora, o movimento era ainda maior do que enfrentara para ali chegar. Era rush hour!

Numa placa de latão polido, embutida na moldura de ferro, junto à porta principal de um edifício de vinte pisos, perto do terminal, podia ler-se: «Tai Tak Hing Shipping Co. Ltd.» O porteiro uniformizado abriu-lhe a porta para o deixar passar mas informou-o que o expediente tinha encerrado dez minutos antes. As únicas pessoas que ainda não tinham abandonado o edifício eram o senhor Stanley Ho, um dos directores, e a sua secretária. Manuel notou-lhe o sorriso maldoso nas feições grosseiras e disse-lhe que era justamente com aquele senhor que pretendia avistar-se com urgência. Foi obrigado a esperar uma eternidade que o porteiro o anunciasse pelo telefone e soube que poderia subir pela vénia que fez ao aparelho por onde acabara de falar.

Stanley Ho aguardava-o no espaçoso vestíbulo, de pé, de semblante fechado. Apesar de o conhecer, adivinhara que a visita não teria qualquer relação com os assuntos que a sua empresa geria através do escritório de advogados de que o visitante fazia parte. E soube imediatamente que se relacionava com o desastre do Fat Shan.

Limitou-se a informá-lo do pouco que sabia, dos sobreviventes, dos mortos e dos desaparecidos. Mei Lin teria de fazer parte do último grupo.

Manuel olhou-o, perplexo.

— Os mortos ainda não estão todos contados e a maior parte deles por resgatar, perdidos nas margens, nas praias ou no fundo do mar. Haverá resgate de corpos durante os próximos dias, de forma sistemática, pelo dispositivo montado pelas autoridades. Os que se encontram na morgue estão a ser identificados. É uma tarefa que vai levar muito tempo, dizem-me.

— E por que razão acha que a minha mulher está entre os desaparecidos?

— Porque o vejo muito desanimado e quero que mantenha a esperança de encontrar a sua mulher com vida. Eu acredito que ela está viva.

Manuel murmurou um agradecimento.

— Vai passar a noite em Hong Kong, suponho bem? — perguntou-lhe o chinês.

— Sim. Vou ficar por cá durante mais uns dias enquanto conseguir manter a esperança de encontrar a minha mulher.

— Onde é que vai ficar hospedado?

— No Península.

— Ligarei para si ainda esta noite depois de apurar algumas informações sobre a viagem do Fat Shan. Vou dar instruções para fazerem isso imediatamente. Amanhã mandarei buscá-lo ao hotel para se deslocar às duas morgues. Farei com que seja recebido por alguém que o acompanhe no reconhecimento dos corpos. E espero que regresse menos desanimado.

Manuel saiu pouco depois do edifício e encaminhou-se para o hotel.

Eram dez horas em ponto quando o telefone tocou. Era Stanley Ho. Confirmou que o nome de Maria Lobo Vicente constava da lista de passageiros recolhida durante a viagem e chegara às mãos das autoridades da colónia inglesa. Mas não passara pelos balcões da imigração como acontecera com os restantes passageiros que haviam desembarcado.

Manuel visitou no dia seguinte as duas morgues, acompanhado por um agente da polícia trajado à civil que o aguardava à entrada do edifício. Regressou ao hotel pelas duas da tarde. Não saberia definir o seu estado de espírito se lhe perguntassem. Por um lado, sentia-se aliviado por não ter reconhecido Mei Lin. Por outro, ainda mais angustiado do que no dia anterior porque se distanciava no tempo em que a vira viva pela última vez. E a visão de todos aqueles rostos sem vida, alinhados na igualdade da morte, inchados, deformados ou estranhamente perfeitos, estranhamente sós, estranhamente mortos, trouxera-lhe ao espírito uma tristeza que nunca sentira antes. Mas foi na galeria dos corpos das crianças que se sentiu profundamente emocionado. Era uma sala enorme, sem móveis, que não estava incluída na visita. Um olhar bastou para se sentir impelido a entrar. O oficial não o susteve. Contemplou-as demoradamente, desceu os olhos sobre cada um daqueles pequenos corpos e sentiu uma irreprimível vontade de chorar.

Regressou a Macau dois dias depois.

Quando foram publicados os nomes das vítimas do afundamento do Fat Shan, o nome de Mei Lin figurava entre os quinze desaparecidos. Estava oficialmente dada como morta.