7
"O Federalista":
remédios republicanos
para males republicanos

Fernando Papaterra Limongi

9788508105908_OK_0234_001















Entre maio e setembro de 1787, reuniu-se em Filadélfia a Convenção Federal que elaborou uma nova Constituição para os Estados Unidos, propondo que esta substituísse os Artigos da Confederação, firmados em 1781, logo após a independência. "O Federalista" é fruto da reunião de uma série de ensaios publicados na imprensa de Nova York em 1788, com o objetivo de contribuir para a ratificação da Constituição pelos Estados. Obra conjunta de três autores, Alexander Hamilton (1755-1804), James Madison (1751-1836) e John Jay (1745-1829), os artigos eram assinados por Publius.

A autoria dos artigos permaneceu secreta por algum tempo. Segredo quebrado logo após a morte de Hamilton, que deixou um documento reivindicando para si a autoria de 63 dos 85 artigos, alguns dos quais, posteriormente, Madison alegou ter escrito. A partir de então, inicia-se uma longa polêmica a respeito da verdadeira autoria de cada um dos artigos. Embora ainda se possa encontrar quem esteja disposto a discutir o tema, os mais autorizados intérpretes concordam com a seguinte distribuição: 51 artigos teriam sido escritos pelo idealizador da empreitada (Hamilton), 29 caberiam a Madison, e os 5 restantes a Jay, cuja colaboração foi prejudicada por problemas de saúde.

Os nomes dos três autores de "O Federalista" estão fortemente associados à luta pela independência dos Estados Unidos, figurando entre aqueles que tiveram participação destacada em eventos capitais. Madison e Hamilton encontram-se entre os líderes do movimento que culminou na convocação da Convenção Federal, da qual foram membros. Quanto à elaboração da Constituição, Hamilton teve uma participação discreta, já que suas teses ultracentralizadoras foram prontamente rejeitadas. A James Madison, por outro lado, é creditada a maior contribuição individual na elaboração da Constituição, daí por que seja chamado de "Father of the Constitution".

Após a ratificação da Constituição, a presença dos autores de "O Federalista" na vida política norte-americana mantém-se de suma importância. Hamilton foi o primeiro secretário do Tesouro dos Estados Unidos e um dos principais conselheiros políticos do presidente George Washington, a quem também esteve ligado John Jay, o primeiro presidente da Corte Suprema. Madison, junto com Jefferson, liderou a formação do Partido Republicano, pelo qual veio a ser eleito o quarto presidente dos Estados Unidos em 1808.

O acordo entre os autores de "O Federalista" não era absoluto e esteve diretamente relacionado aos objetivos dos artigos: a defesa da ratificação da Constituição. Não concordavam entre si em vários pontos, como também, em pontos específicos, tinham reservas quanto à Constituição proposta. Concordavam, no entanto, que a Constituição elaborada pela Convenção Federal oferecia um ordenamento político incontestavelmente superior ao vigente sob os Artigos da Confederação. Por partilharem deste diagnóstico, e por considerarem urgente para a sorte do país a adoção da nova Constituição, os autores de "O Federalista" projetaram escrever uma série de artigos onde a nova Constituição seria explicada e, ao mesmo tempo, refutadas as principais objeções de seus adversários.

Em seus artigos, os autores de "O Federalista" explicitam a teoria política a fundamentar o texto constitucional. A filosofia política da época, em especial a exposta por Montesquieu, era evocada pelos adversários da ratificação para fundamentar o questionamento que faziam do texto constitucional proposto. Montesquieu, membro de uma tradição que se inicia em Maquiavel e culmina em Rousseau, apontava para a incompatibilidade entre governos populares e os tempos modernos. A necessidade de manter grandes exércitos e a predominância das preocupações com o bem-estar material faziam das grandes monarquias a forma de governo mais adequada ao espírito dos tempos. As condições ideais exigidas pelos governos populares, um pequeno território e cidadãos virtuosos, amantes da pátria e surdos aos interesses materiais, não mais existiam. Se, por acaso, se formassem governos desta natureza, seriam presas fáceis de seus vizinhos militarizados, como comprovava a história europeia.

O desafio teórico enfrentado por "O Federalista" era o de desmentir os dogmas arraigados de uma longa tradição. Tratava-se de demonstrar que o espírito comercial da época não impedia a constituição de governos populares e, tampouco, estes dependiam exclusivamente da virtude do povo ou precisavam permanecer confinados a pequenos territórios. Estes postulados são literalmente invertidos. Aumentar o território e o número de interesses é benéfico à sorte desta forma de governo. Pela primeira vez, a teorização sobre os governos populares deixava de se mirar nos exemplos da Antigüidade, iniciando-se, assim, sua teorização eminentemente moderna.

O moderno federalismo

Um dos eixos estruturadores de "O Federalista" é o ataque à fraqueza do governo central instituído pelos Artigos da Confederação. Em realidade, segundo afirma Hamilton em "O Federalista", n. 15, nem se chegou, propriamente, a criar um governo, uma vez que estavam ausentes as condições mínimas a garantir sua existência efetiva. Esta passagem esclarece o seu raciocínio:

Governar subentende o poder de baixar leis. É essencial à idéia de uma lei que ela seja respaldada por uma sanção ou, em outras palavras, uma penalidade ou punição pela desobediência. Se não houver penalidade associada à desobediência, as resoluções ou ordens que pretendem ter força de lei serão, na realidade, nada mais que conselhos ou recomendações.

Como o Congresso não tinha poderes para exigir o cumprimento das leis que baixava, cuja aplicação e punição dos eventuais desobedientes ficava a cargo dos Estados, estas, a despeito do fato de serem constitucionais, não passavam de "recomendações que os Estados observavam ou ignoravam a seu bel-prazer".

O raciocínio desenvolvido por Hamilton deixa entrever o seu desdobramento necessário. A única forma de criar um governo central, que realmente mereça o nome de governo, seria capacitá-lo a exigir o cumprimento das normas dele emanadas. Para que tal se verificasse, seria necessário que a União deixasse de se relacionar apenas com os Estados e estendesse o seu raio de ação diretamente aos cidadãos.

Estabelecida nestes termos, a crítica não se dirige especificamente à confederação formada em 1781, mas a todo governo deste tipo. A experiência histórica demonstrava que as confederações haviam sido levadas à ruína pelas razões apresentadas por Hamilton (ver "O Federalista", n. 18 a 20). Insistir na formação de uma Confederação seria desconhecer as lições da história e se prender às conjecturas de Montesquieu, que via nestas a possibilidade de compatibilizar as qualidades positivas dos Estados grandes — a força — com a dos pequenos — a liberdade.

A Constituição proposta defendia a criação de uma nova forma de governo, até então não experimentada por qualquer povo ou defendida por qualquer autor. Em "O Federalista" é possível notar a dificuldade em nomear a forma de governo proposta. Conforme a define Madison, o idealizador desta inovação constitucional, ao final de "O Federalista" n. 38, a Constituição proposta não é estritamente nacional ou federal, mas uma composição de ambos os princípios. O termo federal, como nomeamos hoje esta forma de governo, era, até este momento, sinônimo de confederação. A distinção está no ponto assinalado por Hamilton; enquanto em uma confederação o governo central só se relaciona com Estados, cuja soberania interna permanece intacta, em uma Federação esta ação se estende aos indivíduos, fazendo com que convivam dois entes estatais de estatura diversa, com a órbita de ação dos Estados definida pela Constituição da União.

O federalismo nasce como um pacto político entre os Estados, fruto de esforços teóricos e negociação política. Um pacto político, digamos assim, fundante, pois, por seu intermédio, se constituíam os Estados Unidos enquanto nação. A opção pela preservação da União, entretanto, não se deveu ao amor pela inovação constitucional e, tampouco, deixou de levantar críticas.

Inspirados na reflexão de Montesquieu, calcada na história europeia, os "Antifederalistas" apontavam para os riscos à liberdade inerentes a um grande Estado, cujas características os levava a se transformar em monarquias militarizadas. Frente a este quadro, propunham a formação de três ou quatro confederações como forma de respeitar o tamanho ideal dos governos populares. Hamilton, ao contrário, detectava nesta proposta o germe da competição comercial entre as diversas confederações. Para evitar as rivalidades comerciais, estas sim as causadoras da militarização e do fortalecimento do executivo, defendia o pacto federal. Este pacto favoreceria o desenvolvimento comercial dos Estados Unidos, formando uma nação de grande extensão territorial que não dependeria de grandes efetivos militares.

A separação dos poderes e a natureza humana

"Mas afinal, o que é o próprio governo senão o maior de todos os reflexos da natureza humana? Se os homens fossem anjos, não seria necessário haver governos." Esta afirmação de Madison, feita em "O Federalista" n. 51, resume a concepção sobre a natureza humana a fundamentar as reflexões contidas em "O Federalista". Uma visão realista, quando não pessimista, do comportamento dos homens, exposta em um sem-número de passagens. Para citar mais um exemplo, em "O Federalist a " n. 6, Hamilton relembra que nunca se deve perder de vista o fato de os homens serem "ambiciosos, vingativos e rapaces". Pensar de modo diferente "seria ignorar o curso uniforme dos acontecimentos humanos e desafiar a experiência acumulada ao longo dos séculos".

Trata-se de um recurso de argumentação utilizado para justificar a necessidade de criação do Estado — um tema ao qual "O Federalista" dedica, em verdade, pouca atenção — e do estabelecimento de controles bem definidos sobre os detentores do poder — o tema central de "O Federalista". Controlar os detentores do poder porque, como observa Madison, os homens não são governados por anjos, mas sim por outros homens, daí por que seja necessário controlá-los. "Ao constituir-se um governo — integrado por homens que terão autoridade sobre outros homens — a grande dificuldade está em que se deve primeiro habilitar o governante a controlar o governado e, depois, obrigá-lo a controlar-se a si mesmo." As estruturas internas do governo devem ser estabelecidas de tal forma que funcionem como uma defesa contra a tendência natural de que o poder venha a se tornar arbitrário e tirânico.

As reflexões contidas em "O Federalista", neste ponto, seguem de perto as máximas do pensamento liberal e constitucional, a cuja tradição "O Federalista" se filia como um dos expoentes. Sendo o homem o que é, segue-se que todo aquele que detiver o poder em suas mãos tende a dele abusar. Como afirma Madison, "não se nega que o poder é, por natureza, usurpador, e que precisa ser eficazmente contido, a fim de que não ultrapasse os limites que lhe foram fixados". ("O Federalista", n. 48) A limitação do poder, dada esta sua natureza intrínseca, só pode ser obtida pela contraposição a outro poder, isto é, o poder freando o poder. Neste ponto, "O Federalista" se aproxima de Montesquieu. Estas reflexões, como é sabido, fundamentam a teoria da separação dos poderes, enunciada por este autor. Apesar de se apoiar expressamente em Montesquieu, a exposição de Madison da teoria da separação dos poderes contém especificidades que merecem ser notadas.

A teoria da separação dos poderes formulada por Montesquieu ainda não se despregou inteiramente das costelas da teoria do "governo misto". Para a literatura política do século XVIII, a Inglaterra era tomada como um caso comprobatório das qualidades do "governo misto". Segundo esta teoria, quando as funções de governo são distribuídas por diferentes grupos sociais — realeza, nobreza e povo —, o exercício do poder deixa de ser prerrogativa exclusiva de qualquer um dos grupos, forçando-os à colaboração, com o que a convivência civil é aprimorada e a liberdade preservada. O "governo misto", portanto, não é o mesmo que a "separação dos poderes", uma distribuição horizontal das três funções principais do Estado — a legislativa, a executiva e a judiciária — por órgãos distintos e autônomos. A correspondência entre o "governo misto" e a "separação dos poderes" pode ocorrer desde que cada força social seja responsável por uma das funções. Este é o caso da Inglaterra descrita por Montesquieu (Livro décimo primeiro, de O espírito das leis).

Por razões óbvias, esta era uma solução descartada nos Estados Unidos, onde as condições sociais para o "governo misto" estavam ausentes. Aliás, este não deixou de ser um problema para os colonos em luta com a Inglaterra, em geral, adeptos da teoria do "governo misto" como a mais eficaz defesa para a liberdade. Impedidos de lançar mão desta fórmula constitucional, onde encontrar os suportes para a liberdade? Este desafio levou alguns autores, como o influente Thomas Paine por exemplo, a rejeitar a teoria do "governo misto", qualificando-a de um mito, ao tempo que afirmavam que a verdadeira segurança para a liberdade de um povo encontrava-se em sua virtude. Miravam-se nos exemplos da Antigüidade greco-romana, cujas condições, diziam, os americanos estariam a reproduzir. Este era um argumento típico de parcela das fileiras "Antifederalistas". Por contraditório que possa parecer, por este caminho também se estruturavam críticas claramente antipopulares. Se a sorte dos governos populares dependia exclusivamente da virtude do povo, os cidadãos americanos já estavam demonstrando estar a perdê-la. Propunham assim a volta à teoria do "governo misto", isto é, afirmavam que apenas pela introdução de corretivos aristocráticos a liberdade poderia ser salva na América. "O Federalista" rejeita estas duas soluções, procurando encontrar novas bases para o governo popular.

Voltemos à separação dos poderes tal qual apresentada em "O Federalista" e vejamos quais suas relações com este ponto. A defesa da aplicação deste princípio encontra-se construída a partir de medidas constitucionais, garantias à autonomia dos diferentes ramos de poder, postos em relação um com os outros para que possam se controlar e frear mutuamente, referidas, em última análise, às características nada virtuosas dos homens, seus interesses e ambições pessoais por acumular poder. "A ambição será incentivada para enfrentar a ambição. Os interesses pessoais serão associados aos direitos constitucionais." ("O Federalista", n. 51) Não há vestígios da teoria do "governo misto" ou de uma concepção onde a liberdade seja resguardada por um povo virtuoso.

A adoção do princípio da separação dos poderes justifica-se como uma forma de se evitar a tirania, onde todos os poderes se concentram nas mesmas mãos. Os diferentes ramos de poder precisam ser dotados de força suficiente para resistir às ameaças uns dos outros, garantindo que cada um se mantenha dentro dos limites fixados constitucionalmente. No entanto, um equilíbrio perfeito entre estas forças opostas, possível no comportamento dos corpos regidos pelas leis da mecânica, não encontra lugar em um governo. Para cada forma de governo, haverá um poder necessariamente mais forte, de onde partem as maiores ameaças à liberdade. Em uma monarquia, tais ameaças partem do executivo, enquanto para as repúblicas, o legislativo se constitui na maior ameaça à liberdade, já que é a origem de todos os poderes e, em tese, pode alterar as leis que regem o comportamento dos outros ramos de poder. Daí por que sejam necessárias medidas adicionais para frear o seu poder. A instituição do Senado é defendida com este fim, uma segunda câmara legislativa composta a partir de princípios diversos daqueles presentes na formação da Câmara dos Deputados, sendo previsível que a ação de uma leve à moderação da outra.

Outra forma de deter o poder legislativo se obtém pelo reforço dos outros poderes. O judiciário, necessariamente o ramo mais fraco porque destituído de poder de iniciativa, merece cuidados especiais para que sua autonomia seja garantida. Este é um ponto defendido com ênfase por Hamilton, que chega, em passagens de "O Federalista" n. 78, a atribuir à Corte Suprema o poder de interpretação final sobre o significado da Constituição. Esta importante atribuição da Corte Suprema, no entanto, não é defendida consistentemente por qualquer um dos três autores e veio a ser incorporada posteriormente às prerrogativas próprias à Corte Suprema.

As repúblicas e as facções

"O Federalista" n. 10, de autoria de James Madison, é considerado o artigo mais importante de toda a série, merecendo as maiores atenções dos comentaristas. A razão desta celebridade encontra-se em sua discussão a respeito do mal das facções e das formas de enfrentá-lo. Caracterizadas como a principal ameaça à sorte dos governos populares, tidas como forças negativas, no que segue os ensinamentos de uma sólida tradição, Madison inova ao defender que a sorte dos governos populares não depende de sua eliminação, mas sim de encontrar formas de neutralizar os seus efeitos.

Montesquieu e Rousseau afirmavam que a sobrevivência das democracias era uma função direta da virtude dos cidadãos que a compunham. Sendo a virtude definida como a "renúncia a si próprio" em nome do "amor pelas leis e pela pátria", sua preservação estava na dependência direta da manutenção da igualdade social entre os cidadãos. Trata-se de uma igualdade na frugalidade, já que o luxo traria consigo, inevitavelmente, a ambição e os interesses particulares. Para Madison, tais postulações estabeleciam que as democracias só poderiam florescer onde as facções fossem eliminadas.

Madison rejeita esta solução, tida como não factível em um governo livre. As causas das facções encontram-se semeadas na própria natureza humana, nascendo do livre desenvolvimento de suas faculdades. A diversidade de crenças, opiniões e de distribuição da propriedade decorre da liberdade dos homens de disporem de seus próprios direitos. Vale observar que, entre estes direitos, Madison destaca o da propriedade, a principal fonte diferenciadora dos homens e, por isto mesmo, a fonte mais comum e duradoura das facções. Proteger o direito de autodeterminação dos homens, isto é, proteger a sua liberdade, é o objetivo primordial dos governos, sua razão de ser. Neste ponto encontra-se explicitado o comprometimento de Madison com o credo liberal. Busca-se constituir um governo limitado e controlado para assegurar uma esfera própria para o livre desenvolvimento dos indivíduos, em especial de suas atividades econômicas.

Se as facções são inevitáveis, o problema passa a ser o de impedir que um dos diferentes interesses ou opiniões presentes na sociedade venha a controlar o poder com vistas à promoção única e exclusiva de seus objetivos. O princípio da decisão por maioria, regra fundamental dos governos populares, passa a representar uma ameaça aos direitos das facções minoritárias. À maioria aplica-se o princípio da tendência natural ao abuso do poder quando este não encontra freios diante de si. É o que naturalmente tende a acontecer nas democracias puras, onde poucas facções se defrontam e facilmente a majoritária controla todo o poder.

Feita esta observação chega-se a um problema paradoxal para a teorização da democracia: o maior risco de que ela degenere em tirania radica-se no poder que confere à maioria. Uma solução republicana para os males republicanos, objetivo de Madison, não pode contraditar a regra definitória da forma de governo. Se o fizer, logicamente, o governo deixaria de ser republicano. Vejamos o remédio proposto por Madison.

Antes de mais nada, cabe notar que Madison está a advogar a causa de uma nova espécie de governo popular, uma república representativa, desconhecida na Antigüidade e por autores como Montesquieu e Rousseau que a tomam como modelo para suas reflexões. Estes autores constroem o seu modelo ideal de governo popular a partir dos exemplos de governos populares bem-sucedidos encontrados na história greco-romana. Por isto mesmo, os tempos modernos, onde a virtude havia sido substituída pelo apego ao bem-estar material, conspiravam contra a sorte desta forma de governo. Para Madison, ao contrário, esta história é uma sucessão de experiências fracassadas, dada a fraqueza congênita das democracias puras, oferecendo-lhe um modelo absolutamente negativo. Note-se, ainda, que as facções que tem em mente e que procura tornar compatíveis com o governo republicano — como pode ser observado pela leitura dos exemplos dados no correr do texto — são originárias do desenvolvimento de uma economia moderna. Madison afirma que este cenário não só é compatível com o governo popular, como também é mais apropriado para seu sucesso. A ruptura com a tradição é completa.

A raiz desta inversão de expectativas deve-se à nova espécie de governo popular que defendia: a república. A distinção entre as repúblicas e as democracias puras traz vantagens à primeira em dois pontos capitais. Primeiro, fazendo com que as funções de governo sejam delegadas a um número menor de cidadãos e, segundo, aumentando a área e o número de cidadãos sob a jurisdição de um único governo. À primeira vista, a primeira distinção, ao instituir a representação, traz, automaticamente, as respostas procuradas por Madison. Em função do "filtro" que institui, entregando o leme do Estado a homens imunes ao partidarismo, sempre aptos a discernir e optar pelos verdadeiros interesses do povo, a representação eliminaria o mal das facções. No entanto, seguir esta trilha é cair em uma armadilha do texto, é não prestar atenção ao comentário seguinte de Madison, afirmando a probabilidade de se verificar o resultado inverso, isto é, de que pessoas de espírito faccioso e com propósitos sinistros conseguissem obter os votos do povo para depois traí-lo. Segue que a representação, em si, não oferece as garantias suficientes para sanar o mal das facções.

Como afirma o próprio Madison, à segunda característica distintiva das repúblicas deve-se a principal contribuição para evitar o mal das facções. Sob um território mais extenso e com um número maior de cidadãos cresce o número de interesses em conflito, de tal sorte que ou não existe um interesse que reúna a maioria dos cidadãos, ou, na pior das hipóteses, será difícil que se organize para agir. Ou seja, através da multiplicação das facções chega-se à sua neutralização recíproca, tornando impossível o controle exclusivo do poder por uma facção. Impede-se, assim, que qualquer interesse particular tenha condições de suprimir a liberdade.

Por outro lado, o preço desta solução pode ser a paralisia do governo, com o choque entre vários interesses a bloquear qualquer iniciativa das partes. Isto é, a solução para o mal das facções poderia acarretar um mal maior: o não governo. Madison não chega a tocar nesta alternativa, o que poderia levar a pensar que este seria seu objetivo. Como um liberal, seria partidário de um governo mínimo, tudo mais ficando a cargo dos particulares e resolvendo-se pelas leis do mercado. Não é o caso. Madison não é um adepto de Adam Smith. À pergunta que lança no correr de sua argumentação, "Deverão as manufaturas nacionais ser incentivadas e em que grau através de restrições aos produtos estrangeiros?", não encontra resposta em um Estado mínimo. Em um não governo, isto é, onde não fossem decididas quais as restrições aos produtos estrangeiros, uma das partes, os proprietários de terra, sairia ganhando. A solução vislumbrada por Madison não é nem o governo mínimo, nem o não governo.

Conforme afirma, a preocupação central da legislação moderna é a de fornecer os meios para a coordenação dos diferentes interesses em conflito. Levar à coordenação dos interesses é a marca distintiva das repúblicas por oposição à violência do conflito entre facções características das democracias populares. Ante o bloqueio mútuo das partes, a coordenação aparece como a única alternativa para decisão dos conflitos, o interesse geral se impondo como a única alternativa.

Em uma república com a extensão territorial dos Estados Unidos e com a enorme variedade de interesses, partidos e seitas que engloba, a coalizão de uma maioria da sociedade dificilmente poderia ocorrer com base em quaisquer outros princípios que não os da justiça e do bem comum.