5
Montesquieu:
sociedade e poder
J. A. Guilhon Albuquerque
Aobra de Montesquieu constitui uma conjunção paradoxal entre o novo e o tradicional. Múltipla e guiada por uma espécie de curiosidade universal, parece estar em continuidade direta com os ensaístas que o precederam nos comentários sobre os usos e costumes dos diversos povos. Com traços de enciclopedismo, várias disciplinas lhe atribuem o caráter de precursor, ora aparecendo como pai da sociologia, ora como inspirador do determinismo geográfico, e quase sempre como aquele que, na ciência política, desenvolveu a teoria dos três poderes, que ainda hoje permanece como uma das condições de funcionamento do Estado de direito.
Dentro da história do pensamento, Montesquieu também ocupa posição paradoxal. Sua obra trata da questão do funcionamento dos regimes políticos, questão que ele encara dentro da ótica liberal, ambas problemáticas consideradas típicas de um período posterior. Além disso, Montesquieu é um membro da nobreza que, no entanto, não tem como objeto de reflexão política a restauração do poder de sua classe, mas sim como tirar partido de certas características do poder nos regimes monárquicos, para dotar de maior estabilidade os regimes que viriam a resultar das revoluções democráticas.
A percepção da história por uma classe social em ascensão tende a conceber como natural a sua função na organização da sociedade e o seu papel na estrutura do poder. Por isso Marx atribuía a historiadores de origem aristocrática uma percepção da natureza da sociedade burguesa que se revelava mais realística do que a dos economistas vinculados ã nova classe em ascensão.
Não sei se raciocínio idêntico se aplicaria a Montesquieu, mas é certo que sua preocupação central foi a de compreender, em primeiro lugar, as razões da decadência das monarquias, os conflitos intensos que minaram sua estabilidade, mas também os mecanismos que garantiram, por tantos séculos, sua estabilidade, e que Montesquieu identifica na noção de moderação. A moderação é a pedra de toque do funcionamento estável dos governos, e é preciso encontrar os mecanismos que a produziram nos regimes do passado e do presente para propor um regime ideal para o futuro.
Essa busca das condições de possibilidade de um regime estável, busca que aponta para os mecanismos de moderação, está presente em dois aspectos da obra de Montesquieu: a tipologia dos governos, ou a teoria dos princípios e da natureza dos regimes; e a teoria dos três poderes, ou a teoria da separação dos poderes. Vamos examinar cada uma dessas contribuições, mas antes convém discutir um aspecto metodológico essencial: a concepção de lei em Montesquieu.
O conceito de lei
Em sua tese sobre Montesquieu, a política e a história (Lisboa, Presença, 1972), Louis Althusser sublinhou com muita pertinência a contribuição de Montesquieu para a adoção do conceito de lei científica nas ciências humanas. Até Montesquieu, a noção de lei compreendia três dimensões essencialmente ligadas à idéia de lei de Deus. As leis exprimiam uma certa ordem natural, resultante da vontade de Deus. Elas exprimiam também um dever-ser, na medida em que a ordem das coisas estava direcionada para uma finalidade divina. Finalmente, as leis tinham uma conotação de expressão da autoridade. As leis eram simultaneamente legítimas (porque expressão da autoridade), imutáveis (porque dentro da ordem das coisas) e ideais (porque visavam uma finalidade perfeita).
Montesquieu introduz o conceito de lei no início de sua obra fundamental, O espírito das leis, para escapar a uma discussão viciada que, dentro da tradição jurídica sua contemporânea, ficaria limitada a discutir as instituições e as leis quanto à legitimidade de sua origem, sua adequabilidade à ordem natural, e a perfeição de seus fins. Uma discussão fadada a confundir, nas leis, concepções de natureza política, moral e religiosa.
Definindo lei como "relações necessárias que derivam da natureza das coisas", Montesquieu estabelece uma ponte com as ciências empíricas, e particularmente com a física newtoniana, que ele parafraseia. Com isso, ele rompe com a tradicional submissão da política à teologia. Mas não cairia na subordinação oposta, estabelecendo uma espécie de determinismo natural extremamente conservador, porque tornaria as instituições existentes inelutáveis, insubstituíveis?
Montesquieu está dizendo, em primeiro lugar, que é possível encontrar uniformidades, constâncias na variação dos comportamentos e formas de organizar os homens, assim como é possível encontrá-las nas relações entre os corpos físicos. Tal como é possível estabelecer as leis que regem os corpos físicos a partir das relações entre massa e movimento, também as leis que regem os costumes e as instituições são relações que derivam da natureza das coisas. Mas aqui se trata de massa e movimento de outra ordem, a massa e o movimento próprios da política, que poderiam corresponder, se precisássemos levar adiante a metáfora, a quem exerce o poder e como ele é exercido. São esses, como veremos, a natureza e princípio de governo, bases da tipologia de Montesquieu.
Com o conceito de lei, Montesquieu traz a política para fora do campo da teologia e da crônica, e a insere num campo propriamente teórico. Estabelece uma regra de imanência que incorpora a teoria política ao campo das ciências: as instituições políticas são regidas por leis que derivam das relações políticas. As leis que regem as instituições políticas, para Montesquieu, são relações entre as diversas classes em que se divide a população, as formas de organização econômica, as formas de distribuição do poder etc.
Mas o objeto de Montesquieu não são as leis que regem as relações entre os homens em geral, mas as leis positivas, isto é, as leis e instituições criadas pelos homens para reger as relações entre os homens. Montesquieu observa que, ao contrário dos outros seres, os homens têm a capacidade de se furtar às leis da razão (que deveriam reger suas relações), e além disso adotam leis escritas e costumes destinados a reger os comportamentos humanos. E têm também a capacidade de furtar-se igualmente às leis e instituições.
O objeto de Montesquieu é o espírito das leis, isto é, as relações entre as leis (positivas) e "diversas coisas", tais como o clima, as dimensões do Estado, a organização do comércio, as relações entre as classes etc. Montesquieu tenta explicar as leis e instituições humanas, sua permanência e modificações, a partir de leis da ciência política.
Os três governos
Vimos que Montesquieu está fundamentalmente preocupado com a estabilidade dos governos (expressão que corresponderia ao que chamamos de regime, ou modo de funcionamento das instituições políticas). Com isso, ele retoma a problemática de Maquiavel, que discute essencialmente as condições de manutenção do poder.
Os pensadores políticos que precedem Montesquieu (e Rousseau, que o sucede) são teóricos do Contrato Social (ou do Pacto), estão fundamentalmente preocupados com a natureza do poder político, e tendem a reduzir a questão da estabilidade do poder à sua natureza. Ao romper com o estado de natureza (onde a ameaça de guerra de todos contra todos põe em risco a sobrevivência da humanidade) o pacto que institui o estado de sociedade deve ser tal que garanta a estabilidade contra o risco de anarquia ou de despotismo.
Montesquieu constata que o estado de sociedade comporta uma variedade imensa de formas de realização, e que elas se acomodam mal ou bem a uma diversidade de povos, com costumes diferentes, formas de organizar a sociedade, o comércio e o governo. Essa imensa diversidade não se explica pela natureza do poder e deve, portanto, ser explicada. O que deve ser investigado não é, portanto, a existência de instituições propriamente políticas, mas sim a maneira como elas funcionam.
Assim, ele vai considerar duas dimensões do funcionamento político das instituições: a natureza e o princípio de governo. A natureza do governo diz respeito a quem detém o poder: na monarquia, um só governa, através de leis fixas e instituições; na república, governa o povo no todo ou em parte (repúblicas aristocráticas); no despotismo, governa a vontade de um só.
Não se trata de uma noção puramente descritiva, como poderia parecer à primeira vista. As análises minuciosas de Montesquieu sobre as "leis relativas à natureza do governo" deixam claro que se trata de relações entre as instâncias de poder e a forma como o poder se distribui na sociedade, entre os diferentes grupos e classes da população.
No que concerne à república, por exemplo, Montesquieu lembra que, por tratar-se de um governo em que o poder é do povo, é fundamental distinguir a fonte do exercício do poder, e estabelecer criteriosamente a divisão da sociedade em classes com relação à origem e ao exercício do poder. O povo, diz ele, sabe escolher muito bem, mas é incapaz de governar porque é movido pela paixão e não pode decidir. Portanto, na natureza dos governos republicanos está compreendida a relação entre as classes e o poder.
O princípio de governo é a paixão que o move, é o modo de funcionamento dos governos, ou seja, como o poder é exercido. São três os princípios, cada um correspondendo em tese a um governo. Em tese, porque, segundo Montesquieu, ele não afirma que "toda república é virtuosa, mas sim que deveria sê-lo" para poder ser estável.
Curiosa paixão, que tem três modalidades: o princípio da monarquia é a honra; o da república é a virtude; e o do despotismo é o medo. Esta é a única paixão propriamente dita, o único móvel psicológico dos comportamentos políticos, razão por que o regime que lhe corresponde é um regime que se situa no limiar da política: o despotismo seria menos do que um regime político, quase uma extensão do estado de natureza, onde os homens atuam movidos pelos instintos e orientados para a sobrevivência.
A honra é uma paixão social. Ela corresponde a um sentimento de classe, a paixão da desigualdade, o amor aos privilégios e prerrogativas que caracterizam a nobreza. O governo de um só baseado em leis fixas e instituições permanentes, com poderes intermediários e subordinados — tal como Montesquieu caracteriza a monarquia —, só pode funcionar se esses poderes intermediários orientarem sua ação pelo princípio da honra. É através da honra que a arrogância e os apetites desenfreados da nobreza bem como o particularismo dos seus interesses se traduzem em bem público.
Só a virtude é uma paixão propriamente política: ela nada mais é do que o espírito cívico, a supremacia do bem público sobre os interesses particulares. É por isso que a virtude é o princípio da república. Onde não há leis fixas nem poderes intermediários, onde não há poder que contrarie o poder como a nobreza contraria o rei e este à nobreza, somente a prevalência do interesse público poderia moderar o poder e impedir a anarquia ou o despotismo, eternamente à espreita dos regimes populares. Não esqueçamos que, para Montesquieu, república e despotismo são iguais num ponto essencial, pois em ambos os governos todos são iguais. A diferença é que nos regimes populares o povo é tudo e, no despotismo, nada é.
A combinação do princípio com a natureza do regime permite-nos entender melhor a teoria dos três governos. Já sabemos que o despotismo é menos que um regime, não possui instituições, é impolítico. É um governo cuja natureza é não ter princípio.
No governo republicano o regime depende dos homens. Sem republicanos não se faz uma república. Os grandes não a querem e o povo não sabe mantê-la. Trata-se de um regime muito frágil, porque repousa na virtude dos homens. Em todo povo existem homens virtuosos, capazes de colocar o bem público acima do bem próprio, mas as circunstâncias — isto é, essas famosas "relações que derivam da natureza das coisas" — nem sempre ajudam. O comércio, os costumes, o gosto pelas riquezas, o tamanho do país, as dimensões da população, tudo o que contribui para diversificar o povo e aumentar a distância cultural e de interesses entre suas classes, conspira contra a prevalência do bem público.
A monarquia não precisa da virtude, e mesmo as paixões desonestas da nobreza a favorecem. Nessa curiosa conjunção entre o princípio e a natureza da monarquia fica claro que ela apenas repousa em instituições. É possível agora redefinir com nossas próprias palavras a natureza dos três governos: o despotismo é o governo da paixão; a república é o governo dos homens; a monarquia é o governo das instituições.
O despotismo está condenado à autofagia: ele leva necessariamente à desagregação ou às rebeliões. A república não tem princípio de moderação: ela depende de que os homens mais virtuosos contenham seus próprios apetites e contenham os demais. Na monarquia, são as instituições que contêm os impulsos da autoridade executiva e os apetites dos poderes intermediários. Na monarquia, em outras palavras, o poder está dividido e, portanto, o poder contraria o poder. Essa capacidade de conter o poder, que só outro poder possui, é a chave da moderação dos governos monárquicos.
Para Montesquieu, a república é o regime de um passado em que as cidades reuniam um pequeno grupo de homens moderados pela própria natureza das coisas: uma certa igualdade de riquezas e de costumes ditada pela escassez. Com o desenvolvimento do comércio, o crescimento das populações e o aumento e a diversificação das riquezas ela se torna inviável: numa sociedade dividida em classes a virtude (cívica) não prospera.
O despotismo seria a ameaça do futuro, na medida em que as monarquias europeias aboliam os privilégios da nobreza, tornando absoluto o poder do executivo. Apenas a monarquia, isto é, o governo das instituições, seria o regime do presente.
Os três poderes
Deve ficar claro que Montesquieu não defendia a pura e simples restauração dos privilégios nobiliárquicos. A expansão dos negócios que já abolira a mediocridade das riquezas e, com ela, uma certa igualdade em que se baseia a república também já conspirava contra a permanência do papel político da nobreza. Trata-se, portanto, de procurar, naquilo que confere estabilidade à monarquia, algo que possa substituir o efeito moderador que resultava do papel da nobreza.
É com isso em mente que Montesquieu vai à Inglaterra, estudar in loco as bases constitucionais da liberdade, como ele diz. É a esse estudo que ele dedica uma das partes mais controvertidas do Espírito das leis. Trata-se de uma análise minuciosa da estrutura bicameral do Parlamento britânico — a Câmara Alta, constituída pela nobreza, e a Câmara dos Comuns, eleita por voto popular — e das funções dos três poderes, executivo, legislativo e judiciário.
Na sua versão mais divulgada, a teoria dos poderes é conhecida como a separação dos poderes ou a equipotência. De acordo com essa versão, Montesquieu estabeleceria, como condição para o Estado de direito, a separação dos poderes executivo, legislativo e judiciário e a independência entre eles. A idéia de equivalência consiste em que essas três funções deveriam ser dotadas de igual poder.
Vale ressaltar, entretanto, que seria curioso buscar a separação e independência entre legislativo e executivo justamente no regime britânico. Montesquieu ressalta, aliás, a interpenetração de funções judiciárias, legislativas e executivas. Basta lembrar a prerrogativa de julgamento pelos pares nos casos de crimes políticos para perceber que a separação total não é necessária nem conveniente. A equipotência, ou equivalência dos poderes, também é refutada implicitamente por Montesquieu, quando afirma que o judiciário é um poder nulo, "os juizes (são)... a boca que pronuncia as palavras da lei".
Estou-me baseando aqui nas análises de L. Althusser, que se inspira em artigos de Charles Eisenmann ("L'esprit des lois" et la séparation de pouvoirs, Paris, Mélanges Carré de Malberg, 1933). Segundo esses autores, Montesquieu mostra claramente que há uma imbricação de funções e uma interdependência entre o executivo, o legislativo e o judiciário. A separação de poderes da teoria de Montesquieu teria, portanto, outra significação.
Trata-se, dentro dessa ordem de idéias, de assegurar a existência de um poder que seja capaz de contrariar outro poder. Isto é, trata-se de encontrar uma instância independente capaz de moderar o poder do rei (do executivo). É um problema político, de correlação de forças, e não um problema jurídico-administrativo, de organização de funções.
Para que haja moderação é preciso que a instância moderadora (isto é, a instituição que proporcionará os famosos freios e contrapesos da teoria liberal da separação dos poderes) encontre sua força política em outra base social. Montesquieu considera a existência de dois poderes — ou duas fontes de poder político, mais precisamente: o rei, cuja potência provém da nobreza, e o povo. É preciso que a classe nobre, de um lado, e a classe popular, de outro lado (na época "o povo" designa a burguesia), tenham poderes independentes e capazes de se contrapor.
Em outras palavras, a estabilidade do regime ideal está em que a correlação entre as forças reais da sociedade possa se expressar também nas instituições políticas. Isto é, seria necessário que o funcionamento das instituições permitisse que o poder das forças sociais contrariasse e, portanto, moderasse o poder das demais.
Lida desta forma, como propõe Althusser, a teoria dos poderes de Montesquieu se torna vertiginosamente contemporânea. Ela se inscreve na linha direta das teorias democráticas que apontam a necessidade de arranjos institucionais que impeçam que alguma força política possa a priori prevalecer sobre as demais, reservando-se a capacidade de alterar as regras depois de jogado o jogo político.
Como toda interpretação do pensamento político clássico, o Montesquieu lido por Althusser não pode substituir a leitura dos próprios textos. Toda reinterpretação de uma teoria política se faz tendo em mente os problemas contemporâneos e constitui, portanto, uma nova teoria, contemporânea.
No fundo, toda teoria política clássica é por natureza contemporânea.