CAPÍTULO 10

Olhos de cobra

Senti meus pés tocarem em alguma coisa sólida, como se eu tivesse saído de um trem e pisado na plataforma da estação. Vi o piso da nossa varanda, depois meus All-Star sobre ele. Tínhamos cruzado de volta e deixamos o mundo vivo para trás. Estávamos de volta ao nosso lugar, com os mortos.

Eu não queria pensar dessa forma.

— Bem, estava na hora, considerando que acabei de ver as pinturas da sua mãe secarem mais de uma hora atrás.

Tia Prue estava esperando por nós no Outro Mundo, na varanda da frente da propriedade Wate, a casa que ficava no meio do cemitério.

Eu ainda não estava acostumado a ver minha casa aqui em vez dos mausoléus e estátuas de anjos chorando, que dominavam o Paz Perpétua. Mas parada ao lado da grade, com os três Harlon James sentados eretos ao redor dos pés dela, tia Prue parecia bastante controladora também.

Estava mais para louca de raiva.

— Senhora — falei, coçando o pescoço, inquieto.

— Ethan Wate, eu estava esperando você. Achei que só sairia por um minuto. — Os três cachorros pareciam tão irritados quanto ela. Tia Prue cumprimentou minha mãe, com um aceno de cabeça. — Lila.

— Tia Prudence. — Elas se entreolharam com cautela, o que me pareceu estranho. Elas sempre se deram bem quando eu era pequeno.

Sorri para minha tia e mudei de assunto.

— Eu consegui, tia Prue. Cruzei. Eu estava... você sabe, do outro lado.

— Você devia avisar, para que a gente não tenha de ficar esperando na sua varanda a maior parte do dia. — Minha tia balançou o lenço na minha direção.

— Fui a Ravenwood, Greenbrier, na propriedade Wate e ao The Stars and Stripes. — Tia Prue ergueu uma sobrancelha para mim, como se não acreditasse.

— É mesmo?

— Bem, não sozinho. Com minha mãe. Ela pode ter ajudado um pouco. Senhora.

Minha mãe pareceu achar divertido. Tia Prue, não.

— Bem, se você quer ter alguma chance de voltar lá, precisamos conversar.

— Prudence — disse minha mãe, com um tom estranho. Parecia um aviso.

Eu não sabia o que dizer, então, continuei a falar.

— A senhora está falando sobre cruzar? Porque acho que estou começando a pegar o jeit...

— Pare de falar e comece a ouvir, Ethan Wate. Não estou falando sobre a prática de cruzar. Estou falando sobre cruzar de volta. De vez, para o outro mundo.

Por um segundo, pensei que ela estivesse brincando comigo. Mas a expressão dela não mudou. Ela estava séria, pelo menos tão séria quanto minha tia-avó doida podia ficar.

— Do que a senhora está falando, tia Prue?

— Prudence — falou minha mãe, de novo. — Não faça isso.

Não faça o quê? Me dar uma chance de voltar para lá?

Tia Prue olhou com raiva para minha mãe e desceu a escada com um passo de sapato ortopédico de cada vez. Estiquei a mão para ajudá-la, mas ela me afastou, teimosa como sempre. Quando finalmente chegou à grama na base da escada, tia Prue parou à minha frente.

— Houve um erro, Ethan. Um erro bem grande. Não era para acontecer isso.

Um tremor de esperança percorreu meu corpo.

— O quê?

A cor sumiu do rosto da minha mãe.

— Pare. — Pensei que ela fosse desmaiar. Eu mal conseguia respirar.

— Não paro — disse tia Prue, apertando os olhos por trás dos óculos.

— Pensei que tivéssemos decidido não contar a ele, Prudence.

— Você decidiu, Lila Jane. Tenho idade o bastante para fazer o que tenho vontade.

— Sou mãe dele. — Minha mãe não ia ceder.

— O que está acontecendo? — Tentei entrar no meio das duas, mas nenhuma delas olhou para mim.

Tia Prue ergueu o queixo.

— O garoto tem idade suficiente para decidir uma coisa importante assim sozinho, não acha?

— Não é seguro. — Minha mãe cruzou os braços. — Não quero ser desagradável, mas vou ter de pedir que vá embora.

Eu nunca tinha ouvido minha mãe falar com nenhuma das Irmãs daquele jeito. Seria a mesma coisa que declarar a Terceira Guerra Mundial na família Wate. Mas isso não pareceu deter tia Prue.

Ela apenas riu.

— Não dá pra botar o melado de volta no pote, Lila Jane. Você sabe que é verdade, e sabe que não tem o direito de escondê-la do seu garoto. — Tia Prue me olhou bem nos olhos. — Preciso que venha comigo. Tem uma pessoa que você deve conhecer.

Minha mãe só olhou para ela.

— Prudence...

Tia Prue deu a ela o tipo de olhar que poderia fazer um canteiro de flores inteiro murchar.

— Não fale comigo assim. Você não pode impedir isso. E aonde estamos indo, você não pode ir, Lila Jane. Sabe tão bem quanto eu que nós duas não temos nada além do bem do garoto em mente.

Era uma maneira clássica de as Irmãs ganharem o controle, na qual, antes de você piscar, já tinha passado do ponto em que alguém tomava uma atitude.

Um segundo depois, minha mãe recuou. Eu jamais saberia o que aconteceu naquela troca de olhares silenciosa entre as duas, e provavelmente era melhor assim.

— Vou te esperar aqui, Ethan. — Minha mãe olhou para mim. — Mas tome cuidado.

Tia Prue sorriu vitoriosa.

Um dos Harlon James começou a rosnar. Em seguida, saímos andando pela calçada tão rápido que mal consegui acompanhar.

Segui tia Prue e os cachorros até os limites externos do Paz Perpétua, depois da mansão de estilo federal perfeitamente restaurada da família Snow, que ficava situada exatamente no mesmo local ocupado pelo enorme mausoléu no cemitério dos vivos.

— Quem morreu? — perguntei, olhando para minha tia. Afinal, não havia nada na terra poderoso o bastante para derrubar Savannah Snow.

— O tataravô Snow, antes mesmo de você sair das fraldas. Está aqui há muito tempo. É o lote mais antigo da área. — Ela desceu pelo caminho de pedra que levava aos fundos, e eu a segui.

Andamos até uma velha cabana atrás da casa, as tábuas podres mal segurando o telhado torto. Eu conseguia ver pequenos pontos de tinta velha agarrada à madeira, nos locais em que alguém a tinha raspado. Raspar não disfarçaria o tom que cobria minha casa em Gatlin, azul-fantasma. O tom de azul que servia para manter os espíritos afastados.

Acho que Amma estava certa sobre fantasmas não gostarem muito da cor. Ao olhar ao redor, já consegui ver a diferença. Não havia um vizinho de cemitério à vista.

— Tia Prue, onde estamos indo? Já aguentei Snows suficientes para mais de uma vida.

Ela me olhou com irritação.

— Já falei. Vamos visitar uma pessoa que sabe mais do que eu sobre essa confusão. — Ela esticou a mão para a maçaneta cheia de farpas da cabana. — Fique grato por eu ser uma Statham, e Stathams se dão com todos os tipos de pessoas, senão não teríamos uma alma para nos ajudar a resolver as coisas.

Eu não conseguia olhar para minha tia. Estava com medo de começar a rir, considerando que ela não se dava com nenhum tipo de pessoa, pelo menos, não na Gatlin de onde eu vinha.

— Sim, senhora.

Ela entrou na cabana, que não parecia nada além de uma cabana comum. Mas se eu tinha aprendido alguma coisa com Lena e minhas experiências no mundo, era que as coisas nem sempre são o que parecem.

Segui tia Prue (e todos os Harlon James) para dentro e fechei a porta atrás de nós. As rachaduras na madeira permitiam entrada de claridade suficiente para que eu a visse virar na cabana. Ela pegou alguma coisa sob a luz fraca, e me dei conta de que era outra maçaneta.

Um Portal escondido, como os dos túneis Conjuradores.

— Para onde estamos indo?

Tia Prue fez uma pausa ainda com a mão na maçaneta de ferro.

— Nem todas as pessoas têm sorte o bastante de estarem enterradas no Jardim da Paz Perpétua, Ethan Wate. Os Conjuradores, pelo que sei, têm tanto direito ao Outro Mundo quanto nós, não acha?

Tia Prue abriu a porta com facilidade, e saímos em uma costa pedregosa.

Havia uma casa perigosamente equilibrada na beirada de um penhasco. A madeira gasta tinha o mesmo tom triste de cinza das pedras, como se tivesse sido dolorosamente entalhada nelas. Era pequena e simples, e ficava escondida a olhos vistos, como tantas coisas no mundo que deixei para trás.

Vi as ondas baterem na lateral do penhasco, indo em direção à casa, mas enfraquecerem. Esse lugar tinha suportado o teste do tempo, desafiando a natureza de uma maneira que parecia impossível.

— De quem é essa casa? — Ofereci o braço à tia Prue, para ajudá-la a caminhar no chão irregular.

— Você sabe o que dizem sobre a curiosidade e os gatos. Pode não matar, mas você vai se meter em um monte de confusão. Embora a confusão pareça encontrar você, mesmo quando você não está procurando. — Ela segurou a saia comprida e florida com a outra mão. — Você vai ver logo, logo.

Ela não disse mais nada depois disso.

Subimos uma escada traiçoeira entalhada na lateral do penhasco. Onde a pedra não estava reforçada com tábuas podres de madeira, ela desmoronava sob meus pés, e quase me desequilibrei. Tentei lembrar que não ia cair e morrer, pois já estava morto. Ainda assim, não ajudou tanto quanto era de se pensar. Essa era outra coisa que eu tinha aprendido no mundo Conjurador: sempre parece haver uma coisa pior depois da próxima esquina. Sempre havia alguma coisa a temer, mesmo que você não tivesse descoberto exatamente o quê.

Quando chegamos à casa, eu só conseguia pensar no tanto que ela me lembrava de Ravenwood, apesar de as duas não se parecerem de maneira alguma. Ravenwood era uma mansão no estilo neoclássico grego, e essa era uma casa térrea simples. Mas a casa parecia ciente de nós quando nos aproximamos, viva com poder e magia, como Ravenwood. Estava cercada de árvores tortas com galhos inclinados, que foram domados pelo vento. Parecia o tipo de desenho distorcido que você encontraria em um livro feito para apavorar crianças e fazê-las terem pesadelos. O tipo de livro em que crianças ficavam presas por algo mais do que apenas bruxas e eram devoradas por algo mais do que apenas lobos.

Eu estava pensando que era uma boa coisa o fato de eu não precisar mais dormir quando minha tia seguiu para a porta. Tia Prue não hesitou. Ela bateu com o anel de latão oxidado três vezes. Havia escritos entalhados ao redor da porta. Era niádico, a língua antiga dos Conjuradores.

Recuei e deixei que todos os Harlon James passassem na minha frente. Eles rosnaram seus rosnados de cachorros pequenos para a porta. Antes que eu tivesse a chance de examinar os escritos com mais atenção, ela se abriu.

Um homem velho estava à nossa frente. Imaginei que fosse um Espectro, mas essa não era uma distinção que valesse fazer aqui. Éramos todos espíritos, de uma forma ou de outra. A cabeça dele era raspada e cheia de cicatrizes, linhas finas que se sobrepunham em um padrão terrível. A barba branca estava cortada curta, os olhos escondidos por óculos escuros.

O corpo magro estava coberto por um suéter preto, e ele estava parcialmente escondido atrás da porta. Havia alguma coisa frágil e cansada nele, como se tivesse fugido de um campo de trabalhos forçados ou coisa pior.

— Prudence. — Ele assentiu. — É este o garoto?

— Claro que é. — Tia Prue me empurrou para a frente. — Ethan, este é Obidias Trueblood. Entre.

Eu estiquei a mão.

— É um prazer conhecê-lo, senhor.

Obidias ergueu a mão direita, que estava escondida atrás da porta.

— Tenho certeza de que vai compreender, se não apertarmos as mãos. — A mão dele fora decepada na altura do pulso, com uma linha negra marcando o local onde fora cortada. Acima da marca, o pulso tinha muitas cicatrizes, como se tivesse sido perfurado muitas vezes.

E tinha mesmo.

Cinco cobras pretas se contorciam a partir do punho, até o ponto onde os dedos normalmente chegariam. Elas sibilavam, atacavam o ar e se enrolavam ao redor umas das outras.

— Não se preocupe — disse Obidias. — Elas não vão machucar você. É a mim que gostam de atormentar.

Não consegui pensar em nada para dizer. Eu queria correr.

Os Harlon James rosnaram ainda mais alto, e as cobras sibilaram em resposta. Tia Prue olhou com desdém para todos eles.

— Porrrr favor. Vocês também, não.

Olhei para a mão de cobras. Alguma coisa nela era familiar. Quantos caras com cobras no lugar de dedos podiam existir? Por que eu tinha a sensação de que o conhecia?

Eu lembrei e me dei conta de quem Obidias era: o cara que Macon tinha mandado Link ir ver nos túneis. No verão passado, depois da Décima Sétima Lua. O cara que morreu na frente de Link depois de Hunting mordê-lo, na casa dele, esta casa, ou pelo menos a versão dela no Outro Mundo. Naquela época, eu achei que Link estava exagerando, mas ele não estava.

Nem Link poderia ter inventado isso.

A cobra que substituía o polegar de Obidias se enrolou no pulso dele e esticou a cabeça na minha direção. A língua saiu da boca e voltou, com a parte bifurcada voando.

Tia Prue me empurrou para dentro, e cambaleei até ficar a centímetros das cobras.

— Entre. Você não está com medo de umas cobrinhas de jardim de nada, está?

Ela estava brincando? Elas pareciam víboras.

Constrangido, eu me virei na direção de Obidias.

— Me desculpe, senhor. Elas me pegaram desprevenido.

— Não perca seu tempo com isso. — Ele afastou o pedido de desculpas com um aceno da mão boa. — Não é uma coisa que se veja todos os dias.

Tia Prue fungou.

— Já vi uma coisa estranha ou duas. — Olhei para minha tia, que parecia tão presunçosa quanto se apertasse uma mão de cobra todos os dias da vida.

Obidias fechou a porta atrás de nós, mas não sem antes observar o horizonte em todas as direções.

— Vocês vieram sozinhos? Não foram seguidos?

Tia Prue balançou a cabeça.

— Eu? Ninguém consegue me seguir. — Ela não estava brincando.

Olhei para Obidias.

— Posso perguntar uma coisa, senhor? — Eu precisava ter certeza se ele tinha conhecido Link, se era o mesmo cara.

— É claro.

Limpei a garganta.

— Acho que o senhor conheceu um amigo meu. Quando estava vivo. Ele me contou sobre uma pessoa que se parecia muito com o senhor.

Obidias ergueu a mão.

— Você quer dizer um homem com cinco cobras no lugar da mão? Não deve haver muitos de nós.

Eu não sabia bem como dizer a próxima parte.

— Se era o meu amigo, ele estava lá quando o senhor... o senhor sabe. Morreu. Não sei se importa, mas se importar, eu gostaria de saber.

Tia Prue me olhou confusa. Ela não sabia nada disso. Link nunca tinha contado para ninguém além de mim, até onde eu sabia.

Obidias também estava me observando.

— Esse seu amigo conhecia Macon Ravenwood?

Assenti.

— Conhecia, sim.

— Então me lembro bem dele. — Ele sorriu. — Eu o vi entregar meu recado para Macon depois que morri. Dá pra ver muita coisa deste lado.

— Acho que sim.

Ele tinha razão. Como estávamos mortos, podíamos ver tudo. E como estávamos mortos, não importava o que conseguíamos ver. Então aquela coisa toda de ser capaz de enxergar do além-túmulo? Exagerado. Você só acabava vendo mais do que queria.

Tenho certeza de que eu não era o primeiro cara que trocaria ver menos por viver um pouco mais. Mas não falei isso para o Edward Mãos de Cobra. Eu não queria pensar sobre o quanto tinha em comum com um cara cujos dedos tinham presas.

— Por que não ficamos mais à vontade? Temos muito que conversar. — Obidias nos levou para a sala, o único aposento que eu conseguia ver além de uma pequena cozinha e uma porta solitária no final do corredor, que devia levar ao quarto.

Era basicamente uma biblioteca gigantesca. Havia prateleiras do chão ao teto, com uma escada velha de metal presa à mais alta. Uma base de madeira polida exibia um livro imenso, como o dicionário que tínhamos na Biblioteca do Condado de Gatlin. Marian adoraria este lugar.

Não havia mais nada na sala além de quatro poltronas esfarrapadas. Obidias esperou que tia Prue e eu nos sentássemos para escolher a poltrona à nossa frente. Tirou os óculos escuros que estava usando, e seus olhos se fixaram nos meus.

Eu devia saber.

Olhos amarelos.

Ele era um Conjurador das Trevas. É claro.

Isso fazia sentido, se era mesmo o cara da história de Link. Mas, ainda assim, agora que eu estava pensando nisso, o que tia Prue estava fazendo ao me levar para um Conjurador das Trevas?

Obidias deve ter percebido o que eu estava pensando.

— Você achava que não havia Conjuradores das Trevas aqui, não é?

Balancei a cabeça.

— Não, senhor. Acho que não.

— Surpresa. — Obidias sorriu com expressão cruel.

Tia Prue entrou na conversa para me salvar.

— O Outro Mundo é o local de coisas não terminadas. Para pessoas como eu, você e Obidias, que ainda não estão prontas para seguir em frente.

— E minha mãe?

Ela assentiu.

— Lila Jane mais do que todo mundo. Ela está aqui há mais tempo do que a maioria de nós.

— Alguns de nós conseguem cruzar livremente entre este mundo e outros — explicou Obidias. — Em algum momento, vamos para nosso destino. Mas aqueles de nós cujas vidas foram interrompidas antes de podermos acertar os problemas que nos assombravam ficam aqui até encontrar aquele momento de paz.

Ele não precisava me contar. Eu já sabia que cruzar era coisa complicada. E eu não tinha sentido nada remotamente pacífico. Ainda não.

Virei-me para tia Prue.

— Então, a senhora também está presa aqui? Quero dizer, quando não está cruzando de volta pra visitar as Irmãs? Por minha causa?

— Posso ir embora, se eu colocar isso na cabeça. — Ela bateu na minha mão, como se quisesse me lembrar de que eu era bobo de pensar que havia alguém ou alguma coisa que pudesse impedir minha tia de ir a um lugar aonde quisesse ir. — Mas não vou a lugar algum até você voltar para casa, onde é seu lugar. Você é parte do meu negócio não terminado agora, Ethan, e eu aceito isso. Quero acertar as coisas. — Ela bateu na minha bochecha. — Além do mais, o que mais posso fazer? Tenho de esperar por Mercy e Grace, não é?

— Voltar pra casa? A senhora está falando de Gatlin?

— Para a Srta. Amma e Lena e todos os seus — respondeu ela.

— Tia Prue, eu mal consegui cruzar pra visitar Gatlin, e, mesmo então, ninguém conseguiu me ver.

— É aí que você está errado, garoto. — Obidias entrou na conversa, e uma das cobras de aparência furiosa enfiou os dentes no pulso dele. Ele fez uma careta e pegou um pedaço de tecido na forma de uma luva do bolso. Colocou o capuz em cima das cobras e usou duas pontas de um cordão para fechar. As cobras se mexeram e debateram debaixo do tecido. — Onde eu estava?

— O senhor está bem? — Eu estava meio distraído. Não é todo dia que um cara, mesmo um Espectro, é mordido pela própria mão. Pelo menos, eu esperava que não.

Mas Obidias não queria falar sobre si mesmo.

— Quando ouvi sobre as circunstâncias que trouxeram você para esse lado do véu, mandei um recado para sua tia imediatamente. Para sua tia e sua mãe.

Minha tia Prue estalou a língua com impaciência.

Isso explicava minha tia querer me trazer aqui, e minha mãe não querer que ela fizesse isso. Só porque você dizia a mesma coisa para duas pessoas da minha família, isso não queria dizer que elas concordariam sobre o que ouviram. Minha mãe dizia que as pessoas na família Evers eram da linhagem das mais teimosas e birrentas que havia no mundo, e os Wate eram pior. Um bando de vespas brigando pelo ninho, era assim que meu pai chamava as reuniões de família dos Wate.

— Como o senhor soube o que aconteceu? — Tentei não olhar para as cobras se contorcendo debaixo do capuz preto.

— As notícias viajam rápido no Outro Mundo — disse ele, hesitante. — O mais importante é que eu soube que era um erro.

— Eu falei, Ethan Wate. — Tia Prue parecia muito satisfeita.

Se era um erro, se não era para eu estar aqui, talvez houvesse uma maneira de consertar. Talvez eu pudesse mesmo ir para casa.

Queria tanto que fosse verdade, assim como queria que isso fosse um sonho do qual eu pudesse acordar. Mas eu sabia a verdade.

Nada era como você queria que fosse. Não mais. Não para mim.

Eles não entendiam.

— Não foi um erro. Escolhi vir, Sr. Trueblood. Negociei com a Lilum. Se não viesse, as pessoas que eu amava e muitos outros iam morrer.

Obidias assentiu.

— Sei disso tudo, Ethan. Assim como sei sobre a Lilum e a Ordem das Coisas. Não estou questionando o que você fez. O que estou dizendo é que você nunca deveria ter de fazer essa escolha. Não estava nas Crônicas.

As Crônicas Conjuradoras? — Eu só tinha visto o livro uma vez, no arquivo, quando o Conselho do Registro Distante foi interrogar Marian. Mas era a segunda vez que eu ouvia o assunto surgir desde que cheguei aqui. Como Obidias sabia sobre isso? E não importa o que isso quisesse dizer, minha mãe não quis falar sobre o assunto.

— Sim — assentiu Obidias.

— Não entendo o que o livro tem a ver comigo.

Ele ficou em silêncio por um momento.

— Vá em frente, conte a ele. — Tia Prue estava olhando Obidias Trueblood da mesma maneira que olhava para mim pouco antes de me obrigar a fazer uma coisa doida, como enterrar nozes de carvalho no jardim dela para bebês esquilos. — Ele merece saber. Acerte as coisas.

Obidias assentiu para tia Prue e olhou para mim com aqueles olhos amarelo-dourados, que faziam minha pele se arrepiar quase tanto quanto a mão de cobras.

— Como você sabe, As Crônicas Conjuradoras são um registro de tudo que aconteceu no mundo. Mas também são um registro de tudo que pode acontecer, de futuros possíveis que ainda não se realizaram.

— O passado, o presente e o futuro. Eu lembro. — Os três Guardiões de aparência esquisita que vi na biblioteca e durante o julgamento de Marian. Como pude esquecer?

— Sim. No Registro Distante, esses futuros podem ser alterados, transformando-os de futuros possíveis em futuros reais.

— O senhor está dizendo que o livro pode mudar o futuro? — Eu estava atônito. Marian nunca tinha mencionado nada disso.

— Pode — respondeu Obidias. — Se uma página é alterada, ou se uma é acrescentada. Uma página que nunca deveria ter estado lá.

Um tremor subiu pelas minhas costas.

— O que o senhor está dizendo, Sr. Trueblood?

— A página que conta a história da sua morte nunca foi parte das Crônicas originais. Foi acrescentada. — Ele olhou para mim, perturbado.

— Por que alguém faria isso?

— Há mais motivos para as ações das pessoas do que o número de ações que são realmente executadas. — A voz dele estava distante, cheia de arrependimento e dor, como eu jamais esperaria de um Conjurador das Trevas. — O importante é que seu destino, este destino, pode ser alterado.

Alterado? Seria possível salvar uma vida depois que ela acabou?

Eu estava morrendo de medo de fazer a próxima pergunta, de acreditar que havia uma forma de voltar para tudo que perdi. Para Gatlin. Para Amma.

Lena.

Tudo que queria era senti-la nos braços e ouvir a voz dela na minha cabeça. Queria encontrar uma forma de voltar para a garota Conjuradora que eu amava mais do que tudo neste mundo, ou em qualquer outro.

— Como?

A resposta não importava realmente. Eu faria o que precisasse, e Obidias Trueblood sabia.

— É perigoso. — A expressão de Obidias era um aviso. — Mais perigoso do que qualquer coisa no mundo Mortal.

Ouvi as palavras, mas não consegui acreditar nelas. Não havia nada mais apavorante do que ficar aqui.

— O que preciso fazer?

— Você vai ter de destruir sua página nas Crônicas Conjuradoras. A que descreve sua morte.

Eu tinha mil perguntas, mas só uma importava.

— E se você estiver errado e minha página for parte do livro desde sempre?

Obidias olhou para o que sobrara da mão, com as cobras se retorcendo e atacando mesmo debaixo do tecido. Uma sombra passou pelo rosto dele.

Ele ergueu os olhos até os meus.

— Eu sei que não estava lá, Ethan. Porque fui eu que escrevi.