CAPÍTULO 16
Uma pedra e um corvo
Quando deixei o rio para trás, me dei conta de que a estrada que levava ao Portão do Registro Distante não era uma estrada. Era mais um caminho rudimentar e cheio de curvas, escondido entre as laterais de duas enormes montanhas negras, que ficavam lado a lado, criando um portão natural mais ameaçador que qualquer coisa feita por Mortais, ou por Guardiões. As montanhas eram lisas, com cantos afiados refletindo o sol, como se fossem feitas de obsidiana. Pareciam estar cortando tiras negras no céu.
Que ótimo.
A ideia de percorrer um caminho no meio dessas rochas irregulares e afiadas era um pouco mais do que intimidante. Fosse lá o que os Guardiões estivessem fazendo, definitivamente não queriam que ninguém soubesse.
Mas isso não era surpresa.
Exu estava voando em círculos acima de mim agora, como se soubesse exatamente para onde estava indo. Apertei o passo para seguir a sombra dele na trilha à minha frente, grato pelo pássaro apavorante que era maior até que Harlon James. Eu me perguntei o que Lucille acharia dele. Engraçado como um corvo sobrenatural dos Grandes podia parecer a única coisa familiar no cenário.
Mesmo com a ajuda do corvo de tio Abner, eu ficava parando para consultar o mapa de tia Prue. Exu definitivamente sabia a direção geral do Registro Distante, mas desaparecia de vista a cada quilômetro, mais ou menos. Os penhascos eram altos, a trilha era sinuosa, e ele não precisava se preocupar com percorrer essas montanhas.
Pássaro de sorte.
No mapa, meu caminho estava delineado pelo traço trêmulo de tia Prue. Cada vez que eu tentava acompanhá-lo, o caminho desaparecia alguns quilômetros à frente. Eu estava começando a temer que a mão dela tivesse tremido demais na direção errada. Porque, no mapa, não era para eu andar sobre as montanhas nem entre elas. Parecia que eu tinha de passar através delas.
— Isso não pode estar certo.
Olhei do papel para o céu. Exu deslizou de árvore em árvore na minha frente, apesar de que agora estávamos mais perto das montanhas, e as árvores estavam bem mais distantes umas das outras.
— Claro. Vai em frente. Esfrega na minha cara. Alguns de nós precisam andar, sabe.
Ele guinchou de novo. Balancei a garrafinha de uísque acima da cabeça.
— Só não se esqueça de quem está com seu jantar, hein?
Ele mergulhou na minha direção, e eu ri enquanto colocava a garrafinha de volta no bolso.
Não pareceu tão engraçado depois dos primeiros quilômetros.
Quando cheguei à face lisa do penhasco, verifiquei o mapa novamente. Ali estava ele. Um círculo desenhado na encosta, marcando alguma espécie de entrada de caverna ou túnel. Era bem fácil de achar no mapa. Mas quando baixei o papel e tentei encontrar a caverna, não havia nada.
Só uma face de penhasco pedregosa, tão íngreme que subia em uma vertical reta, interrompendo a trilha bem à minha frente. Ela subia tão alto até as nuvens, que parecia não terminar nunca.
Alguma coisa tinha de estar errada.
Tinha de haver uma entrada para o túnel em algum lugar por aqui. Tateei a rocha e tropecei em pedaços quebrados de pedra preta brilhante.
Nada.
Só quando me afastei do penhasco e reparei em um trecho de mato seco ao longo das pedras, foi que entendi.
O mato crescia no que era vagamente a forma de um círculo.
Segurei a vegetação morta com as mãos e puxei com o máximo de força que consegui. E ali estava. De certa forma. Nada podia ter me preparado para a realidade do que aquele círculo desenhado na montanha realmente representava.
Um buraco pequeno e escuro (e por pequeno eu quero dizer minúsculo), que mal dava para o tamanho de um homem. Que mal dava para o tamanho de Boo Radley. Talvez Lucille, mas até isso seria apertado. E estava escuro como breu lá dentro. É claro.
— Ah, para com isso.
De acordo com o mapa, o túnel era o único caminho até o Registro Distante, e até Lena. Se eu queria voltar para casa, teria de rastejar por ele. Fiquei enjoado só de pensar.
Talvez eu pudesse contornar. Quanto tempo demoraria para chegar ao outro lado da montanha? Tempo demais, isso era certo. Quem eu estava querendo enganar?
Tentei não pensar em como seria ter uma montanha inteira caindo em cima de você enquanto rastejava pelo meio dela. Se já estivesse morto, poderia ser esmagado até a morte? Será que doeria? Havia sobrado alguma coisa para doer?
Quanto mais dizia a mim mesmo para não pensar, mais eu pensava e, em pouco tempo, estava quase pronto para voltar.
Mas imaginei a alternativa: ficar preso aqui no Outro Mundo sem Lena por “infinito vezes infinito”, como Link diria. Nada valia esse risco. Respirei fundo, entrei no buraco e comecei a rastejar.
O túnel era menor e mais escuro do que eu poderia ter imaginado. Depois que me espremi lá para dentro, só tive alguns centímetros de espaço livre acima e aos lados do meu corpo. Era pior do que a vez que Link e eu ficamos presos na mala do carro do pai de Emory.
Nunca tive medo de espaços apertados, mas era impossível não sentir claustrofobia ali. E estava escuro, mais do que escuro. A única luz vinha das rachaduras na pedra, que eram poucas e afastadas entre si.
A maior parte do tempo, rastejei em completa escuridão, com apenas o som da minha respiração ecoando pelas paredes. Terra invisível enchia minha boca, fazia meus olhos arderem. Ficava pensando que ia bater em uma parede, que o túnel acabaria, e eu teria de voltar de costas. Ou que não conseguiria.
O chão abaixo de mim era feito da mesma pedra preta afiada da própria montanha, e eu tinha de me deslocar devagar para evitar bater em afiadas beiradas expostas. Minhas mãos estavam em frangalhos; meus joelhos pareciam dois sacos de vidro estilhaçado. Eu me perguntei se pessoas mortas podiam sangrar até a morte. Com minha sorte, seria o primeiro cara a descobrir.
Tentei me distrair, contando até cem, cantarolando músicas desafinadas dos Holy Rollers, fingindo que estava conversando com Lena por Kelt.
Nada ajudou. Sabia que estava sozinho.
Só fortaleceu minha resolução de não permanecer assim.
Não falta muito, L. Vou conseguir encontrar o Portão. Vamos voltar a ficar juntos logo, e, então, vou te contar como isso foi mesmo uma droga.
Fiquei em silêncio depois disso.
Era difícil demais fingir usar Kelt.
Meus movimentos ficaram mais lentos, e minha mente ficou mais lenta junto com eles, até meus braços e pernas se moveram em uma espécie de ritmo rígido, como a batida principal de uma das velhas músicas de Link.
Para trás e para a frente. Para trás e para a frente.
Lena. Lena. Lena.
Ainda estava falando o nome dela por meio de Kelt quando vi a luz no fim do túnel; não uma luz metafórica, mas verdadeira.
Ouvi Exu guinchando ao longe. Senti um princípio de brisa, o movimento de ar no meu rosto. A umidade fria do túnel começou a dar lugar à luz quente do mundo exterior.
Eu estava quase lá.
Apertei os olhos quando a luz do sol chegou à entrada do buraco. Eu ainda não tinha saído de dentro. Mas o túnel era tão escuro que meus olhos estavam tendo dificuldade em se ajustar a pequenas quantidades de luz.
Quando estava com metade do corpo para fora, deitei de bruços com os olhos ainda fechados e senti a terra negra contra a bochecha. Exu estava gritando alto, provavelmente zangado por eu estar descansando. Pelo menos, foi o que pensei.
Abri os olhos e vi o sol refletido em um par de botas pretas de cadarço. Em seguida, a beirada de uma capa preta de lã entrou em foco.
Que ótimo.
Ergui a cabeça lentamente, preparado para ver um Guardião de pé à minha frente. Meu coração disparou.
Parecia um homem, de certa forma. Se você ignorasse o fato de que era completamente careca, com pele preto-acinzentada impossivelmente lisa e olhos enormes. A capa preta estava amarrada à cintura com uma tira longa, e ele (se é que dava para chamar de ele) parecia uma espécie de monge estranho e pobre.
— Você perdeu alguma coisa? — perguntou ele. A voz parecia com a de um homem. De um homem velho, meio que triste ou, talvez, gentil. Era difícil conciliar os traços e a voz humanos com o resto do que eu estava vendo.
Apoiei-me na abertura da pedra e puxei as pernas de dentro do túnel, tentando evitar bater nele, fosse lá o que fosse.
— Eu… estou tentando encontrar o caminho do Registro Distante — gaguejei. Tentei me lembrar do que Obidias tinha dito. O que eu estava procurando? Uma porta? Um portão? Era isso. — Quero dizer, o Portão do Registro Distante. — Fiquei de pé e tentei andar para trás, mas não havia para onde ir.
— É mesmo? — Ele pareceu interessado. Ou talvez doente. Sinceramente, não sabia se era mesmo um rosto o que eu estava vendo, então era difícil saber o que a expressão significava.
— Isso mesmo. — Tentei parecer confiante. Quando me levantei, fiquei quase da altura dele, e isso foi tranquilizador.
— Os Guardiões estão te esperando? — Os olhos estranhos e apagados se apertaram.
— Estão — menti.
Ele se virou abruptamente para ir embora, com a capa balançando atrás.
Resposta errada.
— Não — gritei. — E vão me torturar se me encontrarem. Pelo menos, é o que todo mundo parece pensar. Mas tem uma garota… foi tudo um erro… eu não devia estar aqui… e vieram os gafanhotos, e a Ordem se rompeu, e eu tive de pular. — Minhas palavras morreram quando me dei conta do quão louco parecia. Não fazia sentido tentar explicar. Mal fazia sentido até para mim.
A criatura parou e inclinou a cabeça para o lado, como se estivesse pensando nas minhas palavras.
— Vem, você o encontrou.
— O quê?
— O Portão do Registro Distante.
Olhei para trás dele. Não havia nada ao redor além de pedra preta brilhante e céu azul e limpo. Talvez ele fosse louco.
— Hum, não vejo nada além de montanhas.
Ele se virou e apontou.
— Ali.
A manga da capa deslizou, e tive um vislumbre de dobra extra de pele balançando para fora do corpo e desaparecendo debaixo da roupa.
Parecia a asa de um morcego gigante.
Lembrei-me da história doida que Link me contou no verão. Macon o mandou para os túneis Conjuradores para entregar uma mensagem para Obidias Trueblood. Isso eu já tinha entendido. Mas havia outra parte, em que Link foi atacado por uma espécie de criatura que ele acabou agredindo com a tesoura de jardinagem; era preto-acinzentada e careca, com as feições de um homem e pedaços deformados de pele preta, que Link estava convencido serem asas. “É sério”, eu me lembrava de ele ter dito. “Você não ia querer dar de cara com aquela coisa em um beco à noite.”
Eu sabia que não podia ser a mesma criatura, porque Link disse que o monstro que viu tinha olhos amarelos. E o que estava aqui me olhava com olhos verdes, quase verde-Conjurador. E havia a outra coisa. O fato de ele ter enfiado a tesoura de jardinagem no peito da criatura.
Não podia ser ele.
Olhos verdes. Não dourados. Eu não precisava ter medo, certo? Ele não podia ser das Trevas, podia?
Ainda assim, não era nada que eu tivesse visto antes, e eu tinha visto mais do que qualquer garoto normal.
A criatura se virou e baixou o braço que não era um braço.
— Está vendo?
— O quê? — As asas? Eu ainda estava tentando entender o que ele era, ou não era.
— O Portão. — Ele pareceu decepcionado com minha burrice. Acho que também ficaria decepcionado se fosse ele. Eu mesmo estava me sentindo bem burro.
Procurei na direção que ele apontou um momento antes. Não havia nada lá.
— Não vejo nada.
Um sorriso satisfeito se espalhou no rosto dele, como se ele tivesse um segredo.
— É claro que não. Só o Guardião do Portão consegue vê-lo.
— Onde está… — Eu parei ao me dar conta de que não precisava fazer essa pergunta. Eu já sabia a resposta. — Você é o Guardião do Portão.
Havia um Mestre do Rio e um Guardião do Portão. É claro que havia. Também havia um homem-cobra, um corvo que bebia uísque e que conseguia voar da terra dos vivos para a terra dos mortos, um rio cheio de corpos e um cachorro-dragão. Era como andar no meio de um jogo de Dungeons & Dragons.
— O Guardião do Portão. — A criatura assentiu, obviamente satisfeita consigo mesma. — Sou isso entre outras coisas.
Tentei não me fixar na palavra coisas. Mas ao olhar para a pele cor de carvão e pensar naquelas asas horríveis, não consegui deixar de imaginá-lo como alguma espécie de cruzamento terrível entre pessoa e morcego.
Um Batman da vida real, de certa forma.
Só que não do tipo que salva pessoas. Talvez, o contrário.
E se essa coisa não quiser me deixar entrar?
Respirei fundo.
— Olhe, sei que é loucura. Deixei a loucura pra trás há um ano. Mas tem uma coisa de que preciso aí dentro. E se eu não pegar, não vou poder ir pra casa. Tem alguma maneira de você me mostrar onde fica o Portão?
— É claro.
Ouvi as palavras antes de ver seu rosto. E sorri, até perceber que era o único sorrindo.
A criatura franziu a testa e apertou os enormes olhos. Ele juntou as mãos na frente do peito e bateu as pontas tortas dos dedos.
— Mas por que eu faria isso?
Exu gritou ao longe.
Ergui o olhar e vi a enorme forma preta circulando sobre nossas cabeças, como se estivesse preparado para descer e atacar.
Sem dizer uma palavra e sem olhar para cima, a criatura levantou a mão.
Exu desceu e pousou no punho do Guardião do Portão e esfregou a cabeça no braço dele, como se reencontrasse um velho amigo.
Talvez, não.
O Guardião do Portão parecia ainda mais assustador com Exu ao lado. Era hora de encarar os fatos. A criatura estava certa. Não tinha motivo para me ajudar.
E então, o pássaro gritou de forma quase solidária. A criatura emitiu um som grave e gutural, quase uma risada, e ergueu a mão para alisar as penas do pássaro.
— Você tem sorte. O pássaro é um bom avaliador de caráter.
— É? O que o pássaro diz sobre mim?
— Ele diz: lento na caminhada, mesquinho com o uísque, mas com bom coração. Para um homem morto.
Eu sorri. Talvez o corvo não fosse tão ruim.
Exu gritou de novo.
— Posso te mostrar o Portão, garoto.
— Ethan.
— Ethan. — Ele hesitou e repetiu meu nome devagar. — Mas você tem de me dar alguma coisa em troca.
Eu quase temia perguntar.
— O que você quer? — Obidias mencionou que o Guardião do Portão esperaria alguma espécie de presente, mas eu não tinha pensado muito nisso.
Ele olhou para mim pensativo, refletindo sobre a pergunta.
— Uma troca é um assunto sério. Equilíbrio é um princípio-chave dentro da Ordem das Coisas.
— A Ordem das Coisas? Pensei que não precisássemos mais nos preocupar com isso.
— Sempre existe Ordem. Agora, mais do que nunca, a nova Ordem precisa ser mantida cuidadosamente.
Não entendi os detalhes, mas entendi a importância. Não tinha sido assim que entrei nessa confusão?
Ele continuou a falar.
— Você diz que precisa de uma coisa pra te levar pra casa. É a coisa que você mais deseja? Eu pergunto, o que te trouxe aqui? É isso que mais desejo.
— Que ótimo. — Parecia simples, mas era como se ele estivesse falando em charadas ou jogos de palavras aleatórios.
— O que você tem? — Os olhos dele brilharam com ganância.
Enfiei as mãos nos bolsos e peguei a pedra do rio que sobrara e o mapa de tia Prue. O uísque e o tabaco de Exu já haviam acabado.
O Guardião do Portão ergueu as sobrancelhas peladas.
— Uma pedra e um mapa velho? Só isso?
— Foi o que me trouxe aqui. — Apontei para Exu, ainda pousado no ombro dele. — E um pássaro.
— Uma pedra e um corvo. Difícil de rejeitar. Mas já tenho essas duas coisas na minha coleção.
Exu saiu do ombro dele e voou em direção ao céu, como se estivesse ofendido. Em segundos, o corvo desapareceu.
— E agora, você não tem pássaro — disse o Guardião do Portão, sem rodeios.
— Não entendo. Tem alguma coisa específica que você queira? — Tentei esconder a frustração na voz.
O Guardião do Portão pareceu satisfeito com a pergunta.
— Específica, sim. Especificamente, uma troca justa é o que prefiro.
— Você poderia ser um pouco mais específico?
Ele inclinou a cabeça.
— Nem sempre sei o que vai me interessar até que veja. As coisas que são mais valiosas costumam ser as que você nem sabe que existem.
Ajudou muito.
— Como posso saber o que você já tem?
Os olhos dele se iluminaram.
— Posso mostrar minha coleção, se você quiser ver. Não existe outra igual em nenhuma parte do Outro Mundo.
O que eu podia dizer?
— Quero. Seria ótimo.
Enquanto eu o seguia ao longo das pedras pretas afiadas, ouvi a voz de Link na minha cabeça.
— Má escolha, cara. Ele vai te matar, te empalhar e te colocar na coleção de idiotas que o seguiram pra caverna arrepiante dele.
Era uma ocasião em que eu devia estar mais seguro morto do que vivo.
O quão justo e equilibrado era isso?
O Guardião do Portão passou por uma rachadura estreita na parede lisa de pedra preta. Era maior do que um buraco, mas não muito. Segui de lado porque não havia muito espaço para me virar.
Eu sabia que podia ser alguma armadilha. Link tinha descrito a criatura que encontrara como um animal, perigoso e enlouquecido. E se o Guardião do Portão não fosse diferente disso, só melhor em disfarçar? Onde estava aquele corvo idiota quando eu precisava dele?
— Estamos quase chegando — disse ele.
Eu conseguia ver uma luz suave à frente, brilhando ao longe.
Sua sombra passou à frente dela e escureceu momentaneamente a passagem no instante em que o espaço estreito se abria em um aposento semelhante a uma caverna. Cera pingava de um candelabro de ferro preso diretamente no céu de pedra brilhante. As paredes cintilavam à luz das velas.
Se não tivesse acabado de rastejar por uma montanha inteira feita desse material, eu poderia ter ficado mais impressionado. Mas, na verdade, o espaço fechado da caverna só fez minha pele se arrepiar.
Mas, quando olhei ao redor, me dei conta de que o local era mais do que um museu, com uma coleção ainda mais louca do que você encontraria se cavasse o quintal inteiro das Irmãs. Estojos de vidro e prateleiras ocupavam as paredes, cheios de centenas de objetos. Foi a aleatoriedade da coleção que me intrigou, como se uma criança não só tivesse reunido a coleção, mas também a catalogado. Caixas de joias entalhadas em ouro e prata ficavam ao lado de uma coleção de caixas de música vagabundas de criança. Discos reluzentes de vinil estavam em uma pilha alta ao lado de um daqueles toca-discos antiquados com alto-falante em forma de funil, como o que as Irmãs tinham. Uma boneca Raggedy Ann estava encolhida em uma cadeira de balanço, com uma pedra verde enorme, do tamanho de uma maçã, no colo. E, na prateleira do centro, vi uma esfera opalescente igual à que carreguei na mão no verão passado.
Não podia ser… um Arco Voltaico.
Mas era. Exatamente como o que Macon dera à minha mãe, só que branco-leitoso em vez de preto como breu.
— Onde você conseguiu isso? — Andei em direção à prateleira.
Ele correu para passar na minha frente e pegou a esfera.
— Já falei, sou colecionador. Pode-se dizer historiador. Você não deve tocar em nada aqui. Os tesouros nesta sala são insubstituíveis. Passei mil vidas reunindo-os. São todos igualmente valiosos — disse ele, em um sussurro.
— Ah, é? — Olhei para uma lancheira do Snoopy cheia de pérolas.
Ele assentiu.
— De valor inestimável.
Ele colocou o Arco Voltaico no lugar.
— Todo tipo de coisa já foi oferecida a mim no Portão — acrescentou ele. — A maior parte das pessoas e não pessoas sabe que é educado me trazer um presente quando vem bater à minha porta. — Ele lançou um olhar a mim. — Sem querer ofender.
— Tá, desculpa. Quero dizer. Eu queria ter uma coisa pra te dar…
Ele ergueu uma sobrancelha pelada.
— Além de uma pedra e um corvo?
— É. — Passei os olhos pelas fileiras de livros com capa de couro, arrumados sobre as prateleiras, com lombadas contendo símbolos e línguas que não reconheci. A lombada de um livro de couro preto chamou minha atenção. Parecia que o nome era… — O Livro das Estrelas?
O Guardião do Portão pareceu satisfeito e correu para tirá-lo da prateleira.
— É um dos livros mais raros deste tipo. — Niádico, a língua Conjuradora que aprendi a reconhecer, se contorcia pelas beiradas da capa. Havia um aglomerado de estrelas em relevo no centro. — Só tem outro como ele…
— O Livro das Luas — concluí, por ele. — Eu sei.
Os olhos dele se arregalaram, e ele apertou O Livro das Estrelas contra o peito.
— Você sabe sobre a metade das Trevas? Ninguém em nosso mundo o vê há centenas de anos.
— É porque não está no seu mundo. — Olhei para ele por um longo momento antes de me corrigir. — No nosso mundo.
Ele balançou a cabeça sem acreditar.
— Como você poderia saber disso?
— Porque fui eu quem o encontrou.
Por um momento, ele não disse nada. Consegui perceber que estava tentando decidir se eu estava mentindo ou se era maluco. Não havia nada na sua expressão que tornasse aparente se acreditava mesmo em mim, mas como falei, não havia muito lá para avaliar, pelo rosto dele não ser bem um rosto, e tal.
— Isso é um golpe? — Os olhos verdes sem vida se apertaram. — Não seria bom pra você fazer joguinhos comigo, se espera encontrar o Portão do Registro Distante.
— Eu nem sabia que O Livro das Luas tinha outra metade, ou seja lá o que você disse. Então como eu poderia saber que devia mentir sobre ele?
Era verdade. Nunca tinha ouvido ninguém mencioná-lo, nem Macon, nem Marian, nem Sarafine nem Abraham.
É possível que não soubessem?
— Como falei, equilíbrio. Luz e Trevas são parte da balança invisível, que está sempre pendendo enquanto nos penduramos nas beiradas. — Ele passou os dedos retorcidos pela capa do livro. — Não se pode ter uma coisa sem a outra. Por mais triste que possa parecer.
Depois de tudo que aprendi sobre O Livro das Luas, eu não conseguia imaginar o que havia dentro de sua outra metade. Será que O Livro das Estrelas carregava o mesmo tipo de consequências arrasadoras?
Eu estava quase com medo de perguntar.
— Há um preço por usar esse aí também?
O Guardião do Portão andou até a extremidade da sala e se sentou em uma cadeira com entalhe intrincado que parecia um trono de um velho castelo. Pegou uma garrafa térmica do Mickey Mouse, serviu um líquido de cor de âmbar na tampa de plástico e bebeu metade. Havia cansaço nos seus movimentos, e me perguntei quanto tempo ele tinha levado para reunir a coleção de itens valiosos e sem valor guardados entre essas paredes.
Quando ele falou, parecia ter envelhecido cem anos.
— Nunca usei o livro. Minhas dívidas são muitas para eu me arriscar a dever qualquer coisa mais. Mas não sobrou muito pra levarem, sobrou? — Ele bebeu o resto do líquido e bateu a tampa de plástico na mesa. Em segundos, estava andando de um lado para o outro de novo, nervoso e agitado.
Eu o segui até o outro lado da sala.
— A quem você deve?
Ele parou de andar e apertou a capa ao redor do corpo, como se estivesse se protegendo de um inimigo invisível.
— Ao Registro Distante, claro. — Havia um misto de amargura e derrota na sua voz. — E eles sempre cobram o que lhes é devido.