CAPÍTULO 34
As Crônicas Conjuradoras
Angelus saiu do aposento, com os outros Guardiões logo atrás.
Soltei a respiração que estava prendendo.
— O que eles vão fazer?
— Eles precisam te dar uma chance, senão serão vistos como injustos.
— Vistos como injustos? — Ele estava falando sério? — Você está dizendo que ninguém reparou nisso antes?
— O Conselho é temido. Ninguém os questiona — disse Xavier. — Mas eles também são orgulhosos. Principalmente Angelus. Ele quer que seus seguidores acreditem que ele está te dando uma chance.
— Mas não está?
— Depende de você agora. — Xavier se virou para mim com uma expressão que parecia de tristeza no que restava de seu rosto humano. — Não posso te ajudar. Não depois daqui, meu amigo.
— Do que você está falando?
— Não vou entrar lá de novo. Não posso — disse ele. — Não na Câmara das Crônicas.
É claro. O aposento que abrigava o livro. Tinha de ser ali perto.
Olhei para a fileira de portas à nossa frente, alinhadas em um dos lados do salão. Me perguntei qual levava ao final da minha jornada ou à morte da minha alma.
— Você não pode voltar lá? E eu posso? Não venha de covardia pra cima de mim agora. — Baixei a voz. — Você acabou de encarar Angelus. Fez um pacto com o Diabo. É meu herói.
— Não sou herói. Como falei, sou seu amigo.
Xavier não podia ir lá. Quem podia culpar o sujeito? A Câmara das Crônicas deve ter sido alguma espécie de casa dos horrores para ele. E ele já havia se colocado em perigo suficiente.
— Obrigado, Xavier. Você é um ótimo amigo. Um dos melhores. — Eu sorri para ele. O olhar que ele me deu em resposta foi sério.
— Essa jornada é sua, homem morto. Só sua. Não posso seguir em frente. — Ele colocou o braço no meu ombro e apertou.
— Por que tenho de fazer tudo sozinho? — Assim que acabei de falar, soube que não era verdade.
Os Grandes tinham me ajudado a achar o caminho.
Tia Prue certificou-se de eu ter uma segunda chance.
Obidias me contou tudo que eu precisava saber.
Minha mãe me deu a força para ir em frente.
Amma me procurou e acreditou quando me encontrou.
Lena me mandou O Livro das Luas, com todas as dificuldades e do outro lado do universo. Tia Marian e Macon, Link e John e Liv, eles estavam apoiando Lena quando eu não podia estar.
Até o Mestre do Rio e Xavier me ajudaram a seguir em frente, quando teria sido bem mais fácil desistir e voltar.
Nunca fiquei sozinho. Nem por um minuto.
Posso ter sido um Obstinado, mas meu caminho estava cheio de pessoas que me amavam. Elas eram o único caminho que eu conhecia.
Eu seria capaz de fazer isso.
Tinha de ser.
— Eu entendo — falei. — Obrigado, Xavier. Por tudo.
Ele assentiu.
— Vou te encontrar de novo, Ethan. Vou te ver na próxima vez que você cruzar o rio.
— Espero que demore muito.
— Também espero o mesmo, meu amigo. Por você mais do que por mim. — Os olhos dele pareceram brilhar por um segundo. — Mas vou me manter ocupado colecionando e contando até você voltar.
Não falei nada quando ele seguiu pelas sombras e voltou para o mundo onde nada acontecia e os dias eram iguais às noites.
Eu esperava que ele se lembrasse de mim.
Tinha quase certeza de que não se lembraria.
Uma a uma, toquei com a mão na fileira de portas à minha frente. Algumas eram frias como gelo. Outras não transmitiram sensação alguma, pareciam madeira simples. Só uma pulsou sob meus dedos.
Só uma queimou ao meu toque.
Eu sabia que era a porta certa, antes mesmo de ver os círculos Conjuradores entalhados na madeira de sorveira, assim como na Temporis Porta.
Essa era a passagem para o coração do Grande Registro. O único lugar para o qual o filho de Lila Jane Evers encontraria o caminho, fosse ele Obstinado ou não.
A biblioteca.
Empurrei a porta enorme diretamente em frente à Temporis Porta e soube que era a hora de encarar a parte mais perigosa da minha jornada.
Angelus estaria esperando.
As portas eram só o começo. Assim que entrei na câmara, me vi de pé em um aposento quase todo reflexivo. Era para ser uma biblioteca, mas era a mais estranha que eu já tinha visto.
As pedras esfareladas debaixo dos meus pés, as paredes ásperas de caverna, o teto e o chão com estalactites e estalagmites por toda a extensão, formando quase que um aposento redondo, tudo parecia ser feito de alguma espécie de pedra preciosa transparente, entalhada em mil facetas impossíveis, que refletiam a luz em todas as direções. Parecia que eu estava de pé em uma das 11 caixas de joias da coleção de Xavier.
Só que era menos claustrofóbico. Uma pequena abertura no teto permitia a entrada de luz suficiente para deixar o aposento todo com um brilho vertiginoso. O efeito me lembrava da caverna onde conheci Abraham Ravenwood, na noite da Décima Sétima Lua de Lena. No centro deste aposento, havia um lago de água do tamanho de uma piscina. A água branco-leitosa borbulhava como se houvesse fogo embaixo. Era da cor dos olhos opacos e cegos de Sarafine, antes de ela morrer…
Estremeci. Não podia pensar nela, não agora. Tinha de me concentrar em sobreviver a Angelus. Em derrotá-lo. Respirei fundo e tentei me controlar. Com o que eu estava lidando?
Meus olhos se fixaram no líquido branco borbulhante. No centro da piscina, um pequeno pedaço de terra se erguia acima da água, como uma pequena ilha.
No centro da ilha havia um pedestal.
No pedestal havia um livro, cercado de velas que brilhavam com estranhas chamas verdes e douradas.
O livro.
Eu não precisava que alguém me dissesse que livro era, nem o que estava fazendo aqui. O motivo de haver uma biblioteca inteira dedicada a apenas um livro e com um fosso ao redor.
Eu sabia exatamente por que ele estava aqui e por que eu estava.
Era a única parte desta jornada que eu entendia. A única coisa que estava completamente clara desde o momento em que Obidias Trueblood me contou a verdade sobre o que tinha acontecido comigo. Eram As Crônicas Conjuradoras, e eu estava aqui para destruir minha página. A que tinha me matado. E eu tinha de fazer isso antes que Angelus pudesse me impedir.
Depois de tudo que descobri sobre ser Obstinado e achar meu caminho, era até aqui que ele levava. Não havia outro caminho a seguir, não havia mais trilha para eu encontrar.
Eu estava no final.
E tudo que queria era voltar.
Mas, primeiro, precisava chegar àquela ilha, ao pedestal e às Crônicas Conjuradoras. Eu tinha de fazer o que tinha vindo fazer.
Um grito do outro lado do aposento me assustou.
— Garoto Mortal. Se você for embora agora, deixo você ficar com sua alma. Que tal esse desafio? — Angelus apareceu do outro lado da piscina. Eu me perguntei como ele chegou lá e desejei que houvesse tantas formas de sair desta sala quanto havia de entrar.
Ou, pelo menos, tantos caminhos para casa.
— Minha alma? Não, não vai deixar. — Fiquei parado na beirada da piscina, joguei uma pedra na água borbulhante e a vi desaparecer. Eu não era burro. Ele jamais me deixaria ir embora. Eu acabaria como Xavier ou Sarafine. Com asas negras ou olhos brancos, não fazia diferença. No final, estávamos todos presos com as correntes dele, quer você conseguisse vê-las ou não.
Angelus sorriu.
— Não? Suponhamos que seja verdade. — Ele gesticulou com a mão, e algumas pedras se ergueram no ar ao redor dele. Elas se lançaram para cima de mim, uma depois da outra, batendo com precisão incomum. Levantei um braço na frente do rosto quando uma pedra passou voando.
— Muito maduro. O que você vai fazer agora? Me amarrar e me prender no seu depósito de ossos? Cego e acorrentado como um animal?
— Não se lisonjeie. Não quero um bichinho de estimação Mortal. — Ele torceu um dedo, e a água começou a girar em uma espécie de redemoinho. — Vou apenas destruir você. É mais fácil pra todos nós. Embora não seja um desafio muito grande.
— Por que você torturou Sarafine? Ela não era Mortal. Por que se dar a esse trabalho? — gritei.
Eu precisava saber. Parecia que nossos destinos estavam amarrados de alguma forma: o meu, o de Sarafine, o de Xavier e o de todos os outros Mortais e Conjuradores que Angelus tinha destruído.
O que nós éramos para ele?
— Sarafine? Era esse o nome dela? Eu quase tinha esquecido. — Angelus riu. — Você espera que eu me preocupe com cada Conjurador das Trevas que acaba aqui?
A água girou com violência agora. Eu me ajoelhei e toquei nela com uma das mãos. Estava gelada e era meio gosmenta. Não queria nadar nela, mas não conseguia descobrir outra forma de chegar lá.
Olhei para Angelus. Eu não sabia como esse negócio de desafio ia acontecer, mas achei que era melhor mantê-lo falando até eu descobrir.
— Você cega todos os Conjuradores das Trevas e faz com que lutem até a morte?
Olhei de novo para a água. Ela ondulou onde eu a estava tocando, ficando limpa e calma.
Angelus cruzou os braços, sorrindo.
Mantive a mão na água enquanto a corrente transparente se espalhava na piscina, embora minha mão estivesse ficando dormente. Agora eu conseguia ver o que realmente havia debaixo da superfície leitosa.
Cadáveres. Assim como os do rio.
Flutuando para cima, com cabelos verdes e lábios azuis parecendo máscaras nos corpos mortos e inchados.
Como eu, pensei. É assim que estou agora. Em algum lugar, onde eu ainda tinha corpo.
Ouvi Angelus rindo. Mas mal conseguia prestar atenção, mal conseguia pensar. Eu queria vomitar.
Afastei-me da água. Sabia que ele estava tentando me assustar e decidi não olhar para ela de novo.
Mantenha a mente em Lena. Chegue à página e você poderá ir pra casa.
Angelus me observou e riu ainda mais. Ele falou comigo como se eu fosse uma criança.
— Não tenha medo. Sua morte final não precisa acontecer assim. Sarafine não conseguiu executar as tarefas confiadas a ela.
— Então você sabe o nome dela. — Dei um sorriso.
Ele olhou com raiva.
— Sei que ela falhou comigo.
— Com você e com Abraham?
Angelus enrijeceu.
— Parabéns. Vejo que você andou xeretando em assuntos que não são da sua conta. O que significa que você não é nem um pouco mais esperto do que o primeiro Ethan Wate que visitou o Grande Registro. E não tem mais chances do que ele de ver a Conjuradora Duchannes que você ama.
Meu corpo todo ficou entorpecido.
É claro. Ethan Carter Wate tinha vindo aqui. Genevieve me contou.
Eu não queria perguntar, mas precisava.
— O que você fez com ele?
— O que você acha? — Um sorriso sádico se espalhou no rosto de Angelus. — Ele tentou pegar uma coisa que não lhe pertencia.
— A página dele?
A cada pergunta, o Guardião parecia mais satisfeito. Dava para perceber que ele estava gostando.
— Não. A de Genevieve, a garota Duchannes que ele amava. Ele queria cancelar a maldição que ela gerou para si mesma e o resto das crianças Duchannes que viriam depois dela. Mas acabou perdendo a alma tola.
Angelus olhou para a água em movimento. Ele fez um movimento com a cabeça, e um único cadáver se levantou até a superfície. Os olhos vazios que se pareciam muito com os meus me encararam.
— Parece familiar, Mortal?
Eu conhecia aquele rosto. Reconheceria em qualquer lugar.
Era o meu. Ou melhor, o dele.
Ethan Carter Wate ainda estava usando o uniforme confederado com o qual morreu.
Senti um aperto no coração. Genevieve jamais voltaria a vê-lo, não neste mundo nem no próximo. Ele morreu duas vezes, como eu. Mas jamais voltaria para casa. Jamais tomaria Genevieve nos braços, nem mesmo no Outro Mundo. Ele tentou salvar a garota que ele amava e Sarafine, Ridley, Lena e todas as outras Conjuradoras que viessem depois dela na família Duchannes.
E falhou.
Isso não me fez sentir melhor. Não estando onde eu estava. E não quanto a deixar uma garota Conjuradora para trás, como nós dois tínhamos feito.
— Você também vai falhar. — As palavras ecoaram pela caverna.
O que significava que Angelus estava lendo minha mente. A esta altura, era a coisa menos surpreendente que acontecia por ali.
Eu sabia o que tinha de fazer.
Esvaziei a mente da melhor maneira que consegui, imaginando o velho campo de beisebol onde Link e eu jogávamos. Vi Link fazer um arremesso ruim na nona entrada enquanto eu estava na base do batedor socando a luva. Tentei imaginar o rebatedor. Quem era? Earl Petty, mastigando chiclete, depois que o técnico o tinha proibido de mascar?
Lutei para manter a mente no jogo enquanto meus olhos faziam outra coisa.
Vamos, Earl. Jogue pra longe do parque.
Olhei para o pedestal, depois para os cadáveres flutuando aos meus pés. Mais corpos continuavam a subir, batendo uns nos outros como sardinhas enlatadas. Não demoraria para que estivessem tão próximos que eu não conseguiria nem ver a água.
Se eu esperasse, talvez pudesse usá-los como apoio…
Pare! Pense no jogo!
Mas era tarde demais.
— Eu não tentaria. — Angelus me olhou do outro lado da piscina. — Nenhum Mortal consegue sobreviver à água. Você precisa da ponte para atravessar, e, como pode ver, ela foi removida. Por precaução de segurança.
Ele esticou a mão à frente do corpo e girou o ar em uma corrente que consegui sentir do outro lado da água.
Precisei me segurar para ficar de pé.
— Você não vai pegar sua página. Vai morrer a mesma morte desonrosa de seu homônimo. A morte que todos os Mortais merecem.
— Por que eu e por que ele? Por que qualquer um de nós? O que fizemos a você, Angelus? — Gritei para ele, acima do som do vento.
— Vocês são inferiores, nascem sem os poderes dos Sobrenaturais. Nos forçam a ficar escondidos enquanto suas cidades e escolas se enchem de crianças que vão crescer e não vão fazer nada além de ocupar espaço. Vocês transformaram nosso mundo em uma prisão. — O vento aumentou, e ele girou mais a mão. — É absurdo. Como construir uma cidade para roedores.
Esperei, imaginando o jogo idiota de beisebol, Earl rebatendo, o estalo do bastão, até as palavras se formarem e eu as enunciar.
— Mas você nasceu Mortal. O que isso te torna?
Os olhos dele se arregalaram, uma máscara de pura ira.
— O que você disse?
— Você me ouviu. — Virei a mente para a visão que eu tivera, forçando-me a lembrar dos rostos, das palavras. Xavier, quando era apenas Conjurador. Angelus, quando era apenas homem.
O vento aumentou, e eu cambaleei, com a ponta do tênis batendo na beirada da piscina de corpos. Firmei o corpo, desejando que meus pés não deslizassem.
O rosto de Angelus tinha ficado ainda mais pálido do que antes.
— Você não sabe de nada! Olha só o que sacrificou. Pra salvar o quê? Uma cidade cheia de Mortais patéticos?
Fechei os olhos, deixando que as palavras o encontrassem.
Sei que você nasceu Mortal. Todos os seus experimentos não podem mudar isso. Conheço seu segredo.
Os olhos dele se arregalaram, e o ódio tomou conta do rosto.
— Não sou Mortal! Nunca fui e nunca serei!
Conheço seu segredo.
O vento aumentou, e pedras voaram de novo pelo ar, com mais força desta vez. Tentei proteger meu rosto enquanto elas batiam nas minhas costelas e na parede atrás de mim. O sangue escorria pelo meu rosto.
— Vou te partir em pedaços, Obstinado!
Gritei acima do ruído.
— Você pode ter poderes, Angelus, mas, no fundo, ainda é Mortal, como eu.
Você não pode controlar forças das Trevas como Sarafine e Abraham, nem Viajar como um Incubus. Não consegue atravessar essa água tanto quanto eu.
— Não sou Mortal! — gritou ele.
Ninguém consegue.
— Mentiroso!
Prove.
Houve um segundo, um terrível segundo, em que Angelus e eu nos encaramos por cima da água.
Então, sem uma palavra, Angelus se lançou no ar, correndo por cima dos cadáveres na piscina, como se não conseguisse mais se controlar. Ele estava desesperado a esse nível para provar que era melhor que eu.
Melhor que um Mortal.
Melhor que qualquer pessoa que já tentou caminhar sobre água.
Eu estava certo.
Os corpos em decomposição estavam tão próximos, que ele correu por cima até que começassem a se mexer. Braços se esticaram para ele, centenas de mãos inchadas se ergueram da água. Este não era como o rio que atravessei para chegar aqui.
Este rio estava vivo.
Um braço deslizou pelo pescoço dele e o puxou para baixo.
— Não!
Estremeci quando a voz dele ecoou nas paredes.
Os cadáveres se agarraram à capa dele desesperadamente, puxando-o para baixo, para o abismo de perda e infelicidade. As mesmas almas que ele tinha torturado o estavam afogando.
Os olhos dele se prenderam aos meus.
— Me ajude!
Por que eu deveria?
Mas não havia nada que eu pudesse fazer, mesmo que quisesse. Eu sabia que os cadáveres me afogariam. Eu era Mortal, assim como Angelus, pelo menos, em parte.
Ninguém anda sobre a água, não de onde eu venho. Ninguém exceto o cara no quadro da escola dominical.
Pena que Angelus não era de Gatlin; então ele saberia isso.
As mãos dele tatearam na superfície da água até não haver mais nada além de um mar de corpos de novo. O fedor de morte estava por toda parte. Era sufocante, e tentei cobrir a boca, mas o odor distinto de podridão e decomposição era forte demais.
Eu sabia o que tinha feito. Não era inocente. Não na morte de Sarafine nem nessa. Ele estava lendo minha mente, e eu o forcei a isso, mesmo que o ódio e o orgulho dele o tivessem empurrado para a piscina.
Era tarde demais.
Um braço podre deslizou ao redor de seu pescoço, e em segundos ele desapareceu no mar de corpos. Era uma morte que eu não desejaria para ninguém.
Nem mesmo Angelus.
Talvez só para ele.
Em momentos, a piscina ficou branco-leitosa de novo, apesar de eu saber o que estava escondido embaixo.
Dei de ombros.
— Não foi um desafio tão grande assim.
Eu precisava encontrar a ponte ou alguma coisa que pudesse usar para atravessar.
A prancha lascada não estava bem escondida. Encontrei-a em um nicho a poucos metros de onde Angelus estava momentos antes. A madeira estava seca e rachada, o que não era tranquilizador, considerando o que eu tinha acabado de testemunhar.
Mas o livro estava tão perto.
Quando deslizei a prancha pela superfície da água, consegui praticamente sentir Lena nos meus braços e ouvir Amma gritando comigo. Não consegui pensar direito. Eu só sabia que tinha de atravessar aquela água e voltar para elas.
Por favor. Me deixem atravessar. Só quero voltar pra casa.
Com esse pensamento, respirei fundo.
Dei um passo.
E outro.
Eu estava a 1,5 metro da beirada da água, talvez dois.
Na metade do caminho. Não dava para voltar agora.
A ponte era surpreendentemente leve, embora estalasse e balançasse a cada passo meu. Ainda assim, estava aguentando.
Respirei fundo. Mais 1,5 metro.
Um…
Ouvi um estalo como uma onda atrás de mim. A água começou a se movimentar. Senti uma dor na perna quando ela cedeu debaixo de mim. A velha tábua quebrou como um palito de dente.
Antes que eu pudesse gritar, perdi o equilíbrio e caí na água mortal. Só que não havia água alguma; ou, se havia, eu não estava nela.
Estava nos braços dos mortos se levantando.
Pior.
Eu estava cara a cara com o outro Ethan Wate. Ele era tão esqueleto quanto homem, mas eu o reconhecia agora. Tentei me afastar, mas ele me agarrou pelo pescoço com a mão ossuda. Água saía pela boca, onde os dentes dele deviam estar. Eu tinha tido pesadelos menos apavorantes.
Virei a cabeça para afastar o rosto da baba do cadáver.
— Um Mortal poderia Conjurar um Ambulans Mortus? — Angelus passou pelos mortos que se reuniam ao meu redor, puxando meus braços e pernas em todas as direções com tanta força que pensei que meus membros seriam arrancados do corpo. — De baixo da água? Para despertar os mortos? — Triunfante, ele ficou de pé no chão, na frente do livro. Parecendo mais maluco do que pensei que um Guardião louco pudesse ser. — O desafio acabou. Sua alma é minha.
Eu não respondi. Não conseguia falar. O que fiz foi olhar bem dentro dos olhos vazios de Ethan Wate.
— Agora. Traga ele pra mim.
Com a ordem de Angelus, os cadáveres se ergueram da água fedida e me puxaram consigo para a margem. O outro Ethan me jogou no chão como se eu não pesasse nada.
Quando ele fez isso, uma pequena pedra negra rolou do meu bolso.
Angelus não reparou. Estava ocupado demais olhando para o livro. Mas eu vi com clareza suficiente.
O olho do rio.
Eu tinha me esquecido de pagar o Mestre do Rio.
É claro. Não se podia esperar atravessar a água quando quisesse. Não aqui. Não sem pagar um preço.
Peguei a pedra.
Ethan Wate, o morto, virou a cabeça na minha direção. O olhar que ele lançou para mim, se é assim que se podia chamar, considerando que o cara nem tinha olhos, me provocou um tremor na coluna. Senti pena dele. Mas eu não queria ser ele.
Nós devíamos pelo menos isso um ao outro.
— Adeus, Ethan — falei.
Com meu último vestígio de força, joguei a pedra na água. Ouvi-a bater e fazer um som bem baixo.
Não daria para perceber, a não ser que você fosse eu.
Ou um dos mortos.
Porque eles desapareceram alguns segundos depois que a pedra bateu na água. Tão rapidamente quanto o tempo que a pedra levou para ir até o fundo da piscina de corpos.
Caí para trás no pequeno espaço de terra, exausto. Por um segundo, estava assustado demais para me mexer.
E então vi Angelus ali parado, colado no livro, lendo à luz das chamas verdes e douradas.
Eu sabia o que precisava fazer. E não tinha muito tempo para isso.
Fiquei de pé.
Ali estava. Estava aberto no pedestal, bem à minha frente.
À frente de Angelus também.
AS CRÔNICAS CONJURADORAS
Estiquei a mão para o livro, mas ele queimou meus dedos.
— Não — rosnou Angelus, segurando meu pulso. Os olhos dele estavam brilhando, como se o livro tivesse um estranho poder sobre ele. Ele nem levantou o olhar da página. Não sei se era capaz.
Porque era a página dele.
Eu quase conseguia ler de onde estava, mil palavras reescritas, uma riscada atrás da outra. Eu conseguia ver a pena, com a ponta manchada de tinta, quase se retorcendo nos dedos dele ao lado do livro.
Então foi assim que ele fez. Foi assim que forçou o mundo sobrenatural a ceder à sua vontade. Ele controlava a história. Não apenas a dele, mas a de todos nós.
Angelus tinha mudado tudo.
Uma pessoa podia fazer isso.
E uma pessoa podia anular a mudança.
— Angelus?
Ele não respondeu. Fitando o livro, parecia mais um zumbi do que os cadáveres.
Então, não olhei. Em vez disso, fechei os olhos e puxei a folha, com o máximo de força e rapidez que consegui.
— O que você está fazendo? — Angelus pareceu desesperado, mas eu não abri os olhos. — O que você fez?
Minhas mãos estavam queimando. A folha queria escapar de mim, mas eu não deixei. Segurei com mais força. Nada me impediria agora.
Ela se soltou nas minhas mãos.
O som de rasgar me lembrou do de um Incubus, e eu meio que esperei ver John Breed ou Link aparecerem do meu lado. Abri os olhos.
Não tive tanta sorte. Angelus esticou a mão para a folha, me empurrando em uma direção enquanto puxava meu braço em outra.
Peguei uma vela no pedestal e coloquei fogo na ponta da folha. Ela começou a soltar fumaça e queimar, e Angelus uivou de fúria.
— Solte! Você não sabe o que está fazendo! Você poderia destruir tudo… — Ele se jogou em cima de mim, socando e chutando, quase arrancando minha camisa. As unhas dele arranharam minha pele, uma vez após a outra, mas eu não soltei.
Não soltei quando senti as chamas queimarem meus dedos.
Não soltei quando a folha manchada de tinta virou cinzas.
Não soltei até o próprio Angelus desmoronar e virar nada, como se fosse feito de pergaminho.
Por fim, quando o vento soprou o último traço do Guardião e da página dele para o esquecimento, me vi olhando para minhas mãos queimadas e pretas.
— Minha vez.
Abaixei a cabeça e virei as páginas delicadas de pergaminho. Eu via nomes e datas no alto, escritos com caligrafias diferentes. Perguntei-me quais Xavier tinha escrito. Se Obidias tinha mudado a página de alguma outra pessoa. Eu esperava que não tivesse sido ele quem mudou a de Ethan Carter Wate.
Pensei no meu homônimo e estremeci, lutando para manter a bile no lugar.
Poderia ter sido eu.
Na metade do livro encontrei nossas páginas.
A de Ethan Carter Wate estava logo antes da minha, e as duas páginas foram claramente escritas com caligrafias diferentes.
Passei os olhos na página de Ethan Carter até chegar à parte da história que eu já sabia. Parecia o roteiro da visão que testemunhei com Lena, a história da noite em que ele morreu e Genevieve usou O Livro das Luas para trazê-lo de volta. A noite que iniciou tudo.
Olhei para a parte em que a página era presa à lombada. Quase a arranquei, mas sabia que não teria feito diferença. Era tarde demais para o outro Ethan.
Eu era o único que ainda tinha chance de mudar o destino.
Por fim, virei a página e vi que estava olhando para a letra de Obidias.
Não li minha página. Não podia arriscar. Eu já conseguia sentir a força do livro atraindo meus olhos, poderoso o bastante para me Ligar à minha página para sempre.
Afastei o olhar. Eu já sabia o que acontecia no final desse texto.
Agora, eu o estava mudando.
Arranquei a página, e as beiradas se soltaram da lombada com um brilho de eletricidade mais forte e mais claro do que um relâmpago. Ouvi o que pareceu um trovão no céu acima de mim, mas continuei a rasgar.
Desta vez, mantive as velas o mais longe do papel que consegui.
Puxei até as palavras se soltarem e desaparecerem como se tivessem sido escritas em tinta invisível.
Olhei para a página de novo, e ela estava em branco.
Deixei-a cair na água ao meu redor e observei-a cair nas profundezas leitosas, desaparecendo na sombra infinita do abismo.
Minha página se foi.
E, naquele segundo, soube que eu também.
Olhei para meus All-Star abaixo de mim
até eles sumirem
e eu sumir,
e não importava mais…
porque
não
havia
nada
debaixo
de
mim
agora
e
então
não
havia
eu