CAPÍTULO 2

Tomates verdes fritos

Ali estava ela, parada na cozinha, descalça, com o cabelo do jeito que eu lembrava, meio preso, meio solto. Uma camisa branca de botão, que meu pai costumava chamar de seu “uniforme”, ainda estava coberta de tinta do último projeto. A calça jeans estava enrolada nos tornozelos, como sempre, estivesse ou não na moda. Minha mãe nunca ligava para coisas assim. Estava segurando nossa velha frigideira preta de ferro cheia de tomates verdes em uma das mãos e um livro na outra. Ela devia estar cozinhando enquanto lia, sem erguer o olhar. Cantarolando parte de uma música que ela nem percebia estar cantarolando e, provavelmente, não conseguia ouvir.

Essa era minha mãe. Ela parecia exatamente a mesma.

Talvez eu fosse o único que tinha mudado.

Dei um passo mais para perto, e ela se virou, deixando o livro de lado.

— Aí está você, meu doce garoto.

Senti meu coração virar do avesso. Ninguém mais me chamava assim; ninguém ia querer, e eu não deixaria. Só minha mãe. Os braços dela me tomaram em um abraço, e o mundo se fechou ao nosso redor quando afundei meu rosto nela. Inspirei o aroma quente e a sensação quente e o tudo quente que minha mãe era para mim.

— Mãe. Você voltou.

— Um de nós voltou. — Ela suspirou.

Foi quando eu percebi. Ela estava parada na minha cozinha, e eu estava parado na minha cozinha, o que significava uma de duas coisas: ou ela tinha voltado à vida ou...

Eu não.

Os olhos dela se encheram de alguma coisa — lágrimas, amor, solidariedade —, e, antes que eu percebesse, os braços dela estavam ao meu redor de novo.

Minha mãe sempre entendia tudo.

— Eu sei, meu doce garoto. Eu sei.

Meu rosto encontrou o antigo esconderijo na curva do seu pescoço.

Ela beijou o alto da minha cabeça.

— O que aconteceu com você? Não era pra ser assim. — Ela se afastou para me olhar. — Nada disso era pra terminar assim.

— Eu sei.

— Por outro lado, não existe jeito certo de encerrar a vida de uma pessoa, existe? — Ela beliscou meu queixo e sorriu enquanto me olhava.

Eu tinha memorizado. Seu sorriso, o rosto. Tudo. Foi tudo que tive depois que ela morreu.

Sempre soube que ela estava viva em algum lugar, de alguma forma. Ela tinha salvado Macon e me mandado músicas que me guiaram por cada estranho capítulo da minha vida com os Conjuradores. Esteve presente o tempo todo, assim como quando estava viva.

Era apenas um momento, mas eu queria mantê-lo assim pelo máximo de tempo que pudesse.

Não sei como chegamos à mesa da cozinha. Não me lembro de nada além do calor sólido dos braços dela. Mas fiquei sentado ali, na minha cadeira de sempre, como se os últimos anos nunca tivessem acontecido. Havia livros para todos os lados, e, pelo que parecia, minha mãe estava na metade da maioria deles, como sempre. Uma meia, provavelmente recém-lavada, estava enfiada no meio de A divina comédia. Um guardanapo aparecia em meio às páginas da Ilíada, e, em cima dele, um garfo marcava a página em um livro de mitologia grega. A mesa da cozinha estava cheia com seus amados livros, uma pilha de exemplares mais alta que a outra. Eu me sentia como se estivesse de volta à biblioteca com Marian.

Os tomates estalaram na frigideira quando inspirei o aroma da minha mãe, de papel amarelando e óleo queimado, tomates novos e papelão velho, todos misturados com pimenta caiena.

Não era surpreendente que bibliotecas me dessem tanta fome.

Minha mãe colocou um prato de porcelana branco e azul na mesa entre nós. Porcelana-dragão. Sorri porque era o favorito dela. Ela colocou os tomates quentes no papel-toalha e polvilhou pimenta sobre o prato.

— Pronto. Manda ver.

Enfiei o garfo na fatia mais próxima.

— Sabe, não como isso desde que você... desde o acidente. — O tomate estava tão quente que queimou minha língua. Olhei para minha mãe. — Nós estamos... Isto é...?

Ela devolveu o olhar, sem entender.

Eu tentei elaborar de novo.

— Você sabe. O Céu?

Ela riu enquanto servia chá gelado em dois copos altos, pois chá era a única coisa que minha mãe sabia fazer.

— Não, não é o Céu, EW. Não exatamente.

Eu devo ter parecido preocupado, como se achasse que tínhamos ido parar no outro lugar por algum motivo. Mas isso também não podia estar certo, porque, por mais brega que pudesse parecer, estar com minha mãe de novo era o Céu, independentemente de o universo pensar assim ou não. Por outro lado, o universo e eu não tínhamos concordado em muitas coisas ultimamente.

Minha mãe encostou a mão na minha bochecha e sorriu ao balançar a cabeça.

— Não, aqui não é nenhum tipo de lugar de descanso final, se é isso que quer dizer.

— Então por que estamos aqui?

— Não sei direito. Não recebemos um manual quando chegamos. — Ela segurou minha mão. — Eu sempre soube que estava aqui por sua causa, por causa de alguma coisa que não fora terminada, alguma coisa que eu precisava te ensinar ou te contar ou te mostrar. Foi por isso que mandei as músicas.

— As músicas sinalizadoras.

— Exatamente. Você me manteve bem ocupada. E agora que está aqui, sinto que nunca nos separamos. — O rosto dela ficou sombrio. — Sempre tive esperanças de ver você de novo. Mas eu imaginava que fosse esperar bem mais. Sinto muito. Sei que este momento deve ser terrível, deixar Amma e seu pai. E Lena.

Eu assenti.

— É uma droga.

— Eu sei. Sinto a mesma coisa — disse ela.

— Por causa de Macon? — As palavras saltaram da minha boca antes que eu pudesse impedir.

O rosto dela ficou vermelho.

— Acho que mereci isso. Mas nem tudo que acontece na vida de uma mãe é algo que ela precisa conversar com o filho de 17 anos.

— Desculpe.

Ela apertou minha mão.

— Você era a pessoa que eu não queria abandonar, mais do que qualquer outra. E era a pessoa com quem eu me preocupava em abandonar, mais do que qualquer outra. Você e seu pai.

“Seu pai, felizmente, está sob o cuidado excepcional dos Ravenwood. Lena e Macon lançaram Conjuros poderosos nele, e Amma está tecendo as histórias dela. Mitchell não faz ideia do que aconteceu com você.”

— É mesmo?

Ela assentiu.

— Amma fala que você está em Savannah com sua tia, e ele acredita.

O sorriso dela desapareceu, e ela olhou para trás de mim, para as sombras. Eu sabia que ela devia estar preocupada com meu pai, apesar de qualquer Conjuro que houvesse sobre ele. Minha partida repentina de Gatlin devia estar doendo nela tanto quanto em mim, por ter de ficar de lado vendo tudo acontecer, sem poder fazer nada.

— Mas não é uma solução de longo prazo, Ethan. Agora, todo mundo está fazendo o melhor que pode. Costuma ser assim.

— Eu lembro. — Eu tinha passado por isso uma vez.

Nós dois sabíamos quando.

Ela não disse nada depois disso, só pegou um garfo para ela. Comemos juntos em silêncio pelo resto da tarde, ou por um momento. Eu não conseguia mais distinguir qual era qual, e não sabia se importava.

Sentamos na varanda dos fundos, comendo cerejas molhadas e brilhantes de um escorredor e vendo as estrelas surgirem. O céu tinha escurecido, e as estrelas apareceram em aglomerados brilhantes. Vi estrelas dos céus Conjurador e Mortal. A Lua dividida estava entre a Estrela do Norte e a Estrela do Sul. Eu não sabia como era possível ver dois céus ao mesmo tempo, dois grupos de constelações, mas eu vi. Conseguia ver tudo agora, como se eu fosse duas pessoas diferentes ao mesmo tempo. Finalmente, o encerramento de toda aquela coisa de Alma Fraturada. Acho que uma das vantagens de morrer era ter as duas partes da minha alma novamente unidas.

Ah, tá.

Tudo tinha se unido agora que acabou, ou talvez porque acabou. Acho que a vida era assim, às vezes. Tudo parecia tão simples, tão fácil dali. Tão incrivelmente claro.

Por que essa era a única solução? Por que tinha que terminar assim?

Apoiei a cabeça no ombro da minha mãe.

— Mãe?

— Querido.

— Preciso falar com Lena.

Pronto. Eu finalmente confessei. A única coisa que me impediu de expirar o dia todo. A coisa que me fez sentir que não podia sentar, que não podia ficar. Como se eu tivesse de me levantar e ir para algum lugar, mesmo não tendo para onde ir.

Como Amma costumava dizer, a coisa boa da verdade é que é verdade, e não dá para discutir com a verdade. Você pode não gostar dela, mas isso não a torna menos verdadeira. Isso era tudo que restava para me apegar agora.

— Você não pode falar com ela. — Minha mãe franziu a testa. — Pelo menos, não é fácil.

— Preciso dizer a ela que estou bem. Eu a conheço. Ela está esperando um sinal meu. Assim como eu estava esperando um sinal seu.

— Não tem nenhum Carlton Eaton pra entregar sua carta a ela, Ethan. Você não pode mandar uma carta deste mundo nem receber sua resposta. E, mesmo que pudesse, não conseguiria escrever. Você não sabe quantas vezes eu quis que fosse possível.

Tinha de haver um jeito.

— Eu sei. Se fosse, teria recebido mais notícias suas.

Ela olhou para as estrelas. Seus olhos brilharam com as luzes refletidas quando falou:

— Todos os dias, meu doce garoto. Todos os dias.

— Mas você encontrou um jeito de falar comigo. Usou os livros do escritório e as músicas. E vi você naquela noite que fui ao cemitério. E no meu quarto, lembra?

— As músicas foram ideia dos Grandes. Acho que porque eu cantava pra você desde que era bebê. Mas todo mundo é diferente. Não acredito que você consiga enviar algo como uma música sinalizadora pra Lena.

— Mesmo se eu soubesse compor uma. — Meu talento de compositor fazia Link parecer um dos Beatles.

— Não foi fácil pra mim, e eu vinha vagando por aqui havia bem mais tempo do que você. E tive ajuda de Amma, Twyla e Arelia. — Ela olhou para os céus gêmeos. — Você tem de lembrar, Amma e os Grandes têm poderes sobre os quais não sei nada.

— Mas você era Guardiã. — Tinha de haver coisas que ela sabia e os outros não.

— Exatamente. Eu era Guardiã. Fazia o que o Registro Distante pedia, e não fazia o que o Registro Distante não queria que eu fizesse. Não se deve mexer com eles e não se deve mexer com seus registros das coisas.

As Crônicas Conjuradoras?

Ela pegou uma cereja e a examinou em busca de manchas. Demorou tanto para responder, que eu já estava começando a pensar que não tinha me ouvido.

— O que você sabe sobre As Crônicas Conjuradoras?

— Antes do julgamento da tia Marian, o Conselho do Registro Distante foi até a biblioteca e levou o livro.

Ela colocou o escorredor velho de metal no degrau abaixo de nós.

— Esqueça As Crônicas Conjuradoras. Tudo isso não importa mais.

— Por que não?

— Estou falando sério, Ethan. Não estamos fora de perigo, você e eu.

— Perigo? Do que você está falando? Já estamos... você sabe.

Ela balançou a cabeça.

— Só estamos na metade do caminho. Temos de descobrir o que está nos mantendo aqui, e seguir em frente.

— E se eu não quiser seguir em frente? — Eu não estava pronto para desistir. Não enquanto Lena estivesse esperando por mim.

Mais uma vez, ela ficou sem responder por um longo tempo. Quando respondeu, minha mãe pareceu mais sombria do que eu jamais tinha ouvido.

— Acho que você não tem escolha.

— Você teve — retruquei.

— Não foi uma escolha. Você precisava de mim. É por isso que estou aqui... Por você. Mas nem eu posso mudar o que aconteceu.

— É? Você podia tentar. — Eu me vi esmagando uma cereja na mão. O sumo vermelho escorreu entre meus dedos.

— Não tem nada pra tentar, Ethan. Acabou. É tarde demais. — Ela mal sussurrou, mas pareceu que estava gritando.

A raiva cresceu dentro de mim. Joguei uma cereja do outro lado do jardim, depois outra, depois todas.

— Bem, Lena e Amma e papai precisam de mim, e não vou simplesmente desistir. Sinto que não devia estar aqui, como se tudo isso fosse um grande erro. — Olhei para o escorredor vazio nas mãos. — E não é temporada de cerejas. Estamos no inverno. — Olhei para ela com os olhos cheios de lágrimas, apesar de só sentir raiva. — É pra ser inverno.

Minha mãe colocou a mão dela sobre a minha.

— Ethan.

Eu afastei a minha.

— Não tente me fazer sentir melhor. Senti saudades de você, mãe. De verdade. Mais do que qualquer coisa. Mas, por mais feliz que esteja em te ver, quero acordar e saber que isso não está acontecendo. Entendo por que precisei fazer aquilo. Já aceitei. Tudo bem. Mas não quero ficar preso aqui pra sempre.

— O que você achou que ia acontecer?

— Não sei. Não isso.

Era verdade? Eu tinha mesmo achado que podia escapar de sacrificar meu bem-estar pelo bem do mundo? Será que pensei que a história do Aquele que É Dois era brincadeira?

Acho que era mais fácil bancar o herói. Mas agora que era real, agora que eu tinha de encarar uma eternidade do que perdi, de repente, não parecia tão fácil.

Os olhos da minha mãe se encheram de lágrimas, ainda mais do que os meus.

— Sinto muito, EW. Se houvesse uma maneira de poder mudar as coisas, eu mudaria. — Ela parecia tão infeliz quanto eu me sentia.

— E se houver?

— Não posso mudar tudo. — Minha mãe olhou para os pés descalços no degrau abaixo dela. — Não posso mudar nada.

— Não estou pronto pra uma nuvem idiota e não quero ganhar asas quando um sino idiota tocar. — Joguei o escorredor de metal. Ele caiu fazendo barulho pela escada e rolou pela grama. — Quero estar com Lena, quero viver e quero ir ao Cineplex e comer pipoca até ficar enjoado, e dirigir rápido demais e ser multado e estar tão apaixonado pela minha namorada que faço papel de bobo todos os dias pelo resto da minha vida.

— Eu sei.

— Acho que não sabe — falei, mais alto do que pretendia. — Você teve uma vida. Se apaixonou, duas vezes. E teve uma família. Tenho 17 anos. Não pode ser o fim pra mim. Não posso acordar amanhã e saber que nunca mais vou ver Lena.

Minha mãe suspirou, passou o braço pelos meus ombros e me puxou para perto.

Falei de novo, porque eu não sabia o que dizer:

— Não posso.

Ela acariciou minha cabeça, como se eu fosse uma criança triste e assustada.

— É claro que pode vê-la. Essa é a parte fácil. Não posso garantir que vai poder falar com ela, e ela não vai conseguir te ver, mas você pode vê-la.

Olhei para ela, surpreso.

— Do que você está falando?

— Você existe. Nós existimos aqui. Lena e Link, e seu pai e Amma, eles existem em Gatlin. Não tem um plano de existência que seja mais real do que o outro. São apenas planos diferentes. Você está aqui, e Lena está lá. No mundo dela, você nunca vai estar completamente presente. Não como esteve antes. E no nosso mundo, ela nunca vai ser como nós. Mas isso não quer dizer que não vai conseguir vê-la.

— Como? — Naquele momento, era a única coisa que eu queria saber.

— É simples. Apenas vá.

— Como assim, vá? — Ela estava fazendo parecer fácil, mas eu tinha a sensação de que tinha mais coisa envolvida.

— Você imagina aonde quer ir e simplesmente vai.

Não parecia possível, apesar de eu saber que minha mãe jamais mentiria para mim.

— Então, se desejar estar em Ravenwood, eu vou estar lá?

— Bem, não da nossa varanda dos fundos. Você tem de sair da nossa propriedade antes de poder ir a qualquer lugar. Acho que nossas casas têm o equivalente do Outro Mundo à Proteção Conjuradora. Quando você está em casa, está aqui comigo e em nenhum outro lugar.

Um arrepio desceu pelas minhas costas quando ela disse essas palavras.

— O Outro Mundo? É onde estamos? É esse o nome?

Ela assentiu enquanto limpava as mãos manchadas de cereja na calça jeans.

Eu sabia que não estava em um lugar aonde já tivesse ido antes. Sabia que não estava em Gatlin, e sabia que não estava no Céu. Ainda assim, alguma coisa na palavra parecia mais distante do que qualquer coisa que eu já conhecera. Mais distante até que a morte. Apesar de eu conseguir sentir o cheiro do concreto poeirento do quintal e da grama cortada mais ao longe. Eu conseguia sentir os mosquitos picando e o vento se movendo e as farpas dos velhos degraus de madeira nas costas. Mas a única sensação era de solidão. Éramos apenas nós dois agora. Minha mãe e eu, e meu quintal cheio de cerejas. Uma parte de mim estava esperando por isso desde o acidente dela, e outra parte de mim sabia, talvez, pela primeira vez, que jamais seria o bastante.

— Mãe?

— O que, meu doce garoto?

— Você acha que Lena ainda me ama no plano Mortal?

Ela sorriu e bagunçou meu cabelo.

— Que tipo de pergunta boba é essa?

Dei de ombros.

— Me deixa te fazer uma pergunta. Você me amava quando morri?

Eu não respondi. Não precisava.

— Não sei você, EW, mas eu sabia a resposta a essa pergunta cada dia que passamos separados. Mesmo quando não sabia mais nada sobre onde eu estava nem o que eu devia fazer. Você era meu Obstinado, mesmo naquela época. Tudo sempre me levou de volta a você. Sempre. — Ela tirou meu cabelo do rosto. — Você acha que Lena é diferente?

Ela estava certa.

Era uma pergunta idiota.

Sorri, segurei a mão dela e a segui para dentro de casa. Eu tinha coisas para entender e lugares para ir, isso eu sabia. Mas algumas coisas eu não precisava descobrir. Algumas coisas não tinham mudado e algumas coisas jamais mudariam.

Menos eu. Eu tinha mudado e daria qualquer coisa para mudar de volta.