Aqui estão incluídas as anotações sem data no seu diário “Floresta das Ardenas”, completado com os diários de trabalho de The Town and the City da primavera e verão de 1948. Os ensaios estruturados de maneira solta tratam principalmente do que Kerouac chama de “conflitos artísticos e éticos dos grandes escritores” e o “desespero do ‘homem que pensa’.”
Os diários medem cerca de 19x21,5cm. Na capa está escrito “MAIS NOTAS” em letras de forma; abaixo disso está “Bem, esta é a Floresta das Ardenas”, e no canto inferior direito, o seguinte:
J Kerouac
1947-48
N.Y.C.
NOTAS EM CONTINUAÇÃO DA ÁRIA
– Homens mortais não podem se odiar, podem apenas ser culpados de amor-próprio. Entretanto, acho que os homens imortais, ou seja, homens que nunca morressem, poderiam se odiar se o ódio fosse possível. Ódio puro é impossível, é apenas uma inversão do amor-próprio, e provavelmente vem da sensação fugidia de que o amor-próprio não pode durar para sempre. Mas se os homens vivessem para sempre, e pudessem continuar com o amor-próprio indefinidamente, acho que aprenderiam a odiar. Porque o ódio implica continuidade, e ele não pode continuar em um mundo mortal, um mundo feito a princípio para o amor, e investido com as várias energias do amor. Há uma semelhança direta em mortalidade e amor, pois eles “não podem durar”, mas são necessários; enquanto o ódio e a imortalidade são apenas possibilidades. São giros estranhos no pensamento, mas acabarão por definir-se mais tarde. E também não quis que fossem anticristãos, porque Cristo foi o primeiro homem a perceber que o amor é a regra da vida humana. Ele agora aparece maior que nunca, e eu estaria disposto a apostar que, no próximo século, Cristo (e alguns outros grandes homens como ele) irá ocupar as mentes das pessoas como nunca antes.
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Uma coisa que soterra o sentido de bem & mau nas pessoas é o fato de que “eles só vivem uma vez” e que seja “o melhor possível” – quanto mais dinheiro, mais fama. É difícil compreender de verdade o tremendo sentido de identidade que as pessoas têm, porque entender completamente é deixar a própria identidade. E sob o domínio de um grande egoísmo, todos nós dizemos – “eu só tenho uma vida para viver, uma chance de ser rico ou pobre”. E isso imediatamente oblitera as aspirações de ideais. É por isso que toda a religião enfatiza a imortalidade, ou “outra chance no mundo”. Mas ninguém acredita nisso, e todos seriam “maus” agora se tivessem meia oportunidade. A garota que recusa um teste em Hollywood sem dúvida pensa esses mesmos pensamentos, e pode mudar de ideia. Se não mudar, pode ter algo mais voluptuoso escondido, pode ser um pouquinho psicótica, ou, o que não consigo compreender neste momento, ela pode ser um perfeito ser humano que ama –
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NOTÍCIA: – “O general MacArthur proíbe beijos nas ruas em Tóquio: infratores passarão seis meses na cadeia.”
– Assim, mesmo o seu perfeito ser humano que ama é frustrado em sua própria grandeza, a única grandeza: Amar. Beijar é o resultado ideal de toda perambulação sem rumo na Floresta das Ardenas; no fundo, beijar é o objeto de toda a vida humana. E um general de 70 anos com ilusões de grandeza histórica (!) (para que serve a História? para quê? nada terá disso. É como digo. A humanidade logo vai alcançar a grandeza, mas a loucura vai continuar mandando nas altas esferas.
Então tem essa música de Nellie Lutcher88 – “I met a guy while walking down the street, I met a guy while walking down the street, he looked at me, I looked at him, he took my hand, and held my hand, he’s a real gone guy and I love him ’deed I do –”89 Assim! Essa é a grandeza do Negro, bem aqui, mas posso ver quantas das nossas moças de “respeito” brancas não ririam da letra dessa música. O amor delas é mais orgulhoso. Mas ainda assim – uma grande humanidade está para chegar. Posso sentir isso em meus ossos. Não estou preocupado, e estou contente. Mais, mais virá –
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Eles vão abandonar seus sistemas de orgulho: essa é a principal questão sobre o futuro da humanidade. É algo maravilhoso de contemplar, mas não muito fácil para mim mesmo nesses estados de ânimo de amor & alegria. Mas estou fazendo isso em etapas, e é fácil! Afinal de contas, o truque é se livrar do orgulho com uma aversão consciente a ele. A única coisa a temer é o cretino inevitável em nossas almas. Algumas pessoas são mais cretinas do que pensam. O mal não é o perigo para o mundo humano, é a palavra errada, a cretinice é que é perigosa. A lei de MacArthur é o impulso de um pensamento obtuso de um cretino, não a atitude de um homem. Um cretino nunca tem medo de se corromper. Por isso um cretino não hesitaria em fazer coisa alguma: lá está o cálice da vida diante dele, ele não bebe, não desperdiça, apenas fica olhando com uma expressão imbecil e não compreende. Como sei isso? – eu era assim aos 22 anos, era assim na época, lembro bem, especialmente como era fácil ser um cretino, como era estupidamente agradável. (Mas também me lembro de uma enorme infelicidade burra e sem graça que não desejo para qualquer pessoa.) Não, não, MacArthur, Oh homem do destino, não, não! – Eles vão burlar essa sua lei nos becos de Tóquio, e com o tempo, talvez amanhã, apesar da punição, em uma ignorância humana divina à punição, nas próprias ruas. Porque esta é a Floresta das Ardenas, em seu âmago, e a árvore de MacArthur é como todas as outras árvores, e os amantes circulam para lá e para cá sob os galhos das árvores.
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A garota que recebeu a oferta de um teste para o cinema: – ela teme uma espécie inescrutável de corrupção, Deus sabe o que a espera, e acho que ela está certa. Mas e sua mortalidade única? E a minha? – O que eu faria? Os testes para o cinema são a forma americana da alta prostituição parisiense na sociedade de Balzac, é a garota normanda de pele de pêssego e coração puro chegando à desprezível burguesia sensual de Paris e perdendo para sempre a virgindade de seu coração. Escuto alguém rir? Não, isso é verdade, e sério, e bastante importante: pergunte às velhas ao redor da mesa de costura, elas falarão e contarão a você. Acredito nas velhas em torno da mesa de costura, acredito que são tão velhas e sábias quanto a natureza, quanto as árvores das Ardenas, e levam você de volta a seu haxixe alegre enquanto eu agora penso sobre isso por alguns momentos.
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Sabe o que é tão triste no passado? – é que ele não tem futuro, todas as coisas que vieram depois foram desacreditadas.
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Saber que algo é necessário, mas não precisar disso para si mesmo – esse é o crime de todos os homens “inteligentes” e “responsáveis”.
“Exterminem as bestas.”90 – Kurtz91
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Tire toda a autoridade oficial de um homem por um instante. São as autoridades oficiais deste mundo as responsáveis por ele ser tão mal-utilizado e degradado, tão inabitável. Em meia hora, se você tirar de um homem toda a sua autoridade oficial, eu poderia fazer dele um amigo eterno e charmoso – mas devolvam sua autoridade oficial no dia seguinte, e ele pode muito bem me sentenciar à morte. Estamos na Floresta das Ardenas, meus amigos, e aí está o mundo.
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Vou contar a vocês: enquanto escrevo isto, vejo no chão uma moeda de um centavo, que ainda não peguei, e me lembro quando, há cinco anos, deixei cair uma dessas moedinhas no chão e alguém disse: “Não fique jogando seu ouro pelo chão!”, e ainda estou preparado para ignorar o conselho; com orgulho arrebatado: – Quando eu posso sair pelas ruas e espalhar meus últimos dólares por toda parte – então! Está entendido que um ser humano pode ser salvo ou não – (e este grande conhecimento deve ser preservado para qualquer eventualidade louca e necessária que venha a surgir. O que estou dizendo? – só que a possibilidade de uma santidade-tardia insana não me é remota, de jeito algum. Na verdade, também não me preocupo com isso, ou devo dizer “apesar de” – para torná-la frívola).
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A arte é um retiro belo e doce da vida, cheio de genialidade sábia. Enquanto os amantes andam de braços dados sob galhos das florestas, o artista senta-se sob uma árvore e faz belas imagens e as ergue para vê-las. Está apaixonado por si mesmo, mas também pelos outros, porque mostra a eles seus frutos e trabalhos e chora – “Está vendo? Está vendo?” Então, mais tarde, ele descansa e retorna para todos eles, de volta aos braços dados do amor terreno, e eles o amam porque ele fez uma coisa tão bela, celebrou a vida e o amor deles, e retornou. Eles dizem – “Como é estranha e bela! – esta alma!” E é verdade, tão verdadeiro quanto misterioso e tocante. “Ele é dos nossos, ele somos nós! – mas está sozinho por um tempo sob sua árvore. Vai se juntar a nós outra vez com suas produções doces.” E eles dirão – “Ele ama Deus tanto quanto ama homens e mulheres, por isso deve ficar um pouco sozinho.” “E o que é Deus?” “Deus, Oh, Deus é a soma, a soma de tudo.” –
Por que O adolescente é um livro mau? – porque nele Dostoiévski zomba, zomba de tudo com uma infelicidade má, profunda e verdadeira, zomba das simplicidades da vida (que considero serem na maioria das vezes irreais) – mas: – ele zomba! Agora, o que estou dizendo? Estou dizendo, vamos prestar homenagem, todos nós escritores de todos os tipos e talentos, aos homens e mulheres em toda parte, vamos respeitar mesmo seus sonhos ambíguos, que nós mesmos temos com mais frequência que os seres humanos não escritores, não intelectuais. Quando um homem zomba de algo, zomba de seu próprio abismo, e se Dostoiévski ficava enfurecido com a possibilidade da beleza simples na vida, então ela deve existir, sua existência deve ser uma “verdade absoluta” em sua totalidade, e dado que palavras não podem descrever qualquer dessas situações (Mein Gott!!), e dado, além disso, que na verdade não importa e por aí vai – mas aqui está o que gosto: o mundo é um lugar neutro no estado indizível de si mesmo até que alguma “coisinha” de um humano, um artista, surge e pensa sobre isso, e fala, e transforma a neutralidade em positividade, de qualquer tipo, estúpida, crassa, simples, complexa ou outra coisa. Esse ser é maior que o “grau de consciência” que o homem pode ter, a simples amabilidade da arte humana é a grandeza em si mesma. Isso é vago, exceto por uma coisa inegável: a arte não devia ser usada como um lamento cósmico de tudo, devia ser uma sinceridade em seu sentido mais profundo. Essa sinceridade, para ilustrar o que quero dizer, é o que faz Dostoiévski continuar trabalhando em O adolescente por centenas de páginas apesar de suas próprias conclusões: é BOM-SENSO, seu ‘velho gritando com ele’. –
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Também compartilhei o pão com ladrões e pecadores, e não por razões políticas.
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A diferença entre a turma do mundo dos espetáculos em Nova York e a turma “intelectual” é que, em vez de ficar embaraçados com os disparates impróprios de Jimmy Durante, os intelectuais ficam embaraçados por atos falhos freudianos. Essa é praticamente a única diferença, sabia? Quem sabe?
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Quando se escreve, não há nada melhor a fazer que se render – com humilde entendimento e talvez alguma vergonha, e a alegria purificadora disso, o alívio comunicativo disso, seus segredos mais pessoais com o martelo laborioso e cheio de propósito do trabalho, em estrofes e histórias que sacam dele a compreensão humana universal irrecuperável, como a graça e a beleza sempre atraem na natureza – o lago intocado por qualquer desonestidade consigo mesmo, seja ela estúpida ou altamente consciente, ou por hipocrisia, ou pela compreensão dos outros transformada em medo e incompreensão.
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E se eu acreditar no conhecimento completo mas decidir em favor dos atos limitados e honrados (ou seja, sem abolir meus direitos, humanos e espirituais, ao conhecimento) –, e assim, uma vez mais, encontrar esse ato honrado não é sempre uma ação honesta ou, o que é pior, não é justa. Essa justiça é a chave para esse pensamento – (a ser desenvolvido.) – Agora devo, pelo menos, resolver tornar-me um homem de verdade, ainda sem ser injusto. Por outro lado não posso continuar sendo um “pirado” espiritual, porque isso também é injusto, no sentido de que vou insultar os próprios objetivos da humanidade. Vou desejar tudo agora: uma honestidade e um objetivo. E para ser mais preciso, sinto a coisa toda dessa forma! – simpatia é um sentimento real, mas é bastante amplo e universal, por isso indiscriminado, e leva ao enevoamento dos objetivos profissionais no mundo. E isso não é muito enganador! Pelo menos, seu homem “honrado” não é sempre um homem simpático. Somente os fatos, em coisas como essa. De agora em diante, os fatos.
Os detalhes são a vida...
MARASMO – “um definhamento ou enfraquecimento progressivo”, que “atrai a cultura burguesa”.
EPIGONISMO – “degeneração”.
Qual o significado de tudo isso? Acabei de ler sobre essas coisas e acho que são invenções russas, pelo menos “marasmo”. Quando primeiro tentei lembrar-me de “marasmo”, achei que soava como “malamusé” – que, em seus significados franceses (“nada divertido”) certamente se encaixaria no russo que inventou “marasmo”. Mas este é um assunto sério e não traz qualquer bom presságio. É muito reminescente de certas coisas que estão acontecendo agora em Nova York (1948), temos nossos reichianos, nossos orgonistas, a maior parte deles fuma maconha, escuta jazz “bop” frenético, acredita em homossexualidade (“epigonismo”?), e estão começando a reconhecer a existência de uma espécie de “doença atômica”. E todas essas pessoas são inimigas da “cultura burguesa”. Há, sem dúvida, algo em movimento, uma loucura, não diferente das recentes loucuras do culto romano. E, como digo, ainda não começou. O desespero na França sobre o existencialismo e o dolourismo e não-sei-mais-quê não se compara ao que teremos aqui. (Acho que vou começar a escrever um artigo sobre tudo isso.)
(Em relação ao bebop, é firme, como música, e tudo mais, mas desenvolvimentos posteriores o levaram a um complexo mais musical e, um nível quase sinfônico, tremendo em suas implicações, mas ainda assim os “reichianos” recusam-se a escutar esse novo aspecto musical dele e ficam dando gritinhos numa espécie de excitação afeminada sobre o aspecto frenético não desenvolvido dele.)
ESTADOS UNIDOS E RÚSSIA
Concluí que a principal ideia nos Estados Unidos é o sustento universal do homem, enquanto na Rússia sem dúvida a principal ideia é a irmandade universal do homem. Entretanto, há perversões nas duas ideias, levando aos dois tipos de imperialismo, americano e russo, no mundo de hoje. Mas a verdade nua e crua é que um dia essas duas ideias podem se misturar.
Os americanos oferecem à História do mundo o primeiro “estilo de vida” real e concreto. (A propaganda popular do “estilo de vida” na verdade é uma abstração e uma ilusão, ligadas ao “norte-americano”, que na verdade é apenas uma questão de tempero local). O modo de viver como é apresentado por gênios americanos nos campos práticos e técnicos, entretanto, está longe de ser o “materialismo” que os marxistas e a intelligensia descontente dizem que é. É mais espiritual: na verdade, é o conhecimento de como ser feliz, saudável e real. Henry Ford e Thomas Edison, milionários, gênios, e colaboradores do grande modo de viver americano, eram homens abnegados, quase ascéticos, muito espiritualizados e humildes... e todo mundo sabe disso. O objetivo deles não era ambição e poder, mas uma “vida melhor” – algo que ainda vai ser desenvolvido, entretanto, já que os homens inferiores sempre aparecem para corromper os usos das grandes coisas e ideias. Os americanos mais exaltados eram todos homens de gostos e aspirações espirituais simples – Thoreau, Twain, William Allen White92, Lincoln, na verdade até Washington. Homens como Josephus Daniels93 (“primeiro cidadão da Carolina do Norte” – acima de Thomas Wolfe, enterrado no Brooklyn?) e F. D. Roosevelt não foram grandes. A ideia americana também é a exaltação da humildade e decência sociais. Com a ideia russa da Grande Irmandade, tudo isso iria crescer.
Em cursos de redação criativa nas universidades, dizem a nós que uma moderação, temperada por uma educação moderna e esclarecedora, e um estudo profundo da ciência de escrever – apresentação da trama, desenvolvimento de personagens e um tratamento temático geral – são necessários para dissecar, analisar e investigar as fraquezas humanas e os extratos sociais que representam a vida na Terra. De alegria lírica, poesia, fúria moral dostoiévskiana, de grandeza emocional, de sinceridade majestosa e monumental – nem uma palavra nas universidades. Isso não começa a expressá-lo.
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Deus como o Que Deveria Ser (A GRANDE CULPA)
A ideia mais bela na face da Terra é a ideia que a criança tem de que seu pai sabe tudo, sempre sabe o que precisa ser feito e como se deve viver.
Essa é a ideia que os homens fazem de Deus.
Mas quando a criança cresce e descobre que seu pai sabe pouco mais que ela própria, quando a criança busca conselhos e encontra palavras humanas sinceras e desajeitadas, quando a criança busca uma maneira, um caminho, e vê que o de seu pai não é suficiente; quando a criança fica apavorada ao perceber que ninguém sabe o que fazer – ninguém sabe viver, se comportar, julgar, pensar, ver, entender, ninguém sabe, mas ainda assim todos tentam, atrapalhados –, então a criança corre o risco de crescer cínica em relação a tudo, ou desesperada ou louca.
Mas essas crianças e pais deviam ter uma noção em suas almas de que deve haver uma maneira, uma autoridade, um grande conhecimento, uma percepção, uma visão de vida, uma maneira apropriada, um “decoro” em todo o pesar e confusão do mundo – isso é Deus nos homens. Que deveria haver algo onde buscar conselhos, isso é Deus – Deus é o “que deveria ser” em nossas almas. Não importa que, na verdade, não haja nada a ser feito, não importa que a ciência mostre que somos animais naturais e que ficaríamos melhor se vivêssemos sem “aflições não naturais”, sem estresse interior, sem escrúpulos ou morais ou trepidações suaves, se vivêssemos como animais que somos, sem culpa ou horror – que acreditamos que deveria ser algo, que somos por isso culpados, isso é Deus.
O “PORQUÊ” FILOSÓFICO
Vamos dizer assim: o homem que entra na casa da dúvida-e-razão e sai escondido pelos fundos não tem direito de perguntar ao homem que entrou na casa da dúvida-e-razão e explorou todos os aposentos e saiu por onde entrou por que devemos fazer qualquer coisa. Por isso fiquei com tanta raiva quando um filósofo do campus, Martin Spencer Lyons, de nome dúbio (agora com cerca de 25 anos, e mais louco que nunca), diz para mim “O que está fazendo?”, e eu disse “Escrevendo um romance”, e ele me diz com a voz de Gabriel, “Por quê?”. Por que é o cacete, eu conheço até os cupins da casa da dúvida-e-razão pelo primeiro nome.
Será que alguém percebe o que significa entrar numa casa por uma porta e sair escondido por outra?
Pois o que as pessoas querem dizer, enfim, quando dizem “Que mundo pequeno, este...”? Aqui está a raiz de toda a solidão humana, perder-se em um mundo grande demais que nos engole a cada instante. (Descrito em Town and City: Diálogo de Peter com Julie Smith.94)
Por acaso, todos os romances profundos podiam muito bem ser intitulados simplesmente de “Pessoas” – porque eles são todos sobre isso. Mas um autor escolhe um tema, um título, e finge astutamente, com o astuto conhecimento de causa de seus leitores profundos, que o tema é realmente um tema distinto das pessoas. Crime e castigo não é sobre crime e punição tanto quanto é sobre Raskolnikov, Sonya, o inspetor, sua mãe e sua irmã, e por aí vai. O tema é como um feriado que simplesmente reúne as pessoas.
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Mas o segredo da vida, do amor e da felicidade é prosaico. Se a pessoa realmente souber disso, pode mesmo ser feliz. Os minutos fugazes de contentamento – isso é tudo.
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Pensando em Billy Eckstine, o cantor negro elegante, que tem uma voz maravilhosa, pensei inconscientemente – “Eles não dão a ele um contrato em Hollywood, é o maior de todos, mas não dão a ele uma oportunidade de crioulo...” Esse é o verdadeiro inconsciente, a verdade inconsciente, brutal e verdadeira. A mente consciente carrega...
Na Califórnia há uma colina relvada que conheço, onde o gado pasta com uma vista completa do Pacífico. Esse gado pode ver o Pacífico azul no fim da tarde, quando o sol se torna ouro escuro, e a parede de neblina cinzenta move-se no horizonte distante, acima da água, e os morros Yerba Buena de San Francisco enfeitados com joias, marfins e esmeraldas da cidade, e a baía, e a grande ponte, e o monte Tamalpais dourado com a luz do entardecer, e as Sausalitos e as distantes Oaklands e El Cerrito do outro lado da baía, com flores bonitas em seus jardins. O ar refresca, o Pacífico suspira, o sol retira-se para o Japão, Frisco e Alcatraz ficam iluminadas com as luzes, a grama cheira a calor e exala o perfume no ar fresco, a escuridão se produz no mundo totalmente exausto, e o gado fica ali esperando a noite triste do nevoeiro trazido pelo vento, e sirenes de neblina na baía lá embaixo, e eventuais estrelas preciosas que brilham através de falhas na névoa à meia-noite. Essas bestas alimentam-se de glória lá em cima. Lá embaixo, pela manhã, o vale ressoa com sons distraídos, mas o gado permanece em silêncio.
P.S. Depois de ler isso para minha mãe, acrescentei: “Há toda aquela vista bela e grandiosa e só as vacas para apreciá-la”. Ocorreu-me que este era meu principal propósito quando escrevi o parágrafo, mas nunca o mencionei dentro da estrutura da escrita intelectualmente formal e comunicativa. O que preciso aprender é minha própria mente, não a que foi encaixada sobre ela como uma tábua de argamassa em minha educação formal. Nos Estados Unidos há uma garra acima de nossos cérebros, e ela deve ser afastada ou vai agarrar e estrangular nossas verdadeiras identidades.
ANGLÓFILOS AMERICANOS – eles representam um desejo melancólico de afastar-se da expansão americana da livre empresa e da liberdade social – estão sempre interessados na “nobreza”, seja real ou espiritual – ressentem os ataques feitos, aparentemente, contra seu sentido de dignidade – também ressentem aquele forte sentido de identidade coletiva, ou de uma identidade patriota, muito difundido, a identidade americana, que é chamada desdenhosamente de nacionalismo. Eles são Tories, só isso, mesmo hoje em dia. Os europófilos são o mesmo, só que a ênfase parte de um sentimento de “minoria”, e não fazem tanto barulho por causa de “nobreza” e “ordem”. O “caos” dos Estados Unidos nada mais é que uma avaliação feita por aqueles que preferem estilos de vida e trabalho ingleses ou europeus. Na verdade, não há um “caos” como esse no coração da verdadeira cultura americana como é encontrada em fazendas, vilarejos e algumas cidades pequenas.
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NOTAS SOBRE O DESESPERO DO “HOMEM PENSANTE”
Este não é mais um de meus discursos contra a pobre intelligentsia infeliz, não é um libelo contra aquilo em mim que coincide com o terror por reembolso postal deles. O “homem pensante”, expressão que já ouvi três vezes nos últimos dois dias, significa um outro nível de homens que são mais ou menos independentes em suas opiniões, com ênfase no conhecimento real pessoal. Admiro esses homens pensantes. Observei suas pequenas ideias. Algumas delas: –
(Na verdade, isto é sobre Harold Huescher.)
1) Eles admiram o “povo”, as pessoas, mas sua admiração é quase condescendente: eles veem “padrões” em vez de quadros vivos entre o povo; reconhecem seu vigor como uma espécie de fenômeno antropológico cultural – em outras palavras, a admiração é, em parte, uma admiração por si mesmos, por serem capazes de ser tão observadores do povo e seus “modos”. Pense em todos os termos – “cultura popular”, “classes-trabalhadoras”, “grupos econômicos inferiores”, e por aí vai, todos termos de especialistas que nunca levam em conta sangue, música e graça. Sua compreensão é estritamente olímpica, naturalista, distante, acadêmica, sem profundidade, “objetiva e factual” etc. – e nunca “participante” ou “inteligente e humilde”. Acho que as chaves são a música e a poesia”: o “homem pensante” vai à ópera, mas nada sabe do canto interior, as coisas que fazem, digamos, de um porto-riquenho o que ele é no Espan Harlem: e ele lê Melville ou Shakespeare ou Wolfe, mas nada sabe da graça viva das pessoas em seus próprios momentos interiores, ou seja, não pode penetrar na poesia de um rosto, uma figura, uma risada e uma sensação de individualidade ali (ele sente apenas a si mesmo, e então sua avaliação estudada e tomada emprestada deles). Isso é bem vago graças à terminologia apressada –
2) Mais importante, o homem pensante moderno, em sua valorização do desespero, parece ter um jeito de propor seus próprios medos de desafiá-los. Parece pensar apenas até o momento da derrota, e nada faz para seguir dali para qualquer tipo de luta. Novamente, parece gostar de dilemas insolúveis que não são desafiados – uma espécie de masoquismo mental particular, um teatro pessoal secreto de alegria consciente. (A História pode ser um teatro de atitudes.) O homem pensante não age a partir de seus juízos, mas deixa que eles subam para o espaço e desapareçam. Ele paralisa suas ações. Ama a derrota. Não consigo descobrir com certeza o que, no fundo, ele pensa, nem ele vai me dizer. Não é sério o suficiente comigo para me contar de verdade. Ele adora ser sutil e fazer joguinhos de palavras. “Diverte-se” com “o melhor das pilhérias” deste mundo, a derrota, mas não acredito nisso. Ele desencoraja a gravidade, a seriedade, o julgamento rápido, a decisão de momento, os impulsos, a esperança imediata. Ele foi surrado e “isso não vai acontecer de novo”. Sorri de sua própria simpatia e humanidade, como se fossem uma fraqueza, um medo, um sofisma dos de “mente pensante” com os fatos. Não planeja mais... Segue como um pedaço de madeira no rio e prefere não seguir um caminho próprio. Por acaso, acho que ele é muito preguiçoso, em um sentido mental. É honesto. É um homem bom. Mas está afastado das pessoas, tornou-se um “homem pensante”, e desistiu da esperança. Não é aquele que constrói pontes. As pessoas fizeram isso, os rapazes do povo que aprenderam a construir pontes sem pensar por que o rio devia ser atravessado, ou no que estaria do outro lado.
Essa fazenda ou rancho para onde vou... Isso não é fugir da geração e do tanto que sei sobre ela, mas viver minha própria vida enquanto sigo com meu trabalho literário. A solidão da mansarda é neurose o tempo inteiro, seja de Dostoiévski, Thoureau, Emily Dickinson ou Wolfe. A literatura não significa necessariamente lacerações neuróticas das coisas. Também pode significar o conhecimento das vidas de todos os homens, e o conhecimento do sentido que os homens fazem de si próprios em todos os lugares. É um monte de coisas que ainda não começaram a ser!
Para mim, em particular, deveria ser uma vida doméstica sossegada para compensar a vida mental agitada... Do contrário, eu me extinguiria rápido, como Wolfe.
DECLARAÇÃO DE SANIDADE
Sempre irei me preocupar ao ver brutalidade e solidão, e sempre ficarei alegre ao ver as pessoas juntas e felizes. Sempre que me desvio disso, preciso entender que estou temporariamente trancado dentro das minhas próprias psicoses lúgubres. E quando estou assim encerrado, devo reprimir o impulso perverso de destruir o ninho e tentar deter minha amargura com tato e dignidade. (Se soo como [Marcus] Aurélio o moralista com meus “preciso” e “devo”, isso deveria ficar aparente apenas àqueles que fazem tais distinções a partir da aridez moral moderna.)
Entretanto... Logo vai chegar a hora em que alguém como eu poderá parar de defender todos os impulsos e afirmações “simples” – (as citações são uma defesa) – e simplesmente fazê-los. Defender uma crença simples é apenas algo arrogante. Você quer mostrar que dialoga com dúvidas complexas. Isso é tão ruim quanto encaixar palavras longas em uma discussão com outro calouro. E por último, no que toca à psicologia versus moralidade, tomo a posição de forma moral, que a psicologia é uma hesitação-na-análise e não ação-no-mundo. O conhecimento tem seu lugar, mas o trabalho da vida precisa ser feito. E a presunção dessas virtudes não é em si um ataque ao vício.
E AGORA, depois de acumular vários dias de leitura sobre conflitos artísticos e éticos de grandes escritores como Tom Wolfe e Joseph Conrad, entre outros, pelo menos, esses conflitos espirituais imputados a eles por críticos como [Maxwell] Geismar95 e alguém chamado Zabel – Bem, eu cheguei a algumas conclusões. Será que um grande escritor tem de ser infeliz? Precisa sacrificar a vida à sua “arte”? Se vida e “arte” são uma única coisa em um homem, como ele poderia sacrificar metade de uma rocha sólida à outra a menos que quisesse dividir aquela pedra ao meio? Acho que quando você diz que Conrad e Wolfe sacrificaram suas vidas à arte, está apenas dizendo que eles não estavam escrevendo aquilo em que realmente acreditavam, havia um cisma entre seus corações e suas obras, eles não se encaixavam, era estranho e irreal ao mesmo tempo. Por que Wolfe trabalhava de forma tão prodigiosa para provar que tinha talento e, enquanto isso, se esquecia que era um homem, um ser humano com uma vida a viver no mundo. Tudo o que fez eu admiro, incluindo seu enterrar a si mesmo, tão santificado, nas solidões da floresta do “Brooklyn”, mas também vejo que ele foi cegado por um orgulho desnecessário – ele deve ter dito a si mesmo: “Então não tenho talento, hein? Vou mostrar a eles! Vou mostrar que não sou um vagabundo relaxado com nada a fazer além de ganhar dinheiro e cuidar dos filhos e envelhecer lendo Zane Grey”— algo assim, algo petulante que todas as pessoas talentosas sentem mais cedo ou mais tarde. Se Wolfe era tão assombrado pelo tempo, por que não olhou para isso e percebeu que, com o tempo, todas as coisas cresciam e mudavam e seguiam adiante e ele também podia crescer e mudar e seguir em frente? Não são os escritos de Wolfe que são imaturos, é o espetáculo de um homem crescido ainda buscando provar seu talento e se esquecendo de tudo mais sobre si mesmo – a vida, a família, o coração, a felicidade, seu futuro terreno. Para mim, isso também é verdade com Conrad, que nunca foi acusado de imaturidade, e Balzac também.
Se todos os nossos grandes escritores tivessem sido homens por natureza infelizes e por natureza derrotados no mundo, teríamos motivos para nos desesperar em relação a todo o conhecimento e imaginação, ou se não disso, desesperar com a total falta de responsabilidade nos homens talentosos e imaginativos. Mas há grandes escritores que foram homens de verdade em todos os sentidos – Mark Twain é um deles. Um homem que não reclamava, um homem que não acreditou que a literatura é uma história constante de pesar e nada mais. O que o aluno depressivo de segundo ano da universidade escreve em sua tragédia melodramática? – certamente não toda a verdade. Mark Twain pilotou barcos a vapor, garimpou prata em Nevada, percorreu todo o Oeste, viveu sem conforto, contou piadas com outros homens, caçou, trabalhou como correspondente estrangeiro, editor de jornal, conferencista, e era um homem familiar – e ainda assim, não teve de sacrificar tudo isso pela sua “arte”, e viveu e escreveu, e era um homem completo e um artista completo, igualmente feliz e totalmente infeliz, igualmente gregário e solitário, de uma forma saudável, simplesmente todas as coisas, e acredito que ele tenha pedido que sua obra não fosse comparada à “literatura como a conhecemos” porque na verdade não estava “fazendo nada daquilo”. Estava apenas escrevendo o que sentia vontade de escrever, não o que achava que a “literatura” exigia dele.
Mas isso é o que Wolfe e Conrad, grandes artistas que eram, fizeram sem parar. Eram terrivelmente solitários e infelizes, homens diferentes, e por que, se não por sentirem que tinham de sacrificar suas vidas pela arte. Que tolice idiota! Eles partiram a pedra em dois, olharam para si mesmos no espelho e pensaram em si mesmos como “artistas”. Finalmente, tivemos o nonsense “além do bem e do mal” de Nietzsche, Rimbaud e Gide – Todos eles doidos. Vamos ter outro homem que viva sua vida no mundo, completa, íntegra, e também escreva grandes livros. Acho que Zane Gray poderia ter conseguido isso com mais trabalho.
88 Nellie Lutcher (1915-2007), vocalista de rhythm and blues.
89 “Estava andando na rua e conheci um cara, estava andando na rua e conheci um cara, ele olhou para mim, pegou minha mão, segurou minha mão, ele é mesmo um cara bacana e eu o amo, amo sim.” (N.T.)
90 No original, Exterminate the beasts. (N.T.)
91 Uma citação errada de O coração das trevas, de Conrad, onde se lê: Exterminate the brutes.
92 William Allen White (1868-1944), jornalista político vencedor do prêmio Pulitzer.
93 Josephus Daniels (1862-1948), proprietário/editor do Raleigh News and Observer e membro do Partido Democrático, foi embaixador no México no governo de Franklin Roosevelt.
94 Kerouac refere-se à discussão, no Livro IV de The Town and the City, no qual Peter volta de uma viagem e encontra Julie sentindo-se solitária e deslocada em Nova York.
95 Maxwell Geismar foi um crítico da New York Review of Books e também editor de The Portable Thomas Wolfe (1946).